O estudo tem por objeto a exposição de algumas teorias sobre as provas no Direito Civil, enfatizando as provas científicas, em vista das peculiaridades que estas apresentam e dos problemas detectados pela doutrina do direito norte-americano, especialmente, a partir das decisões nos casos “Frye” e “Daubert”, em que houve uma mudança no panorama da evidência científica no processo.
PARTE I – TEORIAS SOBRE AS PROVAS
CAPÍTULO I – Conceito de prova – sentido jurídico
O vocábulo “prova”, vem do latim – probatio, e significa “ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação, confirmação”.[1]
Para Moacyr Amaral Santos o sentido jurídico dessa palavra pode ser revelado em diversas acepções como: a produção dos atos ou dos meios com os quais as partes e o juiz entendem afirmar a verdade dos fatos alegados (actus probandi); como ação de provar, de fazer a prova (a quem alega cabe fazer a prova do alegado); como o meio de prova considerado em si mesmo (prova testemunhal, prova documental, prova indiciária); e até mesmo como o resultado dos atos ou dos meios produzidos na apuração da verdade.[2]
Considera-se a idéia de prova quando a partir de alguns fatos busca-se fundamentar uma pretensão deduzida em juízo. Isso porque, as afirmações desses fatos pelo autor podem corresponder ou não com a verdade, e a elas irão se contrapor as alegações do réu, que, por sua vez, também poderão ser ou não verdadeiras. Assim, surgem inúmeras dúvidas sobre a veracidade das afirmações alegadas no processo. Essas questões de fato serão solucionadas pelo juiz a partir das provas que serão realizadas pelas partes. Então, torna-se fundamental a colheita das provas para que o juiz possa formar seu livre convencimento e decidir o objeto do processo.[3]
Assim, a prova é um instrumento do qual o juiz se utiliza para formar seu livre convencimento acerca da ocorrência ou não dos fatos controvertidos no processo.[4]
1.1. Classificação das provas
As provas são classificadas sob vários aspectos, porém, Moacyr Amaral Santos prefere a classificação indicada por Malatesta, considerando-na “objetiva” e com “sentido prático”. Esse autor subdivide as provas em vista de três critérios: ”objeto, sujeito e forma da prova”.[5]
Quanto ao objeto, as provas se apresentam como “diretas” e “indiretas”. As “diretas” são as que se referem diretamente ao fato “probando”, relatando-o ou representando-o. Já as “indiretas” são as que se chega a conclusão com base no raciocínio, como as presunções e indícios, nessas não há referência ao fato “probando” diretamente, mas sim a outros fatos que induzem à prova deste.[6]
Em relação ao sujeito da prova – “pessoa ou coisa que afirma ou atesta a existência do fato “probando” – a prova é “pessoal” ou “real”. “Pessoal” quando há afirmação consciente, por exemplo, o documento de confissão de dívida; e “real” quando há atestação inconsciente, por exemplo, o desespero e o terror.[7]
Por fim, quanto à forma a prova pode ser “testemunhal”, “documental” ou “material”. A “testemunhal” corresponde à afirmação pessoal. Já a “documental” é a afirmação escrita ou gravada. A “material” consiste justamente em qualquer materialidade da prova do fato “probando”, como os exames periciais.[8]
1.1.1 Antiga classificação em provas “plena”s e semi”plena”s
Destaca-se a antiga classificação usada pelos praxistas, que falavam de “prova plena” e de “prova semiplena” para assinalar uma gradação da força persuasiva das provas: seria “plena” aquela que, por si só, trouxesse uma carga de convencimento bastante para fundar a decisão da causa; “semiplena” aquela que, não suficiente em si mesma, teria de conjugar-se com outros adminículos para servir de base à convicção do juiz.[9]
A título ilustrativo, vale dizer que a partir do século XI [10], surgiu o sistema das provas legais, ou positivas, também conhecido por sistema positivo. Nesse sistema as regras legais estabeleciam por si quando se tratava de “prova plena” ou “semiplena”, inclusive, quantas “provas semiplenas” formariam uma “prova plena”. Dá-se o nome a esse sistema de “tarifamento das provas”, vez que havia um valor tabelado pela lei que tinha que ser respeitado na sentença.
Moacyr Amaral Santos assenta que deve haver cuidado na divisão em “prova plena” e “semiplena”. Segundo o autor “a verdade é una e indivisível e a certeza não é suscetível de gradação”. [11]
Diferentemente do que descreve o “sistema de provas legais” ou “tarifamento de provas”, não é a produção de uma prova considerada “plena” (confissão, por exemplo) que produz a certeza do fato, mas sim as razões que atuam no espírito do julgador para que tenha “plena” fé nas afirmações do acusado ou das testemunhas que atestam o fato. Só porque duas testemunhas afirmam unissonamente: – “Nós vimos Tício matar Caio!”, o juiz não poderá condenar, sem antes sopesar se as testemunhas lhe merecem fé; se puderam ter sido espectadoras do fato; se têm vontade firme de dizer a verdade; se os depoimentos encontram ressonância em outros elementos, inclusive nas declarações do acusado; ou ainda, se os depoimentos lhe parecem possíveis e verossímeis. [12]
Em outras palavras, para mensurar a prova como “plena” não basta que haja um valor tabelado, e sim, que seja analisado um conjunto de fatos e circunstâncias, daí, então, o juiz obtém a certeza necessária para qualificar a prova como “plena” e decidir a questão controversa.
Os membros dos Tribunais do Brasil, não desconsideram o significado de “prova plena” e têm constantemente empregado a expressão para fundamentar várias decisões sobre diferentes matérias.
Em recente acórdão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, o Ministro Relator Carlos Velloso utilizou o termo “prova plena”, inclusive, sendo influenciado pela orientação de outras jurisprudências do mesmo Tribunal, para assentar que “a sentença de pronúncia é mero juízo de admissibilidade, motivo por que nela não se exige a ”prova plena“. Para a pronúncia do acusado basta que o juiz se convença de que há nos autos suficientes indícios de autoria e tipicidade (…)”.[13]
Também, em acórdão do Tribunal de Justiça de Brasília, só que desta vez em matéria tributaria, o Relator Desembargador Sérgio Rocha, se referiu à produção de “prova plena” para comprovar o fato ou ato de recolhimento de imposto a maior. [14]
Mais interessante, em vista da conexão com o objeto do tema em discussão, foi a decisão tomada pelo Relator José Carlos Teixeira Giorgis, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em um caso de investigação de paternidade, no qual as partes não foram intimadas para o laudo do exame de DNA, configurando-se, pois, cerceamento de defesa. Isso porque, o juízo de 1º grau antecipou o julgamento da lide sem que houvesse oportunizado a dilação probatória sobre o laudo do exame. Nesse sentido, o referido Tribunal reformou a decisão de 1º grau fundamentando que “o exame de DNA, apesar de forte indício probatório, não é “prova plena” que elide as demais. Contraditório e ampla defesa são princípios constitucionais que devem ser obrigatoriamente observados, sob pena de nulidade”.[15]
Enfim, a classificação em provas “plenas” e “semiplenas”, apesar de antiga e não muito assinalada pela doutrina mais moderna, não deixou de existir. Pode-se considerar como reflexo da sua permanência no sistema brasileiro a indicação feita no Novo Código Civil[16] e a sua freqüente observância, em diferentes assuntos jurídicos, constatada nos acórdãos emitidos pelos Tribunais do Brasil.
1.2 A apreciação das provas pelo juiz
Moacyr Amaral Santos exprime que “na avaliação da prova se desenvolve o trabalho intelectual do juiz, é ele quem pesa e estima as provas”.[17] Leonardo Greco acrescenta que o referido autor chegou a escrever que “a admissão (das provas) é ato do juiz, exclusivamente seu. Como o é a avaliação e a estimação da prova”.[18] No entanto, essa concepção evoluiu, face ao alcance das garantias constitucionais do “contraditório” e “ampla defesa” [19], às partes não cumpre apenas “fiscalizar eventuais abusos pelo juiz, que arbitrariamente, deferisse ou indeferisse determinada prova”, às mesmas confere-se o direito de “defender-se provando”, isso significa que “não apenas proporão provas a serem admitidas ou não pelo juiz, mas efetivamente produzirão todas as provas que considerarem úteis à defesa de seus interesses” [20].
O professor Moacyr Amaral Santos diferencia três sistemas de apreciação de provas pelo juiz: “o critério legal” – que já foi comentado nesse estudo ao tratar das provas “plenas” e “semiplenas” – o da “livre convicção” e o da “persuasão racional”.[21]
1.2.1. Sistema da livre convicção
O sistema da livre convicção apresenta um juiz “soberanamente livre quanto à indagação da verdade e apreciação das provas”. Ocorre que nesse sistema não há vinculo a nenhuma regra e a convicção decorre não só das provas colhidas, mas também do subjetivismo do juiz, que, além disso, não está obrigado a fundamentar sua convicção.[22]
Esse sistema é falho, vez que tolhe o diálogo do juiz com as partes, ora, se o juiz forma seu convencimento com base na sua própria concepção, independentemente até das provas produzidas pelas partes, onde fica o princípio de justiça? Se assim fosse, deveríamos desconsiderar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Por outro lado, também fica prejudicada a “sociabilidade do convencimento”, pois, se o convencimento tem como sustentáculo concepções particulares do juiz, para ser legitimo seria necessário que se forme a mesma certeza em qualquer indivíduo desinteressado na causa. [23]
A livre apreciação das provas pode conceder as maiores e melhores garantias de que, no processo, será aplicada a verdadeira justiça, desde que o julgador, imparcial, fundamente sua decisão e, portanto, sejam respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Também, a isonomia e a impessoalidade da jurisdição, contidas nos artigos 5º, inciso I e 37 da Constituição da República Federativa do Brasil [24], exigem que o livre convencimento seja formado através de “critérios aceitáveis para todos e não apenas para o juiz”.[25]
1.2.2. Sistema de persuasão racional
O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 determina no artigo 131 que “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento”.[26]
Moacyr Amaral atenta para a semelhança do dispositivo supracitado com o sistema da livre apreciação das provas pelo juiz, no entanto, elucida o autor que “parece, mas não é”, visto que, tal liberdade se restringe ao ato de ponderação das provas colhidas, submetendo-as a um exame que não sacrificaria a verdade em defesa de considerações particulares. [27]
Ainda ensina o referido autor que o juiz é livre, posto que é “investigador da verdade”, mas nem por isso está sujeito a seguir regras que tabelem qualitativamente os meios de prova, pelo contrário, ele exerce sua liberdade conforme sua consciência, e isso não deve resultar em livre arbítrio, longe disso, visto que, dever-se-á respeitar à lei.[28]
Pelo critério da “persuasão racional”, o juiz tira sua convicção das provas produzidas nos autos do processo, “ponderando sobre a qualidade e a vis probandi destas”, nessa composição a convicção se revela como “não arbitrária e condicionada a regras jurídicas, a regras de lógica jurídica, a regras de experiência, tanto que o juiz deve mencionar na sentença os motivos que a formaram”.[29]
É bem verdade que há fatos cuja existência ou inexistência é presumida pela lei, trata-se das presunções legais [30], por exemplo, se o fato há de ser comprovado por instrumento público, não poderá o juiz convencer-se de sua existência por prova testemunhal; outros fatos dependem de prova pericial. Em nenhum desses casos o juiz poderá se desvincular das regras legais para formar sua convicção.
O juiz também deve conduzir-se pelas chamadas “regras de experiência”, consideradas na lição de Goldschmidt como “juízos empíricos da vida, do comércio, da indústria, da arte”, que de qualquer forma servem para comprovar os fatos e “caracterizar sua submissão à norma jurídica”.[31]
Enfim, tendo em vista os preceitos trazidos pelo Código de Processo Civil Brasileiro [32], entre os quais se diz que o juiz só poderá formar sua consciência com base nos fatos e circunstâncias constantes nos autos; não poderá dispensar as regras legais quanto à forma e à prova dos atos jurídicos; também não poderão ser olvidadas pelo juiz as presunções legais; e, por fim, o juiz não poderá esquivar-se das regras de experiência, pode-se concluir, então, que a convicção do juiz está condicionada e por isso não será arbitrária, devendo ser fundamentada. Em suma, para Moacyr Amaral Santos o “Código de Processo Civil Brasileiro se filia ao sistema da persuasão racional”.[33]
PARTE II – A CIÊNCIA E O PROCESSO
Capítulo II – A evolução do conceito de ciência
O conceito de ciência pode ser analisado sob uma ótica positivista ou pós-positivista. Com base na primeira filosofia – positivista – a ciência se apresentava como “ilimitada, completa e infalível”.
A ciência era considerada “ilimitada”, pois bastava uma lei científica, automaticamente reputada idônea, para explicar o mecanismo de um fenômeno em todos os seus aspectos. Falava-se em ciência “completa”, pois, permanecia imutável, em virtude do exaurimento na explicação do fenômeno que por sua vez não comportava alterações. Por fim, a ciência seria “infalível”, porque o fenômeno não poderia deixar de acontecer, na forma em que ele foi previsto, e a ciência não se enganaria nunca, “no máximo poderiam se equivocar os cientistas”. [34]
A concepção de ciência evoluiu a partir de 1955 quando Popper e outros estudiosos colocaram em questão a antiga concepção positivista, constatando, após várias investigações, que a ciência, pelo contrário, revelava-se “limitada, incompleta e infalível”.
A partir de então, formou-se a concepção pós-positivista, difundida hoje, que concebe a ciência como “limitada”, pois de um fenômeno é possível extrair um número limitado de aspectos para representá-los por meio de uma lei cientifica; é “incompleta”, pois, quando outros aspectos do mesmo fenômeno são conhecidos, a lei cientifica deve ser ampliada para representar também esses outros aspectos; é “falível”, ou seja, toda lei científica tem uma margem de erros que deve ser pesquisada e, ademais, “o conhecimento da margem de erros é o índice de que uma teoria foi testada seriamente”. [35]
É possível pensar nessa evolução da concepção de ciência no âmbito jurídico, especialmente, em relação ao direito às provas. Ora, se a ciência fosse considerada “ilimitada, completa e infalível”, bastaria que o juiz nomeasse o perito e lhe impusesse o dever de agir em busca da verdade. No entanto, esse mecanismo processual pôde ser questionado pela simples constatação de que o juiz e o perito são seres humanos e, portanto, podem equivocar-se. Tornou-se necessário realizar o controle sobre as atividades por eles desenvolvidas. Tal controle foi implantado por meio do chamado “contraditório atenuado”, permitindo-se às partes a nomeação de assistentes técnicos que deveriam estar presentes durante a perícia [36].
2.1. O contraditório como método de conhecimento
A respeito do valor do contraditório como método de conhecimento, Karl Popper esclarece que se têm que tentar encontrar exemplos que negam as teorias e não que convalidam as teorias, pois, “se temos pouco senso crítico, encontraremos sempre aquilo que desejamos: procuraremos e encontraremos as confirmações”, isso ocorre devido ao fato de desviarmos o olhar daquilo que poderia “colocar em perigo as teorias que nos são caras”. Popper ainda acrescenta que “neste mundo é facílimo obter provas, aparentemente irrefutáveis de uma teoria que, caso fosse analisada com um ânimo crítico, teria sido negada”.[37]
Karl Popper elaborou o método “falsificacionista”, no qual o autor nega a idéia de que se possa descobrir a verdade irrefutável por meio da análise de um número finito de casos específicos. [38]
A bem da verdade, essa teoria organizada por Popper, quer dizer que se faz necessário indagar se todas as conseqüências daquele fato se verificaram, se apenas uma delas não se verificou, coloca-se em dúvida a validade daquela lei científica naquele caso concreto. Então, cada uma das partes deve poder demonstrar que são aplicáveis ao fato histórico quaisquer outras diferentes causas capazes de provocar aquele determinado evento.
Para Paolo Tonini, a teoria de Karl Popper tem muita relevância para o direito, em especial para o direito à prova, visto que “implica no poder de realizar investigações sobre os mencionados fatos falsificativos” [39].
Às partes cabe o direito de “defender-se provando”, que deve ser estendido ao tipo específico das provas científicas [40]. Enfim, uma vez que a perícia é um meio de prova não facilmente acessível às partes, o direito à prova pelas partes deve ser exercido também fora do âmbito da perícia, por meio do contraditório promovido entre as partes.
PARTE III – AS PROVAS CIENTÍFICAS
Capítulo III – Os exames periciais
Moacyr Amaral Santos explica que “muitas vezes o fato que o juiz precisa conhecer não é de natureza a ser provado por declarações das partes ou de outras pessoas (testemunhas), nem por via de documentos”.[41]
Nesses determinados casos em que a verificação dos fatos exige uma investigação minuciosa das causas e conseqüências e nem sempre o juiz, por mais culto que seja, detém conhecimentos técnicos especiais necessários para averiguar a questão, a verificação e apreciação dos fatos far-se-á por meio da perícia.
3.1. Os peritos
O perito é o sujeito ativo da perícia, aquele que faz a verificação dos fatos relativos à matéria em que é prático ou experimentado.
Assim, o perito é uma pessoa que supre as insuficiências do juiz, “não o substitui, apenas auxilia, colabora na formação do material probatório, emitindo pareceres, para que o juiz, após o trabalho crítico devido, forme sua convicção sobre os fatos”.[42]
Atenta Leonardo Greco para “o temor dos advogados em relação à ditadura dos peritos”, explica o autor que “no momento em que o juiz escolhe o perito, a confiança que nele deposita pode implicar com freqüência em verdadeira delegação de jurisdição sobre a matéria técnico-cientifica”. [43]
Gian Franco Ricci atenta para um grande problema causado pelas provas científicas. Trata-se da impossibilidade de controle crítico pelo juiz, que de fato, por não conhecer a fundo um instrumento de cognição científica, não é do agrado efetuar algum juízo, nem no desenvolvimento do procedimento, nem no resultado manipulado pelo técnico [44].
No sistema processual civil brasileiro, há o perito, nomeado pelo juiz, e ao lado deste, existem os assistentes-técnicos das partes. Muito embora a doutrina esclareça que os assistentes técnicos exercem “funções idênticas às do perito” [45] e por isso a distinção é feita somente na terminologia e na indicação, pelo juiz ou pelas partes, o professor Leonardo Greco acrescenta que “pouca ou nenhuma influência na decisão judicial têm os pareceres críticos dos assistentes-técnicos das partes” [46]. Esta afirmação tem bastante fundamento porque no sistema brasileiro tais assistentes não se sujeitam às restrições do artigo 138 do Código de Processo Civil, nem às sanções do artigo 424, parágrafo único, tendo, ainda, prazo diverso para apresentação de seus pareceres. Diante destas circunstâncias, os pareceres dos assistentes-técnicos têm sido considerados “oficialmente parciais, tendenciosos, apresentados somente depois que o perito do juízo já apresentou suas conclusões” [47].
Capítulo IV – As provas científicas no sistema norte-americano
As provas científicas sempre foram usadas no processo mediante o instrumento da perícia. O que, no entanto, representa um fenômeno novo e interessante é o problema que tais provas assumiu nos últimos tempos. O exemplo mais veemente é hoje apresentado nos Estados Unidos, onde nos últimos 20 anos o uso das provas científicas assumiu grande importância em muitos processos sobre danos derivados do uso de medicamentos lesivos (“Bendectin cases”) ou da exposição a substâncias cancerígenas (como no “Agent Orange case”), ou ainda, no caso que envolveu O. J. Simpson, no qual foi amplamente discutida a confiabilidade dos testes genéticos.
Conforme Michele Taruffo, “não é por acaso que vão aflorando como setor autônomo de pesquisa e estudo as chamadas “forensic sciences”, que estudam de modo específico precisamente as provas científicas” [48].
4.1. O caso Frye v. United States
O critério tradicionalmente usado pelas cortes americanas para obter as noções técnicas e científicas necessárias nas decisões consistia em recorrer a profissionais qualificados. Portanto, se colocava o “expert” no mercado profissional para garantir sua aceitação até que oportunamente os juízes pudessem se servir da sua colaboração [49].
A partir de 1923, o Circuit Court do Distrito de Columbia enfrentou o caso Frye v. United States, devendo decidir se atendia ou excluía como prova um dos primeiros exemplos de “macchina della verità” em um caso de homicídio. Desde então, a corte formulou o critério para o qual um teste científico poderia ser admitido, seria quando o experimento fosse suficientemente estabelecido para ganhar a confiança de todos ou “general acceptance” [50]. Em outras palavras, a opinião do expert baseada na técnica científica só era admitida se houvesse aceitação geral, no sentido de técnica confiável e relevante para a comunidade científica.
A sentença do caso Frye não encontrava precedentes e se tornou progressivamente o ponto de referência para grande parte das cortes americanas. Provavelmente isso aconteceu porque era consentido aos juízes não afrontar diretamente o problema da validade da prova científica e submeter-se a opinião dominante dos cientistas. Assim, o Frye test se tornou o critério mais influente, apesar de não ser aceito por completo, no que tange à admissão ou exclusão das provas científicas[51].
Recentemente o “general acceptance test” foi alvo de muitas críticas, por ser considerado incerto. Ao lado daqueles que sustentam a racionalidade do critério pelo qual se admite as provas científicas desde que reconhecidas pela comunidade científica, há quem sustente que o “frye test” é muito restritivo e excessivamente conservador, posto que exclui do rol as provas científicas fundadas em métodos e princípios que possam ser válidos, mas geralmente ainda não são aceitos, porque são novos ou originais. Isso pode ser observado com freqüência, pois muitas opiniões científicas são consolidadas, porém outros dados são considerados válidos por uns, mas não por outros, não há uma “Communis Opinio” [52].
Um fato importante ocorreu com a entrada em vigor em 1975 da “Federal Rules of Evidence”, pois, surpreendentemente esta lei não trata em nenhum momento do “general acceptance test”. As regras 702-706 se ocupam das “expert testimony” como instrumento essencial para obter as provas científicas, não se referindo ao “frye test”. Porém, como consta na regra 702, há necessidade de qualificação profissional das tais testemunhas, desencadearam-se, então, muitas dúvidas sobre essa qualificação ser um limite referenciado em vista do “frye test”. Surgiu, assim, a questão defendida por muitos comentaristas – se o “frye test” poderia ser usado na interpretação ou aplicação da “Federal Rules of Evidence”. De fato, o “general acceptance test”, continua a ser usado em muitas cortes americanas [53].
Cabe enfatizar que já antes da entrada em vigor da “Federal Rules of Evidence” havia uma orientação diversa da doutrina inaugurada por McCormick, um dos estudiosos do direito à prova, no sentido de que a evidência científica deveria ser admitida com base em critérios sobre a relevância das provas e não em critérios de valoração final acerca da eficácia da prova. Por essa orientação, que ora foi confirmada pela “Federal Rules of Evidence”, mas não condiz com a idéia do “frye test”, cada prova relevante é admissível, salvo se for excluída por uma norma especial. No entanto, surgiu um grande problema quando se afirmara que a prova deveria ser válida e averiguável para ser relevante. Dessa forma, há a exigência de se estabelecer segundo qual critério a prova deveria ser considerada cientificamente válida. Sobre essa complexa situação intervém, em 1993, a sentença da Suprema Corte sobre o caso Daubert v. Merrel Dow Pharmaceuticals[54].
4.2. Bendectin Cases – O caso Daubert v. Merrel Dow Pharmaceuticals
O caso “Daubert v. Merrel Dow Pharmaceuticals” é um “Bendectin case” e trata-se de uma ação de ressarcimento pelo uso de um medicamento antináusea por mulheres nos primeiros meses de gravidez acarretando malformações nas crianças [55].
Para resolver a delicada questão, a Suprema Corte americana se baseou na regra 702 [56] da “Federal Rules of Evidence”, que trata especificamente das “expert testimony”, nada regendo sobre o “general acceptance test”, o qual foi considerado pela Suprema Corte como uma exigência rígida para produção da prova científica.
Ao decidir esse complexo caso, a Suprema Corte americana dividiu opiniões, contudo, concordou que o “general acceptance test” não poderia ser o único critério para admitir ou excluir a evidência científica. A corte não discordou que se deve admitir somente provas científicas válidas, no entanto, afirmou que a validade científica deve levar em consideração vários critérios como: a controlabilidade e falsificação da teoria ou da técnica que estão à base das provas; o percentual de erro notório ou potencial e o respeito pelos padrões relativos à técnica empregada; a circunstância que a teoria ou a técnica em questão são objetos de publicação científica e, portanto, há controle da parte e de outros profissionais; e, o consenso geral da comunidade científica interessada [57].
Enfim, o “frye test” sobrevive, mas constitui apenas um dos vários critérios possíveis de avaliação. Ademais, apesar da Suprema Corte ter admitido a possibilidade de serem empregados novos critérios, a mesma não elencou nenhum rol taxativo.
4.3. A função do juiz na admissão da testemunha científica
Conforme Michele Taruffo, as conseqüências mais notáveis assumidas após a decisão no caso “Daubert” recaem sobre a função do juiz na admissão da evidência científica, e particularmente, da “expert testemony”. [58]
Quando da vigência do “Frye test” tal avaliação era relativamente simples, pois, só havia o critério de aceitação geral e o juiz era guiado pela posição dominante da comunidade científica sem empreender em uma avaliação direta do fundamento científico da prova produzida. Após “Daubert”, o juiz deverá analisar caso a caso e aplicar os quatro critérios fundamentais de validez científica. Formalmente, o juiz decidirá sobre a admissão da “expert testemony” aplicando os critérios estabelecidos pela “Federal Rules of Evidence”, especialmente a regra 702, e os critérios trazidos em “Daubert”. Assim, o juiz definirá se determinada prova poderá ser considerada uma evidência científica com o propósito de admitir a “expert testemony” .[59]
Indubitavelmente, as avaliações formuladas pelo juiz de acordo com os novos “padrões elásticos” caracterizaram um elevado grau de discricionariedade. Tal valoração deve ser feita o mais próximo possível dos critérios efetivos de validade, mas sempre caberá ao juiz individualizar qual critério será aplicado em cada caso[60].
4.3.1. O perito testemunha
A aquisição das provas científicas acontece, de regra, por meio de consulta técnica. Isso significa, nos Estados Unidos, o testemunho dos “expert witnesses”.
O aspecto mais importante e que, principalmente, diferencia o sistema norte-americano dos demais sistemas de direito civil é que os peritos são considerados testemunhas. Isso quer dizer que eles são escolhidos pelas partes em juízo como fonte de conhecimento dos dados científicos que as mesmas considerarem úteis para a decisão. Então, as próprias partes pagam os peritos e os preparam para o testemunho. Obviamente que as partes selecionam os peritos mais preparados para testemunharem a seu favor (“partisan selection”) e tendem a assegurar-se que seus testemunhos lhes favorecerão (“partisan preparation”) [61].
Não há uma testemunha especialista e partidária que forneça um testemunho neutro e imparcial. Através dos depoimentos de ambos os testemunhos “fidedignos das partes” é que ocorre a “cross examination” ou cruzamento de informações, ou ainda, método do exame atravessado [62].
Este modo de conceber a “expert testemony” corresponde por completo ao princípio do “adversary system of litigation”, mas ao mesmo tempo provoca na doutrina um desgosto e impele-na a sugerir melhoras e reformas. Isso devido à dificuldade de o juiz aplicar os critérios de validade científica indicados no caso “Daubert” [63].
A eventualidade com que os “partisan experts” fornecem testemunhos neutros induz a doutrina a criar vários remédios com vistas à aquisição de uma evidência científica válida por meio destes peritos fidedignos. Tal doutrina sugere o uso do poder de controle pelo juiz na fase preliminar aos debates. O principal remédio está expresso na “rule 706” na qual é reconhecida a nomeação dos peritos efetuada de ofício pelo juiz. Assim, para garantir a validade e atendibilidade da evidência científica há a possibilidade de adquirir testemunhos de peritos mais qualificados e imparciais, capazes de fornecer dados e avaliações com fundamentos científicos [64].
Essa solução pode parecer óbvia para os juristas da “civil law”, porém, não tem eficácia no sistema norte-americano, pois, tal nomeação pelo juiz, de ofício, raramente acontece. A principal causa desse escasso emprego da “court appointed experts” está ligada à tendência norte-americana de seguir os princípios do “adversary system”, segundo o qual, o juiz não deve desenvolver um papel ativo no processo, esse papel é exercido pelos advogados. Assim, para Taruffo, a maior dificuldade não está no uso de peritos imparciais, e sim, na maneira de dividir o poder de controle do andamento do processo entre os juízes e advogados[65].
4.4. A questão da valoração da prova científica
Desde que a prova científica foi admitida no processo surgiu o problema da valoração em vista da decisão tomada sobre os fatos. A doutrina considera como sendo um paradoxo o fato de juízes não-cientistas e jurados decidindo disputas judiciais que envolvem ciência [66].
Nos Estados Unidos, este paradoxo assume particular evidência nos casos civis que envolvem a decisão pelo júri. Afirma-se que devido ao fato de que o júri é composto por cidadãos comuns de formação cultural específica, este é inadequado para formular decisões em casos complexos. Também por isso, os jurados não estão aptos a avaliarem elementos de provas, como, por exemplo, estabelecer o significado de dados estatísticos para, então, firmar a confiabilidade na testemunha de peritos [67].
No que tange aos juízes, Taruffo afirma que estes têm uma preparação científica maior do que a dos jurados. Sendo assim, para Taruffo, é possível que os juízes aumentem seus conhecimentos técnico-científicos a fim de fazer uma avaliação mais profunda da prova científica. Não se trata de transformar os juízes em cientistas, mas fazer com que eles possam entender melhor e utilizar em suas fundamentações os métodos científicos. Nesse caso, o juiz se serviria dos “experts”, tidos como conselheiros, para admitir a validade e eficácia da evidência científica [68].
Conclusão
A prova é um instrumento do qual o juiz se utiliza para formar seu livre convencimento acerca da ocorrência ou não dos fatos controvertidos no processo.
Destaca-se a antiga classificação usada pelos praxistas, que falavam de “prova plena”” e de “prova semi”plena”” para assinalar uma gradação da força persuasiva das provas: seria ““plena”” aquela que, por si só, trouxesse uma carga de convencimento bastante para fundar a decisão da causa; “semi”plena”” aquela que, não suficiente em si mesma, teria de conjugar-se com outros adminículos para servir de base à convicção do juiz.
Quanto às provas científicas, por se tratar de juízo de probabilidade, não há como adquirir a certeza absoluta dos fatos. Sendo assim, elas possuem uma margem de erro, que não pode ser desconsiderada e, por isso, não devem ser tidas como prova “plena”.
A respeito do valor do contraditório como método de conhecimento, o direito à prova implica no poder de realizar investigações sobre os mencionados fatos falsificativos. Às partes cabe o direito de “defender-se provando” que deve ser estendido ao tipo específico das provas científicas. Enfim, uma vez que a perícia é um meio de prova não facilmente acessível às partes, o direito à prova pelas partes deve ser exercido também fora do âmbito da perícia, ou seja, através do contraditório promovido entre as partes.
O perito é uma pessoa que supre as insuficiências do juiz, não o substitui, apenas auxilia, colabora na formação do material probatório, emitindo pareceres, para que o juiz, após o trabalho crítico devido, forme sua convicção sobre os fatos.
Uma grande questão levantada pela produção de provas científicas é a impossibilidade de controle crítico pelo juiz, que de fato, por não conhecer a fundo um instrumento de cognição científica, não é do agrado efetuar algum juízo, nem no desenvolvimento do procedimento, nem no resultado manipulado pelo técnico.
O sistema norte-americano vem difundindo com grande rapidez o uso das provas científicas, existindo diversas técnicas experimentais e metodologias de análise. No entanto, a prova científica apresenta vários problemas na sua validade, controle e valoração.
A multiplicação das provas científicas acarreta o aumento dos riscos de abuso ou erro, pois, nem sempre a uso da técnica é o mais adequado, ou esta não é conduzida de modo correto. O remédio para esta situação se dá por meio de controle, ou seja, rigorosa verificação das análises apresentadas pelos “experts”.
Existe a necessidade de se garantir que a prova científica seja considerada válida. Também para isso é necessário controlar o seu emprego no processo, na admissão e na valoração.
Parece, porém, que o problema mais relevante e difícil é o uso correto dos conhecimentos e métodos científicos, e em particular da seleção de conhecimentos e métodos que sejam verdadeiramente dotados de validade científica. Esse problema é vivido, hoje nos Estados Unidos, tendo em vista as peculiaridades legais relacionadas a escolha e assunção das “expert whitness” – há um risco muito grande de ser fornecida uma má ciência ou também chamada “junk science”.
Não foi por acaso que em 1993, ao decidir sobre o caso “Daubert”, a Corte Suprema proferiu uma sentença que veio a dar margem a uma imensa literatura, na qual estão indicados vários critérios a serem observados pelos juízes para se assegurarem de que a ciência introduzida no processo corresponda aos cânones de validade científica, controlabilidade e verificabilidade empírica, conhecimento e aceitação difusa no seio da comunidade científica.
Com base em todos os critérios apresentados, toca ao juiz agir como um “gatekeeper”, admitindo somente as provas científicas cuja confiabilidade seja segura.
Por outro lado, o emprego das provas científicas suscita uma série de outros problemas, como o da qualidade e seleção dos peritos que fornecerão seus conhecimentos científicos ao juiz, e em destaque a aptidão do juiz para operar efetivamente como “peritus peritorum” no momento em que é chamado para utilizar-se dos conhecimentos científicos na formulação da decisão final.
Enfim, as provas científicas são muito importantes, desde que apresentem um considerável grau de confiabilidade, para tanto, é necessário que o perito escolhido seja apto a revelar o conhecimento científico; ao juiz sejam oferecidas as informações necessárias para que ele possa verificar se o método empregado na perícia é acatado pela ciência ou se foi utilizado com rigor científico; que as partes possam participar, dando sua contribuição na produção do conhecimento científico.
Mestranda em Políticas Públicas e Processo – Bolsista da CAPES – Faculdade de Direito de Campos/RJ
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