O poder soberano do povo no novo constitucionalismo latino americano da Venezuela, Equador e Bolívia

Resumo: O constitucionalismo moderno foi um movimento criado para limitar a atuação dos governantes. Teve como conquistas principais a positivação dos direitos individuais e a separação dos poderes. O poder que pertencia ao soberano, representante da vontade divina, passou à titularidade do povo. Esse poder, no entanto, não foi exercido de fato por seus titulares. Com o escopo de apresentar um novo paradigma surge na Venezuela, Equador e Bolívia um modelo denominado de novo constitucionalismo latino americano.  Como problema o artigo visa responder: Quais as novas configurações da separação dos poderes no novo constitucionalismo latino americano da Venezuela, Equador e Bolívia e como se manifesta o Poder Soberano do Povo nesse novo contexto? Em seus objetivos o artigo discorre sobre o constitucionalismo moderno, o poder soberano do povo e o novo constitucionalismo latino americano. A hipótese restou comprovada com a demonstração de que o novo modelo da Venezuela, Equador e Bolívia, contemplam muito mais a participação popular e a influência efetiva do “povo” nas decisões políticas do Estado.

Palavras Chaves: Novo Constitucionalismo Latino Americano; Povo; Soberania.

Abstract: the modern constitutionalism was a movement created to limit the actions of the rulers. Had as main achievements the recognition of individual rights and the separation of powers. The power that belonged to the sovereign, representative of the divine will, went to the ownership of the people. That power, however was not in fact exercised by their holders. With the scope to present a new paradigm emerges in Venezuela, Ecuador and Bolivia a model called the new Latin American constitutionalism. As problem article aims to answer: what are the new settings of the separation of powers in the new Latin American constitutionalism of Venezuela, Ecuador and Bolivia and as manifested the sovereign power of the people in this new context? In its objectives the article discusses the modern constitutionalism, the sovereign power of the people and the new Latin American constitutionalism. The hypothesis remains proven with the demonstration that the new model of Venezuela, Ecuador and Bolivia, include more popular participation and the effective influence of the "people" in the political decisions of the State.

Key Words: New Latin American Constitutionalism; People; Sovereignty.

Sumário: Introdução. 1 Constitucionalismo moderno; 1.1 Separação dos poderes. 2 Poder soberano do povo. 3 O povo e novo constitucionalismo latino americano; 3.1 Novo constitucionalismo latino americano; 3.2 Soberania popular no novo constitucionalismo latino americano. Conclusão. Referencias.

INTRODUÇÃO

O constitucionalismo moderno foi um movimento que culminou na criação de um novo modelo de Estado, pautado na positivação dos direitos e garantias individuais e a separação dos poderes.

O poder soberano deixou de pertencer ao monarca, representante de Deus e passou a ser de titularidade do “Povo”. Esse poder, no entanto, se apresenta mais como um instrumento ideológico do que um poder real, característica que põe em cheque a legitimidade dos Estados Democráticos de Direito, na medida e que exclui as minorias da representatividade política.

Visando criar um novo modelo de Estado em que o poder soberano do povo possa ser poder de fato e não apenas ideológico, a Venezuela, Equador e Bolívia criam novos textos constitucionais em um movimento chamado de Novo Constitucionalismo Latino Americano (NCLA).

O presente artigo visa analisar como se manifesta a soberania popular dentro do modelo apresentado pelo novo constitucionalismo latino-americano dos Estados da Venezuela, Bolívia e Equador.

A pesquisa é baseada no método dialético por meio do estudo das contradições entre o poder soberano do povo, presente nos textos constitucionais modernos e o novo modelo plurinacional de Estado apresentado pelas novas constituições da Venezuela, Equador e Bolívia, chamado de novo constitucionalismo latino americano.

Como problema o artigo visa responder: Quais as novas configurações da separação dos poderes no novo Constitucionalismo Latino Americano existente na Venezuela, Equador e Bolívia e como se manifesta o Poder Soberano do Povo nesse novo contexto?

Em seu objetivo geral irá aferir a efetividade da soberania popular no novo constitucionalismo latino americano. Em seus objetivos específicos visa discorrer sobre o movimento constitucionalista moderno, o poder soberano do povo e a participação popular das minorias no modelo de Estado plurinacional do novo constitucionalismo latino americano.

Como hipótese o artigo pretende comprovar que o novo constitucionalismo latino americano representa um novo modelo de Estado com uma configuração que permite um efetivo exercício da soberania do povo, em especial os grupos minoritários historicamente excluídos.

1 CONSTITUCIONALISMO MODERNO

A Constituição pode ser entendida como o modo de se constituir, se formar, de uma determinada sociedade, nesse escopo ela representa um documento antigo cujo nome foi citado desde a Grécia Antiga até a Europa Medieval. O conceito aqui empregado, no entanto, será o de Constituição em seu contorno normativo-jurídico o que a coloca no século XVIII, como resultado do movimento denominado constitucionalismo moderno (FERNANDES, 2011, p.17).

Constitucionalismo representa um movimento de efetivação da supremacia constitucional “O constitucionalismo, em seu sentido mais amplo, é empregado para designar a existência de uma constituição nos Estados, independentemente do momento histórico ou do regime político adotado. Embora a constituição, em seu sentido moderno, tenha surgido apenas a partir das Guerras Religiosas dos séculos XVI e XVII, todos os Estados – mesmo os absolutistas ou totalitários – sempre possuíram uma norma básica, expressa ou tácita, responsável por legitimar o poder soberano. Nessa perspectiva o constitucionalismo se confunde com a própria história das constituições” (NOVELINO, 2015. p.45).

Em seu sentido mais restrito, constitucionalismo está associado ao princípio da separação dos poderes, nas versões desenvolvidas por Kant e Montesquieu e representa a positivação dos direitos fundamentais individuais, utilizados como instrumentos de limitação ao poder estatal e garantia das liberdades individuais dos cidadãos (NOVELINO, 2015. p.45).

O constitucionalismo moderno é símbolo de um importante movimento de ruptura no modelo de organização política e da relação entre governantes e governados nos países ocidentais.

Fruto de movimentos revolucionários, a Constituição moderna marca imposição de limites aos poderes do Estado e a positivação dos direitos e liberdades individuais “O constitucionalismo moderno sustenta a limitação jurídica do poder do Estado em favor da liberdade individual. Ele surgiu na Modernidade, como forma de superação do Estado Absolutista, em que os monarcas não estavam sujeitos ao Direito — eram legibus solutos. Alguns desenvolvimentos históricos foram essenciais para o surgimento do constitucionalismo moderno, como a ascensão da burguesia como classe hegemônica; o fim da unidade religiosa na Europa, com a Reforma Protestante; e a cristalização de concepções de mundo racionalistas e antropocêntricas, legadas pelo Iluminismo” (SARMENTO e SOUZA NETO, 2012. p.105).

As constituições modernas se tornaram instrumentos de limitação do arbítrio estatal e da concentração de poderes nas mãos dos monarcas, até então, considerados detentores únicos do poder e representantes da vontade divina na Terra.

 Importante ressaltar os três pilares em que se assenta o constitucionalismo moderno “O constitucionalismo moderno se assenta em três pilares: a contenção do poder dos governantes, por meio da separação de poderes; a garantia de direitos individuais, concebidos como direitos negativos oponíveis ao Estado; e a necessidade de legitimação do governo pelo consentimento dos governados, pela via da democracia representativa. Porém, na prática, o terceiro destes pilares nem sempre foi valorizado como os dois primeiros, pela generalizada adoção do voto censitário e masculino nos Estados constitucionais até meados do século XX, com base na justificativa de que apenas os homens mais instruídos, de melhor condição social, reuniriam as condições que lhes permitiriam expressar, por meio do seu voto, a vontade da Nação” (SARMENTO e SOUZA NETO, 2012. p.118).

A positivação dos direitos e liberdades individuais nas Constituições dos Estados foi de suma relevância para limitar o arbítrio estatal e iniciar uma nova ordem jurídica. Também chamados de direitos de primeira dimensão/geração, esses direitos são em regra direitos negativos que exigem um não fazer por parte do Estado no sentido de respeitar a esfera individual de direitos dos cidadãos a exemplo do direito de propriedade, liberdade de expressão e de consciência.

Entre os mecanismos de freios e limites ao arbítrio estatal merece destaque ainda a criação do princípio da separação dos poderes, uma das teorias basilares do novo paradigma implementado pelo constitucionalismo.

1.1 SEPARAÇÃO DOS PODERES

Símbolo do constitucionalismo moderno, a teoria da separação dos poderes surgiu com o escopo de frear o arbítrio estatal por meio de um sistema mais equilibrado de forças, no qual as principais funções do Estado se encontram repartidas entre poderes.

A classificação e repartição das funções do Estado foi inicialmente formulada por Aristóteles na célebre obra “Política” (384 a 322 A.C.), nos tempos modernos a defesa da teoria da separação dos poderes foi realizada por John Locke que a concebeu com a repartição dos poderes em legislativo e executivo. Por fim Montesquieu no clássico tratado “O espírito das leis” (1948) apresenta a teoria rigorosa de tripartição dos poderes e sustenta que a limitação a um poder só é possível, se houver um outro capaz de limitá-lo (NOVELINO, 2015. p.289).

A separação dos poderes foi uma teoria concebida, para garantir a existência de um governo moderado, mediante distribuição das principais atividades e funções do Estado e por meio do exercício de um controle recíproco entre suas formas de expressão (CANELA JÚNIOR, 2011. p.67).

Conforme lição de Osvaldo Canela Júnior “Na época em que foi concebida, a teoria da separação dos poderes pretendia promover a proteção dos direitos fundamentais de primeira geração mediante o controle do poder. A restrição do poder dos órgãos do Estado era indispensável, em uma fase histórica na qual o despotismo pregava o poder absoluto arbitrário. Foi, portanto, a primeira reação ao arbítrio, consignada nos textos constitucionais, com o específico fim de adequar o perfil das forças de expressão do poder estatal” (CANELA JÚNIOR, 2011. p.67).

A ideia de um mecanismo de controle do exercício dos poderes do Estado surgiu para proteger os direitos individuais dos cidadãos contra os arbítrios estatais, manifestados na atuação ilimitada do poder soberano do monarca. Este enquanto representante da vontade divina exercia poderes plenos sem quaisquer limitações.

A rigorosa separação dos poderes elaborada por Montesquieu perdeu sua fórmula originária e passou a se configurar por uma maior inter-relação entre os poderes de modo a estabelecer uma colaboração recíproca e controle mútuo denominado sistema de freios e contrapesos (NOVELINO, 2015. p.288).

Nessa seara, por meio das Constituições dos Estados, a separação dos poderes vem equilibrar e repartir as principais funções do Estado, destituindo o monarca do poder soberano e transferindo esse poder ao “Povo”.

2 PODER SOBERANO DO POVO

Com o advento do constitucionalismo moderno o poder soberano deixa de ser um atributo da monarquia, enquanto representante de Deus, e passa a ser de titularidade do “Povo”. As Constituições Modernas, além da positivação dos direitos e garantias individuais e da repartição dos poderes, têm como característica marcante a ascensão do “Povo” a titular do poder soberano do Estado. O poder soberano do povo passa a ser instrumento de legitimidade da atuação dos poderes do Estado.

O povo assume o lugar de Deus como elemento legitimador do poder estatal “Desde que Deus se retirou da vida política (e se despediu da história), seu cargo na estrutura funcional não foi declarado vago. Assim como outrora ELE, o povo foi desde então usado da boca para fora e conduzido aos campos de batalha por todos os interessados no poder ou no poder-violência, sem que antes lhe tivesse perguntado” (MÜLLER, 2004.  p.21/22).

O monarca absolutista exercia o poder soberano em nome de Deus. Representava a vontade de Deus na Terra, e era esse exercício da vontade divina, que tornava a sua atuação legítima perante os governados.

Com a limitação dos poderes absolutistas dos monarcas era necessário um novo titular ao poder soberano do Estado, essa titularidade foi concebida ao “Povo”. O constitucionalismo moderno marca a ascensão do “Povo” à titularidade do poder soberano do Estado.

O povo é elemento formador do conceito de democracia moderna “Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto de poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é esse povo? Uma pluralidade de indivíduos, sem dúvida. E parece que a democracia pressupõe, fundamentalmente, que essa pluralidade de indivíduos constitui uma unidade, tanto mais que, aqui, o povo como unidade é – ou teoricamente deveria ser – não tanto objeto, mas principalmente sujeito do poder” (KELSEN, 2000. p.35).

Um governo do povo e para o povo, conceito implícito na Democracia, pressupõe um povo como instância de atribuição, mas também um povo que em sua unidade e pluralidade possa ser sujeito do poder, capaz de influir nas decisões dos governantes.

Não obstante a existência de representantes da vontade popular é necessário que exista uma identidade entre a vontade dos representantes e a vontade dos representados vistos em sua unidade e pluralidade.

Uma das atribuições do povo, enquanto titular do poder soberano do Estado é o exercício do “poder constituinte”, ou seja, o poder de constituir-se por meio das normas que irão reger o Estado. Esse Poder, no entanto, só será efetivo se o povo for capaz de participar efetivamente das decisões políticas do Estado.

Ao discorrer sobre o conceito de poder constituinte Müller afirma “O poder constituinte no pleno sentido do termo, maciço e real, não mais metafísico, seria o poder do povo de constituir-se. A constituição de si mesmo não se faz por meio da redação e subscrição de um papel chamado “Constituição”. Uma associação se constitui realmente pela práxis, não pelo diploma; não por meio da entrada em vigor, mas pela vigência: diariamente, na duração histórica” (MÜLLER, 2004.  p.26).

Somente se pode falar em povo enquanto instância constitutiva de poder quando esse povo, em sua diversidade e pluralidade, é apto a influenciar na ordem jurídica e participar efetivamente da criação estatal. Na prática, porém, poucos representam o “povo” enquanto sujeito do poder (KELSEN, 2000. p.37).

Para que a existência de um poder constituinte do povo seja instrumento de legitimação do Estado, mister que esse poder seja exercido na prática jurídica desse Estado e não apenas no texto da norma.

Nesse sentido afirma Müller “Se já a textificação do poder constituinte deve ser critério de aferição de legitimidade, este legitima somente à medida que a práxis jurídica continua em conformidade com os respectivos textos de normas (do poder constituinte) ” (MÜLLER, 2004.  p.31).

Enquanto o poder do povo não se constituir na prática jurídica dos Estados, se configurará apenas como uma metáfora, “Mas não há poder constituinte do povo onde o poder contempla o povo em alienação. Onde o povo não encontra a si mesmo, mas apenas a violência de um Estado que mantém um povo para si. Para tal estado, o “poder constituinte” é um símbolo especialmente vistoso, uma metáfora especialmente luminosa” (MÜLLER, 2004.  p.26/27).

Se quisermos passar da noção ideal para a noção real de povo, não poderemos limitar-nos a substituir o conjunto de todos os indivíduos submetidos ao poder pelo círculo bem mais estreito dos titulares dos direitos políticos; é preciso dar outro passo e levar em consideração a diferença existente entre o número desses titulares dos direitos políticos e o número dos que efetivamente exercem tais direitos (KELSEN, 2000. p.40).

Para Muller o Povo ainda não tomou posse de seu poder constituinte soberano “O “poder constituinte do povo” ainda continua sendo um texto dos dominantes; ainda continua sendo o seu conceito finalista; e ainda não é o texto do povo, com o fim de permitir a este organizar-se a si mesmo. Talvez seja possível que algum dia o povo (uma multiplicidade em si distinta, mesclada, divindade em grupos, mas organizada igualitariamente e sem discriminações) ainda tome posse do texto sobre o seu poder constituinte” (MÜLLER, 2004.  p.32).

A titularidade do poder ao povo, o direito revolucionário e o direito à resistência quando inseridos na Constituição, são conceitos jurídicos, conceitos normativos e, com isso, materialmente vinculantes, termos que oferecem critérios materiais de aferição, que deixam para trás o voluntarismo, o normologismo, o decisionismo dos governantes, em nome do caráter vinculante do direito e da constituição (MÜLLER, 2004.  p.32).

Como o objetivo de permitir ao povo uma maior participação nas decisões de poder do Estado, e compreendendo o povo em sua pluralidade e diversidade, o novo constitucionalismo latino americano apresenta uma nova configuração à repartição dos poderes e participação popular.

3 O POVO E NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO

O Novo Constitucionalismo Americano é um movimento que visa apresentar novos contornos à Constituição dos Estados, um novo modelo de Estado com uma maior participação dos diversos povos que compõe a sociedade plural.

Embora não seja unanimidade no entendimento doutrinário, esse movimento tem como principais representantes as constituições da Venezuela, Equador e Bolívia, países que romperam com o modelo anterior de Estado e apresentam uma maior convergência de objetivos a serem alcançados pelo novo constitucionalismo.

3.1 NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO

O novo constitucionalismo latino americano tem início com o movimento denominado “Caracaço” ocorrido na Venezuela em 1989 na qual, milhões de pessoas se encaminharam ás ruas de Caracas reivindicando melhores condições econômicas e sociais para o país. Diante da resposta armada e de caráter militar do governo, a revolta deixou um saldo de mais de quinhentos mortos e centenas de desaparecidos (VIEIRA, 2009).

A construção dos Estados Modernos americanos, assim como os Estado europeus, se constituiu com o estranhamento do outro e a exclusão das minorias representadas, entre outros, pelos povos indígenas, que na concepção de mundo eurocêntrica eram considerados inferiores e incapazes ao exercício da cidadania.

Os indígenas e negros foram excluídos no processo de construção dos Estados Modernos americanos “Não interessava para as elites econômicas e militares (masculina, branca e descendente de europeus) que os não brancos (os povos originários e os afrodescendentes), a maior parte dos habitantes, se sentissem integrantes, se sentissem partes do Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos), assim como milhões de imigrantes forçados africanos e de outras regiões do Planeta, foram radicalmente excluídos de qualquer concepção de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais” (MAGALHÃES. P.73, 2012).

O novo constitucionalismo latino americano representa a luta dos povos da américa por um novo modelo de Estado, pautado no pluralismo e respeito à diversidade cultural, pautado na inclusão das minorias sociais, historicamente relegados do processo político de formação dos Estados Nacionais Modernos nas Américas.

Ao discorrer sobre o novo constitucionalismo latino americano José Ribas Vieira ressalta a contexto similar dos movimentos revolucionários que culminaram em uma nova concepção às Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia “Em contexto similar ao do Caracaço, inserem-se, também, a chamada “Guerra do Gás” (em 2003, na Bolívia) e os protestos ocorridos no Equador (2005). Reunidas, as três revoltas populares foram o estopim de um movimento jurídico batizado com o nome de “Novo Constitucionalismo Latino-Americano” ou “Un constitucionalismo sin Padres”. Esse novo constitucionalismo parece ter seu marco zero normativo com a promulgação da Constituição da República Bolivariana da Venezuelana (1999), desdobrando-se e desenvolvendo-se com as novas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) ”, (VIEIRA, 2009).

As revoluções populares ocorridas nos Estados da Venezuela, Equador e Bolívia culminaram com a instituição de novas constituições, documentos estes, pautado em um modelo de Estado mais pluralista e voltado às realidades locais e regionais e à valorização ao multiculturalismo dos povos “A situação começa a mudar na primeira década do século XXI com as revoluções democráticas e pacíficas da Bolívia e do Equador, com seus poderes constituintes democráticos, que fundaram um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular” (MAGALHÃES, p.33, 2012 ).

Essa nova forma de Estado e interrelação entre governantes e governados, pautada no respeito à diversidade e a proteção mais efetiva das minorias, com a proteção constitucional das culturas e maior participação popular, é denominado de novo constitucionalismo latino americano e propõe a consolidação de Estados plurinacionais.

O novo modelo de Estado constitucional latino-americano apresenta uma ordem jurídica democrática e pluralista, na qual existe espaço não só aos tradicionais poderes do Estado, executivo, legislativo e judiciário, mas também ao povo, enquanto instância efetiva e plural de poder.

O pluralismo engloba fenômenos espaciais e temporais “Obviamente, o Pluralismo engloba fenômenos espaciais e temporais com múltiplos campos de produção e de aplicação, os quais compreendem, além dos aportes filosóficos, sociológicos, políticos ou culturais, uma formulação teórica e prática de pluralidade no Direito. Ora, o Pluralismo no Direito tende a demonstrar que o poder estatal não é a fonte única e exclusiva de todo o Direito, abrindo escopo para uma produção e aplicação normativa centrada na força e na legitimidade de um complexo e difuso sistema de poderes, emanados dialeticamente da sociedade, de seus diversos sujeitos, grupos sociais, coletividades ou corpos intermediários” (WOLKMER, 2010).

O respeito ao pluralismo e aos diversos sujeitos e grupos que compõe a coletividade social são o marco do novo constitucionalismo latino americano e representam uma mudança nos modelos constitucionais existentes nas demais constituições da América, nas quais o povo, no exercício da soberania política, era representado pelos grupos hegemônicos.

Porém uma soberania popular real, com validade jurídica, se perfaz por meio de instrumentos que permitam efetivamente ao Povo, participar e influenciar as decisões políticas do Estado. Nesse mister se faz necessário avaliar quais os instrumentos que visam efetivar a soberania popular no novo constitucionalismo latino americano dos países da Venezuela, Equador e Bolívia.

2.2 SOBERANIA POPULAR NO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO

Fruto de revoltas populares visando melhores condições econômicas e sociais, respeito às minorias e maior participação popular nas decisões do Estado, o novo constitucionalismo latino americano surge com a proposta de criação do modelo de um novo constitucionalismo e a criação do Estado plurinacional.

Em uma proposta com objetivos comuns as constituições da Venezuela, Equador e Bolívia são apontadas como símbolos de um novo projeto de constitucionalismo no continente americano. Um amplo catálogo de direitos fundamentais e uma nova concepção acerca da participação popular, em especial dos povos indígenas, são características principais desse novo constitucionalismo e símbolo de ruptura com os modelos anteriores.

Ocorre uma releitura do conceito de soberania popular “Nesse sentido, o novo constitucionalismo parte de postulados clássicos da teoria constitucional, repetindo, por exemplo, o tradicional catálogo de direitos de proteção individual. Por outro lado, procura superar o constitucionalismo clássico no que este não teria avançado, sobretudo no que se refere às possibilidades de articulação e releitura da categoria soberania popular, como condição necessária de legitimação das instituições e de gestão do próprio Estado. Indo mais longe, o Estado deverá ser refundado sobre os escombros das promessas liberais não cumpridas, promovendo-se sua reconstrução a partir de uma “nova geometria do poder” “, (VIEIRA, 2009).

“Confirmando a regra supramencionada do modo de consolidação do Estado-nação ao redor do globo, na Bolívia o Estado se assentou sobre a exclusão e uniformização de modos de vida, economia, propriedade e representação política de povos que não se enquadravam no modelo estabelecido” (MAGALHÃES, p.105, 2012). Visando superar essa exclusão histórica o novo catálogo de direitos fundamentais de natureza individual e coletiva da Constituição boliviana de 2008 se destaca pela tentativa de inclusão de grupos historicamente excluídos pelas constituições anteriores, a exemplo dos povos indígenas, que muito embora represente uma parcela considerável da população desses Estados, eram marginalizados, dos 411 artigos da nova Constituição, 80 são destinados às questões indígenas.

O artigo primeiro da Constituição da Bolívia, dispõe que o novo Estado se configura em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional, comunitário, livre, independente, soberano, democrático e intercultural, no qual a pluralidade cultural, política, jurídica, econômica e linguística se perfaz em um instrumento de integração dos diversos povos que compõem país.

Essa concepção de Estado plurinacional e integrador se manifesta pela tutela dos direitos de diversos povos que compõe a população local, por meio da proteção a sua tradição, língua, costume e demais formas de manifestação cultural visando uma maior unidade do país.

No que se refere à nova concepção da soberania popular merece destaque as alterações realizadas nas constituições dos três países, visando ampliar a participação popular nas decisões políticas do Estado “Para tanto, promove a recuperação e releitura da categoria “soberania popular”, no sentido de refundar o Estado, promovendo a participação direta do povo na elaboração e aprovação da constituição, bem como no controle e gestão da administração. Estabelece instituições paralelas de controle baseadas na participação popular: “Poder Cidadão” (Venezuela), “Controle Social” (Bolívia) e o "Quinto Poder" (como ficou conhecido no Equador) ”, (VIEIRA, 2009).

As novas formas de participação popular e repartição de competências dos poderes do Estado, embora baseadas em diferentes propostas possuem como objetivo comum efetivar o poder soberano do povo com uma maior inclusão das diversas camadas sociais nas decisões políticas do país.

A Constituição da República Bolivariana da Venezuela foi inspirada nas ideias políticas propostas por Simón Bolívar, O Libertador, nesse escopo busca criar mecanismos de maior participação popular a exemplo do “Poder Cidadão” um Conselho criado para ampliar a participação popular na ratificação das decisões do governo e fiscalização da probidade ética e moral da Administração Pública (POLETTI, 2007).

O Conselho Moral Republicano é também chamado de quinto poder, e atua ao lado dos poderes executivo, legislativo, judiciário e eleitoral, representando a participação popular de forma direta entre os poderes do Estado (VIEIRA, 2009).

O Poder Cidadão, representado pelo Conselho Moral Republicano, é independente e seus órgãos gozam de autonomia funcional, financeira e administrativa. São órgãos do Poder Cidadão a Defensoria do Povo, o Ministério Público e a Controladoria Geral da República. Estão entre as suas atribuições prevenir, investigar e sancionar os fatos que atentem contra a ética pública e moral administrativa, velar pela boa gestão e pela legalidade do uso do patrimônio público, promover a educação como processo criador da cidadania, realizar ações que promovam a solidariedade, os direitos humanos, a liberdade, a democracia e os valores sociais do trabalho (POLETTI, 2007).

Além da criação do Poder Cidadão merece destaque na Constituição Bolivariana da Venezuela como instrumentos de participação popular a ampliação de cargos públicos de caráter eletivo, maior aplicação do referendo e da consulta popular em decisões políticas do Estado e a revocatória de mandatos, um instrumento que permite aos eleitores revogar, em situações previstas constitucionalmente, o mandato de agentes públicos eleitos (POLETTI, 2007).

Na Constituição da Bolívia merece destaque a criação de um quarto poder o “poder eleitoral”, que atua ao lado dos poderes executivo, legislativo e judiciário, destaca-se ainda a criação de instrumentos de ampliação do “Controle Social” sobre os poderes do Estado formado por órgãos de efetiva participação popular (VIEIRA, 2009).

De igual forma a Constituição do Equador consolida as bases para uma sociedade multicultural e plurinacional, através da inclusão dos povos indígenas e comunidades originárias ao projeto constitucional, reformulando as tradicionais categoriais legais e hermenêuticas por meio de foros de deliberação democrático e multicultural (MAGALHÃES, p.107, 2012).

O modelo de Estado apresentado pelo novo constitucionalismo latino americano, conforme se apreende dos textos constitucionais da Venezuela, Equador e Bolívia, visam estabelecer um Estado Plurinacional com ampla e efetiva participação das diversas camadas populares, com especial integração dos povos indígenas de origem andina nas decisões políticas do Estado.

O modelo de povo soberano apresentado pelo novo constitucionalismo latino americano, diversamente do conceito ideológico apresentado pelo constitucionalismo moderno, visa uma real e efetiva participação popular.

O pensamento liberal revolucionário do constitucionalismo moderno queria acabar com o antigo regime e o poder absoluto do monarca criando a ilusão homogeneizadora de povo uniforme e cidadão. O conceito de povo embora tenha servido para criar uma noção de poder constituinte e soberania popular, nasceu limitado, não era um conceito socialmente inclusivo, mas exclusivo. De maneira diversa o novo constitucionalismo latino americano apresenta um conceito sociológico de povo, integrador que inclui as populações historicamente excluídas, como as mulheres, migrantes, indígenas e pessoas de ascendência africana. No novo constitucionalismo a força popular é integradora (MARTINEZ DALMAU, 2009).

O novo constitucionalismo latino americano apresenta como fim maior a ser alcançado pelo Estado, o bem viver da população e busca construir instrumentos que possam viabilizar esse “bem viver”.

O objetivo principal de uma Constituição deve ser o “viver bem” de todos os membros que compõe o corpo social “Deve ser uma Constituição que não tenha medo de regular as principais funções do Estado: a melhor distribuição da riqueza, a busca por igualdade de oportunidades, a integração das classes marginalizadas. Em resumo, uma Constituição que busque o "Sumak kamaña" ou o "Sumak kawsay", como dizem as Constituições boliviana e equatoriana: o "viver bem" (em quéchua) da população” (VIEIRA, 2009).

Esse novo modelo de Estado apresentado nas Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia visa conceber uma democracia mais pluralista, apta a reconhecer as diversas culturas existentes em seus territórios, e em especial as culturas que auxiliaram no processo de formação do Estado, como os povos indígenas.

A nova forma de Estado também pode ser compreendido como um constitucionalismo pluralista intercultural, na medida em que visa o respeito à diversidade cultural dos povos que compõe o Estado “Parece evidente que as mudanças políticas e os novos processos sociais de luta nos Estados latino-americanos engendraram não só novas constituições que materializaram novos atores sociais, realidades plurais e práticas desafiadoras, mas, igualmente, propõem, diante da diversidade de culturas minoritárias e da força inconteste dos povos indígenas do Continente, um novo paradigma de constitucionalismo, o que poderia denominar-se Constitucionalismo Pluralista Intercultural” (WOLKMER, 2010).

O pluralismo é uma característica marcante do modelo aqui abordado, em seus diversos artigos as Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia visam reconhecer e ampliar a participação das camadas da população historicamente excluídas, em especial os indígenas andinos, que embora componham a maioria da população desses países, não participavam efetivamente das decisões políticas.

O modelo de Estado plurinacional representa um avanço em matéria de democracia participativa “Trata-se, recolhendo a evolução do constitucionalismo desde a sua aparição, no século 18, e em particular os avanços no constitucionalismo europeu depois da Segunda Guerra Mundial, de avançar em âmbitos nos quais o constitucionalismo europeu ficou paralisado: a democracia participativa, a vigência dos direitos sociais e dos demais direitos, a busca de um novo papel da sociedade no Estado e a integração das minorias até agora marginalizadas” (MARTINEZ DALMAU, 2009).

O novo constitucionalismo latino americano se mostra como uma evolução em relação ao constitucionalismo moderno de matriz europeia, na medida em que visa efetivar a soberania popular por meio de uma participação mais ampla e efetiva das diversas classes que compõe a coletividade e em especial as minorias marginalizadas.

O modelo proposto pelo novo constitucionalismo latino americano inova ao inserir em um texto constitucional um maior reconhecimento das minorias marginalizadas da população e ampliar a participação popular nas decisões políticas do Estado “A América Latina vem sofrendo um processo de transformação social e democrática importante e surpreendente. Direitos historicamente negados às populações originárias agora são conquistados. Em meio a estes variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia representativa, somando a esta uma forte democracia dialógica participativa” (MAGALHÃES, p.37, 2012).

O novo modelo de constitucionalismo aqui compreendido como as constituições da Venezuela, Equador e Bolívia propõe a efetivação de um Estado apto a superar o hiato existente entre o poder soberano do povo enquanto figura ideológica constitucional e o povo enquanto instância real de poder, capaz de efetivamente influenciar nas decisões políticas do Estado, em prol de uma sociedade mais dinâmica e plural.

Cumpre destacar ainda que o novo constitucionalismo latino americano busca superar o conceito restrito de povo, caracterizado pelo governo das maiorias ou das hegemonias dominantes que vigia no Estado Moderno, por um conceito inclusivo de povo, pautado no respeito das minorias, em especial, no caso das Américas, a minoria marginalizada formada por indígenas e negros, buscando a construção de um Estado plurinacional. “Em oposição ao constitucionalismo moderno, no qual os conceitos de povo e soberania popular contribuíram para a uniformização cultural por meio da sobreposição da cultura dominante (dita civilizada) por sobre as demais formas de organização familiar, econômica e política86, o constitucionalismo plurinacional deve se desenvolver atendendo às peculiaridades dos processos histórico-sociais de cada Estado – não existe um modelo de Estado Plurinacional, e sim, modelos de Estados Plurinacionais” (MAGALHÃES, p.108, 2012).

CONCLUSÃO

O presente artigo teve como problema analisar a configuração da soberania popular e do plurinacionalismo no modelo de Estado implementado pelo novo constitucionalismo latino americano da Venezuela, Equador e Bolívia. Para alcançar esse desiderato discorreu acerca do constitucionalismo moderno, o poder soberano do povo e o novo constitucionalismo latino americano.

O constitucionalismo moderno foi um movimento de ruptura com modelo de Estado centrado na figura do monarca, representante direto da vontade divina e detentor único do poder soberano. As constituições deixam de ser meros documentos de formalização da estrutura dos Estados e passa a ter a função de limitar o arbítrio estatal por meio da positivação dos direitos fundamentais e a criação de um sistema de repartição dos poderes.

O poder soberano do Estado deixa de pertencer ao monarca, representante direto da vontade divina, e passa a titularidade do povo, nova instância de legitimidade das ações estatais. Essa titularidade, entretanto, é meramente formal, pois as decisões políticas deixam de ser centradas exclusivamente na atuação dos monarcas, e passa para o controle dos grupos hegemônicos detentores do poder. O “povo” enquanto instância de poder, exclui as minorias dos processos decisórios.

Visando superar o modelo ideológico de povo criado pelo constitucionalismo moderno do século XIX, surge um novo movimento constitucionalista denominado Novo Constitucionalismo Latino Americano (NCLA). Esse novo paradigma se configura por propor um modelo pluralista de Estado, pautado em maior participação popular nas decisões políticas e a inclusão das minorias historicamente marginalizadas. Seu objetivo é a formação de um Estado Plurinacional integrador, com o reconhecimento e proteção da história, língua e outros aspectos culturais dos diversos povos que compõe o Estado, e em especial os povos andinos.

Pode se concluir que os novos textos Constitucionais da Venezuela, Equador e Bolívia inovam na interrelação entre governantes e governados permitindo por meio de uma série de instrumentos de democracia participativa e repartição de competências, uma maior ingerência do povo nas decisões políticas do Estado.

O modelo de plurinacional, com o respeito e reconhecimento de povos de diversas culturas, se coaduna com a diversidade e pluralidade que compõe a população desse Estados, em especial no que se refere à proteção e reconhecimento dos povos indígenas de origem andina, possibilitando uma maior integração desses povos historicamente marginalizados e permitindo-lhes um acesso mais efetivo aos direitos e garantias fundamentais positivados pelo Estado.

Essas constituições apresentam expressamente o objetivo de fundar um novo Estado, pautado em modelo mais democrático, justo e integrador que se coadune com as características históricas e culturais da américa latina e seja capaz de construir um novo constitucionalismo de matriz latino-americana e a construção de um Estado em que o poder soberano do povo deixe de ser um discurso ideológico e possa se tornar real, com a participação efetiva do povo em sua pluralidade cultural, nas decisões do Estado.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Ceila Sales de Almeida

Mestre em Direitos e garantias fundamentais – FDV; especialista em Processo Penal e Direito Constitucional UGF; Advogada; Professora de Direito Substituta da Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Uneb


Equipe Âmbito Jurídico

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