Resumo: Em decorrência do advento das técnicas modernas de melhoramento vegetal, as sementes se transformaram em um produto agrícola de alto valor de tecnologia agregada. Ao exigir investimentos por parte da iniciativa privada, começa a se disseminar a concepção a respeito da aplicação dos direitos de propriedade intelectual sobre estas novas variedades vegetais obtidas. Neste estudo, pretende-se apresentar a evolução e o panorama atual da sistemática de proteção das novas variedades vegetais, em nível nacional e internacional, destacando os contornos e a importância das limitações à propriedade intelectual que favorecem os agricultores e contribuem para a conservação da agrobiodiversidade.
Palavras-chave: Variedades Vegetais. Privilégio do agricultor. Propriedade Intelectual.
Abstract: As a result of the advent of modern techniques to improve the vegetables, seeds turned into an agricultural product that has a high value of technology aggregated. These techniques require investments provided by the private initiative, so the conception about the application of intellectual property rights concerning new plant varieties is being spread. This study intends to present the evolution and the actual situation of the systematic protection to the new plant varieties, nationally and internationally, highlighting the contours and the importance of restrictions to the intellectual property that benefit the farmers and contribute to the conservation of agrobiodiversity.
Keywords: Plant variety. Farmer’s privilege. Intellectual Property.
Sumário: Introdução. 1. A evolução do mercado de sementes e o surgimento da proteção das variedades vegetais. 1.1 aspectos da ata da UPOV de 1978. 1.2 aspectos da ata da UPOV de 1991. 2. O sistema brasileiro de proteção às variedades vegetais. 3. O privilégio do agricultor como limitação à propriedade intelectual sobre variedades vegetais. 3.1 o privilégio do agricultor nas atas da UPOV. 3.2 o privilégio do agricultor no Brasil. 4. Fundamentos e importância do privilégio do agricultor. Considerações finais. Referências
Introdução
Ao passo em que o desenvolvimento tecnológico começa a alcançar as atividades agrícolas, inúmeras mudanças passaram a ocorrer neste setor, podendo se destacar a transformação das sementes em um produto de alto valor de tecnologia agregada.
Este cenário se tornou possível graças às técnicas de melhoramento vegetal, iniciadas, primeiramente, por meios das atividades dos próprios agricultores, mas que, devido ao incremento da biotecnologia, passou a ser desenvolvida por empresas específicas haja vista a exigência de infra-estrutura e conhecimento aptos a lidar com a complexidade que estas técnicas adquiriram.
Conforme descreve Albagli (1998, p.7), com estas novas técnicas, a diversidade biológica, matéria prima da biotecnologia, transforma-se em um recurso informacional que, após a implementação de uma capacidade de tratamento destes dados e de seu direcionamento para o processo produtivo, permite agregar valor a essas informações e, a partir disto, elaborar novos produtos e processos.
Ao exigir investimentos por parte da iniciativa privada, começa a se disseminar a concepção a respeito da necessidade de se proteger e retribuir os esforços realizados com os melhoramentos obtidos juntos às variedades vegetais o que incentivou a aplicação dos direitos de propriedade intelectual nesta área.
Segundo prescreve Helfer (2002, p.2), a atuação da propriedade intelectual na seara das variedades vegetais decorre do enfoque instrumentalista ínsito a este instrumento, que visa oferecer incentivos adequados para que os melhoristas invistam tempo, trabalho e capital necessários para desenvolver suas criações, uma vez que estas enriquecem a cultura e o conhecimento da sociedade, incrementando também o seu bem-estar.
No Brasil, a concessão de direitos de propriedade intelectual em relação às variedades vegetais tomou corpo a partir de 1997, com a promulgação da Lei de Proteção de Cultivares – LPC, orientada a proteger as obtenções vegetais produzidas a partir de programas de melhoramento das plantas, conduzidos por instituições públicas ou privadas.
O sistema descrito pela legislação brasileira, resultado de fortes influências internacionais, adota um regime sui generis de proteção as variedades vegetais, distinguindo-se do modelo de concessão de patentes previsto na Lei de Propriedade Industrial, criando, o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares – SNPC, órgão vinculado ao Ministério de Agricultura e do Abastecimento, destinado a gerenciar o processo de proteção das variedades
Neste estudo, pretende-se apresentar a evolução e o panorama atual da sistemática de proteção das novas variedades vegetais em nível nacional e internacional, destacando os contornos e a importância das limitações à propriedade intelectual que favorecem os agricultores, os eximindo da necessidade de obtenção de autorização para a utilização de variedades vegetais em atividades tradicionalmente desenvolvidas.
1. A evolução do mercado de sementes e o surgimento da proteção das variedades vegetais
Observando o mercado norte-americano, Carvalho (1997, p.369) menciona que a gênese do setor de sementes pode ser encontrada no sistema de distribuição gratuita, o que permitiu com que fazendeiros dessem início às atividades de seleção e produção de sementes próprias, com a conseqüente comercialização deste material, iniciando o processo de divisão social do trabalho que diferenciou o fazendeiro do sementeiro.
Caminhando sob lentos passos, pois o sistema de distribuição gratuita prosseguia e a atividade de produção e comercialização de sementes se restringia a áreas onde não existia a presença governamental ou onde a sua presença não inibia a iniciativa privada, como os setores de jardinagem e hortaliça, as empresas sementeiras norte-americanas procuraram se fortalecer, fundando em 1883 a American Seed Trade Association (ASTA), com o objetivo de defender o fim da distribuição gratuita de sementes pelo governo, como também, lutar pelo reconhecimento da propriedade intelectual relacionada às plantas (CAVALHO, 1997, p.369).
Também, no decorrer do século XIX, o melhoramento vegetal começa a desenvolver-se como atividade específica em virtude dos significativos avanços em relação a conhecimentos fundamentais (Leis de Mendel) e a organização dos princípios de seleção (Vilmorim).
Neste sentido, a organização e sistematização das atividades de melhoramento vegetal ao longo do século XX proporcionaram a consolidação de uma categoria de “melhoristas”, que passaram a pressionar a formalização de um sistema de direitos que resguardasse os resultados desta atividade (WILKINSON, 2002, p.64).
Depois de algumas iniciativas legislativas que procuravam resguardar os direitos dos melhoristas na Europa e nos Estados Unidos, os países europeus se reuniram em 1957 e, após alguns anos de discussão, realizaram a Conferência de Paris em 1961, criando a UPOV (União Internacional para Proteção das Espécies Vegetais) e assinando a Convenção internacional para a Proteção de Novas Variedade de Plantas, visando buscar uma forma de harmonização e uniformidade no tratamento da questão.
A referida Convenção estabelecia um tipo de proteção específica (sui generis) para as inovações em plantas, baseada na definição de direitos de melhorista ou de obtentor de plantas, fornecendo elementos norteadores para o tratamento das legislações nacionais quanto à proteção ao desenvolvimento de novas variedades vegetais.
A partir das décadas de 60 e 70, o mercado de sementes se reorganizou havendo também o aprimoramento das técnicas de melhoramento genético, fazendo com que a Convenção da UPOV passasse a ser alvo de algumas revisões ocorridas respectivamente, nos anos de 1972, 1978 e 1991.
Por ser uma organização internacional encarregada de fornecer subsídios para o tratamento uniforme das legislações nacionais de seus Estados membros, a respeito dos direitos em relação às variedades vegetais, a UPOV, abre para seus membros a faculdade de definir a sistemática de proteção vigente em seu território, motivo pelo qual persistem as diferenças entre as legislações nacionais.
Das revisões à Convenção da UPOV de 1961, chamadas de Atas, destacam-se as ocorridas nos anos de 1978 e 1991, por representarem as sistemáticas vigentes, que proporcionam aos estados a possibilidade de escolha entre os dois modelos de proteção adotados pelos signatários desta organização.[1]
1.1 aspectos da ata da UPOV de 1978
A revisão da Convenção da UPOV, realizada através da Ata de 1978, permite aos Estados signatários, o reconhecimento de que o direito do obtentor e a efetiva proteção de variedades vegetais seja realizada por meio da concessão de título de patentes ou através de um outro instrumento particular (direitos de melhorista). No entanto, um mesmo gênero ou espécie vegetal deverá ser protegido mediante apenas uma destas formas, havendo a proibição de dupla proteção, podendo cada Estado limitar a aplicação da Convenção a variedades vegetais que tenham um sistema particular de multiplicação ou certa utilização final.
Sob este aspecto, o art. 2° da Ata de 1978 estabelece que a Convenção é passível de ser aplicada a todo e qualquer gênero ou espécie vegetal, havendo o comprometimento dos signatários em adotar medidas de modo a possibilitar a proteção ao maior número possível de variedades.
Os critérios ou requisitos necessários para que seja outorgada a proteção à nova variedade vegetal são, nos termos do art. 6° da Ata de 1978:
a) novidade;
b) distinção;
c) homogeneidade;
d) estabilidade.
O critério da novidade procura impedir que a proteção pleiteada recaia sobre alguma variedade vegetal que já esteja sendo explorada ou que seja de conhecimento difundido.
Com base no segundo critério, uma variedade deverá distinguir-se, mediante uma ou várias características importantes, de outra variedade cuja existência já seja conhecida no momento da solicitação da proteção.
Quanto à homogeneidade, preconiza a Ata de 1978 que a variedade deverá manter uniformidade suficiente quanto às características particulares de sua reprodução sexuada ou propagação vegetativa, ou seja, o critério exige que todas as plantas dessa nova variedade obtida possuam características homogêneas (WILKINSON, 2002, p.66).
A variedade deverá, ainda, manter a estabilidade de suas características essenciais, mantendo as formas de sua definição mesmo após sucessivas reproduções. Refere-se, assim, a um requisito temporal com a exigência de que o obtentor demonstre que o transcurso do tempo não interfere nas gerações sucessivas da nova variedade (HELFER, 2002, p.15).
O título outorgado ao obtentor não será inferior ao período de 15 anos e, no caso de videiras e árvores, a duração da proteção não poderá ser inferior a 18 anos.
A proteção de que gozará o obtentor da variedade vegetal representa a necessidade de sua prévia autorização para que terceiros possam produzir a variedade com fins comerciais, colocá-la a venda ou comercializar seu material de propagação.
1.2 Aspectos da Ata da UPOV de 1991
Passado algum tempo, as disposições da Ata de 1978 da Convenção da UPOV passaram a ser alvo de severas críticas por parte da indústria sementeira, principalmente em relação às limitações de sua proteção, motivo pelo qual em 1991 uma nova revisão foi realizada, introduzindo significativas mudanças no cenário da proteção às variedades vegetais.
Uma grande mudança a ser destacada refere-se à supressão da proibição quanto à dupla proteção das variedades, sendo omissa a Ata de 1991 a este respeito, o que confere aos Estados a discricionariedade em decidir a conveniência ou não de proteger uma mesma variedade vegetal com o direito de melhorista e a concessão de patente.
Da mesma forma, com a Ata de 1991, procurou-se ampliar o campo de proteção das obtenções, com a definição de que os Estados que aderissem a esta versão da Convenção da UPOV precisavam, no momento da adesão, proteger pelo menos 15 espécies ou gêneros vegetais devendo, ao final de 10 anos, ser ampliada esta proteção a todos os gêneros e espécies vegetais.
Conforme salienta Helfer (2002, p.16), o fato da Ata de 1991, ao contrário da Ata de 1978, trazer em seu bojo (art. 1, vi) a definição de variedade vegetal, entendida como “um conjunto de plantas de uma só taxonomia botânica da mais baixa categoria conhecida ” que possa ser definida “pela expressão dos caracteres resultantes de um certo genótipo ou de uma certa combinação de genótipos; distinguindo-se de qualquer outro conjunto de plantas, pelo menos pela expressão de um destes caracteres e por considerar-se como uma unidade, levando em conta sua aptidão de propagar-se sem alteração”, indica que os Estados que aderirem a esta nova versão da Convenção não terão a possibilidade de delimitar e definir, conforme seu entendimento, as características de conjuntos de plantas que sejam suscetíveis de proteção.
Os requisitos para a concessão dos direitos de melhorista (novidade, distinção, homogeneidade e estabilidade) mantiveram-se na Ata de 1991 apenas com algumas mudanças na redação das disposições, havendo alteração quanto ao tempo em que perdurará a proteção outorgada, ampliada para um período de 20 anos e, no caso de variedades de árvores ou videiras, para um período de 25 anos.
2. O sistema brasileiro de proteção às variedades vegetais
Com a assinatura[2] do TRIPS – Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio, o Brasil, por conseqüência, se obrigou a seguir a indicação relativa à uniformização do tratamento aos direitos de propriedade intelectual pelas legislações nacionais e a estender a proteção a todos os campos da tecnologia.
Com o advento da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), já em consonância com as disposições do TRIPS, aproveitando a possibilidade aberta pelo art. 27 do Acordo internacional, proibiu-se de forma expressa a concessão de patentes ao todo ou parte de seres vivos, plantas ou animais, a exceção apenas de microorganismos transgênicos, nos termos do art. 18, III da Lei de Propriedade industrial.
Mas, de acordo com o mesmo artigo do TRIPS, o Brasil se obrigava a implementar alguma forma de proteção aos direitos de propriedade intelectual relativos às variedades vegetais, motivo pelo qual o governo brasileiro sancionou a Lei de Proteção de Cultivares – LPC (Lei nº 9.456) em abril de 1997.
A aprovação de uma legislação que oferecesse proteção aos direitos de melhorista também era condição necessária para a adesão do Brasil à UPOV, o que ocorreu com sua filiação segundo os termos da Ata de 1978. [3]
Desta forma, adotou o Brasil um sistema particular, com critérios específicos para a proteção de variedades vegetais, vedando expressamente a dupla proteção, uma vez que o art. 2º da LPC prevê como única forma de garantir os direitos de propriedade intelectual relativos a cultivar, a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, direito que recairá sobre a planta inteira, suas mudas, como também sobre suas partes de reprodução ou multiplicação vegetativa.
Segundo descreve Barbosa (2008, p.27):
“(…) a Lei assegura exclusividade ( “direito [de] obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa”) ao titular de um Certificado de Proteção à cultivar. Este direito também é exclusivo, ao afastar outras modalidades de proteção ao mesmo objeto, como por exemplo, a das patentes tradicionais e, até mesmo, o do segredo industrial.”
A expressão “cultivar” é utilizada pelo dispositivo legal[4] para denominar:
“a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos.”
Analisando-se a conceituação trazida pela legislação brasileira, constata-se a descrição dos requisitos necessários para que a variedade vegetal – cultivar – seja considerada passível de proteção.
Acompanhando a tendência internacional, os requisitos da distinção, homogeneidade e estabilidade são características necessárias para as cultivares.
Embora da conceituação não se extraia o requisito da novidade, a variedade vegetal passível de proteção, nos termos do art. 4º, será a nova cultivar, considerada assim aquela “que não tenha sido oferecida à venda no Brasil há mais de doze meses em relação à data do pedido de proteção e que, observado o prazo de comercialização no Brasil, não tenha sido oferecida à venda em outros países, com o consentimento do obtentor, há mais de seis anos para espécies de árvores e videiras e há mais de quatro anos para as demais espécies” (art. 3º, V), requisito que em algumas hipóteses poderá ser atenuado, conforme previsão do parágrafo 1º do art. 4.
Outorgado o Certificado de Proteção de Cultivar, a proteção aos direitos de melhorista se estenderá sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta inteira (sementes, estacas, tubérculos etc), assegurando-se ao titular, por um período de 15 anos para espécies anuais e de 18 anos para videiras, árvores florestais e ornamentais, o direito à reprodução comercial da cultivar no território brasileiro.
Durante o prazo de proteção concedido, a produção com finalidades comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização, do material de propagação da cultivar, dependerão da autorização do titular dos direitos de melhorista.
3. O privilégio do agricultor como limitação à propriedade intelectual sobre variedades vegetais
3.1 O privilégio do agricultor nas Atas da UPOV
Ao mesmo tempo em que estabelecem um sistema que resguarda os interesses dos melhoristas, as legislações referentes à propriedade intelectual sobre as variedades vegetais também prevêem certas situações onde se prescrevem certas limitações a esta proteção.
São estas limitações que oferecem ao sistema de proteção das variedades vegetais o equilíbrio necessário diante dos conflitos gerados em virtude dos poderes de exclusividade gerados pela outorga do direito de propriedade intelectual.
Dentro desta perspectiva se inserem a chamada exceção do melhorista (breeder´s exemption) que permite aos demais obtentores a livre utilização da variedade protegida para fins de pesquisa ou como fonte de uma nova variedade, e o denominado privilégio do agricultor (farmer´s privilege), que consiste no objeto do presente estudo.
Nestas hipóteses descritas nos diplomas normativos, a autorização do obtentor torna-se elemento desnecessário para se ter acesso legítimo à variedade vegetal protegida.
No caso da exceção direcionada ao livre acesso dos agricultores, salienta Varella (1998, p.147) que:
“A expressão “privilégio do agricultor” acabou sendo reconhecida com o advento das normas de proteção de cultivares, ficando estabelecido que os agricultores poderiam trocar plantas entre si, bem como vender sementes aos seus vizinhos e realizar campos de formação de novas sementes para replantio, ainda que no caso de variedades protegidas.”
Destaca-se, entretanto, que esta hipótese de limitação de proteção às variedades vegetais se inicia de forma implícita nos textos das disposições contidas nas Convenções da UPOV até o advento da Ata de 1991.
Ao definir o âmbito de proteção concedido aos obtentores vegetais, a Ata de 1978 trouxe em seu texto, de forma expressa no art. 5.3, a previsão a respeito da exceção do melhorista ao dispor que a “autorização do obtentor não é necessária para a utilização da variedade como fonte inicial de variação com a finalidade de criar outras variedades”.
No entanto, o mesmo não acontece com o privilégio do agricultor, sendo que o desenvolvimento desta limitação decorre do fato da proteção conferida pela Ata de 1978 concentrar-se na exploração comercial das variedades protegidas, permitindo que a mesma seja interpretada como uma permissão para o uso não comercial de sementes ou do material de propagação, sem a necessidade de prévia autorização do obtentor (HELFER, 2002, p.16).
A este respeito, dispõe Garcia (2004, p.159) que:
“A ata de 1978 deixa um espaço aberto, de maneira tácita, para que se permita, em nível nacional, proteger os direitos e privilégios do agricultor sobre o uso de sementes e material de propagação em suas próprias colheitas. A ata menciona que a proteção conferida aos obtentores se refere à obrigação de terceiros solicitar o consentimento do titular para produzir com fins comerciais, colocar a venda ou comercializar material de reprodução ou de multiplicação vegetal da variedade protegida. Ou seja, os agricultores podem, a princípio, guardar o material de reprodução ou multiplicação vegetativa de uma variedade protegida e utilizá-la em suas colheitas posteriores em sua propriedade, desde que o resultado não seja a venda ou comercialização deste material.”
Este alcance limitado da proteção às variedades, possibilitou que as legislações nacionais dos Estados signatários estabelecessem variados entendimentos sobre esta limitação implícita, proporcionando um conteúdo variável a estas previsões nos distintos ordenamentos.
No entanto este cenário se transforma quando se analisa as disposições contidas na Ata de 1991, uma vez que seu texto, orientado a aprimorar a proteção em favor dos melhoristas, amplia o rol de condutas relacionadas às variedades vegetais que se incluem dentro do direito de exclusividade e, portanto, necessitam de sua respectiva autorização.
Nos termos do art. 14 da respectiva Ata, os atos praticados em relação ao material de reprodução ou de multiplicação da variedade protegida que requerem autorização do obtentor são:
a) a produção ou a reprodução;
b) o acondicionamento para reprodução ou multiplicação;
c) o oferecimento à venda;
d) a venda ou qualquer outra forma de comercialização;
e) a exportação;
f) a importação;
g) a detenção para qualquer dos fins acima mencionados.
No que tange às exceções impostas ao direito do obtentor, a Ata de 1991 prescreve as limitações obrigatórias e as limitações facultativas, nos termos do art. 15.
No âmbito das limitações obrigatórias, além dos atos praticados a título experimental e aqueles executados com a finalidade de criar novas variedades (exceção do melhorista), o art. 15.1 define que as atividades privadas realizadas com as variedades vegetais protegidas sem a finalidade comercial estarão fora do âmbito de proteção outorgada ao obtentor, o que abre a possibilidade de se compreender que o uso da obtenção para uso próprio dos agricultores estaria abrangido pela limitação.
No entanto, o privilégio do agricultor é apenas reconhecido como uma exceção facultativa, uma vez que se permite a cada Estado signatário a definição ou não de dispositivos que permitam aos agricultores utilizar com a finalidade de reprodução ou multiplicação, o produto da colheita que tenha sido obtido pelo cultivo, em sua própria exploração, da variedade vegetal protegida.
Da mesma forma, o alcance desta limitação também é indiretamente restringido já que a faculdade é aberta com a ressalva de ser implementada “dentro de limites razoáveis e sob a reserva da salvaguarda dos interesses legítimos do obtentor”, segundo o art. 15.2.
Com a extensão dos direitos do obtentor e o maior detalhamento das exceções, a Ata de 1991 acabou provocando uma atenuação das hipóteses de limitação, procedendo a uma aproximação dos direitos de melhorista em relação à legislação de patentes, havendo quase que uma equiparação entre ambos, permitindo-se inclusive a dupla proteção.
Desta maneira, os direitos de obtentor, nos moldes da ata de 1991, importam na outorga de um monopólio ao melhorista, que passa a poder controlar o comércio relacionado às variedades protegidas, de modo que, se um agricultor semear uma variedade protegida sem efetivar o pagamento dos royalties, o melhorista poderá reclamar direitos de propriedade sobre a colheita (WILKINSON, 2002, p.69).
3.2 O privilégio do agricultor no Brasil
Assim como no caso do texto da Ata de 1978, as limitações ao direito de exclusividade do melhorista na LPC podem ser visualizadas na própria definição dos contornos e da abrangência dos direitos outorgados, tendo em vista que o art. 9° da lei brasileira assegura a proteção à reprodução comercial, vedando com que terceiros, sem autorização e durante o prazo de vigência do certificado, produzam com fins comerciais ou ofereçam a venda o material de propagação da cultivar.
Segundo Barbosa, o art. 9° expressa uma regra geral de limitação considerando fora da exclusividade uma série de atos que podem ser praticados sem permissão do titular do Certificado de Proteção de Cultivar por se destinarem a fins não comerciais. Por seu turno, a regra descrita no art. 10 estabelece um elenco exemplificativo de atos que não são considerados como de uso comercial e fogem aos efeitos da exclusividade (BARBOSA, 2008, p.31).
No mencionado art. 10 estão presentes as previsões a respeito da exceção do melhorista e do privilégio dos agricultores.
No primeiro caso, o inciso III do citado artigo determina que não fere o direito do obtentor aquele que utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica.
Quanto ao privilégio do agricultor, a LPC[5] prescreve que não constituem violação à proteção de cultivares os atos de:
a) reservar e plantar sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha;
b) usar ou vender como alimentos ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos;
c) sendo pequeno produtor rural, multiplicar sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizadas pelo Poder Público.
De um modo geral, a previsão quanto a estas limitações ao direito de exclusividade do obtentor, conforme enfatiza Barbosa, configuram que o conceito de uso comercial adotado pela legislação é aquele entendido como uso direto, de modo que “se o plantio de um cultivar de milho para uso próprio se destina, após a colheita, à comercialização de espigas, nem por isto haverá sujeição do plantador à exclusividade desta Lei” (BARBOSA, 2008, p.31).
No caso da limitação que permite que pequenos produtores rurais multipliquem as sementes para fins de troca, apesar de retratar uma conduta de natureza econômica, seu cunho cooperativo faz com que escape da exclusividade outorgada pelo Certificado fugindo da caracterização do art. 9°.
Para dirimir controvérsias a respeito daqueles que podem realizar tais condutas, a Lei de Proteção de Cultivares, traz a definição[6] daqueles que se enquadram no conceito de pequeno produtor rural, sendo assim considerado aquele que atenda, simultaneamente os seguintes requisitos:
I- explore parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário ou parceiro;
II – mantenha até dois empregados permanentes, sendo admitida ainda o recurso eventual à ajuda de terceiros, quando a natureza sazonal da atividade agropecuária exigir;
III – não detenha, a qualquer título, área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em vigor;
IV – tenha, no mínimo, oitenta por cento de sua renda bruta anual proveniente da exploração agropecuária ou extrativa e;
V – resida na propriedade ou em aglomerado urbano ou rural próximo.
Do mesmo modo, as limitações ao direito do obtentor não são aplicadas para a cultura da cana-de-açúcar mediante regra expressa descrita no parágrafo 1° do art. 10.
Nestes termos, mesmo quando direcionada para uso próprio, persiste a necessidade do produtor rural de cana-de-açúcar de obter a permissão do titular da variedade protegida que se pretende utilizar.
Segundo assevera Garcia (2004, p.112) esta previsão é elemento fundamental para os obtentores de cultivares de cana-de-açúcar devido ao fato desta espécie de cultivo apresentar baixa taxa de multiplicação e exigir grande volume de material para plantio, sendo prática usual o produtor adquirir mudas para uma área inicial de plantio, chamada de viveiro, para então fazer as multiplicações e conseguir alcançar o número de mudas suficientes para a exploração comercial. Assim, caso não houvesse a mencionada regra aplicável à cana-de-açúcar, o obtentor de suas variedades teria sua remuneração baseada apenas na quantidade inicial de mudas, aumentando significativamente seu custo.
4. Fundamentos e importância do privilégio do agricultor
O privilégio do agricultor como limitação à proteção das variedades vegetais se inclui dentro do rol de direitos consagrados na expressão “direitos do agricultor”, quando se trata do assunto de conservação da agrobiodiversidade ou da aplicação dos recursos genéticos para alimentação e agricultura.
A origem do conceito de direitos dos agricultores começou a ser trabalhada sob os auspícios da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, desde a década de 80, no âmbito das discussões sobre o acesso aos recursos genéticos vegetais sendo originada da idéia de se apresentar, justamente, um contraponto ao aumento da demanda quanto aos direitos dos obtentores vegetais em atenção à contribuição que comunidades rurais e camponeses deram à atividade dos melhoristas oferecendo as bases materiais que suportam a criação de nova variedade (ANDERSEN, 2005, p.2).
Com o aprimoramento dos debates, em 1989, a Comissão de Recursos Genéticos da FAO em sua terceira reunião editou a resolução n° 5/89 que reconheceu os direitos dos agricultores como aqueles “provenientes das contribuições passadas, presentes e futuras dos agricultores por terem conservado, incrementado e tornado disponíveis recursos genéticos de plantas, particularmente aqueles dos centros de origem/biodiversidade.”
Nos termos da resolução, os recursos genéticos vegetais constituem-se como patrimônio comum da humanidade havendo a necessidade de sua conservação e livre acesso, conferindo-se à comunidade internacional o status de sua depositária e guardiã para as gerações presentes e futuras, com o objetivo de assegurar que os agricultores se beneficiem e continuem realizando sua contribuição para a conservação destes recursos.
Ainda neste caminhar evolutivo dos direitos do agricultor, destaca-se que em 2004 passou a vigorar o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura, elaborado em 2001 sob a regência da FAO.[7]
Este documento internacional, em virtude do caráter vital destes recursos, tem como objetivo propiciar a conservação e utilização sustentável dos recursos genéticos vegetais destinados à alimentação e agricultura defendendo seu livre intercâmbio e a distribuição justa dos benefícios gerados.
O art. 9° deste Tratado ao mesmo tempo em que reconhece “o enorme contributo, passado e futuro, das comunidades locais e autóctones e dos agricultores de todas as regiões do mundo, especialmente dos centros de origem e diversidade das culturas, para a conservação e valorização dos recursos fitogenéticos que constituem a base da produção alimentar e agrícola no mundo inteiro” define a responsabilidade dos Estados signatários para, “tomar medidas para proteger e promover os direitos dos agricultores”.
Nestes termos, constata-se que é este reconhecimento quanto à importância e contribuição das práticas dos agricultores que fundamenta a existência de exceções previstas nos documentos que prescrevem a propriedade intelectual sobre variedades vegetais.
A abrangência dos direitos do agricultor absorve variadas dimensões, destacando-se, no âmbito do privilégio do agricultor, aquela que defende a compensação ou retribuição por tornar disponível o “estado atual” do recurso inicial a ser trabalhado pelo obtentor.
Nesta perspectiva estes direitos são compreendidos como aqueles tradicionais e inerentes aos agricultores e comunidades de camponeses, como guardiães e defensores da agrobiodiversidade, e que garantem a autonomia de conservar sementes e mudas, assim como semeá-las ou compartilhá-las com seus semelhantes e, consequentemente, seguir contribuindo para a melhoria e conservação das variedades vegetais (FRIDTJOF, 2006, p.1).
A garantia deste chamado “privilégio” aos agricultores ou camponeses permite não só a permanência de seu modo de vida baseado no cultivo de espécies vegetais, mas garante também a postergação das práticas de melhoramento artesanal realizadas por estas populações que vivem em constante e estreito contato com a natureza.
Em síntese, é exceção que deve ser vista em sua dupla perspectiva, já que diz respeito ao modo de vida do agricultor e ao próprio desenvolvimento sustentável para toda a sociedade, que vê nessa medida uma forma de proteger sua agrobiodiversidade.
Esta exceção respeita o trabalho que os ancestrais camponeses tiveram em realizar o constante selecionamento e melhoria das sementes que agora servem de base inicial para o trabalho dos obtentores. Analogicamente, pode-se utilizar a mesma concepção aplicada à tutela dos direitos autorais, onde existem exceções prescritas na lei[8], derivadas do entendimento de que o criador de uma obra autoral se utiliza de elementos do acervo intelectual e cultural da humanidade para dar vazão à sua obra.
Com efeito, a dificuldade gerada pela exclusividade proveniente da outorga do título de propriedade intelectual sobre as variedade desenvolvidas pelos obtentores acaba justificando a adoção de um regime sui generis, próprio e específico, para estas criações, diferente da sistemática de patentes, onde se prescreve a proteção do ordenamento sem se garantir o pleno monopólio do bem por seu detentor.
Considerações finais
A implementação de um sistema de proteção às variedades vegetais ganhou fortes avanços a partir das iniciativas internacionais em padronizar o tratamento legal da matéria, que acabaram consolidando a criação da UPOV.
O caminho escolhido para a referida proteção se fundamenta num sistema sui generis que se distingue do modelo de proteção patentária, consagrando em suas disposições a abertura para algumas situações onde se limita a exclusividade atribuída ao melhorador da variedade vegetal.
Neste sentido, destaca-se que a evolução das Atas da UPOV indicam, cada vez mais, para uma aproximação do sistema de proteção de variedades vegetais junto ao sistema de patentes, limitando as hipóteses e situações que consagram as exceções.
Esta perspectiva se mostra demasiadamente perigosa, na medida em que são as limitações que funcionam como elemento harmonizador, compatibilizando a proteção dos melhoristas junto aos demais interesses que recaem sobre os recursos vegetais.
No caso dos agricultores e camponeses, suas práticas tradicionais são reconhecidas como elemento fundamental no combate à perda da biodiversidade gerada pela constante homogeneização dos cultivos.
Deste modo, é preciso que os direitos de propriedade intelectual sejam conferidos de maneira a permitir o acesso livre aos recursos genéticos vegetais que sempre orientou a conduta destas comunidades, garantindo a possibilidade de que as práticas tradicionais de domesticação e cultivo das variedades sejam continuadamente desenvolvidas em resguardo não só do modo de vida dos agricultores, mas também da sustentabilidade que deve guiar as atividades econômicas.
Advogada e professora universitária. Mestre em Propriedade Intelectual pelo INPI. Especialista em Propriedade Intelectual pela UCLM – Universidad Castilla La Mancha.
Mestre em Direito Ambiental pela UEA. Doutorando em Direito PUCSP. Professor do Curso de Direito da UEMS
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