Produção probatória no âmbito dos juizados especiais cíveis: limitações ao princípio constitucional da ampla defesa

Resumo:  O presente ensaio tem como objetivo tecer uma breve análise acerca das limitações conferidas ao princípio constitucional da ampla defesa em face do surgimento dos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9.099/1995) e as peculiaridades inerentes ao rito processual estabelecido por este diploma legal, especificamente no que se refere às limitações incidentes na produção de meios probatórios. A partir de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, serão estipulados parâmetros para se definir os fundamentos constitucionais e legais às possíveis restrições sofridas pelo direito fundamental à ampla defesa, levando-se em consideração a proteção à dignidade da pessoa humana, a evolução histórica e os princípios que informam o respectivo procedimento sumaríssimo.


Palavras-chave: Dignidade humana. Juizados especiais. Devido processo legal. Ampla defesa. Proporcionalidade.


Sumário: 1. Aspectos introdutórios. 2. Os juizados especiais cíveis. 3. O princípio constitucional da ampla defesa. 4. O aparente paradoxo. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas. 7. Notas.


1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS


A ordem jurídica que se inaugurou com a chegada da Constituição Federal de 1988 brinda a todos com uma série de inovações advindas do neoconstitucionalismo, – fenômeno jurídico-filosófico iniciado no período pós-guerra que tem como características fundamentais o reconhecimento da força normativa da constituição, a expansão da jurisdição constitucional e uma nova interpretação constitucional – na lição de Luís Roberto Barroso[1].


Como corolário do neoconstitucionalismo, surge uma nova teoria dos direitos fundamentais calcada na proteção à dignidade da pessoa humana[2], qualidade intrínseca de todo ser humano que se traduz em um complexo de direitos fundamentais e deveres, bem como uma condição de respeitabilidade e consideração, do Estado e da sociedade, em face de todo indivíduo, protegendo-o contra qualquer tipo de tratamento desumano ou degradante, como bem leciona Ingo Wolfgang Sarlet[3].


Como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana assume uma dupla faceta. Em um primeiro plano, temos tal princípio como delimitador para o estado, uma característica defensiva em prol do ser humano, impedindo o uso arbitrário do poder estatal face aos seus cidadãos. A segunda face deste princípio assume uma característica prestacional, ou seja, um dever de agir do estado para promover condições mínimas de existência para o ser humano. Tais formas são retiradas diretamente do conceito formulado por Sarlet e destacado no item anterior.


A dignidade da pessoa humana também vem regulamentar as relações do homem para com seus semelhantes. Tal característica decorre do que já foi citado como sendo uma respeitabilidade, se tornando um verdadeiro limite à autonomia da vontade. Este é o aspecto intersubjetivo, conferindo ao ser humano o direito de ser respeitado e o dever de respeitar os seus iguais, promovendo a dignidade humana no seio das relações sociais.


Destarte, o ser humano não poderia ser passível de uma coisificação, uma instrumentalização, por parte de seus iguais e do próprio Estado. O Homem, por fazer parte do reino dos fins, é portador de uma dignidade, diferenciando-o de tudo o mais.


Nesse sentido, o rol de direitos e garantias fundamentais, insculpido no artigo 5º da Carta Magna, é verdadeira realização do princípio maior mencionado alhures. Sarlet é preciso quando afirma:


“De todos os exemplos colacionados – que de longe não esgotam o rol de direitos fundamentais embasados na dignidade da pessoa humana – já transparece a sua referida dupla função defensiva e prestacional (negativa e positiva), inclusive na condição de posições jurídicas subjetivas. Com efeito, tal caráter dúplice manifesta-se não apenas pela circunstância – já suficientemente demonstrada – de que tanto os assim denominados direitos de defesa (ou direitos negativos), mas também os direitos a prestações fáticas e jurídicas (direitos positivos) correspondem, ao menos em regra, às exigências e constituem – embora em maior ou menor grau – concretizações da dignidade da pessoa humana”[4], […]


O referido rol traz, em seu inciso LV, a garantia à ampla defesa e aos meios e recursos a ela inerentes, que, como bem lembra Dirley da Cunha Júnior, “é a garantia que proporciona à pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de se defender e provar o contrário.[5]


Cumpre ressaltar que, além da proteção constitucional aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, o Projeto do Novo Código de Processo Civil, PLS 166/2010, em seu artigo 6º, impõe a necessária observância ao princípio da dignidade humana[6], representando manifestação maior do fenômeno da expansão da jurisdição constitucional, ou constitucionalização do direito, acima mencionado.


Assim, o legislador infraconstitucional deverá observar, quando da elaboração das leis, os preceitos e valores insculpidos na Constituição Federal.


2. OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS


A morosidade processual não é uma questão recente, nem privilégio deste ou daquele ordenamento jurídico. Ao longo dos séculos, os Estados sempre buscaram alternativas para promover uma tutela jurisdicional adequada. Surgem, assim, ao lado das alternativas de resolução de conflitos extrajudiciais, novos mecanismos procedimentais que têm como objetivo a redução no lapso temporal que envolve as relações processuais.


Ocorre que, de outro lado, o princípio da segurança jurídica impõe a devida observância aos mecanismos estabelecidos pela legislação, o que demanda tempo, necessariamente.


Nesse sentido, Leonardo Koehler[7] comenta:


“Não se pode perder de vista, por exemplo, que o direito das partes a um fair hearing exige um sistema eficiente de publicação das decisões, prazos suficientes para apresentação dos argumentos de cada uma das partes, o direito à prova e à impugnação das provas adversas, bem como o direito de impugnar as decisões judiciais por meio de recursos. Tudo isso demanda um determinado espaço de tempo, além do próprio período de reflexão do magistrado para proferir a decisão”


O legislador infraconstitucional, assim, busca conciliar este antagonismo que envolve os princípios da razoável duração do processo, e da segurança jurídica, associados diretamente ao princípio do devido processo legal, por meio da criação de um procedimento especial.


Em 07 de novembro de 1984, surge a Lei nº 7.244, que dispunha sobre a criação e o funcionamento dos juizados especiais de pequenas causas. O diploma legal, portador “de uma proposta revolucionária muito mais profunda que a de mera instituição de novos órgãos no contexto do poder judiciário[8]”, estabelecia parâmetros para a implantação de leis estaduais que teriam a finalidade de criar os respectivos juizados especiais de pequenas causas.


O Estado do Rio Grande do Sul foi o pioneiro na implantação dos juizados especiais de pequenas causas, onde os primeiros começaram a funcionar no final do ano de 1986. Logo após, no início de 1987, o Estado de São Paulo implantava sua primeira unidade, na capital.


Em um lapso temporal de quase 9 anos, já na vigência da Constituição Federal atual, e de acordo com o que rezava o artigo 98, I, do respectivo diploma, a Lei 7.244 de 1984 foi substituída por outra lei, surgindo, em 26 de setembro de 1995, a Lei 9.099, Lei dos Juizados Especiais.


Em sua essência, o novo diploma legal manteve quase todas as características do diploma anterior. “As pequenas causas passaram a chamar-se oficialmente causas cíveis de menor complexidade, aumentou-se a competência dos juizados, instituiu-se a execução forçada perante estes e a figura do juiz leigo[9] (grifos do autor)”.


Destarte, os Juizados Especiais Cíveis, em conformidade com o artigo 93 da Lei 9.099 de 1995, são órgãos da Justiça que têm a competência para conciliar, julgar e executar causas cíveis de menor complexidade, orientados pelos critérios da celeridade, informalidade, simplicidade e economia processuais.


Os Juizados Especiais Cíveis vêm ampliar o acesso à justiça, que, na visão de Mauro Capelletti e Bryant Garth, “pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos[10]”.


Em se tratando de matéria probatória, o artigo 32 da Lei dos Juizados Especiais estabelece que são admitidos, para demonstrar a veracidade dos fatos aduzidos pelas partes, todos os meios de prova moralmente legítimos, mesmo os não especificados na Lei. Os meios de prova especificados por Lei são as denominadas provas típicas, compreendendo a prova testemunhal, a prova documental, o depoimento pessoal, a confissão, dentre outros. Além destas, a Lei permite a admissão das denominadas provas atípicas, ou inominadas, como a prova emprestada, a prova cibernética e a reconstituição dos fatos, na lição de Fredie Didier Júnior[11]. Excluem-se, em conformidade com o texto constitucional, em seu artigo 5º, LVI, os elementos probatórios obtidos por meio ilícito.


Ocorre que os princípios norteadores dos Juizados Especiais Cíveis, oralidade, informalidade, simplicidade e celeridade, impõem restrições nos procedimentos adotados no âmbito destes Juizados. Assim, os atos processuais deverão se submeter aos mandamentos trazidos por estes princípios, de modo que não venham a comprometer os ideais propostos pelo texto legal.


Consoante Nelson Nery Jr. e Rosa Nery, o princípio da oralidade


“consiste no conjunto de sub-princípios que interagem entre si, com objetivo de fazer com que seja colhida oralmente a prova e julgada a causa pelo juiz que a colheu. Compôem a oralidade: a) identidade física do juiz. b) a prevalência da palavra sobre a escrita; c)  a concentração dos atos processuais na audiência; d) a imediação do juiz na colheita da prova; e) a inapelabilidade, em separado, das decisões interlocutórias”[12]. (grifo nosso)


Assim, em consonância com o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis, toda a produção probatória, necessariamente, se dará no curso da audiência de instrução e julgamento, não sendo permitida a sua dilação além daquele momento processual, nos moldes estabelecidos pelo princípio alhures mencionado.


Cândido Rangel Dinamarco sintetiza tal assertiva de forma clara e objetiva:


“Nem podem ter lugar as perícias formais, no juizado. Seu procedimento é complexo e demorado, além de encarecer o serviço jurisdicional. A inspeção judicial que a lei permite, a inspeção informal por auxiliar da confiança do juiz e a inquirição de técnico (art. 35 – supra, n. 76) são medidas que, possibilitando ao juiz o contato direto com as fontes reais de prova e a colheita de informes técnicos, visam a suprir a ausência de perícia. Se fosse permitida a prova pericial, ter-se-iam, nos juizados especiais processos eternizando-se por meses ou anos, em total distorção da idéia de celeridade e concentração que anima sua lei específica.”[13]


Corroborando com o respectivo argumento, o ilustre Marcos Maurício Bernardini assim ensina:


“Para evitar tais discrepâncias e uma morosidade, já costumeira na Justiça comum, foi instituído o sistema dos Juizados, exatamente para que isso não ocorra e, a prova pericial é exatamente diversa do objetivo principal de celeridade dos juizados. Afinal, prova pericial é complexa e tem um procedimento próprio estabelecido no Código de Processo Civil, procedimento este moroso e oneroso para as partes […]”.[14]


Nesse sentido, os atos processuais, especialmente a produção de provas, típicas ou atípicas, nos moldes estabelecidos no Código de Processo Civil, devem observar, necessariamente, os preceitos contidos no artigo 2º da Lei dos Juizados Especiais Cíveis, ou seja, a devida observância aos princípios da celeridade, simplicidade e informalidade processuais, no intuito de não embaraçar o procedimento insculpido no referido diploma legal, o que o tornaria extremamente moroso e dispendioso para as partes.


3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA


A moderna Doutrina vem ratificando, reiteradamente, os grandes trabalhos produzidos por Ronald Dworking, jusfilósofo norte-americano, complementado por Robert Alexy, constitucionalista germânico. Este veio introduzir no civil Law o pensamento que aquele, originalmente, construiu no commom Law. Dworking, em sua análise, procura demonstrar a existência do Direito como sendo um sistema composto de duas espécies de normas jurídicas, quais sejam, princípios jurídicos e normas jurídicas. Ainda sustenta que:


“ […] a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”[15].


Em relação à antinomia entre princípios, o método declaratório da invalidez não teria aplicação possível, tendo em vista que os princípios envolvidos permaneceriam válidos, porém, seria realizada uma ponderação entre estes, seguindo o modelo proposto por Dworking e relacionado com a dimensão de peso presente nesta espécie normativa. Alexy, evidenciado por Thiago Bomfim, nos brinda, destacando:


“Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito do juridicamente possível é determinado pelos princípios e regras opostas”[16].


Os princípios constitucionais que irradiam seus efeitos no processo civil encontram-se consolidados no rol de direitos fundamentais, representados pelos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.


O princípio do devido processo legal, ou due process of Law, tem origem na Magna Charta do rei João Sem Terra, de 1215. A expressão originária “the law of the land”, foi substituída por “due process of Law” no momento em que fora incorporada pelo ordenamento jurídico Americano. Referida nomenclatura inspirou o constituinte pátrio de 1988, quando o princípio do devido processo legal foi definitivamente instituído como direito fundamental.


Nas lições de Nelson Nery Júnior:


“O princípio fundamental do processo civil, que entendemos como a base a qual todos os outros se sustentam, é o do devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of Law. A Constituição Federal Brasileira de 1988 fala expressamente que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, n. LIV)”[17]. (grifos do autor)


Tal princípio produz efeitos em todas as searas jurídicas – jurídica (civil e penal) e administrativa – norteando as relações jurídicas processuais. Como corolário, o princípio do devido processo legal assegura, ainda, a necessária observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, com os meios a eles inerentes, consoante artigo 5º, LV da Constituição Federal.


Alexandre de Moraes afirma que “por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-s ou calar-se, se entender necessário[18].”


A ampla defesa, ou plenitude do direito de defesa[19], promove uma produção probatória complexa, dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico, de forma que, não se tratando de provas obtidas por meios ilícitos, é facultado às partes, em processos judiciais ou administrativos, conforme supra, a produção de quaisquer meios probatórios, típicos ou atípicos, em consonância com o disposto no artigo 332 do Código de Processo Civil.


Importante destacar que o processo civil é verdadeiro instrumento[20] para a consecução dos valores insculpidos na Constituição Federal. Valores estes que, em sua essência, visam a promoção do princípio fundamental da proteção à dignidade da pessoa humana.


4. O APARENTE PARADOXO


Inicialmente, o intérprete desatento poderia identificar um aparente conflito, ou tensão, entre um princípio constitucional e um princípio estabelecido em legislação infraconstitucional. Seguindo um critério hierárquico, não seria admissível que, a priori, os princípios contidos na Lei dos Juizados Especiais Cíveis – oralidade, informalidade, celeridade e simplicidade – promovessem verdadeira restrição ao princípio constitucional da ampla defesa, direito fundamental consagrado no ordenamento jurídico pátrio, impedindo a produção de meios probatórios moralmente legítimos, tendo em vista os preceitos estabelecidos na referida legislação ordinária.


Ocorre que mesmo os direitos fundamentais são passíveis de limitações. Tais limitações acontecem de forma expressa (realizadas diretamente, pela própria Constituição Federal ou indiretamente, pela Lei) ou de forma tácita (através de limites implícitos ou imanentes), segundo leciona Suzana de Toledo Barros[21]. Assim, o caráter principiológico das normas de direitos fundamentais implica, por si só, a aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou a existência de seus elementos ou subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito[22], quando da existência de tensões envolvendo aqueles.


Examinando-se os três subprincípios, teremos que a “adequação dos meios aos fins traduz-se em uma exigência de que qualquer medida restritiva deve ser idônea à consecução da finalidade perseguida[23]”. É a fase inicial da aplicação do princípio da proporcionalidade, onde são averiguados quais os meios aptos à consecução do fim almejado.


A necessidade, por sua vez, estabelece que a “medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa[24]”. Dentre todas as medidas disponíveis, o intérprete deverá optar pela menos gravosa.


O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito impõe a observância de se utilizar o meio adequado e necessário em razoável proporção com o fim perseguido, evitando-se, assim, o cometimento de práticas excessivas[25].


Nelson Nery, nesse sentido, esclarece:


“Segundo o princípio da proporcionalidade, também denominado de “lei da ponderação”, na interpretação de determinada norma jurídica, constitucional ou infraconstitucional, devem ser sopesados os interesses e direitos em jogo, de modo a dar-se a solução concreta mais justa. Assim, o desatendimento de um preceito não pode ser mais forte e nem ir além do que indica a finalidade da medida a ser tomada contra o preceito a ser sacrificado”[26].


Assim sendo, é perfeitamente possível que haja determinada sujeição dos direitos fundamentais à reserva imposta por lei ordinária restritiva, quando há previsão constitucional expressa estabelecendo a possibilidade da respectiva restrição[27].


Mas os direitos fundamentais que não estariam sujeitos à clausula restritiva expressa, não seriam insuscetíveis de quaisquer limitações[28].


Nesse sentido, Suzana de Toledo Barros afirma que:


“Para prevenir os inúmeros conflitos resultantes de pretensões colidentes, a fim de garantir segurança jurídica nas relações sociais, justifica-se, frequentemente, a edição de leis que restrinjam o exercício dos direitos considerados, sem que, para tanto, exista uma específica autorização constitucional. Nestes casos, tem-se que a coexistência espácio-temporal de direitos pode ser validamente prevenida, desde que a tarefa de concordância prática respeite os limites dados principalmente pelo princípio da proporcionalidade”[29].


A restrição do direito fundamental compreendido pelo princípio constitucional da ampla defesa, destarte, encontra supedâneo na aplicação do princípio da proporcionalidade, tendo em vista que a produção de meios probatórios que viessem a comprometer os valores preconizados pelo ordenamento jurídico violaria o subprincípio da proporcionalidade strictu sensu, traduzindo-se em verdadeiro excesso.


Desta forma, é perfeitamente admissível que ocorra uma restrição ao exercício do direito fundamental à livre produção probatória, evidenciado pelo princípio da ampla defesa, por meio de uma legislação infraconstituiconal, in casu, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis.


 A não limitação na produção dos meios probatórios, se traduziria em uma verdadeira violação ao princípio da celeridade processual, também insculpido no rol de direitos fundamentais, nos moldes propostos pela Lei 9.099 de 1995, já que a celeridade processual preconizada por este diploma encontra supedâneo no princípio mencionado, tornando sem efeito os benefícios trazidos no bojo desta legislação.


Impõe-se, nesse sentido, uma ponderação entre os princípios constitucionais da ampla defesa e da celeridade, promovendo, consoante Ronald Dworking e Robert Alexy, a aplicação dos referidos princípios na maior medida possível, respeitando-se suas dimensões de peso requisitadas pelos fins propostos pela Lei dos Juizados Especiais Cíveis.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O ordenamento jurídico pátrio prevê a consecução de determinados valores. Este conteúdo axiológico se manifesta através dos princípios constitucionais, que, a partir da segunda metade do século XX, adquiriram status de norma jurídica, decorrente do fenômeno da força normativa das constituições, uma das características do neoconstitucionalismo.


Os direitos fundamentais, representados pelos princípios e regras constitucionais, realizam o valor fundamental da proteção à dignidade humana, impondo prestações positivas e negativas, ao Estado e à sociedade, com o fim de proteger o ser humano contra qualquer tipo de tratamento desumano e degradante.


Nessa seara, o princípio da ampla defesa, como direito fundamental e corolário do princípio do devido processo legal, confere às partes, a possibilidade de uma determinada amplitude quanto à produção de meios probatórios, respeitando-se, necessariamente, a licitude das provas produzidas.


Com o advento da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e seu procedimento sumaríssimo especial, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil sofre determinadas mitigações, ou seja, verdadeiras restrições aos atos processuais que não se coadunam com a celeridade imposta pelo respectivo procedimento.


Destarte, há uma relativização do direito fundamental à ampla defesa no âmbito do procedimento preconizado pela Lei 9.099 de 1995, tendo em vista a vedação à produção de meios de prova incompatíveis com os princípios norteadores do rito acima mencionado.


A coexistência de direitos fundamentais importa na ocorrência de eventuais tensões ocorridas entre estes, implicando na necessidade de se estabelecer parâmetros para a solução destas controvérsias.


As considerações acima estipuladas evidenciam o caráter relativo dos direitos fundamentais, sendo que os conflitos mencionados alhures seriam solucionados com a aplicação do princípio constitucional, implícito, da proporcionalidade, a partir da verificação dos pressupostos insculpidos nos subprincípios que compõem aquele maior.


 Apesar de se atender aos requisitos propostos pelos subprincípios da adequação e da necessidade, quando da admissibilidade de todos os tipos de provas, típicos e atípicos, nos moldes do Código de Processo Civil, restaria violado o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito quando, v.g., se admitir-se a produção de prova pericial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, o que tornaria o referido procedimento moroso e dispendioso – não atendendo aos ideais de celeridade preconizados no texto constitucional e evidenciados na legislação em comento – para as partes, além de violar, também, um dos subprincípios da oralidade, que impõe a realização de toda produção probatória no âmbito da audiência de instrução e julgamento.


Desta forma, seria imensamente desproporcional, strictu sensu, e, por conseqüência, lato sensu, admitir a produção de provas no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, ao se aplicar, sem restrições, o princípio constitucional da ampla defesa, ignorando-se, completamente, a devida observação aos valores constitucionais que estabeleceram a criação destes órgãos jurisdicionais, o que impossibilitaria a efetivação de uma tutela jurisdicional adequada, útil e justa.


 


Referências bibliográficas:

AFONSO da Silva, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª Ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1992.

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BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em <HTTP://jus.uol.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 01 ago. 2008.

BERNARDINI, Marcos Maurício. Juizados Especiais Cíveis. Provas Técnicas e Perspectivas Gerais (Federais, Criminais e de Família). São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001.

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NERY Júnior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6ª Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.


Notas:

[1] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, 2005 pag. 5.

[2] Id., pag. 5.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2008, pag. 63.

[4] Id., pag. 102.

[5] CUNHA Júnior, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2008, pag. 682.

[6] BRASIL. Projeto do Novo Código de Processo Civil. 2010, pag. 50.

[7] KOEHLER, Leonardo Augusto Leopoldino. A Razoável Duração do Processo. 2009, pag. 29.

[8] DINAMARCO. Cândido Rangel. Manual dos Juizados Cíveis. 2001, pag. 19.

[9] Id., pag. 23.

[10] CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso á Justiça. 1988, pag. 12.

[11] DIDIER Júnior, Fredie, BRAGA, Paula Sarno e OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 2010, volume 2, pag. 49.

[12] NERY Jr., Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 2004, pag. 142, apud DIDIER Júnior, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 2010, volume 1, pag 142.

[13] DINAMARCO. Cândido Rangel. Manual dos Juizados Cíveis. 2001, pag. 154.

[14] BERNARDINI, Marcos Maurício. Juizados Especiais Cíveis. Provas Técnicas e Perspectivas Gerais (Federais, Criminais e de Família). 2001, pag. 33.

[15] DWORKING, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 2002, pag.39, apud BOMFIM, Thiago. Os Princípios Constitucionais e Sua Força Normativa. 2008, pag.49)

[16] ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. 1993, pag. 86, apud BOMFIM, Thiago. Os Princípios Constitucionais e Sua Força Normativa. 2008, pag. 50.

[17] NERY Júnior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2004, pag. 60.

[18] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2005, pag. 93.

[19] AFONSO da Silva, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1992, pag. 378.

[20] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 2003, pag. 49.

[21] BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos fundamentais. 2000, pag. 160.

[22] Id., pag. 157.

[23] Id., pag. 76.

[24] Id., pag. 79.

[25] Id., pag. 83.

[26] NERY Júnior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2004, pag. 197.

[27] BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos fundamentais. 2000, pag. 163.

[28] Id., pag. 166.

[29] Id., pag. 175.

Informações Sobre o Autor

Hugo de Barros Chianca

Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Garanhuns. Advogado inscrito nos quadros da OAB/PE. Professor da Faculdade de Direito de Garanhuns.


Equipe Âmbito Jurídico

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