O fenômeno da globalização, ao mesmo tempo em que resultou em indubitáveis melhoras na qualidade de vida do homem moderno, também semeou problemas globais, com reflexos distintos em cada corpo social.
Incontáveis mazelas sociais foram geradas pela globalização, e uma das principais foi a massificação do consumo nas sociedades capitalistas, desencadeada no pós-Revolução Industrial, período responsável pelo incremento da atividade empresarial e, consequentemente, pela crescente oferta de produtos e serviços no mercado de consumo.
Nesse cenário, é correto dizer que um dos maiores interesses do empresário, senão o maior, é a maximização de seus lucros, sendo que a manutenção de um nível alto de consumo por parte da sociedade reflete diretamente na concretização daquele interesse.
Pois bem, dentre os diversos meios dos quais o empresário lança mão para manter o nível de consumo devidamente ajustado aos seus interesses e expectativas em relação ao negócio, encontra-se o crédito, podendo-se conceituá-lo, basicamente, como a crença que o credor deposita no devedor, no sentido de que este satisfará, no futuro, a tempo e modo, uma obrigação contraída no presente. No âmbito dos interesses coletivos, é instrumento sobremaneira relevante para o desenvolvimento da economia nacional e, na esfera individual, muitas vezes é o caminho para a realização de projetos pessoais, desde a aquisição dos bens básicos à existência digna, como moradia, alimentos, vestuário etc., até a obtenção de bens e serviços não essenciais, como jóias, viagens, tratamentos de beleza etc.
Contudo, salvo naqueles casos em que o devedor é pessoa exaustivamente conhecida do credor e, por isso, digna de uma confiança quase cega por parte deste, a concessão de crédito sempre envolveu risco, sendo que este é uma das características marcantes da empresa.
Com vistas nesse panorama, a concessão de crédito sempre se revelou tarefa bastante árdua para o empresário, já que, naturalmente, busca-se a redução dos riscos no desenrolar da empresa, de modo a, igualmente, reduzir-se as hipóteses de eventuais responsabilidades. A título de exemplo, nos centros urbanos menores, mesmo nos dias atuais é possível observar que muitos comerciantes buscam, junto a outros comerciantes, informações sobre consumidores candidatos à realização de negócios que envolvam a concessão de crédito na praça, de forma a se protegerem contra potencial inadimplência por parte de clientes até então desconhecidos.
Entretanto, num passado bem recente, essa era a realidade em todos os lugares. A tarefa de investigar a conduta de determinado consumidor junto a outros comerciantes era desempenhada com base no intercâmbio de informações verbais entre lojistas, as quais, afinal, acabavam compondo cadastros verdadeiramente rudimentares, bem diferentes dos existentes no sistema atual. Conforme as informações sobre o cliente fossem positivas ou negativas, isto é, se o consumidor fosse bom ou mau pagador, o comerciante decidia se venderia a crédito ou não.
No Brasil, o consumo se intensificou após o início de nossa industrialização, que se deu em meados da década de 1930, sendo que, na década de 1950, e na trilha dessa prosperidade, as vendas a crédito em nosso país experimentou considerável aumento. Sobre o tema, Leonardo de Medeiros Garcia nos fornece algumas explanações:
“Foi assim que inicialmente surgiram na década de 1950, diante do grande aumento das vendas a crédito no Brasil, os primeiros bancos de dados. Tal atividade foi transferida para as associações de classe dos lojistas com o intuito de beneficiar seus associados (lojistas). Assim, em 1955 a Câmara de dirigentes Lojistas de Porto Alegre fundou o primeiro Serviço de Proteção ao crédito, conhecido como SPC. Atualmente, são aproximadamente 1000 Câmaras de dirigentes Lojistas existentes no mercado.
Paralelamente às associações, foram criadas empresas para atuarem também no setor de proteção ao crédito, com destaque para a SERASA – Centralização de Serviços de Bancos S.A., prestando serviços precipuamente às instituições financeiras.
No setor público, existe o Cadastro de emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), que é um cadastro que possui dados sobre emitentes de cheques sem fundos, de propriedade do Banco Central, mas operacionalizado pelo Banco do Brasil” (Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011, pp. 305-306).
Da lição do talentoso consumerista extrai-se a ratio dos bancos de dados e cadastros de proteção ao crédito, que é tão somente viabilizar o fluxo de informações aos fornecedores de crédito no mercado de consumo, de modo a permitir uma atuação racional por parte dos usuários daqueles arquivos, identificando consumidores inadimplentes, o número de inadimplências, o valor das dívidas, enfim, uma série de informações que levarão o associado a se proteger da ação de maus pagadores, como também a não conceder crédito ao consumidor já endividado. Quanto a essa última situação, cabe um breve parêntese: o princípio da boa-fé objetiva determina sejam observados alguns deveres anexos nas relações de consumo, e dentre esses devers está o de não permitir que o consumidor já endividado agrave sua situação com a contração de mais dívidas, por meio de obtenção de crédito. Trata-se do duty to mitigate the loss , cuja literalidade traduz-se “dever de mitigar a perda”, e possui lastro no art. 77 da Convenção de Viena de 1980. No direito doméstico, o duty to mitigate the loss encontra amparo tanto na doutrina (Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil) quanto na jurisprudência (STJ, REsp. 758518 / PR, Rel. Min. Vasco Della Giustina, DJe 28/06/2010).
Corroborando o entendimento no sentido de que os arquivos de consumo que objetivam restringir o crédito ao consumidor destinam-se tão somente a regular a oferta de crédito no mercado de consumo, o ministro Ruy Rosado de Aguiar, no REsp. 22337 / RS, consignou que “o SPC, instituído em diversas cidades pelas entidades de classe de lojistas, tem a finalidade de informar seus associados sobre a existência de débitos pendentes por compra dos que pretendam obter novo financiamento”.
Resumindo, vale repetir que os arquivos de consumo (gênero) do tipo SPC, SERASA, CCF, CADIN etc. (espécies) têm como única função orientar os fornecedores de produtos e serviços no que se refere à concessão de crédito no mercado de consumo, de forma que os respectivos associados mensurem os riscos envolvendo tal atividade. E só.
Todavia, nada obstante os arquivos de consumo possuírem essa função específica e estrita, há algum tempo têm sido utilizados como instrumentos restritivos de direitos fundamentais, e não ao crédito como único objeto das preocupações que deveriam ocupar tais arquivos, tanto na seara do Direito Privado quanto do Direito Público. É que diversas empresas têm consultado os SPC’s, a SERASA, CCF e congêneres para justificar a não admissão de candidatos a vagas de emprego na iniciativa privada, e também a administração pública se vale do mesmo recurso para inabilitar candidatos em concursos públicos, partindo-se, ambos, do pressuposto de que o indivíduo devedor que se encontra negativado naqueles cadastros demonstra conduta incompatível com a obtenção de vaga, seja na iniciativa privada, seja no funcionalismo público.
Esse tipo de prática, registre-se desde já, no nosso entendimento é lamentável, execrável, verdadeiramente hedionda. Torna-se ainda pior quando o próprio Judiciário chancela um descalabro desses, como o fez a Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, confirmando decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região (TRT-SE), ao julgar o Recurso de Revista nº 38100-27.2003.5.20.0005, interposto pelo Ministério Público do Trabalho da 20ª Região (MPT-SE) em uma Ação Civil Pública. Na ocasião, o ministro relator do recurso – Renato de Lacerda Paiva –, argumentou:
“Se a administração pública, em praticamente todos os processos seletivos que realiza, exige dos candidatos, além do conhecimento técnico de cada área, inúmeros comprovantes de boa conduta e reputação, não há como vedar ao empregador o acesso a cadastros públicos como mais um mecanismo de melhor selecionar candidatos às suas vagas de emprego.”
Nada mais absurdo, tendo em vista que desenvolvemos nossas relações em um contexto social cuja ordem jurídica consagra a presunção de boa-fé nas relações jurídicas, salvo naqueles casos em que a própria lei diz, expressamente, que presume-se de má-fé quem age de determinada maneira. Entretanto, o órgão jurisdicional em comento simplesmente inverteu a ordem dos valores, chancelando uma presunção de má-fé.
Iniciando a leitura de nossa Carta Fundamental, percebe-se, de imediato, que é inaugurada com o rol de valores eleitos como fundamentais à República, e dentre esses valores está a dignidade humana (art. 1º, III) , considerada unissonamente como o princípio dos princípios de direito, condicionante de todos os demais. A dignidade humana é princípio reitor e informador dos direitos mais básicos do ser humano, daí mesmo decorrendo a nomenclatura “direitos fundamentais”, a estampar a parte topográfica do texto constitucional, bem como apresentar-se em outras normas espalhadas no corpo da Constituição Federal.
Imediatamente abaixo, no inciso IV do mesmo dispositivo, a CF/88 etiqueta como fundamento da República os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, revelando a importância do trabalho para o desenvolvimento pessoal do indivíduo, o que em última instância, isto é, da reunião dos esforços de todos os trabalhadores, resultará em importante contribuição para o desenvolvimento de toda a sociedade.
No campo doutrinário, é bastante divergente a questão da utilização de informações constantes de arquivos de consumo como meio idôneo a fundamentar a não admissão de alguém a vagas de emprego na iniciativa privada. O professor de Direito e Processo do Trabalho da PUC-SP – Ricardo Pereira de Freitas Guimarães -, é contrário a esse tipo de critério, asseverando que:
“Muitos desempregados, por conta da falta de renda mensal, acabam utilizando os limites de crédito e, por vezes, não conseguem pagar suas dívidas. Ou seja, precisam do emprego para saldar o que devem. A pergunta é: vamos impedir essas pessoas de conseguir uma nova colocação profissional? Não me parece, com todo respeito, o melhor caminho” (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55117/especialistas+comentam+decisao+do+tst+sobre+consulta+de+spc+na+contratacao+de+funcionarios.shtml)
De modo contrário, Alan Balaban Sasson entende que as empresas devem comemorar decisões como a da Segunda Turma do TST, anteriormente mencionada, registrando:
“Muito ponderada e acertada a decisão. O ministro relator utilizou princípios constitucionais, principalmente da isonomia, para justificar o seu voto. As empresas devem comemorar, visto que raramente alguma tese e adotada em favor dos empregadores. Devemos torcer e batalhar para que novas decisões acompanhem a atual posição do TST” (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55117/especialistas+comentam+decisao+do+tst+sobre+consulta+de+spc+na+contratacao+de+funcionarios.shtml).
Na mesma trilha segue Sônia Mascaro Nascimento, para quem:
“Se a reputação moral e a boa conduta fazem parte dos critérios de admissibilidade do empregado, as consultas aos órgãos públicos para esse fim, não ferem a privacidade, imagem ou a honra da pessoa. Também não é conduta discriminatória se tal consulta abrange todos os empregados ou candidatos aos cargos. Seria conduta discriminatória por parte do empregador e até mesmo caracterizaria perseguição no trabalho, se a consulta fosse dirigida a um indivíduo apenas ou um grupo de candidatos sem qualquer justificativa. No caso concreto, existe um motivo para tal procedimento pelo empregador: critério para a contratação de empregados. Não se trata de exigência aleatória” (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55117/especialistas+comentam+decisao+do+tst+sobre+consulta+de+spc+na+contratacao+de+funcionarios.shtml).
No âmbito do Direito Público, o acesso a cargos, empregos ou funções públicas reclama, por expressa exigência constitucional, o preenchimento de requisitos estabelecidos em lei, uma vez que a administração pública, ao contrário das relações privadas, em que tudo que não é proibido é permitido, somente pode atuar quando a lei assim permitir. Notem o que dispõe a CF/88 sobre o tema:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
Assim, preencher os requisitos estabelecidos em lei, conforme o preceito constitucional em comento, significa atender ao que previamente for emanado, de forma geral e abstrata, pelos entes legiferantes. Contudo, ainda que eventual norma seja editada prevendo restrições afetas ao preenchimento de requisitos para a investidura em cargos, empregos ou funções públicas, deverá justificar o fator (ou fatores) de discriminação, pois, como se sabe, nenhum direito é absoluto, pelo que mesmo direitos fundamentais podem ser suprimidos em nome do interesse público. Nada obstante, sobrevindo norma contendo fator discriminatório, deverá estabelecer o fator discriminatório de forma objetiva, isto é, atendendo a critérios objetivamente considerados na aferição da postura do indivíduo perante as exigências estatais, relacionadas aos imperativos de ordem pública e interesse social, e consideradas como mínimo ético exigido à regular fruição de direitos e cumprimentos de deveres na vida pública, de onde se conclui que considerar aspectos subjetivos, como a conduta de um devedor em suas relações privadas, afigura-se afrontoso ao princípio da dignidade humana e ao direito à intimidade e privacidade. O que interessa (ou pelo menos deveria interessar), no campo das relações públicas, são as quitações do indivíduo perante o Estado.
Sobre a vida privada, cumpre registrar a sempre elucidativa lição de José Afonso da Silva, que assim delineou a questão:
“A vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, pág. 204).
Todavia, é possível observar que um dos principais argumentos utilizado pelos responsáveis pela adoção desse critério odioso considera, como dito, que o indivíduo que deve a outrem é moralmente inapto ao desempenho de função pública.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello nos brinda com seu costumeiro brilhantismo:
“Os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames. É o que, injuridicamente, tem ocorrido com a introdução de exames psicotécnicos destinados a excluir liminarmente candidatos que não se enquadrem em um pretenso “perfil psicológico”, decidido pelos promotores do certame como sendo o “adequado” para os futuros ocupantes do cargo ou emprego.
Exames psicológicos só podem ser feitos como meros exames de saúde, na qual se inclui a higidez mental dos candidatos ou, no máximo – e ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos, para identificar e inabilitar pessoas cujas características psicológicas revelem traços de personalidade incompatíveis com o desempenho de determinadas funções” (Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 194 – 195).
Pois bem, uma vez colocado o tema no campo doutrinário, observemos agora como a jurisprudência pátria se posiciona nesse fértil e instável campo de estudo.
No ano de 2003, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na caneta da Desembargadora Federal Maria Isabel Galloti Rodrigues proferiu acórdão com a seguinte ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA FEDERAL. INVESTIGAÇÃO SOCIAL.
1. A existência de protestos e ações cíveis contra o candidato, decorrentes de atividade econômica lícita (atividade rural), não constitui descumprimento voluntário de obrigações legítimas e nem comportamento escandaloso ou comprometedor do exercício de função pública, hábeis a justificar sua exclusão de curso de formação em concurso para o cargo de Agente de Polícia Federal.
2. Apelação a que se dá provimento.”
Tratou-se de ação em que se tentava impedir o acesso de candidato a cargo público pelo fato de o mesmo estar com título protestado e respondendo a ações cíveis por dívidas contraídas em decorrência de exercício profissional do candidato. Ao decidir embargos de declaração interpostos contra o acórdão, a eminente julgadora assim se posicionou:
“Na oportunidade, foi por unanimidade acolhida a tese de que não há dispositivo algum no edital ou na legislação de regência que impeça o exercício do cargo por quem possui dívidas, especialmente no caso em exame, em que está demonstrado documentalmente que essas dívidas foram contraídas no exercício de atividade profissional lícita.
Os documentos constantes dos autos comprovam que os protestos e as execuções cíveis estão relacionados com sua atividade de produtor rural. Está demonstrado, também, o esforço no pagamento das dívidas, dado que a maior parte dos protestos já foi cancelada pelos credores, que, inclusive, assinaram declarações atestando a idoneidade moral do candidato, a despeito do inadimplemento de obrigações com suas empresas, o que revela que não se trata de pessoa que, de modo voluntário, habitualmente descumpre obrigações legítimas. Está igualmente documentado que as dívidas ainda não pagas estão tendo os seus encargos discutidos judicialmente (fls. 102-182).
Assim, as mencionadas ações cíveis e protestos não ficaram caracterizadas como “prática de ato que possa importar em escândalo ou comprometer a função policial”. Diversa poderia ser a conclusão, caso se tratasse de dívida resultante de alguma atividade ilícita ou à margem da lei, como estelionato, jogo ou qualquer outro tipo de vício.”
De fato, como lucidamente articulado no excerto, o fato de estar na situação de devedor não guarda relação com a capacidade de ocupação no mercado de trabalho. E um detalhe importante chama a atenção para que se compreenda claramente a questão: ainda que se force uma situação para que se reconheça a legitimidade de se considerar o devedor inadimplente como inapto a ser digno de uma vaga de emprego na iniciativa privada ou na esfera pública, dever-se-ia investigar se sua inadimplência é voluntária, habitual, isto é, se o indivíduo descumpre suas obrigações de forma acintosa, o que, ainda assim, no nosso entender nenhuma relação guarda com a negativa de ocupação de vaga no mercado de trabalho.
Na Justiça do Trabalho também há noticia da existência de ações envolvendo a discriminação de trabalhadores que se encontram em situação negativa junto a cadastros de inadimplência, sendo que, em Minas Gerais, o Ministério Público do Trabalho também ajuizou Ação Civil Pública (ACP nº 00492-2008-061-03-00-2) objetivando a condenação de uma empresa por danos morais contra 59 trabalhadores que tinham os nomes incluídos no cadastro de inadimplentes, e eram pressionados pela empregadora a pagarem seus débitos, de natureza estranha ao contrato de trabalho, como condição para a permanência no emprego. No caso, o MPT teve os pedidos da ACP julgados procedentes pelo juiz Gigli Cattabriga Júnior, que condenou a empresa ao pagamento da multa de R$50.000,00, a título de compensação por danos morais coletivos, que deveriam ser revertidos ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador, além de obrigações de fazer e de não fazer, a fim de que a empresa se abstivesse, por completo, de realizar quaisquer pesquisas em cadastros de proteção ao crédito para subsidiar contratação de empregados ou mantê-los, sob pena de multa de R$ 100.000,00, por empregado escolhido ou contratado sob esse critério (http://as1.trt3.jus.br/pls/noticias/no_noticias.Exibe_Noticia?p_cod_noticia=4244&p_cod_area_noticia=ACS).
Indo mais além, o STJ, no Recurso em Mandado de Segurança nº 30.734, teve a oportunidade de apreciar questão envolvendo situação ainda mais grave, em que um candidato, além de estar inscrito em cadastro de inadimplentes, respondia a processo criminal. Na ocasião, a relatora do recurso, ministra Laurita Vaz, citando precedentes do STF, asseverou que “o nome do candidato em cadastro de inadimplência é insuficiente para impedir o acesso ao cargo público, sendo a desclassificação nesse sentido “desprovida de razoabilidade e proporcionalidade”. Vejamos a ementa do julgado:
Em seu voto, a insigne magistrada destacou:
“Entretanto, refletindo melhor sobre a questio iuris, tenho que o melhor direito está no entendimento segundo o qual, se, conforme consignado alhures, nem as ações penais em curso podem alicerçar o ato de eliminação em concurso público na fase de investigação social, mostra-se desprovido de razoabilidade e proporcionalidade permitir-se que essa medida possa ser tomada com base no registro – 04 (quatro) nos anos de 2005, 2007 e 2008 – do nome do candidato em cadastro de serviço de proteção ao crédito.”
E prosseguiu em seu voto, citando os argumentos do Ministro Gilmar Mendes em voto monocrático proferido em agravo de instrumento (STF-AI nº 763.270/MG. DJe de 04/04/2011) e do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (REsp. nº 1.143.717/DF. DJe de 17/05/2010) ambos no sentido da carência de razoabilidade e proporcionalidade na exclusão de candidatos em concursos públicos em razão de inscrição em cadastros de inadimplentes.
Posto isto, embora algumas decisões proferidas em segunda instância reconheçam que estar inadimplente e negativado em arquivos de consumo revelam a inidoneidade moral de quem se candidata a vagas de emprego, conclui-se que nossas cortes superiores, ao reformar tais decisões, rechaçam a idéia de se utilizar as informações constantes em arquivos de consumo como instrumento hábil a obstar o exercício do direito fundamental ao exercício profissional.
A nosso juízo, de fato não há grandes dificuldades em visualizar que no âmbito do Direito Público o tema é relativamente tranqüilo, pois, como já tivemos a oportunidade de destacar, para compor o funcionalismo público devem ser perquiridas as quitações do indivíduo perante o Estado, em razão dos critérios objetivos que devem nortear a atividade do administrador público, salvo naqueles casos em que a própria lei permitir a aferição discricionária de características subjetivas para decidir se determinadas pessoas devem ou não ser admitidas nos quadros do funcionalismo público.
Contudo, nas relações privadas a questão é bastante tormentosa, haja vista que determinado empregador não está obrigado a contratar alguém, senão levando em conta as características que ele mesmo (empregador) considera indispensáveis àqueles que se candidatam a uma vaga de emprego, sendo que, no exercício desse juízo de valor, o empregador pode, pelo menos em tese, considerar que a inscrição negativa em arquivos de consumo é fato suficiente a desabonar a conduta de alguém, e portanto deixar de contratar o candidato à vaga, por não desejar que seu quadro de funcionários seja composto por empregados “desonestos”.
Sendo assim, considerando-se que inexiste norma disciplinando tal situação na seara privada, em que todos, inclusive o empregador, são titulares do direito fundamental no sentido de que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF/88), qual seria a solução para os abusos cometidos na iniciativa privada?
De fato, diante de eventual negativa por parte do empregador, não há como obrigá-lo a contratar quem esteja devendo na praça, e por isso incluído em cadastro de inadimplentes. Entretanto, entendemos que tal conduta caracteriza dano moral, por ofender outros direitos fundamentais, a saber: a intimidade e a privacidade (art. 5º, X, da CF/88), o direito ao livre exercício profissional, cuja limitação só ocorre caso o profissional desatenda as qualificações que a lei estabelecer (art. 5º, XIII, da CF/88), entendida esta, nos dizeres de Kildare Gonçalves Carvalho, como “o conjunto de conhecimentos necessários e suficientes para a prática de alguma profissão (Direito Constitucional. 15ª ed. rev. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 791).
É importante notar que o momento atual se caracteriza pela proteção dos direitos fundamentais, mesmo nas relações entre particulares. É a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ancorada no reconhecimento de que, nos dizeres do eminente constitucionalista acima citado, “não é somente o Estado que pode ameaçar esses direitos, mas também outros cidadãos nas relações horizontais entre si (Direito Constitucional. 15ª ed. rev. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 721). Dentro dessa perspectiva, chama a atenção o disposto no art. 187 do Código Civil, que estabelece cláusula geral no sentido de que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Sendo assim, se de um lado há o “direito” do empregador a inadmitir alguém como empregado por considerá-lo moralmente maculado em razão de não cumprir suas obrigações junto a outros particulares, totalmente estranhos ao binômio empregador/empregado, de sua sorte, ao devedor inadimplente assiste o direito à compensação por ofensa à honra, já que não há, a nosso juízo, dificuldade em reconhecer que motivar a não contratação por tal argumento ofende gravemente os direitos da personalidade. E não foi outra a conclusão da Justiça do Trabalho mineira ao julgar a ACP nº 00492-2008-061-03-00-2, como consignado linhas atrás.
Impende lembrar, ainda, que vivemos na era da solidariedade, iluminada pelos direitos de terceira geração, os quais extraem seus fundamentos do princípio da solidariedade, sendo certo que promover a inserção do trabalhador no mercado de trabalho é também um dever do empregador/empresário, baseado na função social do contrato, podendo-se afirmar que a função social de um contrato de trabalho, por certo, não encontra fundamento na mão-de-obra como fator de produção, em sua feição empresarial, mas exatamente no princípio da dignidade humana.
Ponto que merece reflexão, para fundamentar eventual pedido de compensação por dano moral por parte do trabalhador seria a aplicação da teoria dos motivos determinantes às relações privadas. Explico. Caso o empregador decline como motivo para a não admissão do empregado a sua negativação em cadastros de inadimplentes, tal motivo deverá ser considerado como ofensa a direitos da personalidade, e por isso passível de compensação por danos morais. Pode até ocorrer que, mentalmente, o empregador inadmita o empregado por este fato, e certamente dirá que o motivo é outro (qualificação insuficiente, desistência de contratação de empregados para conter despesas etc.), mas, caso venha a motivar sua decisão com base na existência de negativação do empregado em arquivo de consumo, entendo que o empregador ficará vinculado ao motivo, devendo responder por ilícito civil. Uma vez que ao caso não caberá anulação de ato, como ocorre no Direito Administrativo, poderá, contudo, ser civilmente responsabilizado, pois assim agindo será o mesmo que dizer ao trabalhador que é indigno de trabalhar, daí a ofensa presumida (dano in re ipsa).
Indispensável consignar que a maior parcela da nossa população enfrenta dificuldades financeiras de toda a ordem, até mesmo em razão do abuso de poder econômico desses mesmos empresários que vedam o ingresso ou reinserção de trabalhadores no mercado de trabalho, adotando práticas hediondas como esta de bisbilhotar a vida privada de eventuais empregados, sendo fato notório que o próprio Estado assegura proteção a esses poderosos conglomerados econômicos, como de fato o fez o TST na decisão alhures mencionada, em detrimento dos direitos e garantias individuais elencados na Constituição Federal. Não se pode, ainda, ignorar que nessa era digital, de alto fluxo de informações no ambiente da internet, em que empresários não se asseguram de que quem contrata é realmente o titular das informações que lhes são passadas no ambiente virtual, por telefone etc., inúmeras fraudes são praticadas por estelionatários, valendo-se de dados de terceiros, obtidos clandestinamente. Isso faz com que o nome de muitos consumidores sejam inseridos em bancos de dados e cadastros de inadimplentes, sem que sejam os verdadeiros devedores, o que torna esse critério de admissão em vaga de emprego ainda mais danoso.
Por fim, destaque-se o Projeto de Lei nº 465/09, de autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), que objetiva proibir a discriminação de trabalhadores que buscam uma vaga com base em informações negativas em cadastros de inadimplentes (http://www.senado.gov.br/noticias/projeto-proibe-a-empresas-discriminar-candidato-a-emprego-ou-empregado-inadimplente.aspx). Segundo consta, o PL foi aprovado em 2010, e, nesta data, aguarda parecer do relator na Câmara dos Deputados (http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/valor/2012/02/24/projeto-no-senado-proibe-consulta-de-inadimplencia-por-empregador.jhtm?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter).
Será mais um instrumento que permitirá ao trabalhador exercitar seu direito fundamental ao trabalho, hoje maculado pelo próprio Estado, na caneta dos ministros componentes da Segunda Turma do TST.
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