Resumo: O presente trabalho tem como tema a coculpabilidade às avessas e sua possível aplicação como circunstância judicial desfavorável, nos termos do artigo 59 do Código Penal, no intuito de desmistificar a visão de um modelo garantista – na vertente hiperbólica e monocular – do Direito Penal, isto é, que somente se concentra na primeira dimensão de direitos fundamentais. Para tanto, fomentaremos o conceito de culpabilidade, questões relativas ao Garantismo Penal e ao instituto da Coculpabilidade.
Palavras-chave: coculpabilidade. Coculpabilidade às avessas. Garantismo penal integral.
Abstract: This paper deals with coculpability to the contrary and its possible application as unfavorable judicial circumstance, in terms of article 59 of the Criminal Code, as a way of demystifying the vision of a Guarantor model – in the hyperbolic and monocular – of Criminal Law, this Is that it only focuses on the first dimension of fundamental rights. Therefore, in a first moment we will approach the concept of guilt, its evolution and its elements. It will also address the criminal guaranty in its primary aspect and in its strand called the Integral Penal Warfare. Finally, in the last chapter, the issue of Coculpability will be dealt with, focusing on Coculpability the reverse, in view of the proven discrepancy in the legal treatment given to the commission of economic, financial and tax crimes, and other crimes provided for in criminal legislation
Keywords: Coculpability. Reverse coculpability. Integral criminal guaranty.
Sumário: 1. Introdução. 2. A evolução das teorias da culpabilidade no direito penal. 3. O garantismo penal. 3.1. Garantismo penal hiperbólico e monocular. 3.2. Garantismo penal integral. 4. Coculpabilidade. 5. A coculpabilidade às avessas e a dosimetria da pena. 6. Considerações finais. Referências.
1. Introdução
A sociedade de um país em desenvolvimento como o Brasil não brinda seus componentes com as mesmas oportunidades. O resultado é uma desigualdade social que dificulta ao aplicador do direito exigir o mesmo comportamento de todos, já que ausentes as mesmas oportunidades e possibilidades, a realidade de cada indivíduo passa a ser desigual, trazendo reflexos no âmbito jurídico, notadamente, no campo de análise da culpabilidade.
Isso porque existe um leque de possibilidades ofertados a somente alguns, enquanto outros carecem de direitos básicos como educação, saúde, lazer, moradia, entre outros. Logo, com a ausência de oportunidades e assistência oferecidas pelo Estado e pela sociedade, o crime se torna, para alguns indivíduos, mais atrativo e sedutor. Lado outro, existem aqueles que mesmo sendo destinatários diretos dos direitos básicos ofertados pelo Estado, praticam atos infracionais penais, principalmente, fazendo uso dos poderes político e econômico.
Nesse horizontem temos afirmado ser crescente a necessidade de um questionamento investigativo, por parte da sociedade como um todo e, especialmente, do poder público, a respeito das causas da criminalidade e não somente da infração cometida, pois a apuração da prática de um delito bem como do sujeito que o comete é o mínimo que se espera por parte do sistema penal, devendo a vertente do Estado dotada desta finalidade fazê-lo.
Contudo, do nosso ponto de vista, tais iniciativas terão mais a ganhar se prescindirem dos referenciais epistemológicos do positivismo jurídico, pois, a compreensão da dinâmica da criminalidade e do sujeito da criminalidade, envolve um conjunto de elementos, subjetivos, estruturais, intersubjetivos, que são, por suas naturezas, complexos e dialéticos na maneira de se correlacionarem.
Reforçamos, ainda, que dentre as estratégias de redução da violência e da criminalidade, o Estado deve, também, agir como promotor da justiça social, adotando políticas públicas que promovam uma distribuição de renda igualitária aptas a prover as necessidades básicas do sujeito de direito como pleno emprego, saúde, educação, cultura, moradia, lazer, entre outros. Em última instância, que realizem a cidadania, pois a realidade parece apontar entre as causas principais do aumento da criminalidade a ausência dos direitos afetos à cidadania.
Ressaltamos, o Estado, por meio do Direito, inclusive, poderá vir a se constituir numa instância de negociação intersubjetiva da realização ou não dos desejos dos indivíduos, sem que isso represente a exclusão de valores individuais e coletivos como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a igualdade e a liberdade.
Isso porque encontrarmo-nos, no Brasil, sob a vigência, normativamente dizendo, de um Estado Democrático de Direito, regime no qual todos devam ter os mesmo direitos e obrigações.
Perceba-se, por mais que o estabelecimento de uma definição de Estado Democrático de Direito, com precisão, seja uma tarefa muito árdua, pode-se afirmar tratar-se de um Estado que congrega os anseios do Estado Liberal e do Estado Social, sem, contudo, deixar de contemplar as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais que o dinamismo social do nosso tempo oferece. Ou, até mesmo, um Estado que consagra direitos e impõe obrigações a todos, indistintamente. Em suma, um Estado que propõe, acima de tudo, a consecução da igualdade substancial.
Com efeito, subentende-se, não se pode tratar sujeitos iguais com desigualdade e desiguais com igualdade no que tange ao acesso a direitos, notadamente, os fundamentais, e, às obrigações, mais precisamente, atrelado ao nosso trabalho, em âmbito criminal.
Portanto, embora a culpabilidade do agente ser medida, tão somente, levando-se em conta a prática do ilícito, é preciso atentar para o contexto social no qual o acusado está inserido e qual a sua influência deste na prática do injusto penal, já que o ato criminoso é resultado de um feixe de elementos, podendo revelar aquele realmente voltado ao desrespeito às normas, ou, por outro, vítimas de um sistema maculado, as quais encontram-se desprovidas de condições existenciais basilares.
Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é sugerir ao aplicador do Direito, quando tratar-se de aplicação de penas a crimes econômicos, financeiros e tributários, uma análise das condições socioeconômicas do agente.
Para ilustras nossas ideias, num primeiro momento, abordaremos o conceito de culpabilidade, sua evolução e seus elementos.
Posteriormente, será desenvolvido, também, o Garantismo Penal em sua vertente primária e em sua conotação conhecida como Garantismo Penal Integral.
Por fim, será tratado o assunto Coculpabilidade, com enfoque na Coculpabilidade às Avessas, tendo em vista a comprovada discrepância no tratamento jurídico dado à prática de crimes econômicos, financeiros e tributários, e os demais crimes previstos na legislação penal.
2. A evolução das teorias da culpabilidade no direito penal
Não há no Codex Penal a conceituação do instituto da culpabilidade, pois a responsabilidade de conceituá-lo nunca foi assumida pelo legislador, cabendo à doutrina apresentá-lo a partir das mais variadas teorias.
A precursora das teorias, defendida por Franz Von Listz e Ernst von Beling, conhecida como teoria psicológica, considerava a culpabilidade como o liame psicológico entre o sujeito e o fato típico e ilícito, praticado por ele, sendo essa ligação representada pelo dolo e pela culpa, conforme pode-se observar a partir de Cléber Rogério Masson, para quem, “a culpabilidade que tem como pressuposto a imputabilidade, é definida como o vínculo psicológico entre o sujeito e o fato típico e ilícito por ele praticado. Esse vínculo pode ser representado tanto pelo dolo como pela culpa” (MASSON, 2016, p. 498).
Não obstante as reflexões que esta teoria propôs, diversas falhas foram-lhe apontadas. A mais destacável refere-se à inexigibilidade de conduta diversa, notadamente a coação moral irresistível e a obediência hierárquica. Em referidos casos, mesmo que o agente tenha agido com dolo, somente será punido o autor da coação ou da ordem.
Isso fez surgir a teoria Normativa ou Psicológico-normativa. Proposta por Reinhart Frank, por meio desta teoria defende-se que o dolo e a culpa são elementos insuficientes para caracterizar a culpabilidade, necessitando assim, da realização de um juízo de censura ou reprovabilidade sobre o fato. Ao conceito de culpabilidade é atribuído, então, um novo elemento, chamado inicialmente de normalidade das circunstâncias concomitantes, o que hoje conhecemos como exigibilidade de conduta diversa.
Diferentemente das teorias anteriores, Psicológica e Psicológica-normativa, que eram restritas ao âmbito do sistema causal, a Teoria Normativa Pura ou Extremada somente é aplicável sob uma ótica finalista. Essa vertente de pensamento, de acordo com Cléber Rogério Masson é assim chamada porque “[…] os elementos psicológicos (dolo e culpa) que existiam na teoria psicológica-normativa da culpabilidade, inerente ao sistema causalista da conduta, com o finalismo penal foram transferidos para o fato típico […]” (MASSON, 2016, p. 500).
A Teoria Limitada, por sua vez, difere da Teoria Normativa Pura, somente no tocante as descriminantes putativas. Aquela faz uma divisão considerando as descriminantes putativas de fato (erro de tipo) e de direito (erro de proibição).
Em que pese grande discussão doutrinária a respeito, em análise aos artigos 20 e 21 do Código Penal brasileiro conclui-se ter este adotado a Teoria Extremada, vejamos:
“Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. § 1.° É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. § 2.º Responde pelo crime o terceiro que determina o erro. § 3.º O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidade da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência” (BRASIL, 2016, p. 529).
Com o desenvolvimento do conceito de culpabilidade, aspectos relacionados à pessoal do agente passaram a ser relevantes para o direito penal. Prova disso, considera a “valoração paralela da esfera do profano” e conceituações equivalentes.
2.1. Os aspectos da culpabilidade
À culpabilidade, no Direito Penal, é atribuído um triplo sentido, o que nos obriga analisá-la, prefacialmente, sob tais aspectos. Em um primeiro momento, como forma de evitar a responsabilidade penal objetiva. Nestes termos César Roberto Bitencourt assevera que a culpabilidade é “[…] vista como conceito contrário à responsabilidade objetiva, ou seja, com o identificador e delimitador da responsabilidade individual e subjetiva”. (BITENCOURT, 2012, p. 947).
Nesses termos, a culpabilidade assegura que ninguém será responsabilizado por um resultado imprevisível, e se não possuir, no mínimo, dolo ou culpa em sua conduta.
Não é admitida, no Ordenamento Jurídico brasileiro, a responsabilidade por resultados penalmente relevantes causados por caso fortuito ou força maior. Em outras palavras, é preciso que o agente tenha, no mínimo, agido com dolo ou culpa em sua conduta quando da prática infracional penal. A cerca do tema, o Superior Tribunal de Justiça, como lembra Cléber Rogério Masson, já se manifestou:
“O Direito Penal moderno é Direito Penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intolerável a responsabilidade pelo fato de outrem. À sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se a conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. (REsp, 154.137/PB, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6.ª Turma, j. 06.10.1998” (BRASILIA apud MASSON: 2016, p. 61).
Analisando a responsabilidade penal subjetiva, estatui-se que não basta o fato ser causado materialmente pelo agente. Para responsabilizá-lo é necessário que este tenha sido conscientemente e volitivamente querido (dolo), ou, ao menos, ter sido previsível seu resultado (culpa). Essa ilação é extraída quando analisamos o artigo 18 do Código Penal, vez que o mesmo, em seus incisos define os crimes dolosos e culposos, permitindo, analogicamente, por meio de uma interpretação sistemática, chegar-se a uma definição para a responsabilidade penal subjetiva, em face do principio da culpabilidade. Fernando Capez, corroborando esse entendimento, leciona que:
O nosso Código Penal, de feição finalista, como comprovam diversos artigos (18, I e II, 19, 20, 21, 29, § 2º etc.), não acolhe a responsabilidade penal objetiva, à exceção da actio libera in causa. Tal entendimento é referendado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, cujo acórdão, no qual foi relator o Ministro Cernicchiaro, denota essa tendência:
“O fato crime reclama conduta e resultado. Analisados do ponto de vista normativo. A responsabilidade penal (Constituição da República e Código Penal) é subjetiva. Não há espaço para a responsabilidade objetiva. Muito menos para a responsabilidade por fato de terceiro. A conclusão aplica-se a qualquer infração penal” (CAPEZ, 2011, p. 358-359).
Em segundo lugar, a culpabilidade, de acordo com a teoria adotada, pode ser enxergada como elemento do conceito de crime ou como mero pressuposto de aplicação da pena. Ou seja, consagrando, respectivamente, as teorias tripartida e bipartida.
E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade como circunstância judicial prevista no artigo 59 do Código Penal, in verbis:
“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível” (BRASIL, 2016, p. 533).
O Direito Penal brasileiro, no que diz respeito ao instituto da pena, previu em seu texto um sistema de dosimetria da pena, o qual permite ao julgador fixá-la a um suposto autor de um delito, angariado em determinadas circunstância judiciais e legais.
Assim, antevendo este fato Nelson Hungria, em seu magistério preleciona que, se se tratando de fixação de pena (dosimetria da pena), dever-se-á o julgador ficar adstrito a um critério trifásico de aplicação da pena, pois o mesmo deve observar em um primeiro momento para a fixação da pena base as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, em seguida este deverá proceder com a fixação da pena intermediária, usando como supedâneo legal as causas atenuantes e agravantes do artigo 61 ao 67 do mesmo diploma normativo. E por fim, deve ainda, o magistrado na ultima fase da aplicação da pena analisar as causas de aumento e diminuição da pena, ou seja, dosará a pena de acordo com a qualificação de determinado delito, dentro de um mínimo e um máximo cominados abstratamente para cada delito.
Feita essa breve digressão quanto às fases de aplicação da pena, pode-se aludir em relação à primeira fase de aplicação da pena, que o órgão jurisdicional agasalhado no artigo 59 do Código Penal, ter-se-á que observar determinadas circunstâncias subjetivas e fáticas para a fixação de uma pena base. Como circunstâncias subjetivas pode-se enumerar a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente. Já se tratarmos de condições fáticas, analisar-se-á, elementos referentes ao contexto criminoso como por exemplo o comportamento da vitima, contudo, voltemos nosso estudo em relação aos elementos subjetivos, mais precisamente, a culpabilidade.
O dispositivo supracitado elenca como primeira circunstância subjetiva a culpabilidade. Nos ensinamentos de Júlio Fabbrini Mirabete concluímos que a culpabilidade ora enumerada equipara–se à responsabilidade penal subjetiva, vez que, esta não afasta o elemento dolo da aplicação da pena.
“A expressão agora utilizada, não afasta a consideração do elemento subjetivo, na fixação de pena. Um dolo mais intenso ou uma culpa mais grave são índices precisos de que a conduta é mais censurável. A intensidade do dolo refere–se a pertinácia ou, ao contrario, à pouca disposição em perseguir a intenção criminosa; o dolo direto por exemplo é mais intenso que o dolo eventual, e a premeditação indica uma mais reprovável do que aquela desencadeada por dolo de ímpeto. O grau de culpa (grave, leve ou levíssimo) funda-se na maior ou menor previsibilidade do resultado do lesivo e nos cuidados objetivos exigíveis do agente, denunciando, por conseguinte, a maior ou menor censurabilidade da conduta culposa” (MIRABETE; FABBRINI, 2013, p. 285-286).
Assim, findamos o raciocínio atinente à culpabilidade como circunstancia judicial, estatuindo que esta tem um caráter de juízo de reprovação, uma vez que induz o julgador a se atentar para as circunstâncias pessoais e fáticas, no contexto do crime, levando à análise a consciência do agente ou, eventualmente, ao potencial conhecimento do mesmo pela ilicitude do fato, através de uma cognição exauriente para a fixação da pena.
3. O garantismo penal
Sobre o garantismo penal, vale trabalhar, neste momento, aspectos acerca do garantismo penal hiperbólico e monocular. Passemos ao mesmo.
3.1. Garantismo penal hiperbólico e monocular
O garantismo penal de Luigi Ferrajoli, em sua versão difundida pela interpretação pátria, conta com duas características, que, com os avanços interpretativos, acabaram emergindo como problemas a serem solucionados. “A primeira característica é o exagero no sentido de garantir ao indivíduo, acusado, demasiados direitos inerentes à pessoa, de forma a tornar prejudicado o jus puniendi estatal, e, como consectário, alguns direitos da sociedade em geral (coletivos)” (FISCHER, 2013, p. 38).
“No que se refere à segunda característica, deve-se pontuar, que o garantismo penal se mostra monocular em razão de dar excessivo enfoque aos direitos inerentes à primeira dimensão de direitos individuais, estes considerados essenciais aos indivíduos, de forma à deixar olvidados direitos originários das segunda e terceira dimensões, podendo-se citar como exemplo, o direito à segurança social (segunda dimensão)” (FISCHER, 2013, p. 38).
3.2. Garantismo penal integral
O garantismo penal integral sugere um modelo de Direito Penal atento à realidade social e ao contexto social dos agentes, de modo que a resposta do sistema penal deve ser proporcional – na verdade da proteção insuficiente – à culpabilidade do agente, sob pena de violar as várias dimensões de direitos fundamentais – inclusive a terceira dimensão, onde se encontra o direito fundamental da sociedade à segurança pública, conforme artigo 144 da Constituição Federal, vejamos:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares […]” (BRASIL, 2016, p. 50).
4. Coculpabilidade
No cenário atual, o Direito Penal é objeto de estudos científicos valiosos e avançados. Isto se deve a posição que este ramo do direito ocupa frente à sociedade. Com aspectos sociopolíticos aquele influencia esta expressivamente, despertando grande interesse, principalmente, quando o foco é o direito de liberdade face o jus puniendi estatal.
Como bem certifica Grégore Moreira de Moura, apesar da rica produção científica moderna, o déficit doutrinário ainda é grande em relação a teoria da Coculpabilidade, como se visualiza a seguir:
“[…] ainda não foi suficientemente explorado pela doutrina, que não está dando ao assunto a atenção necessária para uma eficaz aplicação dos instrumentos de proteção do cidadão socialmente excluído diante do jus puniendi do Estado, ressalvando-se algumas legislações e os parcos estudos na doutrina penal alienígena” (MOURA, 2015, p. 58).
Conhecido como ultima ratio, o Direito Penal enfrenta grandes desafios no cenário proposto por um Estado Democrático de Direito como o nosso. Os Direitos Fundamentais ligados ao Direito de liberdade precisam ser protegidos de maneira efetiva. Face às desigualdades sociais existentes em um país como o Brasil é insuficiente a aplicação de critérios formais, surgindo a necessidade de serem aplicados critérios sociais e filosóficos. Neste raciocínio, Grégore Moreira de Moura enfatiza: “[…] não basta proteger formalmente os direitos fundamentais ligados ao direito de liberdade. Há que se aplicar um critério material – social e filosófico – na aplicação do Direito Penal, mormente tendo em vista as desigualdades sociais existentes em um pais como o Brasil” (MOURA, 2015, p. 57).
Frente à sociedade contemporânea, que assumiu o capitalismo como forma de organização socioeconômica, favorecendo, desta maneira, a livre iniciativa, a concorrência e o livre mercado (artigo 170 da Constituição Federal), tendo como consequências paralelas a desigualdade e exclusão sociais, surge a incontestável relevância de existir uma ligação mais forte entre o Direito Penal e outros ramos do saber, com ênfase na Sociologia.
Para Cléber Rogério Masson, essa nova óptica da política criminal “baseia-se em considerações filosóficas, sociológicas e políticas, e também de oportunidade, em sintonia com a realidade social, para propor modificações no sistema penal vigente” (MASSON, 2016, p. 13).
Conforme reza Basileu Garcia, a política criminal, que tem como estudo a apresentação de críticas e propostas ao Direito Penal em vigor, “[…] constitui uma ponte entre a teoria jurídico-penal e a realidade” (GARCIA, 1975, p. 37).
A Coculpabilidade admitida como princípio constitucional implícito é decorrência dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da individualização da pena e do garantismo penal de Luigi Ferrajoli.
O conceito de coculpabilidade foi proposto inicialmente pelo argentino Eugênio Raul Zaffaroni. Nesse trecho extraído de sua obra intitulada Manual de Direito Penal Brasileiro, o autor e José Henrique Pierangeli trazem suas visões sobre a teoria em tela:
“Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas possibilidades. Em consequência, há sujeitos que têm menor âmbito de autodeterminação, condicionado por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma co-culpabilidade, com a qual a sociedade deve arcar” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 613).
Dessa forma, é analisada a corresponsabilidade do Estado e da sociedade perante os delitos cometidos, não podendo o Estado atribuir ao sujeito eventuais causas sociais.
Nesse diapasão, Grégore Moreira de Moura em obra específica sobre o princípio em estudo, conceitua a coculpabilidade como sendo:
“[…] uma mea-culpa da sociedade, consubstanciada em um princípio constitucional implícito da nossa Carta Magna, o qual visa promover menor reprovabilidade do sujeito ativo do crime em virtude da sua posição de hipossuficiente e abandonado pelo Estado, que é inadimplente no cumprimento de suas obrigações constitucionais para com o cidadão, principalmente no aspecto econômico-social” (MOURA, 2015, p. 17).
Por falhar em seu dever de proporcionar de forma efetiva e para todos os cidadãos direitos sociais como saúde, educação, lazer, moradia, entre muitos outros, o Estado, detentor do jus puniendi, possui uma concorrência de responsabilidades juntamente com o delinquente. Há, portanto, uma quebra do contrato social por parte do Estado que deixa de cumprir o pactuado com os cidadãos. Já Guilherme de Souza Nucci conceitua coculpabilidade como:
“Reprovação conjunta que deve ser exercida sobre o Estado, tanto quanto se faz com relação ao autor de uma infração penal, quando se verifica não ter sido proporcionada a todos igualdade de oportunidades na vida, significando, pois, que alguns tendem ao crime por falta de opção” (NUCCI, 2011, p. 305).
Nesta linha de entendimento, Cristiano Rodrigues apregoa que, com base nas desigualdades sociais “[…] não seria justo que se cobrasse com o mesmo rigor o cumprimento da lei daqueles que têm menos oportunidades e opções na vida em sociedade, em relação à parte da população” (RODRIGUES, 2009, p. 19).
Com base nessas situações fáticas de eminente desigualdade social é que o princípio da coculpabilidade vem sendo discutido e ganhando destaque.
Como aduz Grégore Moreira de Moura, mais uma vez, a aplicação do princípio em estudo “decorre do reconhecimento da exclusão social ínsita ao Estado, responsabilizando-o indiretamente por esse fato” (MOURA, 2015, p. 60).
Portanto, de forma indireta, o Estado responderá por ter deixado de agir com seus deveres. É uma situação delicada pois não se pode inverter de forma desacertada as posições jurídicas. Neste raciocínio, Juarez Cirino dos Santos leciona que:
“Hoje, como valoração compensatória da responsabilidade dos indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada, responsável pela injustiça das condições sociais desfavoráveis da população marginalizada, determinantes de anormal motivação da vontade nas decisões da vida” (SANTOS, 2004, p. 265-266).
A coculpabilidade tem seu fundamento na influência que o meio social exerce sobre os cidadãos que delinquem e a capacidade de autodeterminação que os mesmos possuem.
Referido conceito se aproxima muito do estado de necessidade e da inexigibilidade de conduta diversa, porém, não se confunde com estes e tem na prática consequência jurídica diversa. Por exemplo, sendo aceita a teoria da coculpabilidade está irá atenuar a pena do infrator, restando ainda, pena a ser aplicada. Não ocorrerá o mesmo, caso seja aceita, a tese da inexigibilidade de conduta diversa que irá, por sua vez, excluir a culpabilidade, isto é, isentá-lo de pena.
5. A coculpabilidade às avessas e a dosimetria da pena
De acordo com Moura (2015), a coculpabilidade às avessas pode se manifestar na legislação de três formas, ou seja, tipificando condutas dirigidas a pessoas marginalizadas; aplicando penas mais brandas aos detentores do poder econômico e; como fator de diminuição e também de aumento da reprovação social e penal.
Apesar de todas as formas relacionarem entre si, importa-nos somente a terceira hipótese.
Os crimes econômicos, financeiros e tributários possuem uma gravidade maior, uma vez que, os danos causados por estes são maiores que aqueles delitos cometidos contra o patrimônio individual, atingindo interesses difusos e coletivos de toda a sociedade.
Possuem, também, uma repercussão maior que os crimes comuns, porém não despertam tanta preocupação da população, pois estão encobertos e não são tão visíveis quanto aqueles, causando, porém, um dano social diário. Referidos crimes integram a chamada “cifra negra”, vez que não aparecem nas estatísticas oficiais.
6. Considerações finais
Tendo em vista que o conceito de culpabilidade evoluiu de forma a permitir que esse instituto seja analisado com uma conotação mais abrangente do que noutros tempos pelo aplicador do direito, proporcionando assim, uma margem para que sejam analisadas situações próprias de cada agente como motivos, circunstâncias e consequências do crime, personalidade do agente e conduta social, referidas situações tornam o jus puniendi estatal mais próximo da realidade de cada indivíduo, consequentemente, mais humano e igualitário.
Como exposto anteriormente, a vertente do Garantismo Penal Integral busca a atualização do direito penal, para tanto, é necessário que se esteja atento à realidade social e ao contexto sócio, econômico e cultural, dos agentes, de modo que a resposta do sistema penal seja proporcional ao injusto praticado. Neste diapasão, urge a necessidade premente de uma nova abordagem da análise do artigo 59 do Código Penal, a fim de moldá-lo à realidade posta, sob pena de violação das premissas aqui trabalhadas relativas ao Estado Democrático de Direito.
A avaliação da coculpabilidade às avessas quando da análise da culpabilidade como circunstância judicial prevista no dispositivo supracitado, tem como vantagem atualizar a dosimetria da pena, como instituto de direito penal e processual penal, em razão do novo modelo de direito penal inaugurado pelo Garantismo Penal Integral difundido no cenário jurídico nacional.
Desse modo, a punição mais severa deverá ter o seu alicerce na pena-base, observando as circunstâncias judiciais desfavoráveis (conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime) com base no caput, do artigo 59 do Código Penal Brasileiro.
Concluímos, portanto, ser possível a aplicação da teoria da Coculpabilidade às Avessas como circunstância judicial desfavorável quando da dosimetria da pena para que seja alcançado o objetivo proposto pelo Garantismo Penal Integral, qual seja, a atualização do direito penal à realidade social de cada agente com a finalidade de desmistificar a visão de um direito penal elitizado e que busca somente, a concretização de direitos fundamentais de primeira geração, de modo que se possa garantir a igualdade material em nosso sistema punitivo.
Advogada
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
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