Resumo: Neste estudo serão analisados, primeiramente, o conceito de loteamento fechado e sua distinção do loteamento aberto e do loteamento aberto ilegitimamente fechado. Posteriormente se passará à análise da natureza jurídica do loteamento fechado para, então, avançar-se para o exame de sua normatização, investigando quais os limites da ingerência da comunidade nos lotes de propriedade exclusiva.
Sumário: Introdução; 1. Noção de loteamento fechado; 2. Natureza jurídica do loteamento fechado; 3. Normatização do loteamento fechado; 4. Limites da ingerência do condomínio e das associações nos lotes de propriedade exclusiva.
Introdução
No Direito brasileiro, utiliza-se o vocábulo “condomínio” para se referir a dois institutos diferentes: o regime de copropriedade, ou seja, de titulares plurais da propriedade de um mesmo bem, e o regime de copropriedade + propriedade, no qual coexistem, em imóveis, áreas de propriedade em comum e áreas de propriedade exclusiva[1]. Costuma-se designar o primeiro condomínio como “geral” (capítulo VI do título III do livro III do Código Civil), e o segundo como “edilício” ou “em edificações” (capítulo VII do título citado, e Lei 4.591/64), ou, ainda, “em unidades independentes”[2].
Neste trabalho, estudaremos uma figura bastante relevante na sociedade contemporânea, a do loteamento fechado. Trata-se de um regime de bens imóveis – especificamente, de grandes terrenos – em que há áreas comuns – vias, praças, reservas ambientais, etc. – e áreas exclusivas – lotes, em que são construídas casas, e no qual surge um condomínio edilício. O objetivo deste estudo será delimitar a esfera de ingerência do condomínio – tomado como coletivo de coproprietários das áreas comuns – ou das associações de adquirentes de lotes – quando houver – nos lotes individuais, os quais se encontram sob regime de propriedade exclusiva.
1. Noção de loteamento fechado
O crescimento populacional e a consequente expansão urbana que marcaram o início do século XX viram surgir a figura dos chamados loteamentos, ou seja, de grandes terrenos divididos em diversos lotes e vendidos separadamente.
Em 1937, promulgou-se o Decreto-lei 58, com o escopo de prover disciplina jurídica ao novel instituto. A grande novidade introduzida pelo referido diploma foi a imposição do dever de o loteador levar a registro o plano do loteamento. Com o passar do tempo, várias normas foram publicadas acerca dos loteamentos, até a promulgação, em 1979, da Lei 6.766, a qual, com algumas alterações posteriores, ainda hoje se aplica à figura dos loteamentos. O § 1º do art. 2º da mencionada lei traz o conceito de loteamento vigente no Direito pátrio: “considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”.
Ocorre que o século XX assistiu também a um outro movimento, derivado da noção de loteamento: a criação de comunidades fechadas. Essas comunidades surgiram de duas formas: (1) loteamentos receberam autorização do Município em que se situam para limitar o acesso à sua área, por meio da concessão aos proprietários dos lotes de direito real de uso exclusivo das áreas do loteamento exteriores aos lotes, como as vias de circulação e as praças; (2) criaram-se loteamentos em que as vias de circulação e demais áreas externas aos lotes pertencem aos proprietários dos lotes em regime de condomínio, não havendo nenhuma área pública.
Essas comunidades receberam da doutrina e da jurisprudência a denominação loteamentos fechados, em oposição aos loteamentos abertos, como ficaram conhecidos aqueles de que cuida a Lei 6.766/79.
Ocorre que não se deve tratar de ambas as figuras indistintamente, porquanto são essencialmente diferentes[3]. O loteamento aberto cujo fechamento é autorizado pelo Poder Público mantém sua natureza de loteamento aberto, por conter diversas áreas públicas, e por ser pública toda a infraestrutura (sistema de abastecimento de água, de iluminação, de esgoto etc.). O loteamento fechado em regime de condomínio, por sua vez, não se amolda ao conceito de loteamento da Lei 6.766/79, porquanto toda a sua área é particular, assim como sua infraestrutura.
O loteamento por natureza aberto que é fechado tem recebido duras e merecidas críticas da doutrina. Como salienta José Afonso da Silva, essa figura não tem existência jurídica, e consiste em uma deformação do instituto jurídico do condomínio mesclado com o instituto jurídico do loteamento[4]. Afinal, a ordem constitucional não admite que espaços públicos tenham seu uso concedido exclusivamente a determinadas pessoas, dele excluindo a coletividade, simplesmente por terem tais pessoas direito de propriedade sobre imóveis próximos a tais espaços. Nesse sentido já se posicionou o TJDFT:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONDOMÍNIO. LOTEAMENTO REGULAR (“RESIDENCIAL SANTOS DUMONT”). CONSUBSTANCIAÇÃO EM BAIRRO RESIDENCIAL. PARCELAMENTO LEGÍTIMO. INFRA-ESTRUTURA CUSTEADA PELO PODER PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMUDAÇÃO EM CONDOMÍNIO. “TAXAS CONDOMINIAIS”. INEXISTÊNCIA DE LASTRO MATERIAL SUBJACENTE. COBRANÇA REFUTADA. PROCEDIMENTO SUMÁRIO. PEDIDO CONTRAPOSTO. ACOLHIMENTO. LEGALIDADE. SENTENÇA EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. (…) 3. Apurado que a entidade não está municiada com lastro para ser qualificada como condomínio ou para transmudar o bairro residencial em que está inserido o imóvel em entidade condominial, patenteado que não custeara a infra-estrutura que guarnece o loteamento, nem está fomentando quaisquer serviços passíveis de legitimarem sua contemplação com contraprestação pecuniária, não lhe sobeja lastro exigir concorrência financeira de proprietária de imóvel inserido no bairro, que, em contrapartida, deve ser alforriada de todas as obrigações cujo estofo esteja plasmado no ato constitutivo do ente. 4. Apelação conhecida e improvida. Unânime.” (TJDFT. Apelação nº 20061010062302APC, rel. Des. Teófilo Caetano, 2ª Turma Cível, data do julgamento: 21/11/2007, data da publicação: 04/12/2007)
O verdadeiro e legítimo loteamento fechado, por sua vez, tem sido alvo de uma série de dúvidas, por lhe faltar a adequada disciplina legal e doutrinária. Por oportuno, deve-se salientar que tramita no Congresso o Projeto de Lei 5.894/2001, que visa regulamentar os loteamentos fechados. Mas, por ora, trata-se apenas de projeto, persistindo ainda a lacuna normativa.
Para os fins deste trabalho, conceituamos o loteamento fechado (legítimo) como a comunidade particular instituída em zona loteada, em que há áreas de propriedade em comum e áreas de propriedade exclusiva na forma de lotes. As áreas de propriedade em comum são as vias de circulação, áreas de recreação, reservas ambientais, etc. Os lotes com as respectivas construções – unidades autônomas – constituem áreas de propriedade exclusiva.
2. Natureza jurídica do loteamento fechado
O condomínio edilício se encontra regulado, no ordenamento pátrio, pela Lei 4.591/64, que o denomina condomínio em edificações. Deve-se frisar que, neste trabalho, consideramos o condomínio edilício um instituto jurídico autônomo, não nos parecendo haver razão, hoje, para se imiscuir na velha discussão de qual seria sua natureza jurídica (se verdadeiro condomínio, se pessoa jurídica, se servidão etc.). No Direito atual, condomínio edilício tem a natureza de – condomínio edilício.
Dispõem o arts. 1º, 2º e 3º da Lei 4.591/64:
“Art. 1º As edificações ou conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienados, no todo ou em parte, objetivamente considerados, e constituirá, cada unidade, propriedade autônoma sujeita às limitações desta Lei. (…)
Art. 2º Cada unidade com saída para a via pública, diretamente ou por processo de passagem comum, será sempre tratada como objeto de propriedade exclusiva, qualquer que seja o número de suas peças e sua destinação, inclusive (VETADO) edifício-garagem, com ressalva das restrições que se lhe imponham. (…)
Art. 3º O terreno em que se levantam a edificação ou o conjunto de edificações e suas instalações, bem como as fundações, paredes externas, o teto, as áreas internas de ventilação, e tudo o mais que sirva a qualquer dependência de uso comum dos proprietários ou titulares de direito à aquisição de unidades ou ocupantes, constituirão condomínio de todos, e serão insuscetíveis de divisão, ou de alienação destacada da respectiva unidade. Serão, também, insuscetíveis de utilização exclusiva por qualquer condômino.”
Desses preceitos se pode extrair o conceito legal dessa figura de condomínio: regime de copropriedade + propriedade, no qual coexistem, em imóveis, áreas de propriedade em comum e áreas de propriedade exclusiva.
Por sua própria noção, o loteamento fechado (legítimo) se enquadra no instituto do condomínio chamado de edilício, em edificações ou em unidades independentes. Nesse sentido também se posicionam Caio Mário[5], César Fiuza[6], Silvio Venosa[7], Silvio Rodrigues[8], Carlos Alberto Dabus Maluf e Márcio Antero Ramos Marques[9]. Ademais, o art. 8º da Lei 4.591/64 menciona expressamente o condomínio cujas unidades autônomas são casas e o enunciado 89 da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal preceitua que o disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil é aplicável, naquilo que couber, aos condomínios em loteamentos fechados.
Todavia, considerando-se que o Código Civil de 2002, ao disciplinar o condomínio edilício, mencionou apenas os condomínios em edifícios (art. 1.331), muitos juristas têm dificuldade em identificar nele a natureza jurídica dos loteamentos fechados. Aliás, não há na comunidade jurídica nem mesmo consenso se o Código teria derrogado a Lei 4.591/64. Some-se a isso a existência de “loteamentos fechados” que são, na verdade, loteamentos abertos ilegitimamente fechados, e o resultado é uma quase anarquia jurídica.
Pois bem. Conquanto o loteamento fechado tenha a natureza de um condomínio edilício, o art. 9º da Lei 4.591/64 e os arts. 1.332 e 1.333 do Código Civil exigem, para que o condomínio se considere formal e regularmente criado, que os condôminos elaborem uma convenção de condomínio e a levem a registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Em razão de a doutrina ter demorado a compreender o instituto do loteamento fechado, por um lado, e, por outro, de a criação de loteamentos fechados ter se disseminado com grande rapidez no país, uma parcela considerável de proprietários em loteamentos, com dúvidas sobre a natureza de condomínio, optou por criar associações (antes do Código de 2002, sociedades civis) com a finalidade de ofertar a seus associados os serviços típicos de um condomínio. A criação de associações também é extremamente comum nos casos de loteamentos abertos ilegitimamente fechados, mas dessa matéria não cuidaremos neste trabalho.
Não havendo constituição regular do condomínio, parte da jurisprudência dá ao loteamento tratamento de condomínio irregular ou de fato – porquanto o instituto tem a natureza jurídica de condomínio, inegavelmente –, e parte lhe nega existência jurídica, reconhecendo apenas a associação, quando esta existe. Os julgados a seguir ilustram essa situação:
“LOTEAMENTO FECHADO – CONDOMÍNIO DE FATO – DESPESAS COMUNS. O loteamento fechado pode ser considerado condomínio de fato, pelo que o proprietário que se beneficia dos serviços e melhoramentos nele realizados deve pagar a parte que lhe tocou no rateio, pena de locupletamento às custas dos demais moradores.”
(TJMG. Apelação Cível n° 1.0024.01.028753-0/001, rel. do acórdão Des. Guilherme Luciano Baeta Nunes, 18ª Câmara Cível, data do julgamento: 12/12/2006, data da publicação: 30/01/2007)
“LOTEAMENTO. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. COBRANÇA DE TAXA CONDOMINIAL. PRECEDENTES DA CORTE. 1. Nada impede que os moradores de determinado loteamento constituam condomínio, mas deve ser obedecido o que dispõe o art. 8º da Lei nº 4.591/64. No caso, isso não ocorreu, sendo a autora sociedade civil e os estatutos sociais obrigando apenas aqueles que o subscreverem ou forem posteriormente admitidos. 2. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ. REsp 623.274/RJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, data do julgamento: 07/05/2007, data da publicação: 18/06/2007)
Vê-se que no julgado do TJMG considerou-se a existência fática do condomínio, enquanto no julgado do STJ reconheceu-se a existência apenas da sociedade civil (associação).
O reconhecimento da existência de condomínio de fato, deve-se salientar, produz o efeito jurídico de legitimar a cobrança da contribuição no rateio das despesas do loteamento:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA DE COTAS CONDOMINIAIS. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. CONDOMÍNIO DE FATO. LOTEAMENTO FECHADO. IMÓVEL SITUADO NA ÁREA DO CONDOMÍNIO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. INCONFORMISMO. RÉU QUE ALEGA QUE AS COBRANÇAS SÃO DESCABIDAS. SE O PROPRIETÁRIO DO BEM É BENEFICIADO POR SERVIÇOS DE LIMPEZA, SEGURANÇA E CONSERVAÇÃO DO CONDOMÍNIO POSSUI O DEVER LEGAL DE CONTRIBUIR COM O RATEIO DAS DESPESAS. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.APLICAÇÃO DO VERBETE SUMULAR Nº 79 DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.DESPROVIMENTO DO RECURSO.” (TJRJ. Apelação Cível nº 0005019-95.2008.8.19.0003, rel. Des. Antônio Saldanha Palheiro, 5ª Câmara Cível, data do julgamento: 09/02/2010)
“DIREITO CIVIL. LOTEAMENTO IRREGULAR. CONDOMÍNIO DE FATO. COTAS CONDOMINIAIS. RESPONSABILIDADE DE TODOS OS PROPRIETÁRIOS. SENTENÇA REFORMADA. 1. O fato de se tratar de condomínio irregular não exime o condômino do pagamento das cotas condominiais. 2. As atas das assembléias que fixaram os valores das cotas condominiais são provas suficientes para fundamentar a condenação do condômino. 3. Sem custas. Sem honorários, tendo em vista o disposto no art. 55 da Lei 9.099/95, que prevê o ônus da sucumbência apenas quando o recorrente é vencido. 4. Recurso conhecido e provido.” (TJDFT. Apelação nº 20080810084110ACJ, rel. Juiz Edmar Ramiro Correia, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, data do julgamento: 26/01/2010, data da publicação: 22/03/2010)
Não se reconhecendo a existência jurídica do condomínio, por sua vez, o entendimento é no sentido de que não se pode cobrar a contribuição no rateio das despesas do loteamento de quem não for membro da associação criada para gerir a comunidade:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. LOTEAMENTO FECHADO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. CONTRIBUIÇÃO. INEXIGIBILIDADE DE QUEM NÃO É ASSOCIADO. MATÉRIA PACÍFICA. FUNDAMENTO INATACADO. SÚMULAS N. 168 E 182-STJ. I. “As taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo” (2ª Seção, EREsp n. 444.931/SP, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, DJU de 01.02.2006). Incidência à espécie da Súmula n. 168/STJ. II. A assertiva de que os julgados apontados divergentes são anteriores à pacificação do tema pelo Colegiado, fundamento da decisão agravada, não foi objeto do recurso, atraindo o óbice da Súmula n. 182-STJ, aplicada por analogia.
III. Agravo improvido.” (STJ. AgRg nos EREsp 1034349/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Segunda Seção, data do julgamento: 27/05/2009, data da publicação: 17/06/2009)
“APELAÇÃO CÍVEL. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. AÇÃO DE COBRANÇA. CONDOMÍNIO E LOTEAMENTO FECHADO. LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. Os loteamentos fechados não contam com legislação que os ampare, constituindo-se em verdadeira fusão/confusão de duas instituições jurídicas: condomínios, regidos pela Lei nº 4.591/64, e loteamento para fins urbanos, que é espécie de parcelamento do solo, regido pela Lei Federal nº 6.766/79, onde não cabem interpretações analógicas. O loteamento, já estabelecido quando da criação da associação, não pode ter os titulares dos lotes constrangidos ao pagamento da taxas decorrentes da associação não aderida. É defeso à associação de moradores obrigar que residentes e, ou, proprietários, de imóveis do loteamento a ela se filiem ou permaneçam associados e, conseqüentemente, com ela contribuam. Constitui princípio constitucional a liberdade de associação, que deve ser oriunda de manifestação de vontade do associado (art. 5º, inciso XX, da Constituição Federal). Apelo parcialmente provido.” (TJRS. Apelação Cível nº 70014881767, rel. Des. Alzir Felippe Schmitz, 18ª Câmara Cível, data do julgamento: 29/04/2008)
3. Normatização do loteamento fechado
Como visto, conquanto o loteamento fechado (legítimo) tenha natureza de condomínio edilício, pode ser que este não seja formal e regularmente constituído. Por essa razão, o loteamento pode estar sujeito a três situações distintas: (1) se o condomínio for regularmente constituído, o loteamento será normatizado por meio da convenção de condomínio e do regulamento interno (art. 9º da Lei 4.591/64; arts. 1.332 e 1.333 do Código Civil), e obrigará todos os condôminos; (2) se não constituído de direito o condomínio, mas criada associação, o loteamento será normatizado por meio do estatuto (art. 54 do Código Civil), o qual somente obrigará os associados-proprietários; (3) se não formalmente constituído o condomínio, nem criada associação, o loteamento não poderá impor a nenhum proprietário de lote qualquer tipo de norma própria.
3.1. Condomínio regularmente constituído
Se o condomínio for regularmente constituído, por meio da elaboração da convenção de condomínio e do seu devido registro no Cartório do Registro de Imóveis, o conteúdo da convenção e do regimento interno será obrigatório para todos aqueles que tiverem direito sobre as unidades autônomas, bem como para os possuidores e detentores (art. 9º, § 2º da Lei 4.591/64 c/c art. 1.333 do Código Civil).
A convenção do condomínio deve observar os seguintes dispositivos do Código Civil e da Lei 4.591/64:
“Código Civil
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:
I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns;
II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns;
III – o fim a que as unidades se destinam. (…)
Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará:
I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;
II – sua forma de administração;
III – a competência das assembléias, forma de sua convocação e quorum exigido para as deliberações;
IV – as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;
V – o regimento interno.
§ 1º A convenção poderá ser feita por escritura pública ou por instrumento particular.
§ 2º São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.
Lei 4.591/64
Art. 9º (…)
§ 3º Além de outras normas aprovadas pelos interessados, a Convenção deverá conter:
a) a discriminação das partes de propriedade exclusiva, e as de condomínio, com especificações das diferentes áreas;
b) o destino das diferentes partes;
c) o modo de usar as coisas e serviços comuns;
d) encargos, forma e proporção das contribuições dos condôminos para as despesas de custeio e para as extraordinárias;
e) o modo de escolher o síndico e o Conselho Consultivo;
f) as atribuições do síndico, além das legais;
g) a definição da natureza gratuita ou remunerada de suas funções;
h) o modo e o prazo de convocação das assembléias gerais dos condôminos;
i) o quorum para os diversos tipos de votações;
j) a forma de contribuição para constituição de fundo de reserva;
l) a forma e o quorum para as alterações de convenção;
m) a forma e o quorum para a aprovação do Regimento Interno quando não incluídos na própria Convenção.
§ 4º No caso de conjunto de edificações, a que se refere o art. 8º, a convenção de condomínio fixará os direitos e as relações de propriedade entre os condôminos das várias edificações, podendo estipular formas pelas quais se possam desmembrar e alienar porções do terreno, inclusive as edificadas.”
3.2. Condomínio não regularmente constituído – criação de associação
Na hipótese de o condomínio não ser regularmente constituído, mas haver associação de adquirentes de lotes, o respectivo estatuto deverá observar o seguinte comando do Código Civil:
“Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:
I – a denominação, os fins e a sede da associação;
II – os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados;
III – os direitos e deveres dos associados;
IV – as fontes de recursos para sua manutenção;
V – o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos;
V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos;
VI – as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução.
VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.”
A lei não prevê – veja-se – a existência de um regimento interno da associação em que se possam elaborar normas limitadoras do direito de propriedade dos proprietários dos lotes. Por que razão? Primeiramente, porque a finalidade da criação de uma associação não é a administração de comunidades. Associações têm finalidades recreativas, esportivas, culturais, religiosas, mas não administrativas. Ademais, uma associação somente gera direitos e deveres para seus associados, e somente sobre seu próprio patrimônio. Em se tratando de loteamento fechado, nem os proprietários dos lotes são obrigados a se associar – princípio constitucional da livre associação (art. 5º, inc. XX da CF) –, nem as áreas comuns são de propriedade da associação – vez que são copropriedade dos donos dos lotes.
A propósito, deve-se salientar que a criação de associação com a finalidade de se administrar loteamento fechado não é juridicamente correta, porquanto, tratando-se de condomínio edilício, o que se deve fazer é elaborar a devida convenção e levá-la a registro, caso em que o condomínio será administrado pelo síndico eleito pela assembléia geral de condôminos. Essa prática “justifica-se” apenas pela dúvida que os incorporadores tinham no passado quanto à natureza jurídica do loteamento fechado.
3.3. Condomínio não regularmente constituído – ausência de associação
Não havendo nem a figura do condomínio regularmente constituído nem de associação para administrar o loteamento, certamente que não há que se falar de regimento interno nem de estabelecimento de direitos e deveres dos proprietários, possuidores, detentores ou associados. Os proprietários, nesse caso, ficam sujeitos tão somente às normas abstratas previstas no ordenamento jurídico, como a Constituição, o Código Civil, a Lei 4.591/64 (caso o julgador reconheça a existência de condomínio de fato), a Lei de Uso e Ocupação do Solo do município em que se situa o loteamento, etc.
4. Limites da ingerência do condomínio ou da associação nos lotes de propriedade exclusiva
Feitas essas considerações, passemos ao objetivo principal deste estudo, que é o de investigar e determinar os limites da ingerência do condomínio ou da associação nos lotes.
4.1. O direito constitucional de propriedade
A Constituição Federal de 1988 considerou a propriedade um direito fundamental (art. 5º). É certo que não se trata do direito de propriedade mais absoluto de que trata o Código de Napoleão, senão de um direito balizado por sua função social[10], mas, ainda assim, cuida-se de um direito com garantia constitucional. Ou seja, se, por um lado, não se concebe a propriedade de um ponto de vista individualista, mas sim se um ponto de vista dinâmico, em que convivem harmonicamente os poderes do proprietário sobre a coisa e os contradireitos da coletividade sobre o domínio, por outro lado não se admite que o direito do proprietário seja tolhido, salvo nos casos expressos em lei, e com o objetivo de realizar sua função social.
4.2. Convenção de condomínio e regimento interno
A convenção de condomínio, como ato instituidor do condomínio, deve tecer todas as normas gerais que guiam a existência do loteamento, à semelhança do que faz a Constituição com relação à estruturação do Estado. O regimento interno, por sua vez, deve traçar normas mais específicas, disciplinadoras das situações que ocorrem no dia-a-dia do condomínio, analogamente com o que fazem os diversos códigos que compõem o ordenamento jurídico de uma nação.
Caio Mário elaborou um profundo estudo acerca da natureza jurídica da convenção de condomínio e do regimento interno, chegando à conclusão de que se trata de atos-regra, espécie de atos jurídicos voluntários de caráter normativo, que geram o chamado Direito estatutário ou corporativo – espécie de microordenamento normativo de caráter particular[11].
O norte a ser seguido na elaboração tanto da convenção quanto do regimento interno encontra-se no art. 19 da Lei. 4.591: “cada condômino tem o direito de usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados, umas e outros às normas de boa vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais condôminos ou moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos”.
O Direito estatutário do condomínio, pois, deve regulamentar concretamente a comunidade a que se aplica, cuidando de suas peculiaridades, e velar, a todo instante, pelo cumprimento da função social da propriedade. A ingerência sobre as áreas comuns é bastante ampla, mas bastante limitada sobre as áreas de propriedade exclusiva – os lotes, com as respectivas construções – quando houver.
Segundo nos parece, o padrão a ser adotado é o mesmo que o Código Civil e a Lei 4.591/64 impõem para os condomínios em edifícios: aquilo que, no lote, produz reflexos na comunidade, admite normatização pelo Direito estatutário, não cabendo a este, no entanto, interferir naquilo que somente diz respeito ao lote e às construções eventualmente nele edificadas. Por exemplo, pode o condomínio decidir que somente poderão ser construídos muros de até um metro de altura. Embora tal norma se aplique à área de propriedade exclusiva dos condôminos, encontra legitimidade no fato de que o muro é a parede externa do lote, visível, portanto, das áreas comuns. Veja-se que essa legítima restrição é análoga à proibição de que, em condomínios em edifícios, os proprietários alterem a cor ou a forma da fachada da construção, ou as esquadrias externas. Todavia, não pode o condomínio decidir que as casas construídas no loteamento não possam ter mais que três quartos, ou dois banheiros, porquanto não tem legitimidade para editar normas sobre aspectos da unidade autônoma que não interessam ao condomínio.
O cuidado que deve haver – e grande –, é no sentido de evitar que a convenção e o regimento criem uma espécie de regime autoritário no condomínio, em que à administração do condomínio se atribua mais poderes do que o ordenamento jurídico permite. Um exemplo desse tipo de abuso de direito é a previsão, no regimento interno de certos condomínios, de que haverá um “fiscal de obras” com poder de entrar nos lotes e realizar “fiscalizações” independentemente de autorização do proprietário. Ora, por mais que se queira criar uma comunidade fechada em um loteamento, ela continua integrante da mesma comunidade municipal, em que cabe ao órgão público, devidamente legitimado pelo ordenamento jurídico, a fiscalização do que quer que seja, e, ainda assim, respeitando, se for o caso, o impedimento do proprietário, caso em que a fiscalização forçada terá de se valer de mandado judicial. É bastante comum, inclusive, que esses “fiscais” se julguem no direito de entrar forçadamente até mesmo nos lotes em que já há casas construídas, passando por cima da inviolabilidade do lar, garantida pela própria Constituição (art. 5º, inc. XI).
Outra questão importante que merece atenção diz respeito à harmonia entre o Direito estatutário e o Direito produzido pelo Poder Legislativo. Podem a convenção e o regimento ir de encontro à lei? Podem restringir direitos concedidos em lei?
O jurista, de imediato, responde negativamente a essas questões. Afinal, todos sabem que o ato particular não pode sobrepor-se à lei, sobretudo às leis de força cogente. Já se foi o tempo em que, no Direito Privado, o contrato tinha mais força do que os preceitos legais.
Ocorre que, em se tratando de loteamentos fechados, um primeiro e grande problema surge. Como se sabe, toda construção depende de autorização da autoridade municipal, a qual é concedida por meio de alvará, de acordo com as diretrizes da Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município. O problema reside no fato de que também os loteamentos fechados editam normas acerca da construção, as quais, na maioria das vezes, são mais rígidas do que as legais. Por exemplo, a lei municipal determina que se observe uma margem de um metro e meio de distância entre os limites do lote e qualquer edificação; o regimento do condomínio aumenta essa distância para dois metros e meio. Nesses casos, pode ocorrer (e ocorre com frequência) de o município autorizar a obra e o condomínio não. Quid iuris? Quem, afinal, autoriza ou não uma construção?
Há uma tendência nos Tribunais brasileiros, sobretudo no de São Paulo, de uma abordagem excessivamente privatista, que aceita que a norma do condomínio prevaleça sobre a norma pública[12]. Essa postura, no entanto, não nos parece recomendável, sob pena de uma distorção da hierarquia das normas em nosso ordenamento.
Isso não significa, todavia, que os loteamentos não possam aspirar a características arquitetônicas próprias. O que entendemos que deve ser feito é: quando da constituição do condomínio, devem a convenção e o regimento ser submetidos ao órgão municipal para aprovação. Tudo o que for aceitável, considerando-se a legislação aplicável e a função social da propriedade, decerto que logrará aprovação do poder público. Aprovados a convenção e o regimento do condomínio, estes, nas especificidades de que tratam, devem assumir o status de normas cogentes para os proprietários dos imóveis e devem ser levadas em conta pelo ente público na análise do pedido de autorização para construir. O projeto que não estiver em conformidade com a legislação combinada com o Direito estatutário não deve ser aprovado. Assim, desapareceria o conflito entre a legislação municipal e as normas condominiais. Essa providência conduziria ao respeito, a um só tempo, do poder municipal e da vontade dos condôminos de criar uma comunidade com características peculiares.
O debate jurídico, é forçoso concluir, está apenas começando. O importante é que a comunidade jurídica se conscientize da importância de se debruçar sobre o tema para lhe dar a devida disciplina, trazendo ordem a essa verdadeira anarquia instaurada no campo dos loteamentos fechados. E, enquanto isso não ocorre, recomenda-se ao julgador toda a prudência possível na análise de litígios envolvendo condomínios em loteamentos, para evitar impor ao direito de propriedade ilegítimas limitações.
4.3. Estatuto de associação
Verifica-se nos loteamentos que são administrados por associações a elaboração de uma convenção (travestida de estatuto) e de um regimento interno. Ou seja, conquanto a constituição do condomínio, com o registro da convenção no Cartório de Registro de Imóveis, não se concretize, são impostas (ou há tentativa de se impor) restrições ao direito de propriedade por via transversa, isto é, por meio do estatuto da associação. A esse “Direito estatutário” se aplica tudo o que ficou dito anteriormente, devendo-se, no entanto, fazer uma observação de alta relevância: as normas editadas por associações aplicam-se tão somente a quem for a elas associado. Ocorre que, no caso dos loteamentos fechados, devem-se considerar dois pontos: (1) as áreas comuns não podem, de forma alguma, ser tratadas como patrimônio da associação vez que se trata de copropriedade dos donos dos lotes, ainda que o condomínio não se encontre regularmente constituído; (2) os proprietários dos lotes não podem ser forçados a se associar, em razão do princípio constitucional da livre associação (art. 5º, inc. XX da CF), razão pela qual não podem ser obrigados a observar as normas editadas pela associação, se optarem por não fazer parte dela, caso em que, quando muito, serão compelidos a contribuir no rateio das despesas efetuadas para manutenção das áreas comuns, com base no princípio geral que veda o enriquecimento indevido (ilícito).
Coautor do Curso Didático de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Professor titular de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do IUNIB professor convidado de Direito Civil do curso de pós-graduação da Anhanguera e professor voluntário de Direito Civil da FD UFMG. Mestrando em Direito e Justiça na UFMG. Consultor jurídico e advogado.
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