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Despenalizaçao do usuário-dependente de drogas: uma abordagem a luz da justiça terapêutica

A problemática das drogas, no mundo, apresenta um quadro extremamente grave, não só pelos aspectos de saúde, como também pelos aspectos legais, principalmente de segurança pública, mormente quando nos defrontamos com o binômio “drogas-crime”.

Há diversas formas de proceder-se ao combate a esta preocupante questão envolvendo as drogas. As principais providências sem dúvida concernem, à prevenção, de um lado, e, do outro, a repressão ao uso e circulação das substâncias entorpecentes. A idéia da repressão a opção do usuário ocasionaria naturalmente, uma rejeição ao tóxico. No entanto, com o desenvolvimento de estudos vem se observando que este não seria o modo mais contumaz para se solucionar a problemática sob análise, desencadeando a implementação de um novo caminho, com um novo programa, surgindo a Justiça Terapêutica, consagrando os mais altos princípios do direito na inter-relação do Estado e do cidadão, na busca da solução não só do conflito com a lei, mas conjugadamente aos problemas sociais de indivíduos e da coletividade, relacionados ao consumo de drogas.

No Estado da Flórida, nos Estados Unidos, há cerca de 10 anos a cidade de Miami estava com um grande problema social, estatísticas demonstravam um grande uso e consumo de drogas, já estando a cidade com seus presídios super lotados decorrente da prática de ilícitos outros, a população carcerária vinha crescendo ainda mais com o grande número de condenados pelo uso e consumo de drogas. Face a esta situação os Promotores e Juízes de Miami passaram a propor aos usuários-dependentes, que esses se  submetessem a um tratamento, em substituição aos processos criminais. Passando assim a chamada Corte de Drogas a encaminhar o envolvido com drogas a um sistema de tratamento e não de encarceramento. Surgindo pois as chamadas Corte de Drogas, também chamadas de “Tribunais para dependentes químicos”, a fim de evitar o uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, e conter os ilícitos decorrentes do uso de tais substâncias.

Os juízes desses tribunais por entenderem que a dependência química trata-se de uma doença crônica, caracterizada por uma contínua ou periódica perda de controle obsessão e distorção na maneira de pensar, passaram a oferecer um tratamento para aos dependentes sob uma supervisão judicial intensa, valendo-se de testes a fim de verificar o uso da droga e penalidades progressivamente mais rigorosas, buscando o desligamento do usuário com as drogas e, por conseguinte do crime interligado ao uso de tais substâncias.

Toda uma equipe atua juntamente com tais juízes, incluindo promotores, advogados de defesa, agentes responsáveis pelo sursis, e profissionais especialistas em tratamento contra drogas tendo em vista desenvolver um tratamento adequado. A medida adotada passou a ser vislumbrada por diversos países, como Canadá, Bermudas, Austrália, Inglaterra e outros, vindo o Brasil também a aderir tal programa.

Em face da sistemática anteriormente citada que vem sendo adotada por diversos países, visualiza-se uma tendência para se adotar uma política por meio da qual se busca reduzir verdadeiramente os danos e os riscos, que a droga  acometeu ao usuário-dependente; disponibilizando um tratamento ao usuário- dependente, a fim de recuperá-lo da dependência reintegrando-o na sociedade sem ter que encarcerizá-lo.

A fim de observar o trabalho desenvolvido pelos Núcleos de Justiça Terapêutica no nosso país, desenvolveu-se uma análise no Núcleo presente no Estado de Pernambuco, o qual foi implantado por meio do Ato Normativo n°544/2001 do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

Ante tal observação empírica faz-se oportuno destacar alguns conceitos sobre o termo “justiça”; assim, traz-se à tona o conceito de justiça expresso por Kelsen[1] identificando esta como sendo a felicidade social. Uma explicação que seria quase matemática se o sentido da palavra felicidade não fosse tão complexo quanto o de justiça. Desta maneira, deve-se, portanto, perquirir o sentido da palavra felicidade.

Já o nosso ilustre Miguel Reale tenta esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade:

Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinação que nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nem mesmo necessidade de Justiça. A Justiça é um valor que só se revela na vida social, sendo conhecida a lição que Santo Tomás nos deixou ao observar, com admirável precisão, que a virtude de justiça se caracteriza pela sua objetividade, implicando uma proporção ad alterum. [2]

É possível constatar a partir do entendimento de Hans Kelsen, que não poderia existir um ordenamento justo se o que é justo é o que traz a felicidade; e o que é felicidade para um, pode não ser para outro. Já para o Professor Reale, quando todas as pessoas atingissem a felicidade não haveria necessidade de Direito ou Justiça.

A partir da explanação de tais conceitos, elaborados por ilustre doutrinadores, passa-se a parte que tange ao conceito de justiça relacionado ao objeto deste trabalho, pode-se aferir pois, que na modalidade da justiça terapêutica, se entendermos como bem elucidou o ilustre Miguel Reale, ao desenvolver estudo sobre o termo justiça; face a esta modalidade podemos estabelecer que o conceito de justiça engloba os aspectos do direito, seja legais e/ou sociais, já o termo terapêutica está relacionado à ciência médica, determinando tratamento e reabilitação do cidadão.

Constata-se que a Justiça Terapêutica busca não só solucionar a conduta ilícita praticada pelo usuário-dependente, mas também solucionar os problemas deste para com a sociedade.

Perante a análise do conceito em comento, vislumbra-se que a nomenclatura deste é bastante apropriada; entendimento este que é explicitado na opinião de um dos membros do Ministério Público do Rio Grande do Sul – Ricardo de Oliveira Silva – que dispôs:

A adoção da Justiça Terapêutica é justificada também por possibilitar a eliminação de possíveis estigmas que se criaram para as pessoas atendidas pelo sistema de justiça, caso fosse consignado o nome do local de atendimento e aplicação com a titulação “justiça ou vara de medidas para usuários de drogas, de dependentes químicos, de tóxicos ou de entorpecentes” o que poderia, nesta última hipótese, ser confundida com outras operacionalizações judiciais já existentes.[3]

Vislumbra-se, portanto, que o nosso país vem desenvolvendo um processo de conscientização no que diz respeito a necessidade de se prevenir que problemas venham a surgir face a problemática das drogas e de proporcionar meios que minimizem os efeitos negativos, individuais e sociais do uso indevido de drogas. Como uma das formas utilizadas no nosso país, cabe elucidar o tratamento para os dependentes-usuários – a Justiça Terapêutica – devendo tal tratamento ser realizado de forma multiprofissional, e sempre que possível, com a assistência da família; previsto pelas nossas normas pátrias regulamentadoras do problema dos tóxicos, sendo elas: a lei n°10.409, de 11/01/2002 e a lei n° 6.368/76, de 21/10/1976.

Pode-se averiguar, que o modelo empregado pela Justiça Terapêutica é um tipo de pena alternativa, sendo, pois, uma substituição à tradicional pena restritiva de liberdade. É possível aferir que o trabalho desenvolvido pelos profissionais integrantes dos Núcleos de Justiça Terapêutica buscam não só a solução do conflito com a lei, mas também dos problemas sociais de indivíduos e da sociedade, nas patologias decorrentes do uso de drogas.

A metodologia utilizada pela Justiça Terapêutica proporciona que os usuários possam comprometer-se em realizar devidamente o tratamento, que lhe é estabelecido, sem vislumbrarem logo de imediato uma aversão à terapêutica, como anteriormente ocorria face às antigas formas empregadas nos tratamentos.

Estaria, pois, o Centro de Justiça Terapêutica tendo como suas atribuições a de avaliar, acompanhar, sugerir o tratamento mais adequado, assistir ambulatorialmente, contactar centros de tratamento governamentais e não-governamentais, produzir relatórios e laudos dos pacientes encaminhados por decisões judiciais que se encontrem denunciados por delitos praticados sob efeito ou para obtenção de substâncias psicoativas.

Na Justiça Terapêutica tem-se como princípio que embasa o trabalho desenvolvido por esta o da não adversidade, ou seja, empenham-se neste não só operadores do direito, mas também de diversas áreas, como profissionais da saúde, psicólogos e assistentes sociais, por exemplo. Como exemplo desta pode-se destacar a presente no Centro de Justiça Terapêutica presente no Estado de Pernambuco, que tem sua equipe formada:

Juiz – (um)

Coordenador Médico-psiquiatra – (um)

Psicólogos – (seis voluntários)

Assistentes sociais – (cinco voluntários)

Auxiliares Administrativos – (dois componentes do quadro de funcionários do tribunal)

Os integrantes do quadro passam inicialmente por uma capacitação, sendo demonstrado para a equipe os inconvenientes da previsão de sanções penais para os tóxico-dependentes, vindo o quadro a empreender os seus esforços a fim de ultrapassar a idéia contida na sociedade de que a sanção penal seria a solução para se lograr a ressocialização de tais usuários; mediante tal entendimento, a reintegração social destes passa a ser inquirida; introduzindo o desenvolvimento do tratamento para sua recuperação.

Além disso, a equipe multidisciplinar na aplicação efetiva deste programa terapêutico, repassa durante o tratamento ao participante que a aplicação de penas é contraproducente. Na verdade, a pena de prisão aplicada a um usuário-dependente apenas contribui para a sua inserção no submundo da criminalidade presente nos cárceres, dificultando por vez a sua recuperação. Privado da droga e sem a desintoxicação devida, alastra-se o quadro de ilícitos cometidos a partir da abstinência.

Cada integrante da equipe ocupa função de extrema importância, o coordenador do núcleo ao desenvolver seu trabalho, imbuído de sua formação médico-psiquiátrica, visualiza se o usuário é portador de alguma doença mental, pois esta pode ter sido ensejadora da conduta infracional; já o grupo de psicólogos catalisa o participante para que ele entenda a importância do tratamento, de tal forma que este passe a aceitá-lo; já a equipe de assistentes sociais relaciona-se com a família e a vida social do indivíduo, procurando reinseri-lo na sociedade.

Ressalta-se, que segundo abordou a equipe integrante do núcleo, a partir do diagnóstico da situação, extrai-se a forma como o tratamento passará a ser realizado para com aquele participante.

É visível assim que não é objetivo do trabalho desenvolvido pelos Núcleos de Justiça Terapêutica que haja a descriminalização do uso de drogas, mas sim a despenalização para os usuários-dependentes, ou seja, proporcionar que seja substituída a pena de prisão por medidas alternativas, como possibilidade do usuário vir a submeter-se a tratamento.

Conforme salientou o Douto Ricardo de Oliveira Silva[4], as técnicas modernas de psiquiatria explanam que, nos casos de dependência de drogas lícitas ou ilícitas, o primeiro tratamento na maioria das vezes não se dá de forma voluntária, já que o dependente não tem forças de desvincular-se do uso das drogas. Assim, entendem tais estudiosos, que mesmo que a busca pelo tratamento não tenha partido inicialmente da vontade do sujeito, este já será de grande valia, pois para submeter-se a este ele teve que aceitar a proposta.

Diante do supra citado, pode-se enfatizar o que se constatou juntamente com a equipe técnica do Núcleo de nosso Estado, de que a maioria dos usuários encaminhados, face a dependência causada pelo uso dos entorpecentes, por se encontrarem com a sua capacidade cognitiva comprometida, aceitam o tratamento tão somente visando à prerrogativa de não serem aprisionados; por isto, aceitam submeter-se a este após a proposta do Ministério Público.

No entanto, no curso do tratamento os participantes passam na maioria das vezes a  aceitá-lo realmente, isto decorre não de uma imposição; visto que o terapia desenvolvida nestes casos não é impositiva, mas sim consistente numa forma em que se busca mostrar ao usuário o foco do problema que o levou a imergir naquele submundo e que há possibilidade dele vir a conviver normalmente na sociedade sem necessitar daquelas substâncias.

Assim, o simples consumidor de drogas (excluindo portanto os casos de tráfico e mesmo de tráfico para consumo) não deve ser tratado como um criminoso, mas antes como um doente que, como tal, carece de tratamento.

A terapêutica utilizada pela Justiça Terapêutica, segundo ilustraram psicólogas do órgão, consiste basicamente em acompanhamento psicológico, psicosocial, orientá-los, ouvi-los sem preconceito, demonstrando aos encaminhados que estão dispostos a apóia-los, enfim, a ajudá-los. O trabalho desenvolvido consiste basicamente em terapias de grupos, sendo um grupo operativo com os participantes e seus familiares, mostrando-se que o apoio da família é de extrema importância. No entanto, constatada a necessidade de se internar o usuário encaminhado, como o núcleo não tem estrutura para internamento, serão apresentados a ele os Órgãos capacitados para proceder a internação, se a pessoa tem condições econômicas poderá vir a realizá-lo juntamente à rede privada, já para aquele que não apresenta condições financeiras para isto, como é grande parte dos participantes, diversas entidades, atuam como parceiras do Núcleo de Justiça Terapêutica.

Outrossim, todo o trabalho prestado pelo Núcleo de Justiça Terapêutica é submetido a avaliação do magistrado, a fim de averiguar se este está sendo realizado de forma a conseguir a recuperação do indivíduo; devendo sempre a equipe adequar o tratamento à situação do indivíduo. Diante das diferenças existentes entre cada encaminhado, segundo fora aduzido pela equipe, não há como estabelecer qual seria o período necessário para que o indivíduo estivesse realmente em condições de não mais voltar ao submundo em comento, contudo entende que o período mínimo para que a reabilitação ocorra seria de 1 (um) ano, valendo destacar que como ocorre em todo e qualquer tratamento, faz-se presente sempre a possibilidade de uma recaída.

O trabalho desenvolvido no Núcleo tem o compromisso essencial com a cura do infrator, prezando sempre por conseguir a abstinência total deste para com as drogas, ante este seu comprometimento, quando completado o período determinado pelo juiz para que o participante estivesse em tratamento, possibilitam que o usuário continue a freqüentar as sessões de apoio psicológicos, se assim ele desejar até que se sinta reabilitado.

As formas de relações desenvolvidas com o tratamento terapêutico, com a construção de narrativas de seu modo de vida e de sua forma de estabelecer relações proporciona que eles sejam levados a descobrirem os inúmeros problemas que o uso da droga tem trazido para sua vida, a partir de tal aferição estes passam a conceber que há condições e possibilidades para a reconstrução de sua vida.

Diante disto faz-se claro que a modalidade terapêutica adotada não viria a ser tida como incentivadora do consumo, mas sim como uma alternativa por meio da qual os usuários-dependentes podem vir a sair do mundo das drogas.

Compreende-se que as drogas são utilizadas de formas diversas por cada indivíduo, na maioria das vezes como uma forma de fuga às pressões e uma busca pelo poder.

Traz-se à baila, com todos os dados coletados, que a modalidade do instituto terapêutico em foco, tem em si um papel de grande importância para a sociedade, visto que preza por deferir verdadeiramente ao indivíduo condições de ter uma vida normal.

Notas:
1. KELSEN, Hans. O que é justiça? [tradução Luís Carlos Borges e Vera Barkow]. São Paulo : Martins Fontes, 1997.  p. 1-10.
2. REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 306.
3.  SILVA,Ricardo de Oliveira. A Denominação Justiça Terapêutica.Disponível em:<http://www.mp.rs gov.br /hmpage2.nsf/pages/ DRPE- progjudici.Acesso em: 30 nov. 2003 às 17 horas.
4. SILVA,Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica: Cortes especiais de drogas o sistema legal brasileiro e o americano. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/ DRPE-artigo2. Acesso em: 02 dez. 2003 às 17 horas.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marília Lenaide Cavalcanti de Arruda

 

Estudante do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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