O direito fundamental ao planejamento familiar

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1. Introdução:


O princípio do Planejamento Familiar foi consagrado tanto em sede legal (art. 1565, §2º do CC de 2002), quanto constitucional (art. 226, §7º da CF/88), senão vejamos:


“O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas” (CC, art. 1565, §2º).


“Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (CF, art. 226, §7º).


Referido princípio encontra-se regulamentado na Lei nº 9.263/1996, que assegura a todo cidadão, não só ao casal, o planejamento familiar de maneira livre, não podendo nem o Estado, nem a sociedade ou quem quer que seja estabelecer limites ou condições para o seu exercício dentro do âmbito da autonomia privada do indivíduo.


Trata-se de uma legislação mais voltada à implementação de políticas públicas de controle de natalidade e da promoção de ações governamentais dotadas de natureza promocional, que garantam a todos o acesso igualitário às informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade. [1]


Acerca do tema em questão, o professor Arnaldo Rizzardo assevera o seguinte:


 “desde que não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal, à família reconhece-se a autonomia ou liberdade na sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credor religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos. Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros”. (…) Dentro do âmbito da autonomia, inclui-se o planejamento familiar, pelo qual aos pais compete decidir quanto à prole, não havendo limitação à natalidade, embora a falta de condições materiais e mesmo pessoal dos pais. Eis a regra instituída no §2º do art. 1565: ”O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”. [2]


Nesse sentido, todas as questões referentes à inseminação artificial e à engenharia genética encontram guarida e embasamento nesse preceito. Todos os indivíduos têm direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva, devendo o Estado tratar os distúrbios de função reprodutora como problema de saúde pública, garantindo acesso a tratamento de esterilidade e reprodução assistida.


2. O Planejamento Familiar como Direito Fundamental.


Antes de discorrer-se a respeito da questão, são válidos alguns ensinamentos, dentre os quais os de Norberto Bobbio sobre o que significa “direito”, para que depois se chegue ao conceito de direitos humanos e, após, finalmente, discorra-se acerca dos direitos humanos fundamentais.  Assim, para o autor:


“a existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação. Assim como não existe pai sem filho e vice-versa, também não existe direito sem obrigação e vice-versa. A velha idéia de que existem obrigações sem direitos correspondentes, como as obrigações de beneficência, derivava da negação de que o beneficiário fosse titular de um direito. ”[3]


Ainda sobre o assunto, complementa:


“Uma coisa é direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido, outra é ter um direito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembléia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção” [4]


Sobre a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais, Ana Maria D’Ávila explica que “frequentemente, são utilizadas como sinônimos as expressões direitos humanos e direitos fundamentais, termos que, apesar de na doutrina não especializada serem usados indiscriminadamente, referem-se a instituições diferentes. Direitos humanos são princípios que resumem a concepção de uma convivência digna, livre e igual de todos os seres humanos, válidos para todos os povos e em todos os tempos. Direitos fundamentais, ao contrário, são direitos jurídica e constitucionalmente garantidos e limitados espacial e temporariamente” [5].


Dissertando a respeito da idéia do surgimento dos direitos fundamentais do homem, Arnaldo Vasconcelos apresenta em sua obra Direito, Humanismo e Democracia que:


“Essa idéia só surge quando se verifica o afastamento entre o individual e o social, a partir do instante em que o Estado aparece na teoria moderna como um “mal necessário”. Sua formulação clássica foi fixada por Herbert Spencer, em obra justamente intitulada O Homem contra o Estado. Se o ateniense não conheceu a problemática dos direitos fundamentais do homem, levou à prática, entretanto, em nível nunca jamais igualada, sua peculiar vocação de homo politicus.”[6]


Ingressando propriamente no tema proposto, é de fundamental importância para analisar se o planejamento familiar representa um direito humano fundamental que se faça a separação dos dois institutos: direito humano e direito fundamental. Acerca do tema, Willis Santiago Guerra Filho entende que:


“Uma primeira dessas distinções é aquela entre “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão empírica, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. Contudo, estabelecendo um corte epistemológico, para estudar sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos, enquanto pautas ético-políticas, situadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas de direito interno. ”[7]


Já o constitucionalista Paulo Bonavides, citando o alemão Konrad Hesse, diz que “direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais”. [8] O autor acima citado refere-se, no que tange aos “direitos do homem ou da liberdade”, se assim podemos exprimi-los, como “direitos naturais, inalienáveis e sagrados”, direitos tidos também por “imprescritíveis, abraçando a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.[9] Complementa seu pensamento mencionando que:


“A história dos direitos humanos – direitos fundamentais de três gerações sucessivas e cumulativas, a saber, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos – é a história mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade jaz primeiro na Sociedade e não nas esferas do poder estatal.” [10]


Por outro lado, Alexandre de Moraes trata do assunto no aspecto de que “a noção de direitos fundamentais é mais antiga que o surgimento da idéia de constitucionalismo, que tão-somente consagrou a necessidade de insculpir um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito, derivado diretamente da soberana vontade popular”. [11] Mencionado autor, por sua vez, traz sua própria definição de direitos humanos fundamentais, embora ofereça outras, que passa a enumerar:


 “O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (…)


A Unesco, também definindo genericamente os direitos humanos fundamentais, considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro, regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (Lês dimensions internationales dês droits de l’homme. Unesco, 1978, p. 11).


Pérez Luño apresenta-nos uma definição completa sobre os direitos fundamentais do homem, considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional (CASTRO, J. L. Cascajo, LUÑO, Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gomes. Los derechos humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilha: Universidad de Sevilha, 1979. p. 43).”[12]


Em arremate final, o mesmo autor acima citado aduz que: “Os direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.” [13]


No que tange ao princípio do planejamento familiar, cumpre-nos destacar o que preceitua a Constituição Federal de 1988, carta de direitos que, este ano completará vinte e dois anos de vigência, desde a sua promulgação: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (CF, art. 226, §7º). Referido dispositivo constitucional está inserido no Capítulo VII – “Da Família, Da Criança, Do Adolescente e Do Idoso”, que por sua vez faz parte do Título VIII – DA ORDEM SOCIAL.


Em que pese sua localização espacial, fora do Título II da Carta Magna, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, o artigo 5°, §2º da CF/1988 preceitua, “in verbis”:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]


§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”


A constituição instituiu ao patamar da dignidade humana a satisfação e o exercício do direito ao planejamento familiar, a ser assegurado pelo Estado. Este é, justamente, o pensamento de Alexandre de Moraes:


“O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-la em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.”[14]


A Lei nº 9.263/96, em seu art. 2º, considera como planejamento familiar o conjunto de ações de regulação de fecundidade que garante direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem e pelo casal.


Ora, sendo o planejamento familiar um direito consagrado constitucionalmente, como já explanado e, estando todas as questões referentes à inseminação artificial e à engenharia genética abrangidas no conceito levantado por este princípio, pode-se dizer que o planejamento familiar, como princípio constitucional, reveste-se não só de um cunho negativo (um não fazer do Estado), mas também de uma visão positiva, haja vista que, sendo o direito à saúde sexual (bem como à reprodução) revestido de caráter fundamental, deve o Estado tratar os distúrbios de função reprodutora como problema de saúde pública, garantindo acesso a tratamento de esterilidade e reprodução assistida.


Mais do que isso, pode-se também relacionar o princípio do planejamento familiar com o princípio da solidariedade social e familiar, esculpido no art. 3º, inciso I, também do Texto Maior, pelo qual: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”.


Nesse sentido, a igualdade de acesso das pessoas (e não só dos casais) às informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade torna-se não só um direito de todos, mas um dever do ente estatal, que deve pautar-se tanto por meio da necessária abstenção de ingerências indevidas na vida privada das pessoas, bem como por meio da implementação de políticas públicas que tornem viável a concretização dos projetos de vida dos indivíduos, mormente no que tange à perpetuação da espécie.


Partindo de uma interpretação sistemática da ordem jurídica vigente, é correto afirmar que é assegurado o direito institucional de, através de medidas públicas, ser realizada fecundação artificial em mulheres inférteis. A sociedade, bem como o Estado, tem a incumbência de amparar as pessoas que se chocam contra o obstáculo da esterilidade a superar esta barreira..


De outro lado, não se pode esquecer, ainda, que o direito à saúde, proclamado pelo art. 6º da Carta Magna Federal de 1988, aplica-se também ao direito de procriar, uma vez que, conforme já ressaltado, o problema de esterilidade é um problema de saúde que precisa de tratamento e solução encontrada nas modernas técnicas científicas da medicina contemporânea.


O planejamento familiar representa uma garantia ao cidadão, estando incluso dentre os direitos fundamentais, não se podendo negar-lhe aplicação do regime da eficácia jurídica reforçada de que são dotados tais direitos, elementos que devem ser associados aos Princípios da Integridade Física e da Dignidade da Pessoa Humana, isso sem levar em conta os Princípios da Liberdade e da Igualdade.


Esse regime jurídico especial destina-se especificamente a conferir eficácia aos direitos fundamentais – de cuja normatividade depende a supremacia constitucional, a identidade da Constituição e a fórmula política do Estado Democrático de Direito. Marcelo Lima Guerra[15] aponta a aplicabilidade imediata e a condição de cláusulas pétreas como duas das garantias que compõem esse regime jurídico especial no Brasil, sendo certo que ele assume feições diferenciadas conforme o direito positivo de cada Estado constitucional.


Esse regime jurídico de eficácia reforçada é formado por um complexo indissociável de garantias. Não há no texto constitucional nada que faça inferir a intenção de criação de um tratamento garantístico diferenciado para as categorias de direitos fundamentais. Muito ao contrário, as garantias fundamentais e institucionais são dispostas de modo esparso, assistemático, sem a preordenação para servir a essa ou aquela dimensão de direitos fundamentais, o que denota sua vocação para instrumentalizar todas as normas jusfundamentais.  


A normatividade dos direitos fundamentais pode revelar-se inalcançável em algumas hipóteses mesmo com o manejo de todo o aparato de garantias que o regime jurídico especial no qual estão inseridos encerra, não havendo portanto como justificar, à luz da Constituição de 1988, o desaparelhamento de nenhuma categoria de direitos fundamentais com a retirada de uma ou algumas das garantias que o compõem – como o status de cláusulas pétreas – seja pela inexistência de hierarquia entre os direitos fundamentais, seja pela necessidade de conferir aos direitos fundamentais tratamento jurídico diferenciado dos demais tipos de direito para assegurar-lhes a eficácia. A dificuldade de efetivação dos direitos fundamentais é a causa desse regime jurídico especial, que consiste num todo indivisível, pois a efetivação das normas jusfundamentais necessita de todo esse conjunto de garantias.


3. Conclusão


Dessa forma, resta-nos concluir que o livre planejamento familiar, tratando-se de um direito fundamental, não pode ser restringido, devendo ter seus inúmeros obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos. Como direito fundamental que é, ao livre planejamento familiar é conferido uma eficácia reforçada em sua aplicabilidade, dado que os direitos fundamentais, considerados em seu sentido amplo, ainda que não tenham sua intangibilidade expressamente assegurada, afiguram-se como pontos indissociáveis da propria condição de subsistência da Lei Maior.


Positivado como está, o planejamento familiar representa um direito fundamental.


 


Referências

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Notas:

[1] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado, 1ª ed, São Paulo, Ed. Atlas, 2003, p. 44.

[2] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 15 e 16.

[3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 1ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1992, p. 79/80

[4] Ob. cit. p. 83.

[5] LOPES, Ana Maria D’ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2001, p.41.

[6] VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo e Democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 81.

[7] FILHO, Willis S. Guerra(Coordenador). Direitos Fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais. 1ª ed., Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1997, p. 12.

[8] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2003.

[9] Ob. cit. p. 516

[10] Ob. cit. p. 528.

[11] MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2000, p. 19.

[12] Ob. cit. pp. 39-40.

[13] Ob. cit. p. 20.

[14] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional; 17ªª ed., São Paulo: Atlas, 2005.

[15] Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil. São Paulo: RT, 2003, p. 83.

Informações Sobre o Autor

Roberta Madeira Quaranta

Defensora Pública do Estado do Ceará, Mestre em Direito Público, Presidente da Comissão de Acesso à Justiça da OAB/CE e professora da Universidade de Fortaleza – UNIFOR


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