Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição da República Federativa do Brasil: a historicidade do código jurídico e o seu legado

The Universal Declaration of Human Rights and the Constitution of the Federative Republic of Brazil: the historicity of the legal code and its legacy

Fernanda Linhares Pereira – Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro. Licenciada e Mestra em História pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é Doutoranda em História também pela Universidade Federal de Goiás. (prof.fernandalinhares@gmail.com)

Resumo: O presente artigo objetiva reconstituir o contexto de produção tanto da Declaração quanto da Constituição, identificando as rupturas e as permanências que a promulgação delas significou ao mundo jurídico e a sociedade como um todo, ou seja, faremos uma historicização desses dois códigos jurídicos. O caminho que escolhemos seguir para investigar essa questão foi ladrilhado pelo método histórico-comparativo, ou seja, a principal metodologia utilizada neste artigo foi a comparação entre dois momentos históricos distintos. Tal tarefa foi realizada com o auxílio de uma pesquisa bibliográfica em fontes documentais da época em que a CF e a DUDH foram escritas, em suma, revisamos os documentos preparatórios; as atas das reuniões; os anteprojetos da Declaração e da Constituição; e as memórias dos principais personagens que contribuíram para a escrita de ambos documentos. Ademais nos utilizamos de um referencial teórico atual que nos ajudou a esclarecer distintos conceitos e categorias trabalhadas no decorrer do texto.

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Palavras-chave: Declaração Universal dos Direitos Humanos. Constituição Federal. Historicização. Legado.

 

Abstract: This article aims to reconstruct the context of production of both the Declaration and the Constitution, identifying the ruptures and permanences that their enactment meant to the legal world and society as a whole, that is, we will make a historicization of these two legal codes. The path we chose to follow to investigate this issue was tiled by the historical-comparative method, that is, the main methodology used in this article was the comparison between two distinct historical moments. This task was accomplished with the aid of a bibliographic search in documentary sources from the time when the FC and the UDHR were written, in short, we reviewed the preparatory documents; the minutes of the meetings; preliminary draft Declaration and Constitution; and the memories of the main characters who contributed to the writing of both documents. Furthermore, we use a current theoretical framework that helped us to clarify different concepts and categories worked on throughout the text.

Keywords: Universal Declaration of Human Rights. Federal Constitution. Historicization. Legacy.

 

Sumário: Introdução. 1. Contexto histórico da elaboração da Declaração Universal e da Constituição de 1988. 2. O legado deixado pelos artigos da Declaração Universal e sua correspondência na Constituição de 1988. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Artigo 10 – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948).

Artigo 5º, I – Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. (Constituição da República Federativa do Brasil – 1988).

 

Duas sentenças que mesmo separadas por quarenta anos ainda se complementam, e servem de inspiração uma para a outra. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi promulgada no Palácio de Chaillot, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, e assim como a Constituição da República Federativa do Brasil (CF), promulgada em Brasília, 5 de outubro de 1988, significaram uma mudança de paradigmas no contexto em que foram apresentadas. É sobre essa mudança de paradigmas imposta por esses dois documentos jurídicos, em dois distintos contextos, que trata esse artigo. Isto é, objetivamos nessas poucas páginas discorrer, ainda que introdutoriamente, sobre as diferenças e semelhanças existentes entre os processos de elaborações de tais legislações, como também buscamos identificar os principais artigos presentes na atual Constituição que foram inspirados na Declaração Universal. É claro que não poderemos nos abster de fazer uma análise tanto dos principais atores envolvidos nesse processo criativo, quanto de outros documentos que contribuíram para a formulação dos dois principais.

Assim sendo, o nosso principal objetivo é reconstituir o contexto de produção tanto da Declaração quanto da Constituição, identificando as rupturas e as permanências que a promulgação delas significou ao mundo jurídico e a sociedade como um todo, ou seja, faremos uma historicização desses dois códigos jurídicos. Consideramos interessante essa análise por nos apresentar uma perspectiva histórica, que além de contribuir sobremaneira para a produção final dos documentos, nos permite enxergá-los por um outro aspecto (o histórico), não tão comum no campo jurídico.

O caminho que escolhemos seguir para investigar essa questão foi ladrilhado pelo método histórico-comparativo, ou seja, a principal metodologia utilizada neste artigo foi a comparação entre dois momentos históricos distintos. Tal tarefa foi realizada com o auxílio de uma pesquisa bibliográfica em fontes documentais da época em que a CF e a DUDH foram escritas, em suma, revisamos os documentos preparatórios; as atas das reuniões; os anteprojetos da Declaração e da Constituição; e as memórias dos principais personagens que contribuíram para a escrita de ambos documentos. Ademais nos utilizamos de um referencial teórico atual que nos ajudou a esclarecer distintos conceitos e categorias trabalhadas no decorrer do texto.

Esse artigo foi dividido em três partes, sendo a primeira uma introdução, que apresenta resumidamente a temática e a metodologia abordada no texto, seguida do desenvolvimento que foi subdividido em dois itens, que abordam de modo mais sistemático os aspectos centrais a serem enfatizados no texto. O primeiro item nos traz um alargamento do contexto em que foram produzidos os dois documentos aqui trabalhados, apontando proximidades e distanciamentos entre esses períodos históricos tão distintos. O outro item nos apresenta, particularmente, um quadro comparativo entre os artigos da Declaração e os da Constituição, indicando, sobretudo, aqueles que se tornaram um legado para essa última. Por fim, temos a conclusão no parágrafo final, que faz um balanço sobre as questões desenvolvidas no decorrer do artigo, mas que não encerra o assunto, tão-só abre nossas possibilidades para futuras pesquisas, e, também para o diálogo do Direito com outras disciplinas.

 

  1. Contexto histórico da elaboração da Declaração Universal e da Constituição de 1988

Identificar o contexto histórico de produção de um determinado instrumento legal nos permite compreender por um lado as motivações para se elaborá-lo, e por outro possibilita a compreensão do comportamento de uma sociedade em um momento específico, autorizando a identificação com as permanências no contexto atual, e o estranhamento com as rupturas em relação ao período anterior. No que tange a elaboração da DUDH e da CF isso não poderia ser diferente. Nesse sentido, iluminar alguns pontos referentes aos acontecimentos anteriores a dezembro de 1948, e a outubro de 1988, nos possibilitará verificar a complexa teia de relações na qual estavam envoltos os sujeitos que contribuíram para a escrita de tais legislações, como também permitirá identificarmos os principais acontecimentos que ditaram a emergência dessas medidas legais.

Passamos agora a discorrer, brevemente, e em retrospectiva, sobre os momentos que antecederam a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o mundo tomou conhecimento, tanto por meio dos testemunhos dos sobreviventes dos campos de concentrações nazistas[1], quanto através da divulgação da imprensa dos vídeos e imagens reveladas pelos investigadores do Tribunal de Nuremberg[2], do horror e da barbárie impetrada pelos nazistas contra milhões de seres humanos, que eles consideravam que não pertenciam a Nação Alemã. Na definição de Michal Polgar:

 

Durante os anos de 1933 a 1945, o Holocausto cresceu de uma série de leis e práticas injustas na Alemanha para uma catástrofe sem paralelo na Europa que abalou o mundo. As leis discriminatórias desenvolvidas pelos sistemas governamentais alemães nazistas foram combinadas com violentas forças militares industriais e usadas para alimentar a perseguição e o assassinato em massa de judeus e várias outras populações da Europa central. Nunca mais nossas comunidades internacionais permitirão tanta brutalidade e barbárie. Para esse fim, o termo e o crime de genocídio foram inventados na sequência do Holocausto. O direito internacional se desenvolveu desde então. (2019, p.1)

 

Um novo tipo de ordenamento jurídico teria que ser criado para atender as urgentes  e graves violações de direitos humanos, a simples garantia aos direitos do homem ou do cidadão, trazida pela Declaração Francesa de 1789, era incapaz de abarcar as atrocidades cometidas por um Estado que deveria proteger e resguardar os direitos básicos de seus cidadãos, e fez o contrário disso. Para Hitler cidadão era aquele que nascia no território alemão (ius soli), ou era filho de alguém que tinha nascido naquele território (ius sanguinis)[3]. Portanto, todos os outros grupos, dentre eles apátridas e refugiados da Primeira Guerra Mundial, em sua grande maioria judeus, e ainda povos vistos como não arianos, ou dissidentes do seu governo não eram considerados cidadãos alemães, e logo não possuíam qualquer tipo de direito. Para a filósofa judia Hannah Arendt, uma das primeiras a anunciar o não lugar em que viviam os apátridas e os refugiados, essa condição “é o mais recente fenômeno de massas da história contemporânea, e a existência de um novo grupo humano, em contínuo crescimento, constituído de pessoas sem Estado, grupo sintomático do mundo após a Segunda Guerra Mundial”. (1989, p. 310). Diante disso, era necessário criar uma categoria de direito mais abrangente, que desse conta de todos esses grupos que ficaram à margem, e o emergente conceito de direitos humanos supria algumas dessas exigências, ao menos em tese. Isto é, agora todos teriam direitos pelo simples fato de nascer humano, e não por pertencerem a um Estado.

Diante da divulgação da extrema magnitude das atrocidades cometidas naquele momento, criou-se um consenso mundial de que algo deveria ser feito para impedir que aqueles atos abjetos jamais voltassem a se repetir. Foi nesse momento que os debates em torno dos direitos humanos passaram a ser urgentes e necessários, transformando essa discussão em uma questão de natureza internacional. O reflexo imediato do acirramento dessa preocupação foi o encontro realizado em São Francisco, em 1945, cujo objetivo era a reunião da maioria dos países do mundo para discutirem as medidas de transição para o fim da Guerra, como também criarem um acordo que garantisse a segurança e a paz entre as Nações. Para tanto, a Organização das Nações das Nações (ONU), “foi criada para ser a pedra angular dessa nova ordem mundial; a organização personificou a ‘consciência da humanidade’ que fora ultrajada durante a guerra” (WILDE, 2007, p.86). Aliás, a Carta das Nações Unidas, documento que se originou a partir da Conferência de São Francisco, estabelecia “a fé nos direitos fundamentais da pessoa humana, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas” (NAÇÕES UNIDAS, 1945). Nesse mesmo documento ficou estabelecido que a primeira medida legislativa das Nações Unidas seria a criação de uma Declaração Internacional de Direitos Humanos, trabalho que veio a ser cumprido em 1948.

Desde 29 de abril de 1946 o Conselho Econômico e Social (ECOSOC), havia encarregado a Comissão de Direitos Humanos, composta por dezoito membros (chefiados por Eleanor Roosevelt, mas com efetiva participação dos países da América Latina[4]), da tarefa de escrever a Declaração. E nos quase dois anos que se seguiram esse pequeno grupo, que contou com a ajuda de muitos outros, se dedicaram a elaborar o que viria a ser um dos mais importantes documentos do século XX. Os mais de 50 países que faziam parte das Nações Unidas, naquele momento, submeteram suas Constituições e todo tipo de legislação que consideravam que poderiam contribuir com a escrita do novo documento. O Brasil inclusive enviou a sua Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Essa era a quinta Constituição brasileira e foi promulgada após o fim do Estado Novo, em 1945. O interessante de se notar com essa contribuição é que uma Constituição brasileira colaborou com a escrita inicial da Declaração, e quarenta anos depois a própria DUDH, já consolidada, inspirou a escrita de outra Constituição nacional, uma completamente inovadora e muito à frente do seu tempo. Dessa maneira, todas as Constituições e Projetos de Declarações submetidos pelos países membros das Nações Unidas ajudaram a Comissão de Direitos Humanos a criar um primeiro esboço da Declaração, e nos quase dois anos que se seguiriam ela seria revisada e teria acréscimos feitos por muitos representantes mundiais em seus trinta artigos. Após esse longo percurso “a Assembleia Geral aprovou a resolução 217 (III) A, em 10 de dezembro de 1948, dezoito meses após o início do processo de redação, por 48 votos a favor, oito abstenções e duas ausências” (WILDE, 2007, p. 91).

Os países que assinaram a DUDH se comprometeram a repetir no âmbito nacional o que fora acordado no plano internacional, isto é, as normas que garantiam a proteção aos direitos humanos deveriam ser incluídas no ordenamento jurídico nacional. Essa promessa só pode ser, de fato, cumprida decorridos quarenta anos, graças a um conturbado período de instabilidade política, marcado, primordialmente, pelos 21 anos em que o país esteve sob o julgo da ditadura militar. Assim, somente em 1988, após um lento processo de redemocratização o Brasil promulgou a sua Constituição da República, e pode cumprir com as promessas feitas 40 anos antes na Assembleia das Nações Unidas.[5]

O contexto histórico que antecede a promulgação da CF foi tão traumático e abjeto quanto o da DUDH. No âmbito nacional a população vinha sofrendo uma continua perda de direitos e garantias desde o dia 31 de março 1964, quando os tanques de guerra do Exército se dirigiam ao Rio de Janeiro, onde estava o presidente João Goulart. Após essa ofensiva ele foi para o Rio Grande do Sul buscar apoio, nesse tempo, o seu cargo foi declarado vacante pelo Congresso Nacional. Assim, no dia 3 de abril, o general Castelo Branco já era o novo presidente do Brasil e Jango tinha partido para o exílio, sem apresentar grandes resistências ao Golpe de Estado que acabara de sofrer. Dessa maneira, por meio da força militar eles tomaram o poder e assumiram o controle do executivo fechando o Congresso Nacional. E assim, “começava a temporada de punições e violência praticadas pelo Estado. A montagem de uma estrutura de vigilância e repressão, para recolher informações e afastar do território nacional os considerados ‘subversivos’” (ARAUJO; SANTOS; SILVA, p. 17, 2013).

O momento mais traumático desse período foi quando o Ato Institucional n0 5 foi promulgado e o regime endureceu ainda mais. De acordo com Rezende, sobretudo, a partir desse momento “é possível perceber a montagem de uma estratégia de implantação do terror por parte do Estado” (2013, p. 89), a ordem agora estava subvertida o que prevalecia era as graves violações aos mais básicos direitos do homem, enquanto institucionalizava-se a repressão e a tortura. Assim como no nazismo, quando Hitler foi democraticamente eleito e dizia seguir a Constituição de Weimar, também na ditadura brasileira houve essa “perversão da norma” (ROUDINESCO, 2008), isso porque o Ato Institucional que entrava em vigor se tratava de um acréscimo a Constituição, que ainda era considerada “democrática”, mas na realidade era uma emenda perversa e ultrajante. O resultado dos 21 anos de governo militar foi avassalador, segundo dados recentes da Comissão Nacional da Verdade “o número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro – entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos” (OLIVEIRA, 2011, p.18). Os efeitos dessas atrocidades são sentidos até hoje, um trauma difícil de ser superado, ainda mais diante de um acordo (Lei de Anistia[6]), que não impôs penalização aos torturadores. Desse modo, após uma usurpação abjeta dos direitos humanos tornou-se urgente a criação de medidas (elaboração de uma Constituição democrática, inspirada também pelo movimento das Diretas Já[7]) que pudessem garantir que tais atos jamais voltassem a acontecer. Nesse sentido, tanto a Declaração quanto a Constituição responderam ao contexto bárbaro que as precederam.

O texto Constitucional começou a ser preparado logo após a aprovação da Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985, proposta essa que adveio da campanha eleitoral de Tancredo Neves, mas que foi concluída pelo seu vice, e agora presidente (após a prematura morte de Tancredo Neves), José Sarney. Nas palavras de Barroso uma Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana foi:

 

instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves, em 1º de fevereiro de 1987, a Assembleia Constituinte elegeu em seguida, como seu Presidente, o Deputado Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Da constituinte participaram os parlamentares escolhidos no pleito de 15 de novembro de 1986, bem como os senadores eleitos quatro anos antes, que ainda se encontravam no curso de seus mandatos. Ao todo, foram 559 membros – 487 deputados federais e 72 senadores –, reunidos unicameralmente. (2008, p. 190)

 

 

Da mesma maneira que os trabalhos desenvolvidos com escrita da Declaração Universal, a preparação de um anteprojeto da Constituição foi realizada por uma Comissão específica e ao final repassada para a votação e aprovação dos senadores e deputados. Após dezoito meses de um trabalho exaustivo, e permeado de críticas, primeiro pelo fato de inúmeros deputados e senadores terem se dedicado mais aos embates da política partidária do que a execução do projeto original, e também por não incluírem diretamente a participação popular nas discussões, em 5 de outubro de 1988, foi aprovada a Constituição da República Federativa do Brasil. A despeito das críticas e algumas incongruências a Constituição atendia as necessidades da época, e tinha sido fundamentada por um dos documentos mais importantes do último século. As principais inspirações advindas da DUDH, para a escrita da CF, estão exemplificadas no item que se segue.

 

  1. O legado deixado pelos artigos da Declaração Universal e sua correspondência na Constituição de 1988

Tendo sido feita uma historicização dos dois diferentes períodos históricos de produção dos documentos legais aqui estudados, resta-nos apontarmos, por meio de um quadro comparativo, o legado deixado pela Declaração de 1948 e quais dos seus artigos foram apropriados pelos legisladores da Constituição de 1988. Dito de outro modo, elencaremos quais os artigos da CF contêm princípios que foram inspirados pela DUDH.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos já nos traz em seu primeiro artigo os princípios que considera como fundamentais para resguardar a dignidade da pessoa humana. Tais valores nos foram apresentados nas Declarações Iluministas anteriores (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração de Independência dos EUA), e a despeito de se tratar de uma declaração evidente de humanidade: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (DUDH, 1948), ainda assim era preciso “declará-los” explicitamente. Uma vez que após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial não poderiam mais presumir que esses direitos eram evidentes, era necessário e urgente declará-los positivamente. O correspondente nacional a essa declaração de princípios da dignidade humana se encontra no Artigo 50, I da CF, e descreve que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (CF, 1988).

O segundo artigo da DUDH dispõe sobre a não discriminação, ao declarar que:

 

todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.

Além disso, não se fará distinção alguma baseada na condição política, jurídica ou internacional, do país ou do território cuja jurisdição dependa uma pessoa, quer se trate de país independente, como de território de administração fiduciária, não autônomo ou submetido a qualquer outra limitação de soberania. (DUDH, 1948)

 

O componente central desse artigo é o conceito de igualdade que “significa que as pessoas, mesmo sendo muito diferentes, têm valor igual. Uma sociedade baseada nos direitos humanos é aquela em que as diferenças entre indivíduos não querem dizer que fazem jus a direitos diferentes”. (WILDE, 2007, p. 107). Na CF esse princípio aparece em um mesmo artigo, subdividido em dois incisos diferentes, são eles: “Art. 5º, XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (CF,1988), e o “Art. 5º, XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (CF, 1988). Todavia, há tanto na DUDH quanto na CF um outro artigo que também dispõe sobre o princípio da igualdade, só que elencam não apenas questões gerais, como o descrito acima, mas também “aspectos práticos da promoção da igualdade no direito interno do país” (WILDE, 2007, p. 107). Estamos nos referindo ao artigo 70 da DUDH, que possui seu correspondente no Art. 5º, I – “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, nos termos desta Constituição.

O próximo artigo da DUDH (Art. 30) trata sobre três principais áreas no campo da integridade pessoal, ou seja, ele dispõe que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (DUDH, 1948). Cada um desses direitos está associado a um outro mais específico, previsto em artigos ulteriores da Declaração, por exemplo, o direito à vida implica também no direito de garantir os meios para se manter vivo, isto é o direito à saúde disposto em seu artigo 250. Na CF a previsão mais ampla está disposta no caput do Art. 5º – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […] (CF, 88). Já a especificação desse direito social que garante um padrão de vida digna aos seres humanos foi aperfeiçoado no artigo 2300 da CF ao descrever que: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (CF, 1988).

No que concerne ao direito à liberdade, é oportuno ressaltar que ele foi esmiuçado nos artigos 130, 190 e 180 da DUDH, os quais garantem o direito à liberdade de locomoção; à liberdade de expressão; e à liberdade de prática religiosa, respectivamente. Sendo essas liberdades limitadas pelo artigo 290, que trata das liberdades alheias. Tais garantias foram repetidas na Constituição Nacional nos Art. 5º, XV (liberdade de locomoção); Art. 5º, XIV, IX (liberdade de expressão); Art. 5º, VI, Art. 5º, VII (liberdade religiosa).

Em relação ao princípio da Segurança pessoal ele é aprofundado tanto no artigo 40, quanto no 50 da DUDH, que proíbe tortura, tratamento cruel, desumano e degradante. A exata transcrição desse artigo pode ser encontrada no Art. 5º, III da CF/88.

O dispositivo seguinte a esse trata do direito da pessoa humana, de forma integral dispõe que: “todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa humana, perante a lei” (Art. 60 DUDH). O texto semelhante a esse pode ser visualizado no Art. 1º – III da CF/88. Esse princípio que reconhece a pessoa humana, garante também a personalidade jurídica, ou seja, “é o ponto de partida para a aplicação dos princípios de direitos humanos num sentido prático e legal” (WILDE, 2007, p.115). Por conseguinte, quando o indivíduo adquire a personalidade jurídica com ela vem também outras garantias, quer sejam, direito a um tratamento igualitário (Art. 70 DUDH); direito a um “Remédio Constitucional” quando ocorrem violações de direitos (Art. 80 DUDH); são resguardadas algumas garantias processuais como o direito de não ser preso arbitrariamente (Art. 90 DUDH); direito a um julgamento justo (Art. 100 DUDH); direito a presunção de inocência (Art. 110 DUDH). De forma sequencial os artigos da CF/88 que foram inspirados nos anteriores são: Art. 5º, I; Art. 5º, LIII; Art. 5º, LXI; Art. 5º, XXXVII; Art. 5º, XXXIX, todos dispondo sobre a mesma matéria acima descrita.

O 120 artigo da DUDH remete ao direito à intimidade ou a privacidade, estabelecendo que: “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” (DUDH, 1948). Já a Constituição trata o mesmo direito nos termos de inviolabilidade, como descrito no Art. 5º, X – “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (CF, 1988).

A discussão central do Artigo 140 da DUDH diz respeito aos direitos dos refugiados, como já anunciamos no item anterior, essa nova categoria de pessoas, que antes não eram englobadas pelo ordenamento jurídico nacional, passa após a promulgação da Declaração serem sujeitos de direitos humanos. Portanto, esse artigo ao mesmo tempo que garante o direito aos apátridas e refugiados também impõe o dever ao Estado de conceder asilo a pessoas nessa situação. O inteiro teor desse artigo está expresso a seguir:

 

Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. Este direito não poderá ser invocado contra uma ação judicial realmente originada em delitos comuns ou em atos opostos aos propósitos e princípios das Nações Unidas (DUDH, 1948).

 

Já o corresponde a esse artigo está previsto tanto no Art. 5º, LI – “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei” (CF, 1988), quanto no Art. 5º, LII – “não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião” (CF, 1988).

Atrelado ao artigo anterior está o direito a nacionalidade, previsto do 150 artigo da Declaração. Tal direito “é a condição legal de ser um membro, ou cidadão, de um país específico. Essa condição implica direitos e deveres específicos da parte tanto do cidadão quanto do seu país”. (WILDE, 2007, p. 130). O dispositivo semelhante a esse foi resgatado pela Constituição Nacional e descrito na forma do Art. 12, §2º – “A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição” (CF, 1948).

O próximo artigo (160) garante o direito de contrair matrimônio e fundar uma família, que é a base da sociedade. Essa previsão pode ser encontrada de igual modo no Art. 226 – “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (CF, 1948).

O direito à propriedade é resguardo tanto pelo artigo 170 da DUDH, quanto pelo Art. 5º, XXII da CF. Sendo que essa última previsão avança nas especificações de tal direito descrevendo a função social da propriedade (Art. 5º, XXIII); estabelecendo os procedimentos para a desapropriação (Art. 5º, XXIV) e elencando algumas exceções quanto a regra geral do direito à propriedade (Art. 5º, XXV).

O direito de acesso ao governo está descrito no Art. 210 da DUDH, ao declarar que:

 

todo homem tem o direito de tomar parte no governo do próprio país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. Todo homem tem o direito de acesso em condições de igualdade, às funções públicas de seu país. A vontade do povo é a base da autoridade do poder público; esta vontade deverá ser expressa mediante eleições autênticas que deverão se realizar periodicamente, por sufrágio universal e igual, e por voto secreto ou outro procedimento equivalente que garanta a liberdade do voto. (DUDH, 1948).

 

Já na CF a matéria semelhante a essa pode ser encontrada no Art. 1º – Parágrafo único. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (CF, 1988).

Os artigos finais da Declaração tratam de uma classe de direitos inovadora para a época, eram os chamados direitos sociais, econômicos e culturais que antes de 1948 não havia aparecido em outras declarações de direitos. Especificamente, esses direitos são “aqueles que, de modo geral, concernem ao bem-estar dos indivíduos, no sentido da capacidade de proverem e se sustentarem a si mesmos” (WILDE, 2007, p. 94). Essa nova categoria foi tratada nos artigos 220 ao 270 da DUDH. No concernente a matéria o artigo 220 refere-se ao direito a seguridade social; o 230 o direito ao trabalho; o 240 o direito ao lazer e ao descanso; o 250 o direito ao bem-estar; o 260 o direito a educação; o 270 o direito a cultura. Essas temáticas de direitos sociais inspiraram inúmeras outras Constituições posteriores, e não seria diferente com a brasileira, que trata desses mesmos direitos sequencialmente aos artigos da Declaração, em seus artigos:  Art. 194 (seguridade social); Art. 5º, XIII (trabalho); Art. 6º (lazer); Art. 230 (bem-estar); Art. 205 (educação); Art. 5º, XXVII, Art. 5º, XXVIII, Art. 215 (cultura).

Os dois artigos finais da DUDH (Art. 290 e 300), declaram certas limitações aos direitos descritos anteriormente, ou seja, “o de que a ninguém deve ser permitido usar seus direitos para comprometer os direitos dos outros” (WILDE, 2007, p. 159). Aliás, esses dois artigos nos fazem lembrar que um indivíduo não tem apenas direitos, mas também deveres, da mesma forma o correspondente artigo da CF impõe outra limitação aos direitos, quer seja, Art. 5º, LXXVII – § 2º “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (CF, 1988).

 

CONCLUSÃO

Dito isso, acreditamos ter cumprido o objetivo inicial desse artigo que era primeiro historicizar o contexto histórico de produção de dois códigos jurídicos distintos e ainda assim aproximá-los. Em seguida, apresentamos, mesmo que de forma descritiva, os trinta artigos da DUDH e destacamos quais deles possuíam um correspondente, ou ao menos se aproximavam dos princípios abordados na Constituição brasileira. Esperamos por fim, com essas ideias introdutórias, despertar novos interesses que visem aproximar a ciência histórica da jurídica, uma vez que ambas tem muito a colaborar uma com a outra, aliás, a intersecção dessas duas matérias nos permitiu construir uma visão da sociedade anterior a promulgação de um novo ordenamento jurídico, e como esses acontecimentos influenciaram e até definiram os rumos dos dois códigos jurídicos. Só isso já bastou para termos iniciado esse estudo.

 

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[1] O químico italiano Primo Levi foi um dos responsáveis por divulgar ao mundo, por meio de sua literatura de testemunho, os horrores que ele viveu em um campo de concentração. De acordo com Tony Judt “Levi foi enviado a um campo de trânsito em Fossoli di Carpi, e de lá foi transportado, em 22 de fevereiro de 1944, para Auschwitz, na companhia de outros 649 judeus, dos quais 23 sobreviveram. Ao chegar, Levi foi marcado com o número 174517 e selecionado para Auschwitz III – Monowitz, onde trabalhou em fábricas de borracha sintética pertencentes à I. G. Farben e operadas pela SS. Ele permaneceu em Auschwitz até o campo ser abandonado pelos alemães em janeiro de 1945 e liberado pela ofensiva do Exército Vermelho em 27 de janeiro” (2010, p. 60).

[2] Foi um Tribunal Militar Internacional responsável por julgar os principais líderes nazistas pelos crimes impetrados contra a humanidade. “O mais famoso foi o julgamento, em Nuremberg, de 22 altos líderes nazistas. Onze foram condenados, em 30 de setembro de 1946, por guerra de agressão e “crimes contra a humanidade”. Dez deles foram enforcados; Herman Goering suicidou-se. Ao final, dentro da zona americana na Alemanha ocupada, quinhentos mil criminosos de guerra foram julgados culpados e receberam penas diferenciadas”. (HANSEN, 2007, p. 79). A despeito das críticas a esse julgamento, primeiro por julgarem crimes não previstos no ordenamento jurídico da época, e segundo por ter sido comandado pelos vencedores, o que Gellately (2005) considerou como sendo um tribunal jurídico e político, ainda assim, a inovação para o campo dos direitos humanos é inegável e será retomada, posteriormente, nas Nações Unidas, ao ratificar o Princípios de Nuremberg (que garante o direito de punir crimes não tipificados, se forem violações aos direitos humanos).

[3] Esse reduzido conceito de cidadão não foi questionado no Ancién Regime, onde vigorava um outro código de conduta, segundo Agamben nesse antigo sistema: “[…] o ‘súdito’ se transforma em ‘cidadão’, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas consequências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio da natividade e o princípio da soberania, separados no antigo regime (onde o nascimento dava direito somente ao sujet, ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo do Estado-Nação. Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação ‘nacional’ e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio da soberania. A ficção aqui implícita é a de que o nascimento se torne imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele) somente na medida em que ele é o fundamento imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão”. (AGAMBEN, 2002, p.135).

[4] Para maiores esclarecimentos sobre esse tema ver o artigo de minha autoria intitulado: América Latina, Direitos Humanos e Guerra Fria: uma análise da escrita da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/view/2909.

[5] Hans Gumbrecht (2014) chama esse interlúdio de “latência”, e o mesmo argumento também aparece em Samuel Moyn (2013), ao argumentar que os direitos humanos só vão florescer a partir da década de 1970, mesmo após os acontecimentos de 1945. Essa tesa vai de encontro à que demonstramos no decorrer deste artigo.

[6] Em 28 de agosto de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei no 6.683/79, que ficou conhecida como Lei de Anistia. A criação dessa lei “foi o ápice de um processo de mobilização política que começou em meados dos anos setenta, formado por militantes dos Direitos Humanos, ex-presos políticos, exilados, cassados, militantes de partidos democráticos, do movimento estudantil, etc., os quais se organizaram em movimentos sociais e associações civis destacando-se o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e o Comitê Brasileiro pela Anistia, com várias unidades estaduais, os quais foram ganhando apoio de diversas entidades da sociedade civil organizada”. (BARRIENTOS-PARRA; MIALHE, 2012, p.25)

[7] Após quase duas décadas de um regime opressão a população brasileira sai as ruas pedindo eleição direta para presidente, esse movimento histórico foi fundamental para iniciar os debates sobre a abertura política, de acordo com Rodrigues (2013) era “o grito preso na garganta” do povo brasileiro.

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