A sociedade brasileira tem convivido
nos últimos anos com uma alta taxa de criminalidade urbana, geradora de um
fundado sentimento de temor e insegurança. Recentemente, alguns setores do
governo têm postulado pela adoção do famoso programa nova-iorquino de
“tolerância zero”, como um modelo a ser seguido no Brasil. O plano americano é
reflexo do chamado direito penal máximo, segundo o qual, em síntese, todas as
condutas ilícitas, por mais irrelevantes que sejam, devem ser objeto de apenamento, as penas devem ser mais longas, os regimes de
cumprimento mais rígidos e as possibilidades de benefícios menores. Como
conseqüência, o processo penal deve ser mais célere e utilitarista, no sentido
de diminuir as garantias processuais do cidadão em nome do interesse estatal de
mais rapidamente apurar e apenar condutas. Esse discurso, quando levado a cabo por políticos hábeis e demagogos, acaba gerando na
população o equivocado sentimento de que o programa de tolerância zero é a
solução para todos os males.
Nada mais falacioso. O modelo de
tolerância zero é fruto de uma equivocadíssima
política repressivista norte-americana, chamada de
movimento do law and
order (movimento da lei e da ordem). O law and order prega a supremacia estatal e legal em franco
detrimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais. O Brasil já foi
contaminado por esse modelo repressivista há mais de
10 anos, quando a famigerada Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), seguida de
outras na mesma linha, marcou a entrada do sistema penal brasileiro na era da
escuridão, na ideologia do repressivismo saneador. A
idéia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e
mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência
estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência.
Exemplo claro do fracasso nos dá o
próprio modelo brasileiro. Basta questionar: com o advento da lei dos crimes
hediondos (e posteriores) houve uma diminuição no número de delitos graves
(latrocínios, seqüestros, tráfico de entorpecentes, etc.)? A política de
aumentar penas e endurecer o regime de cumprimento diminuiu as taxas de
criminalidade urbana? Obviamente que não. A cada dia ocorrem mais delitos de
latrocínio, seqüestros (agora na sua versão “relâmpago”) e o tráfico de entorpecente
cresce de forma alarmante, apenas para dar alguns
poucos exemplos.
Nos Estados Unidos, o marketing de que
a redução da criminalidade urbana em Nova York foi conseqüência da política de
tolerância zero, é severamente criticada. É pura propaganda enganosa. Não é
prendendo e mandando para a prisão mendigos, pichadores e quebradores de
vidraças que a macro-criminalidade vai ser contida.
As taxas de criminalidade realmente caíram em Nova York, mas também
decresceram em todo o país, porque não é fruto da mágica política
nova-iorquina, mas sim de um complexo avanço social e econômico daquele país. É
fato notório que os Estados Unidos têm vivido nas últimas décadas uma eufórica
evolução econômica, com aumento da qualidade de vida e substancial decréscimo dos
índices de desemprego. Nisto está a resposta para a
diminuição da criminalidade: crescimento econômico, sucesso no combate ao
desemprego e política educacional eficiente.
Ademais, o modelo de tolerância zero é
cruel e desumano. Os socialmente etiquetados sempre foram os clientes
preferenciais da polícia e, com o aval dos governantes, nunca se matou, prendeu
e torturou tantos negros, pobres e latinos. A máquina estatal repressora é
eficientíssima quando se trata de prender e arrebentar hiposuficientes.
Como aponta Vera Malaguti de Souza (Discursos
Sediciosos. Freitas Bastos, 1997) a mensagem do prefeito de Nova York foi
muito bem entendida pelos policiais que, ao torturarem Abner Louima, afirmaram: stupid
nigger…know how to respect
cops. This is Giuliani time. It is not Dinkins times” (crioulo
burro…aprenda a respeitar a polícia. Esse é o tempo de Giuliani. Não é mais
tempo de Dinkins [ex-prefeito negro de NY]). Essa é a
face cruel do modelo, pouco noticiada.
A criminalidade é fenômeno social
complexo, que decorre de um feixe de elementos, onde o que menos importa é o direito e a legislação penal. A pena de prisão está
completamente falida, não serve como elemento de prevenção, não reeduca e
tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a
prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e
rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito
pior do que quando entrou. Se antes era um desempregado, agora é um
desempregado e ex-presidiário. Dessarte, a prisão
deve ser reservada para os crimes graves e os criminosos perigosos. Não deve
ser banalizada.
Devemos questionar, ainda, porque o
modelo escolhido foi o americano se, por exemplo, o inglês é muitíssimo mais
eficiente? A polícia inglesa é o extremo oposto da americana. Policiais
desarmados, educados e próximos da população. Sem dúvida uma instituição típica
de um Estado Democrático de Direito. Sua eficiência é motivo de orgulho para os
ingleses. Mas isso é muito difícil para nossos incompetentes governantes,
acostumados a fazer prevalecer a força em detrimento
da razão.
Em definitivo, estamos sendo vítimas de
uma propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais
caótica. É mais fácil seguir no caminho do direito penal simbólico, com leis
absurdas, penas desproporcionadas e presídios superlotados, do que realmente
combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarréia legislativa brasileira
é prova inequívoca disso. Difícil é reconhecer o fracasso da política
econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação.
Ao que tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam
em qualquer cidade brasileira, ingressam em massa nas faculdades do crime,
chamadas de Febem. A pós-graduação, é quase automático,
basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios
brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime.
Doutor em Direito Processual Penal
Prof. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da PUCRS
Pesquisador do CNPq
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