José Fernandes da Silva Neto
Resumo: Analisa-se, neste trabalho, como se deu o surgimento daquilo que ficou conhecido como a Doutrina Brasileira do Habeas Corpus. Tal estudo é feito através dos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no período da Primeira República (1889-1930). Objetivou-se, assim, o estudo da relação entre a tal garantia elevada naquele período a nível constitucional e a cidadania. Toda a pesquisa fora feita através do estudo de doutrinas e dos próprios julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal – levando, pois, à conclusão de que naquele período, à míngua de outro instrumento jurídico, o habeas corpus foi o mecanismo judicial (reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal) hábil a tutelar a cidadania.
Palavras-chave: Cidadania. República.
Abstract: This work analyzed how was the emergence of what became known as the Brazilian doctrine of Habeas Corpus . This study is done through the judgments delivered by the Supreme Court in the period of the First Republic (1889-1930). The objective is to study the relationship between such high assurance that period the constitutional status and citizenship. All research was done through the study of doctrines and judgments delivered by the Supreme Court – leading to the conclusion that in that period , for lack of another legal instrument , habeas corpus was the legal mechanism (recognized by the Supreme Court itself Federal) able to protect citizenship.
Keywords: Citizenship. Republic.
Sumário: Introdução. 1. A Primeira República: breves comentários. 2. A Constituição de 1891. 2.1. Aspectos gerais. 2.2. Estruturação do Poder Judiciário. 2.2.1. A criação do Supremo Tribunal Federal. 3. Cidadania. 3.1. Conceito e im(precisões). 3.2. A cidadania no Brasil. 4. O Habeas Corpus e os julgados do Supremo Tribunal Federal. 4.1. Habeas Corpus n. 4.781. 4.2. Habeas Corpus n. 3.536. 4.3. Habeas Corpus n. 3.697. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho é destinado a conduzir a origem daquilo que se chamou de Doutrina Brasileira do Habeas Corpus, interpretada, aqui, à luz da cidadania republicana, através da análise de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no período da Primeira República (1889-1930).
Existe para a ciência jurídica grande diferença entre direitos e garantias. O habeas corpus representa esta última categoria e é, talvez, um dos mais antigos instrumentos jurídicos que o mundo conhece. Sua aplicação foi e é, via de regra, destinada à tutela do direito de locomoção, ir e vir.
No entanto, no Brasil, a Constituição de 1891, deu a ele amplitude maior, qual seja: a de tutela de todos os direitos constitucionais então existentes, tendo em vista a ausência de qualquer outro mecanismo judicial capaz de tutelá-los.
1 A Primeira República: breves comentários
A Primeira República é o período da história do Brasil compreendido entre 1889 e 1930.
Infere-se, portanto, que se trata do primeiro momento do País, após a Proclamação da República.
Fora uma época marcada por agitações sociais, econômicas e, principalmente, jurídicas, já que em 1891 houve a promulgação da primeira Constituição Republicana do Brasil.
Este trabalho, conforme já afirmado, se destina a conduzir a origem daquilo que se chamou de Doutrina Brasileira do Habeas Corpus, interpretada, aqui, à luz da cidadania republicana, através da análise de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no período em estudo (1889-1930).
2 A Constituição de 1891
2.1 Aspectos gerais
A elaboração e promulgação (ou outorga) de uma Constituição, seja em qualquer Estado e em qualquer momento nasce, certamente, em razão do rompimento com a ordem jurídica até então estabelecida. Tal ruptura acontece através de revoluções, golpes, reformas políticas ou por qualquer outra forma, popular ou não, que seja capaz de mudar o quadro jurídico até então vigente.
A composição de um texto constitucional quando ocorre qualquer daquelas situações (rupturas) é elaborado e promulgado (ou outorgado) pelo Poder Constituinte Originário, isto é, por um Poder acima de tudo, acima até mesmo do próprio Estado, até porque será esse poder que o recriará, uma vez que a ordem constitucional anterior (seu sustentáculo) se rompeu.
Mais: aquele poder não se subordina a nenhum dos outros poderes estatais, qual sejam, o Executivo, Legislativo e Judiciário, até mesmo porque esses aí são poderes constituídos e aquele outro é o que Poder que os constitui.
Aquele poder possui, portanto, características próprias: é inicial, ilimitado (ou autônomo) e incondicionado:
“É inicial, porque está na origem do ordenamento jurídico. É o ponto de começo do Direito. Por isso mesmo, o poder constituinte não pertence à ordem jurídica, não está regido por ela. Decorre daí outra característica do poder constituinte originário – é ilimitado. Se ele não se inclui em nenhuma ordem jurídica, não será objeto de nenhuma ordem jurídica. O Direito anterior não o alcança nem limita a sua atividade. Pode decidir o que quiser. De igual sorte, não pode ser regido nas suas formas de expressão pelo Direito preexistente, daí se dizer incondicionado” (MENDES; BRANCO, 2013, p.104).
Assim, nítido: a Constituição de 1891 surgiu (como a primeira constituição republicana) em substituição à Constituição Imperial de 1824, uma vez que, pelo golpe do 15 de novembro de 1889, a ordem constitucional anterior foi rompida.
O Poder Constituinte Originário no caso brasileiro e, mais especificamente, no tocante à Carta Constitucional de 1891, foi exercido por uma Assembleia Constituinte integrada, apenas, por vinte e uma pessoas. Os trabalhos da assembleia – representante daquela autoridade genuína – concentraram-se em cinquenta e oito dias de sessões, sendo promulgada em 24 de fevereiro de 1891.
Marco Antônio Villa fala sobre aquela Constituição:
“É a Carta mais enxuta da nossa história. Parte disso deve ser creditada à brevidade da Assembleia Constituinte. Instalada em 15 de novembro, teve 58 dias de sessões. Uma comissão com 21 constituintes – cada um representando um estado – em duas semanas já apresentou a primeira versão do texto constitucional. E em fevereiro o plenário aprovou a Carta” (2011, p.32).
Lembra, ainda, Adhemar Ferreira Maciel, que “a maioria dos constituintes de 1891 era de bacharéis em Direito. Havia professores de ensino superior, médicos e um número razoável de militares. Dois banqueiros (…) se achavam entre eles. Também havia fazendeiros” (2000, p.165).
A Carta Constitucional de 1891 não era extensa, tinha apenas 91 artigos; segundo Marco Antônio Villa, “marcados pela prolixidade” (2011, p.32). O texto ficou dividido em 5 títulos: Da Organização Federal, Dos Estados, Do Município, Do Cidadãos Brasileiros e das Disposições Gerais.
Inspiraram a Primeira Constituição da República Brasileira, a dos Estados Unidos, da Argentina e da Suíça, que, como afirma aquele ex-Ministro do STJ, “foram tomadas como pano de fundo” (2000, p.165).
A Constituição de 1891 aniquilou o então Poder Moderador, deixando, apenas, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, este objeto de análise no próximo subcapítulo.
Confira-se no texto constitucional: “Art. 15. São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si” (BRASIL, 1891).
A nova Carta tratou, também, do sistema eleitoral. Flávia Lages de Castro discorre sobre o assunto:
“Quanto à eleições, pode-se destacar não somente o que a Constituição indicava, como também é interessante notar algumas peculiaridades do sistema eleitoral durante a República Velha. Nesse sentido, iniciando a análise pela Constituição de 1891, a entrada no processo eleitoral, como eleitor, se dava de forma voluntária, ou seja, não era mais obrigatório o alistamento, tampouco era necessário renda mínima, porém o eleitor não poderia ser analfabeto em um sentido absoluto, como a prática demonstrou, visto que saber desenhar o nome era o suficiente para o alistamento eleitoral. O eleitor não poderia ser também mendigo, nem religioso de ordem religiosa, nem praça de pré. A idade mínima para o alistamento eleitoral era de 21 anos” (2014, p.420).
A separação das relações entre o Estado e a Igreja (que de fato já havia acontecido) no plano constitucional também foi uma das inovações da Carta Política.
Veja-se:
“Art.72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (…) § 3º Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum” (BRASIL, 1891).
No que toca a declaração de direitos, esta ficou na seção II do título IV, no rol dos artigos 72 a 78.
A nova Constituição assegurou aos cidadãos direitos civis e políticos (tema do próximo capítulo), além de instituir, a nível constitucional, a garantia do habeas corpus.
Deduz-se que aquela Carta Política trouxe outras inovações. Aqui, respeitando-se à síntese, apresentou-se apenas aquelas, por sobre o suposto de desviar-se do objeto central deste trabalho.
No mais, calham, novamente, as afirmações de Adhemar Ferreira Maciel:
“Sinteticamente, podemos concluir que a nossa Constituição de 1891 foi uma das mais avançadas do mundo. Baseou-se, como vimos, naquilo que de melhor existia. Pôde contar com as experiências alheias, muitos institutos foram corrigidos e aperfeiçoados; outros, criados. Entre seus constituintes, figuraram homens notáveis, como nunca mais se teve notícia” (2000, p.182).
Registre-se que a primeira Constituição republicana teve só uma mudança, em 1926. Sua duração foi até 1930, quando novamente, outro movimento surge e rompe com aquele que até então estava em vigência.
A nova Constituição inovou, também, ao tratar do Poder Judiciário: inaugurou o que se chama de sistema dual: as Justiças foram divididas em estadual e federal, cada uma com competências próprias.
Sobre isso:
“O Poder Judiciário foi montado, nesse início de República, baseado no sistema dual, dando início à tradição dualista no Brasil. Tal sistema é composto pelo Poder Judiciário Federal e pelos poderes judiciários estaduais que acabaram por assim serem organizados até pelo modelo federativo a que se propunha o país e a Constituição” (CASTRO, 2014, p.414).
Ademais, fora criado o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário nacional, em substituição ao então Supremo Tribunal de Justiça.
Calha a lição de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck:
“O Supremo Tribunal Federal foi criado em 1891, tendo seus antecedentes no Supremo Tribunal de Justiça, instituído no nascedouro do Brasil independente, no ano de 1828. Trata-se do órgão judicial brasileiro mais antigo (ao lado do Supremo Tribunal Militar, de 1808), cumprindo-lhe também a função de órgão de cúpula do Poder Judiciário (…)” (2013, p.1346).
O Tribunal era composto de 15 ministros e seu primeiro presidente foi Freitas Henriques; sua primeira sessão fora realizada em 28 de fevereiro de 1891, em caráter extraordinário.
Lêda Boechat Rodrigues comenta que:
“A 18 de fevereiro de 1891, quatro dias depois de promulgada primeira Constituição republicana, reunia-se o S.T.F. no velho edifício da Relação, à rua do Lavradio, às 13 horas, em sessão extraordinária. Dos 15 Ministros nomeados, a maioria vinha do Supremo Tribunal de Justiça e pouco se demoraria no novo Tribunal. Quatro estavam na casa dos 70 anos, sete na dos 60, 3 na dos 50 e apenas um tinha menos de 50 anos. A idade média era de 63 anos” (1991, p.7).
Ademais, registre-se que, ao contrário da Suprema Corte organizada a partir da Constituição de 1988, aquele Supremo Tribunal não previa limite de idade para ser ministro.
No entanto, a necessidade de que os nomes dos indicados fossem aprovados pelo Senado, antes da nomeação, é a mesma de hoje. As indicações cabiam ao Presidente da República. Tudo isso na forma do artigo 56 da Constituição de 1891.
Sobre os primeiros ministros da Corte, comenta Adhemar Ferreira Maciel que: “a quase totalidade de juízes do Supremo Tribunal Federal veio do extinto Supremo Tribunal de Justiça, criado pela Carta imperial de 1824 (art. 163). Quatro deles tinham mais de setenta anos de idade e sete já tinha passado dos sessenta” (2000, p.177).
No que toca as competências da Corte, elas estavam previstas no rol do artigo 59 da nova Constituição, conforme exposto abaixo:
“Art.59 – Á Justiça Federal compete: – Ao Supremo Tribunal Federal: I – processar e julgar originaria e privativamente: a) o Presidente da Republica, nos crimes communs, e os Ministros de Estado, nos casos de art. 52; b) os Ministros diplomaticos, nos crimes communs e nos de responsabilidade; c) as causas e conflictos entre a União e os Estados, ou entre estes, uns com os outros; d) os litigios e as reclamações entre nações estrangeiras e a União ou os Estados; e) os conflictos dos juizes ou tribunaes federaes entre si, ou entre estes e os dos Estados, assim como os dos juizes e tribunaes de um Estado com os juizes e os tribunaes de outro Estrado. II – julgar em gráo de recurso as questões excedentes da alçada legal resolvidas pelos juizes e tribunaes federaes; III – rever os processos findos, em materia crime” (BRASIL, 1891).
Flávia Lages de Castro diz que:
“O Supremo Tribunal Federal tinha jurisdição ordinária e de recurso, bem como a de revisão. Assim ao Supremo Tribunal Federal foi determinada a competência exclusiva para conhecer certos assuntos em instância única, não sendo possível os juízes inferiores tratarem destas matérias. No máximo, eles somente poderiam praticar diligência quando solicitados, é a chamada jurisdição ordinária. Para outras causas o Supremo Tribunal Federal seria a instância superior que, em grau de recurso, confirmaria ou reformaria as decisões, a isso se dá o nome de jurisdição de apelação. Extraordinariamente poderia ainda rever sentenças de últimas instâncias proferidas pelas justiças dos estados e os processos findos em matéria de crime. Mais ainda, a Constituição de 1891 coloca o Supremo Tribunal Federal como o guardião da Constituição, bem condizente com o pensamento de Rui Barbosa” (2014, p.414).
Algumas daquelas competências são até hoje parte do rol de atribuições da Corte, como o julgamento de recurso extraordinário e competência para conhecer, originariamente, de certos assuntos.
O tema que se discute neste capítulo não é fácil. Cidadania não é algo concreto. Trata-se, pois, de um direito, por isso a abstração. Direito esse que depende, para sua efetivação, de atividades concretas do Estado, quem deve, ou pelo menos deveria, tutelá-lo.
Portanto, pode-se afirmar, desde já, que todos os direitos derivam de um maior, qual seja: o de cidadania.
Assim, infere-se que a cidadania é o direito maior, o qual todos os cidadãos deveriam ter. E, partindo do princípio de que eles o têm, um mecanismo (inclusive judicial) de sua tutela se faz necessário, o que se discorrerá no próximo capítulo.
Registre-se que, ao contrário do que alguns afirmam, a cidadania não é fruto do Estado Democrático de Direito. Desde os tempos mais remotos, outros povos já a concebiam, porém de formas e acepções distintas.
Mais: cidadania não se resume, simplesmente, ao voto; ele representa uma de suas faces, mas não sua totalidade.
A palavra cidadania vem do latim civitas, que significa, basicamente, o direito que tem a pessoa tem de ser cidadã, isto é, de participar da vida pública do Estado a que se encontra ligada.
Ainda mais, a cidadania quer significar um status de igualdade entre os cidadãos, nas suas relações privadas e com o Estado. Registre-se que tal status é concepção moderna do conceito, já que, até nas grandes Revoluções dos séculos XVII e XVIII, sobretudo a Francesa, o efetivo exercício daquele direito era individualista e preconceituoso, de forma que poucos o exerciam.
A noção de cidadania, repita-se: é antiga. Têm precedentes entre os gregos que concebiam como cidadãos apenas aqueles que podiam se dedicar inteiramente as atividades do Estado. Atividades comerciais, por exemplo, eram desprezadas, e seus exercentes (como os escravos), portanto, não tinham qualquer participação no destino da pólis, o centro do poder político.
Lembra Mário Lúcio Quintão Soares que “o pensamento grego, considerando indignas de penetrar na esfera política as atividades vinculadas às necessidades vitais, fez com que as atividades econômicas essenciais do comércio e da manufatura fossem atribuídas aos escravos e aos metecos” (2001, p.231).
Entre os gregos a cidadania era sinônimo de desigualdade, por isso que eram cidadãos não aqueles que queriam e, sim, aqueles que podiam. É dizer: o status de cidadão era ligado ao ter – aqueles que possuíam riquezas e, portanto, não precisavam trabalhar para sobreviver, podiam participar ativamente dos negócios estatais.
Destaque-se, ainda, o seguinte: “a riqueza privada, condição para acesso à esfera pública, assegurava ao cidadão liberdade para sua participação política, pois não necessitava prover a si próprio” (SOARES, 2011, p.236).
E ainda que:
“(…) a cidadania vinculava-se à terra, pelo que as póleis gregas limitavam o direito de possuir terras a seus cidadãos. A propriedade inerente a cidadania revelava-se mais do que condição para admissão à esfera pública. O indivíduo sem propriedade equiparava-se ao escravo ou à mulher – não era uma pessoa livre, pois deveria suprir suas necessidades vitais” (SOARES, 2011, p.237).
Entre os romanos, a noção de cidadania excludente era a mesma dos gregos: “a cidadania romana – civis romanus sum – constituía título de honra e de usufruto de direitos políticos e privados assegurados pela civitas a privilegiadas pessoas, as quais viviam de acordo com a premissa que Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuens (Institutiones, I, 1)” (SOARES, 2011, p.244).
O surgimento das primeiras guerras e a ascensão da Igreja levou ao rompimento daquele sistema político implantado pelos gregos e romanos, dando início, então, à era medieval.
Veja-se: “o desmoronamento das instituições políticas romanas e o fortalecimento do cristianismo ensejaram a reestruturação social desembocando no feudalismo, cujas peculiaridades diferiam consoantes seus aspectos regionais” (SOARES, 2011, p.248).
Durante o medievo, houve a fragmentação do poder estatal, através daquilo que ficou conhecido como o feudalismo. Aquela esfera pública (ainda que desigual) existente no sistema grego e romano fora substituída pela esfera privada, através dos feudos, mas com subordinação total à Igreja:
“A Igreja Cristã representou, durante larga margem de tempo, na Idade Média, a única organização monista de autoridade, exigindo obediência política de todos os homens, inclusive dos que exerciam poder político, limitando-lhes a jurisdição e estabelecendo os parâmetros da supremacia papal” (SOARES, 2011, p.248).
Esclarece-se, apenas, que o feudalismo, inaugurado na época medieval:
“(…) caracterizou-se por específicas relações de dependência pessoal (vassalagem), abrangendo em sua cúpula rei e suserano e, em sua base, essencialmente, o campesinato. Esta dependência pessoal de obrigações mútuas se originava de ato sacramental e solene, apresentando duas vertentes: o vassalo, em troca de proteção e segurança, inclusive econômica, oferecia fidelidade, trabalho e auxílio ao suserano, que, reciprocamente, investia o vassalo no benefício, elemento real e econômico dessa relação feudal” (SOARES, 2001, p.248-9).
Embora tenha havido a ruptura com os antigos modos de dominação, o medievo não trouxe evolução à noção de cidadania. Mais: nem mesmo aquela ideia excludente permaneceu, já que a noção de Estado, pressuposto lógico para a noção de cidadão praticamente não existia no período e, também, porque o poder estava fragmentado e subordinado, em último grau, aos mandos da Igreja.
Walber de Moura Agra faz um breve comentário sobre o assunto: “na Idade Média, o conceito de cidadania sofre um esvaziamento, haja vista a fragmentação de poder e o declínio das Cidades-Estado existentes, juntamente com o seu conceito de polis” (2013, p.110).
Entre os séculos XVI e XVIII o mundo, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, passou por transformações que levaram a decadência do então sistema existente. Vieram, então, as Revoluções Inglesa, Norte-americana e Francesa, essa última, a mais expressiva de todas.
Com aqueles acontecimentos, a ideia do constitucionalismo foi surgindo com mais intensidade (já que haviam indícios dela na antiguidade), com o consequente nascimento de constituições que cuidaram de matérias relacionadas ao próprio Estado e, também, de seu povo.
José Adércio Leite Sampaio, constitucionalista mineiro, diz que: “a Revolução Francesa fechou a tríade das revoluções que deram nova feição política e jurídica ao Ocidente. Mais universalista e racionalista, a prova de que a humanidade progredia em direção à liberdade, como dissera Kant, ela é a mais lembrada do período” (2013, p.27).
Os ideais da Revolução Francesa eram a liberdade, igualdade e fraternidade, o que não distancia muito da ideia central inspiradora do conceito de cidadania.
Explica-se: se os sujeitos são livres e tratados como iguais, isto é, sem quaisquer discriminações, o espaço público para o debate cresce, a sociedade se desenvolve e o Estado atinge o fim principal, que é a promoção do bem comum.
Assim, a cidadania é a condição de ingresso do sujeito na vida pública; seu conceito sofre variações conforme o ramo do conhecimento e o momento histórico enfocados.
Defende-se, nesta monografia, a definição mais tradicional: de que a cidadania, enquanto o direito maior, é a soma de três grupos de direitos, os civis, políticos e sociais. José Murilo de Carvalho ensina o que é cada um deles.
Sobre os civis, diz que:
“São os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. (…). Sua pedra de toque é a liberdade individual” (2015, p.15).
Disserta que os políticos são aqueles que “se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar e ser votado” (2015, p.15).
Comenta, ainda, por fim, que os sociais “incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. (…) A ideia central em que se baseiam é a da justiça social” (2015, p.16).
Evidencia-se, assim, que para gozar de qualquer pretensão que derive de um daqueles três direitos é necessário que o sujeito interessado seja cidadão. É dizer: que o pretendente a usufruir de um direito, seja detentor do maior deles, qual seja, a cidadania.
Os primeiros anos da história do Brasil foram formados por exploração, guerras e conquista de territórios. Uma população analfabeta existia e a concentração de terras em mãos de poucos era comum. A colonização do Brasil pelos portugueses não propiciou o surgimento de um povo cidadanizado.
José Murilo de Carvalho ensina que:
“Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais” (2015, p.17).
Não havia, portanto, no período colonial, qualquer noção, mínima que fosse, de cidadania. Não existiam direitos políticos, civis, muito menos sociais.
A proclamação da Independência em 1822 e a consequente outorga de uma Constituição trouxe algum avanço na ideia cidadã. Embora tumultuadas e fraudadas as eleições existentes no período, os direitos políticos, enquanto expressão da cidadania, foram regulamentados, ainda que preconceituosamente, na Constituição Imperial.
Sobre o assunto:
“A Constituição regulou os direitos políticos, definiu quem teria direito de votar e ser votado. Para os padrões da época, a legislação brasileira era muito liberal. Podiam votar todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mínima de 100 mil-réis. Todos os cidadãos qualificados eram obrigados a votar. As mulheres não votavam, e os escravos, naturalmente, não eram considerados cidadãos” (CARVALHO, 2015, p.35).
Na época, a noção de direitos civis é inócua. Ora: não há como falar em direitos civis no império se havia escravidão, só abolida em 1888.
Volta-se aos comentários de José Murilo de Carvalho, para quem:
“A herança colonial pesou ainda mais na área dos direitos civis. O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado. Esses três empecilhos ao exercício da cidadania civil revelaram-se persistentes. A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas” (2015, p.50-1).
No que toca aos direitos sociais, nada de muito evoluíram. Eram praticamente inexistentes, o que havia, partia da iniciativa privada:
“Como direitos civis e políticos tão precários, seria difícil falar de direitos sociais. A assistência social estava quase exclusivamente nas mãos de associações particulares. Ainda sobreviviam muitas irmandades religiosas oriundas da época colonial que ofereciam a seus membros apoio para tratamento de saúde, auxílio financeiro, empréstimos e mesmo pensão para viúvas e filhos” (CARVALHO, 2015, p.66-7).
Em que pesem a formação das oligarquias locais, a República, em 1889, trouxe algum avanço: a regulamentação dos direitos políticos continuou na Constituição de 1891, cujo texto original era o seguinte:
“Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se alistarem na fórma da lei. § 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para as dos Estados: 1º Os mendigos 2º Os analfabetos; 3º As praças de pret, exceptuando os alumnos das escolas militares de ensino superior; 4º Os religiosos de ordens monasticas. companhias, congregações, ou communidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediencia, regra, ou estatuto, que importe a renuncia da liberdade individual.§ 2º.São inelegiveis os cidadãos não alistaveis. Art. 71. Os direitos de cidadão brazileiro só se suspendem, ou perdem nos casos aqui particularisados. §1º Suspendem-se: a) por incapacidade physica, ou moral b) por condemnação criminal, emquanto durarem os seus efeitos. § 2º Perdem-se: a) por naturalisação em paiz estrangeiro; b) por acceitação de emprego ou pensão de governo estrangeiro, sem licença do Poder Executivo Federal. § 3º Uma lei federal determinarà, as condições de reacquisição dos direitos de cidadão brasileiro” (BRASIL, 1891).
Naquilo que se refere aos direitos civis, a Constituição de 1891 deu lugar a eles no artigo 72 de seu texto, não tão extenso como o artigo 5º da atual Constituição, mas para a época em questão avançado.
Em relação aos direitos sociais, novamente eles estavam ausentes. O que pouco existia guardava relação com o movimento operário, que começava a dar seus primeiros suspiros. No entanto, só com a Carta de 1934 é que eles, os direitos sociais, começaram a aparecer decisivamente.
Confira-se em José Murilo de Carvalho:
“O governo pouco cogitava de legislação trabalhista e de proteção ao trabalhador. Houve mesmo retrocesso na legislação: a Constituição republicana de 1891 retirou do Estado a obrigação de fornecer educação primária, constante da Constituição de 1824. (…) Não cabia ao Estado promover a assistência social. A Constituição republicana proibia ao governo federal interferir na regulamentação do trabalho. Tal interferência era considerada violação da liberdade do exercício profissional” (2015, p.67).
Continua o autor:
“No campo da legislação social, apenas algumas tímidas medidas foram adotadas, a maioria delas após a assinatura pelo Brasil, em 1919, do Tratado de Versalhes e do ingresso do país na Organização Internacional do Trabalho (OIT) criada nesse mesmo ano” (2015, p.68).
Conclui-se, este capítulo, no sentido de que as faces da cidadania no Brasil, no período em análise, eram apenas de direitos civis e políticos, por isso que os sociais ainda não existiam de forma expressa. Então, quando se falar em cidadania na Primeira República, está se falando, apenas, em direitos civis e políticos, jamais em sociais.
Dessa forma, se o habeas corpus, como já foi e será, ainda, afirmado neste trabalho, o instrumento de tutela da cidadania, ele foi o meio pelo qual os direitos civis e políticos (os que existiam) foram tutelados naquele período.
Existe na Ciência Jurídica diferença entre direitos e garantias: aqueles são as declarações do que possuem e podem os cidadãos, enquanto essas são os instrumentos que asseguram o cumprimento ou a não intervenção naqueles direitos postos.
Alexandre de Morais diz que:
“Diversos doutrinadores diferenciam direitos de garantias fundamentais. A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias (…)” (2013, p.31).
O habeas corpus representa aquela última classe, qual seja: a das garantias. Ele é um instrumento jurídico antigo: tem precedentes no Direito Romano.
No entanto, a doutrina majoritária é firme no sentido de que seu surgimento só veio expressamente em 1215, com a Magna Carta de João Sem Terra.
Nesse sentido é o entendimento do mesmo constitucionalista: “a origem mais apontada pelos diversos autores é a Magna Carta de João Sem Terra, em seu capítulo XXIX, onde, por pressão dos barões, foi outorgada pelo Rei João Sem Terra em 19 de junho de 1215 nos campos de Runnymed, na Inglaterra” (2013, p.129).
No Brasil, foi introduzido expressamente no Código de Processo Criminal de 1832, no artigo 340, com a seguinte redação: “todo o cidadão que entender, que elle ou outrem soffre uma prisão ou constrangimento illegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de – Habeas-Corpus – em seu favor” (BRASIL, 1832).
Restrita, dessa forma, a aplicação do habeas corpus: cabível, apenas, quando houvesse prisão ou constrangimento ilegal em face da liberdade do indivíduo.
A constitucionalização daquele writ se deu apenas na Constituição de 1891, no artigo 72, §22, cujo texto original era o seguinte: “dar-se-á habeas-corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar ameaçado em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder” (BRASIL, 1891).
Patente, pois, a natureza jurídica de garantia constitucional que tinha (e ainda tem) aquela ação, desde sua primeira aparição no ordenamento jurídico pátrio.
Observa-se quão ampla era a aplicação do habeas corpus. O requisito era que o indivíduo estivesse simplesmente em perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder. Não haviam requisitos específicos, como aqueles exigidos, hoje, na Constituição de 1988, qual seja: que a coação ou ameaça seja em face da liberdade de locomoção do indivíduo.
Colhe-se o seguinte:
“Como se pode notar, o referido dispositivo não fazia remissão ao direito de ir e vir, nem à liberdade de locomoção. Também não se falava em prisão, constrangimento corporal, em liberdade física propriamente dita. Somando-se a isso a presença das expressões coação, ilegalidade e abuso de poder, construiu-se a tese da utilização desse writ em todas essas hipóteses, independentemente da presença de um constrangimento físico direto” (SOUZA, s.d.)
A ampla aplicação dessa garantia levou os juristas da época a conceberam o habeas corpus como o único instrumento jurídico-constitucional de defesa da cidadania. É dizer: levou a interpretação de que toda vez que um direito estivesse ameaçado, o manejo do habeas corpus era a medida judicial correta.
Apresenta-se, agora, alguns julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal onde o habeas corpus foi utilizado para a proteção de todos os direitos dos indivíduos à ausência de outro meio jurídico levando, assim, à formação daquilo que se chamou de doutrina brasileira do habeas corpus.
Trata-se de habeas corpus impetrado por Ruy Barbosa em face do Estado da Bahia, ao argumento de que era candidato à Presidência da República e, naquele Estado, ele e seus correligionários estavam sendo impedidos e coagidos, ilegalmente, de realizarem comícios e reuniões públicas.
Veja-se o que diz o acórdão:
“Vistos, relatados e discutidos estes autos, deles costa que o senador Ruy Barbosa, por seu procurador dr. Arthur Pinto da Rocha, requereu o presente habeas corpus preventivo (…) para que possam, no Estado da Bahia e principalmente na cidade de São Salvador, sua capital, reunir-se todos, em comícios, nas praças públicas, ruas, teatros e quaisquer outros recintos, onde manifestem, livremente, seus pensamentos e opiniões, ameaçados como se acham todos, de sofrer violências e impedidos e coagidos como estão, por abusos de autoridade dos poderes públicos do Estado, representados por sua polícia” (BRASIL, 1919).
A ordem de habeas corpus foi concedida em julgamento ocorrido em 5 de abril de 1919, sob a relatoria do Ministro Edmundo Lins, à unanimidade, sob vários argumentos, entre eles o de que:
“Efetivamente, depois de assegurar a todos os indivíduos o direito de se reunirem livremente e sem armas, o legislador constituinte definiu, muito bem, a respeito, a função preventiva da polícia, verbis “não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública” (art. 72, §8º). Ora, desde que a polícia proíbe um meeting ou comício, não intervém no mesmo; pois intervir quer dizer meter-se de permeio, ver ou estar presente, assistir, como se vê em qualquer léxicon. É intuitivo que se não mete de permeio em uma reunião, não está à mesma presente, não assiste a ela quem a proíbe ou suprime” (BRASIL, 1919).
Este caso não está relacionado à liberdade de locomoção mas, mesmo assim, diante da amplitude dada ao habeas corpus, foi ele manejado corretamente pelo impetrante. Sobre seu cabimento, consta no acórdão que “para a maioria do Tribunal, é princípio corrente de que o habeas corpus é competente para proteger o exercício de qualquer direito, desde que este seja certo, líquido e incontestável” (BRASIL, 1919).
O acórdão diz ainda que no Tribunal é somente a minoria que entende que “o habeas corpus só é competente para proteger o direito de liberdade corpórea ou a simples faculdade de livre locomoção” (BRASIL, 1919).
Este é um caso envolvendo novamente o Senador Ruy Barbosa que impetrou, em face da Presidência da República, habeas corpus.
No acórdão consta o seguinte:
“Alega o impetrante: que fundado no art. 72, § 22, da Constituição da República, vem impetrar a garantia do habeas corpus afim de poder exercer um dos direitos essenciais e desempenhar um dos principais deveres que lhe tocam por força de seu cargo de senador da República. Que tendo pronunciado na sessão de 4 do corrente, no Senado, um discurso de protesto contra o ato do Governo da União que, infringindo preceitos constitucionais, prorrogou por seis meses o estado de sítio, decretando assim essa medida por toda a sessão anual do Congresso Legislativo, forneceu uma cópia datilografada da oração que acabava de proferir ao Imparcial, folha que se estampa nesta cidade, para se dado ao público nesse jornal e a outros que dela solicitassem provas impressas; mas, o 1º delegado auxiliar da polícia desta cidade, em nome de seu chefe, Dr. Francisco Valladares declarou ao sr. Eduardo Macedo Soares, redator do d’O Imperial, que essa autoridade proíbe a publicação dos debates no Congresso Nacional, que condena à clausura, ou reduz aos limites mesquinhos da publicidade oficial, inacessível ao povo, atenta contra os direitos não só do Poder Legislativo, mas também de cada um de seus membros, deputados e senadores” (BRASIL, 1914a).
Ressalte-se que no período em que essa ação fora impetrada o país estava em Estado de Sítio, decretado pelo então Presidente da República, Hermes da Fonseca.
O Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, contra um voto sob, entre outros argumentos, o de que:
“(…) o estado de sítio, nos termos em que está instituído no art. 80 da Constituição da República, com os seus limites traçados no § 2º, ns. 1 e 2 do mesmo artigo, ex vi do art. 19 da mesma Constituição, é inviolável por suas opiniões palavras e voto, no exercício do mandato, sem atentar contra o preceito constitucional do art. 15 (…)” (BRASIL, 1914a).
Sobre o manejo do habeas corpus, naquele tipo de questão, o Tribunal disse que:
“(…) o constrangimento ou coação de um deputado ou senador no exercício de seu mandato concedido pela soberania nacional, partindo de poder público, incide evidentemente na hipótese do art. 72, § 22, da Constituição da República (…) e “que o fato de que se queixa o senador impetrante (…) “de se achar privado de publicar os seus discursos na imprensa, fora do Diário Oficial, por ato do Chefe de Polícia desta cidade, importa em restrição na sua liberdade de representante da Nação (…)” (BRASIL, 1914a).
O julgamento fora realizado no dia 5/6/1914, sob a relatoria do Ministro Oliveira Ribeiro.
Trata-se de habeas corpus impetrado pelo Senador Nilo Peçanha em face do Estado do Rio de Janeiro com a finalidade de obter a ordem para poder:
“(…) livre de todo o constrangimento, penetrar a 31 do mês corrente, no palácio presidencial do Estado do Rio de Janeiro, depois de empossado como presidente do mesmo Estado, e aí exercer as funções do referido cargo, por ter sido para ele eleito e proclamado pela Assembleia Legislativa, afim de servir no quatriênio que vai começar naquela data e finda no mesmo dia e mês de 1918 (…)” (BRASIL, 1914b).
O caso é complexo, esclarecesse-se: o Senador Nilo Peçanha fora eleito para o cargo de Presidente do Estado do Rio de Janeiro (cargo equivalente, hoje, ao de Governador).
No entanto, queriam-se impedir a posse dele, para o respectivo exercício do mandato, pelo que impetrou aquele habeas corpus, cuja ordem fora concedida.
Este é mais um caso em que o writ não foi manejado em situações relacionadas ao direito de ir e vir. Sobre seu cabimento, consta no acórdão o seguinte:
“Nenhum outro meio existe em nosso direito processual capaz de amparar eficazmente o exercício livre dos direitos, a liberdade de ação, de fazer tudo o que a lei não proíbe, de proteger o indivíduo para não ser ele obrigado a fazer o que a lei lhe impõe, uma grande porção de atos, enfim, de natureza pública ou privada, e cuja execução pode ser embaraçada não somente privando-se alguém de locomover-se. Nenhuma ação cível há para alcançar-se esse fim, nenhuma ação criminal, também; esta própria para apurar a responsabilidade penal de quem praticou ou autorizou o constrangimento, a outra para firmar a obrigação à indenizações consequentes à ilegalidade ou abuso de poder: uma e outra provindo sempre da concessão do habeas corpus” (BRASIL, 1914b).
O julgamento fora realizado em 16 de dezembro de 1914, sob a relatoria do Ministro Pedro Lessa e a ordem foi concedida por maioria.
Aqueles três julgados exemplificam que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal era firme no sentido de que aplicação da garantia constitucional do habeas corpus era muito ampla até 1926, quando a Constituição de 1891 sofreu sua única alteração e o artigo 72, §22 passou a vigorar com o seguinte texto: “dar-se-ha o habeas-corpus sempre que alguém soffrer ou se achar em imminente perigo de soffrer violencia por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção” (BRASIL, 1891).
Assim, evidente: a aplicação da garantia constitucional foi reduzida, obrigando-se que o perigo a que está na iminência de sofrer o indivíduo fosse decorrente de prisão ou de constrangimento ilegal e, assim mesmo, somente no que tocava à liberdade de locomoção.
Conclusão
A cidadania é o direito maior. É dizer: para que alguém seja detentor de qualquer direito é necessário, antes de tudo, que seja cidadão, isto é, que tenha cidadania.
Conforme se demonstrou aqui, a noção de cidadania não é uniforme durante a história.
No entanto, nesta monografia, defendeu-se aquele conceito tradicional, isto é, aquele que a desdobra em três faces de direitos: os civis, os políticos e os sociais.
Esta pesquisa envolveu estudos no período da Primeira República, pelo que o tema cidadania foi explorado somente até naquele período, por sobre o suposto de desviar-se do objetivo central. A conclusão que se extraiu foi que naquela época, ante a despreocupação do estado com a causa social, a cidadania se desdobrava somente naquelas duas primeiras faces de direitos: civis e políticos. É dizer: quando se diz em cidadania na Primeira República, à luz do conceito tradicional, fala-se apenas em direitos civis e políticos.
No que tange a garantia do habeas corpus, embora estivesse ela prevista no Código de Processo Criminal de 1832, sua constitucionalização se deu apenas na Carta Política de 1891, em um dispositivo com ampla redação: tal mecanismo judicial não se destinava apenas à tutela da liberdade de locomoção.
Não havia na época qualquer outro instrumento jurídico apto a tutela de nenhum direito: não se cogitava de mandado de segurança, habeas data, ou até mesmo de mandado de injunção; havia, tão somente, o habeas corpus.
Tal situação levou ao entendimento de que o habeas corpus deveria ser tido como o instrumento jurídico para tutelar todos os direitos existentes, à míngua da existência de outra ação judicial, por isso que se haviam direitos assegurados ao povo – como os civis e políticos, deveria haver também algum mecanismo judicial de proteção deles.
Tal entendimento fora adotado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se demonstrou em três julgados: o primeiro deles, o habeas corpus nº 4.781, se referia à liberdade de reunião; o segundo, habeas corpus nº 3.536, tratava da liberdade de expressão e o terceiro, o habeas corpus nº 3.697, cuidava de assegurar o exercício de um mandato eletivo.
Registre-se que a apresentação de tais julgados não levou em consideração as personagens neles envolvidos e, sim, o direito tutelado: os dois primeiros, direitos civis, por isso que se tratavam de liberdade de reunião e de expressão; e o terceiro, direito político, pois cuidava de assegurar a posse e exercício de um mandato eletivo.
Registre-se ainda mais, que o habeas corpus, embora não mencionado na parte 4, se prestou, também, a dar tutela à liberdade de locomoção – sua destinação por excelência.
Impende-se mencionar que tal garantia sofreu uma redução no seu campo de atuação em 1926, quando a Constituição de 1891 passou por uma reforma (a única que teve) e sua abrangência foi, então, reduzida para a tutela, apenas, do direito à liberdade de ir e vir. Isso não prejudica, todavia, o título do trabalho que faz alusão à Primeira República, porque ela terminaria quatro anos depois.
Portanto, pode-se considerar que havia cidadania na Primeira República, através de suas acepções civis e políticas. Em matéria de garantia de direitos havia, somente, a ação judicial de habeas corpus, instrumento jurídico conhecido mundialmente com a função precípua de tutelar a liberdade de locomoção.
Entretanto, no ordenamento jurídico brasileiro, à míngua de qualquer outro mecanismo para garantir o exercício e dar proteção a tais direitos e dada a amplitude do dispositivo constitucional que o concebeu, o habeas corpus foi manejado amplamente e usado em substituição a figuras constitucionais conhecidas hoje, como o mandado de segurança, por exemplo. Tal entendimento se retirou através do quanto decidiu o Supremo Tribunal Federal na época em questão – que foi o que levou a formação daquilo que se chamou de doutrina brasileira do habeas corpus e que, nesta pesquisa, foi interpretada à luz da cidadania.
Por tudo isso, afirma-se que o habeas corpus foi, à luz de decisões do Supremo Tribunal Federal, o instrumento jurídico que, na Primeira República, tutelou a cidadania.
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