Resumo: O presente trabalha visa refletir sobre o movimento da jurisdição constitucional no atual contexto. Para isso será necessário a análise de três pontos diversos: a questão da separação de poderes e o papel exercido pelo Judiciário, na seqüência a análise de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade, finalizando a pesquisa com os conceitos de Ativismo Judicial e as reflexões sobre o Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Separação de Poderes, Jurisdição Constitucional, Ativismo Judicial.
Abstract: The target of the present article is to reflect on the movement of the constitutional jurisdiction in the current context. To do this the analysis of three diverse points will be necessary: the question of the separation of powers and the paper exerted for the Judiciary power, next the analysis of a Declaratory Action of Constitutionality, finishing the research with the concept of Judicial Activism and the reflections on the Supreme Federal Court
Keywords: Separation of powers, Constitutional Jurisdiction, Judicial Activism.
Sumário: 1 Introdução; 2 Separação de Poderes: Papel do Judiciário; 3 Ação Declaratória de Constitucionalidade; 4 Ativismo Judicial; 5 Considerações Finais; 6 Referências; 7 Anexo.
1 INTRODUÇÃO
Em tempos de neoconstitucionalismo é incumbida nova tarefa ao Poder Judiciário. Se no período do pós-revolução francesa a determinação era de que o magistrado apenas ficasse adstrito a subsumir o caso concreto à norma, com a escola da exegese dentro de uma concepção de positivismo jurídico em sua aplicação mais densa, no modelo atual, o papel exercido pelo judiciário é muito maior. Mas é preciso ter cuidado para não extrapolar seu papel, sob pena de aniquilar o sistema de separação de funções e também o Estado Democrático de Direito.
A partir da idéia de jurisdição constitucional cabe analisar o papel das instituições judiciárias, em especial, do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição da República no modelo constitucional brasileiro, com todas as suas qualidades e imperfeições, contextualizando os problemas ocorridos nas últimas duas décadas.
Conforme menciona a Constituição da República de 1988 o Supremo Tribunal Federal possui uma infinidade de matérias que podem ser por ele apreciadas, ganhando um aliado no ano de 2005, na visão de alguns estudiosos do direito, com a criação do Conselho Nacional de Justiça, com a Emenda Constitucional 45/2004.
Dessa forma, o presente trabalho tem como um de deus objetos a análise do Judiciário, com ênfase no Supremo Tribunal Federal, a partir do julgado na Ação Declaratória de Constitucionalidade ADC-MC 12/DF, que teve como celeuma a Resolução do Conselho Nacional de Justiça que vedou a prática do nepotismo nas instâncias judiciárias.
Para tanto, o trabalho será dividido em três partes. A primeira delas consistirá em verificar com base num resgate histórico o papel dos três poderes, com base nas teorias desenvolvidas à época, culminando nas tarefas a serem desenvolvidas pelo judiciário no atual contexto. Na seqüência, a casuística entrará em cena para analisar o mencionado julgado sobre a Ação Declaratória de Constitucionalidade e os votos na Medida Cautelar ocorrido em fevereiro de 2006. Finalmente, o escopo é apontar o fenômeno do Ativismo Judicial e como isso está sendo interpretado, apontando suas implicações no modelo brasileiro a partir de uma visão crítica.
2. SEPARAÇÃO DE PODERES: PAPEL DO JUDICIÁRIO
Diz-se que hoje um dos maiores impedimentos a uma real proteção aos direitos fundamentais por parte do Poder Judiciário ocorre com o formalismo jurídico, que vem desde um modelo autoritário trazendo seus efeitos, por meio de um juiz formalista, que opera a partir de uma concepção meramente lógica.[i]
Com efeito, é possível notar que o judiciário passou por uma longa evolução no que tange ao papel a ser por ele desenvolvido. Partindo-se do princípio de que o “poder constitui questão nuclear da teoria política”[ii] cabe a análise da teoria da separação de poderes.
Para realizar tão importante reflexão é necessário traçar as funções do Estado a partir da teoria da separação de poderes de MONTESQUIEU. Em que pese a sua imputação ao referido autor, ARISTÓTELES já tecia os primeiros comentários, e John LOCKE dividiu os poderes em quatro: legislativo, executivo, federativo e também “o poder de fazer o bem público sem subordinar as regras”[iii], as quais eram exercidos pelo Legislativo e Executivo.[iv]
Com efeito, MONTESQUIEU atribuiu a função de legislar ao poder correspondente, a função ao executivo, o que corresponde ao direito das gentes “paz, guerra, segurança, prevenção de invasões”, e ao poder Judiciário a resolução de conflitos.[v]
“De facto em Rousseau a lei era a expressão do voluntarismo político que resulta da volonté générale, esta era concebida como uma universalidade racional, ao mesmo tempo que a generalidade e a abstração próprias da lei por ela aprovada correspondiam às exigências de forma própria da razão iluminista. Assim, enquanto a participação igual de cada um na volonté générale resolvia o problema da igualdade, o problema da justiça encontrava-se eliminada à partida, pois, sendo cada um legislador, ninguém seria injusto para si próprio; por último, obedecendo cada um apenas a uma vontade geral e racional, ninguém estaria dependente de ninguém ou sujeito ao arbítrio de quem quer que fosse. Daí que a liberdade estivesse em obedecer às leis e não aos homens, que a democracia e a liberdade se identificassem com a exclusiva soberania da lei”.[vi]
Desta forma, com o reconhecimento do império da lei constata-se que por meio desse instrumento não se almeja o atendimento de interesses particulares, nem mesmo sua soma, mas tão-somente se busca uma solução justa. Além disso, confere-se o domínio da lei à ordem natural, e não aos homens, e, ademais, garante-se à burguesia a calculabilidade proposta por Max WEBER.[vii]
Sem embargo, MONTESQUIEU criou um mecanismo de permissão através de uma forma equilibrada e moderada uma efetiva divisão de funções a órgãos distintos e autônomos, no qual o poder fosse capaz de se controlar.[viii] Portanto, em que pese ser clássica a utilização da expressão separação de poderes, é indiscutível que o poder é uno e indivisível, entretanto, faz-se necessário que este seja exercido através de vários órgãos, contudo sem a quebra de tal circunstância[ix], conforme ROUSSEAU.
O Estado Moderno apresenta um modelo específico de organização pelo qual se finda definitivamente o a idéia de feudalismo, culminando, assim no estado absolutista.[x]
“Ora, um momento em que o racionalismo iluminista já se pronunciava; um período em que a classe burguesa já era socialmente hegemônica; em que as relações mercantis eram dificultadas em face da inexistência de uma normatividade unificada, de privilégios contestados, do arbítrio estatal e da insegurança jurídica; um período como esse oferece todas as pré-condições para a formação da base ideológica e política justificadora da eclosão das revoluções burguesas. Trata-se, neste caso, de tornar a classe hegemônica também politicamente dirigente. De que modo? Reorganizando a estrutura do poder políticos e submetendo-o a um rigoroso código de juridicidade. (…) A Constituição organizará o Estado, limitará o poder, positivará os direitos individuais reclamados pela burguesia”.[xi]
Com efeito, a separação de poderes surge como uma vitória da sociedade sobre o estado francês, limitando-o por meio de técnicas jurídicas pelo princípio da legalidade, no qual se conferia uma previsibilidade da intervenção estatal que por sua vez visava à protecção dos direitos individuais, subordinando-se, desta forma, o Poder às exigências sociais[xii], surgindo, nesse contexto, conforme assinalado por MONTESQUIEU, o “mito da separação”.[xiii]
Nesse sentido, atribuiu-se ao Estado à função de garantia de liberdade, bem como o atendimento dos direitos fundamentais de seus cidadãos, inserindo-se a repartição de funções que se caracteriza com um dos elementos fundamentais do modelo liberal[xiv], pelo qual teve alicerce toda a teoria do estado de direito, que por sua vez, era limitado pela Constituição do Estado. Nesse diapasão concebe-se um estado mínimo e juridicamente controlado.[xv]
Em época de Revolução Francesa, tendo em vista o anterior Poder Absoluto da Realeza, composto o Poder Judiciário pela nobreza, a luta travada pelos jacobinos e girondinos era a de implementar o princípio da legalidade como forma de coibir o arbítrio estatal. Antes disso, não havia limitações ao Rei, fosse de caráter formal ou propriamente substancial.
Portanto, a esperança daqueles cidadãos que lutavam contra esse poder absoluto foi atribuída ao Poder Legislativo, o qual foi elevado a guardião dos direitos fundamentais, por meio da proteção dos chamados direitos fundamentais de defesa (1ª dimensão).
Sob a ótica do modelo social a separação de poderes se manifesta de modo diverso. Assim, enquanto “redistribuidor de riquezas”[xvi] em relação aos três poderes, haverá uma ampliação do executivo. Todavia, tem-se que a separação de poderes no referido modelo carece de um estado de direito para a efetivação dos serviços a serem prestados pelo Estado.
Em tal modelo a separação de poderes é condição de garantia dos direitos fundamentais do homem[xvii], afirmando-se como um sábio “mecanismo propiciador de contenção do poder pelo poder”.[xviii]
“Historicamente é possível encontrar manifestações do princípio da divisão de poderes remontando a Aristóteles, Platão, às magistraturas de Roma ou ao do Estado estamental [xix]; porém só no processo de luta do conhecimento liberal contra o Estado absoluto é que surge e triunfa a idéia da divisão de poderes como especialização jurídico-funcional e, sobretudo, ela se legitima em função da garantia de liberdade individual”.[xx]
Como a simples previsão legal não assegurava os direitos fundamentais, era necessário que o Estado fosse além de seu poder legiferante. Nesse sentido, inaugura-se uma nova fase, de 2ª dimensão, com os direitos sociais, em que o Estado possui papel de protagonista nas relações sociais, garantindo assim, a efetivação dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, não bastava apenas a previsão formal de direitos fundamentais. De nada adiantou o legislador determinar a igualdade se no contexto prático ela não era observada. Diante dessas condições, sai do papel principal o Poder Legislativo, sendo o Executivo o promotor dos direitos fundamentais.
É possível então trabalhar nesse contexto os direitos prestacionais, em que cabe ao Administrador, juntamente com sua equipe, a execução de direitos fundamentais do homem e do cidadão.
Mas novamente o Estado falha. Diante da escassez de recursos e da alocação equivocada deles sai de cena o Poder Executivo como promotor de justiça social e de direitos fundamentais. Fala-se em teoria da reserva do possível, advinda do direito alemão que funciona como um elemento legitimador da não efetivação de todos os direitos fundamentais.[xxi] Por conseguinte confirma-se o déficit de atuação e legitimidade tanto do Poder Legislativo como do Executivo.
Nesse contexto surge o Poder Judiciário em seu momento de maior atuação, como garantidor dos direitos fundamentais, ou seja, se o cidadão não obteve determinada tutela por falta de prestação legiferante, recorre-se ao poder judiciário. Ou ainda, se existe um direito devidamente positivado, mas ele não é observado pelo Administrador sob a justificativa de falta de recursos, novamente é o judiciário que conhecerá da matéria justificando-se ser este o poder que tem a competência para revisão das leis permitindo assim uma “atuação mais criativa” dos magistrados, buscando uma postura ótima em relação aos direitos fundamentais, de forma que, com base nos limites estabelecidos pelos princípios e demais direitos fundamentais, possibilita-se a interpretação de valores substantivos, de forma que delas decorram atuações concretas por parte dos demais poderes.[xxii]
Em assim sendo, “enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito”.[xxiii]
Com a Constituição da República de 1988 nunca se viu uma amplitude tão considerável no que tange à legitimação do poder judiciário enquanto promotor dos direitos fundamentais. E nesse diapasão, é possível falar sobre os direitos fundamentais de terceira dimensão (direitos coletivos e difusos). Diante da impossibilidade de provocação do poder judiciário por todos os cidadãos, houve ampliação do rol de direitos a serem analisados pelo Poder Judiciário. Diversas ações coletivas foram inseridas no texto constitucional, com amplo controle. Como menciona Clèmerson Merlin CLÈVE “o Constituinte de 1988 acredita no Poder Judiciário”[xxiv], e com isso a discussão vem à tona sobre o papel a ser desenvolvido pelo Poder Judiciário. E isso será realizado nesse trabalho a partir da Ação Declaratória de Constitucionalidade ADC-MC 12/DF, com a análise dos votos da medida cautelar.
3. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE
Foram os Estados Unidos que contribuíram de forma peculiar para o desenvolvimento do controle jurisdicional de constitucionalidade nas democracias ocidentais com a proposição do judicial review of legislation representando uma forma colocar em xeque a supremacia do parlamento, atribuindo competência aos magistrados para tal[xxv], de forma que se cria na esfera do judiciário um “fórum de deliberação democrática em que os juízes podem ouvir os reais anseios do povo”.[xxvi]
No que tange ao controle concentrado de constitucionalidade sua, que funciona, segundo KELSEN, como um processo de revogação de lei, foi a Constituição da Áustria de 1920 em que houve a delegação de competência à Corte Constitucional para tratar de matérias ligadas à Constituição, caracterizando essa ação como especial, modelo esse adotado por tantos outros países (Tchecoslováquia – 1921; Espanha – 1391; Alemanha – 1949; Itália – 1956; Chipre – 1960, dentre outros).[xxvii]
Diante de toda a discussão mencionada a pesquisa cinge-se à análise da Ação Declaratória de Constitucionalidade ADC-MC 12/DF, na qual foi Relator o Ministro Carlos Britto, na qual foi requerente a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB ajuizada em prol da Resolução nº 7, de 18/10/2005 do Conselho Nacional de Justiça participando do julgamento os ministros.
Interessante é notar que a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Emenda Constitucional nº 03/93, emenda esta que criou a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a qual não foi conhecida por ausência de pertinência temática. Na seqüência, a mesma entidade, em razão da criação do Conselho Nacional de Justiça, pediu a declaração de inconstitucionalidade do artigo 103 da Constituição da República, por entender que a criação deste ente estaria ferindo os princípios da separação de poderes e o federativo, ação essa julgada improcedente[xxviii]. E agora, curiosamente, ingressa com Ação Declaratória de Constitucionalidade da Resolução 07/2005 do Conselho Nacional de Justiça.
Pela Medida Cautelar, julgada em 16 de fevereiro de 2006 já houve o questionamento de diversas matérias, as quais serão mencionadas na seqüência. Embora o mérito da questão tenha sido julgado em 20 de agosto de 2008, o Acórdão ainda está pendente de publicação, e, por essa razão, a análise dar-se-á tão-somente com relação aos elementos esposados na Medida Cautelar.
De qualquer forma a Ementa sobre o julgamento de mérito ficou assim redigida
“EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07, de 18/10/2005, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. MEDIDA CAUTELAR. Patente a legitimidade da Associação dos Magistrados do Brasil – AMB para propor ação declaratória de constitucionalidade. Primeiro, por se tratar de entidade de classe de âmbito nacional. Segundo, porque evidenciado o estreito vínculo objetivo entre as finalidades institucionais da proponente e o conteúdo do ato normativo por ela defendido (inciso IX do art. 103 da CF, com redação dada pela EC 45/04). Ação declaratória que não merece conhecimento quanto ao art. 3º da resolução, porquanto, em 06/12/05, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 09/05, alterando substancialmente a de nº 07/2005. A Resolução nº 07/05 do CNJ reveste-se dos atributos da generalidade (os dispositivos dela constantes veiculam normas proibitivas de ações administrativas de logo padronizadas), impessoalidade (ausência de indicação nominal ou patronímica de quem quer que seja) e abstratividade (trata-se de um modelo normativo com âmbito temporal de vigência em aberto, pois claramente vocacionado para renovar de forma contínua o liame que prende suas hipóteses de incidência aos respectivos mandamentos). A Resolução nº 07/05 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do § 4º do art. 103-B da Carta-cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. O ato normativo que se faz de objeto desta ação declaratória densifica apropriadamente os quatro citados princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de conteúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o constitucional e o infraconstitucional. Logo, o Conselho Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe conferiu a Carta de Outubro, após a Emenda 45/04. Noutro giro, os condicionamentos impostos pela Resolução em foco não atentam contra a liberdade de nomeação e exoneração dos cargos em comissão e funções de confiança (incisos II e V do art. 37). Isto porque a interpretação dos mencionados incisos não pode se desapegar dos princípios que se veiculam pelo caput do mesmo art. 37. Donde o juízo de que as restrições constantes do ato normativo do CNJ são, no rigor dos termos, as mesmas restrições já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. É dizer: o que já era constitucionalmente proibido permanece com essa tipificação, porém, agora, mais expletivamente positivado. Não se trata, então, de discriminar o Poder Judiciário perante os outros dois Poderes Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição de que o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam inteiramente libertos de peias jurídicas para prover seus cargos em comissão e funções de confiança, naquelas situações em que os respectivos ocupantes não hajam ingressado na atividade estatal por meio de concurso público. O modelo normativo em exame não é suscetível de ofender a pureza do princípio da separação dos Poderes e até mesmo do princípio federativo. Primeiro, pela consideração de que o CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois; segundo, porque ele, Poder Judiciário, tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios “estabelecidos” por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. Medida liminar deferida para, com efeito vinculante: a) emprestar interpretação conforme para incluir o termo “chefia” nos inciso II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco b) suspender, até o exame de mérito desta ADC, julgamento dos processos que tenham por objeto questionar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça; c) obstar que juízes e Tribunais venham a proferir decisões que impeçam ou afastem a aplicabilidade da mesma Resolução nº 07/2005, do CNJ e d) suspender, com eficácia ex tunc, os efeitos daquelas decisões que, já proferidas, determinaram o afastamento da sobredita aplicação.
Além disso, de toda a celeuma posta às mãos do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal foi além de simplesmente analisar a Resolução do Conselho Nacional de Justiça, editando a Súmula Vinculante de nº 13 (21 de agosto de 2008) que ficou redigida da seguinte forma: a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.[xxix]
Fala-se em preceito primário e secundário, sendo que o primeiro, ou seja, a lei é a única responsável por inovar o ordenamento jurídico. Às demais normas compete apenas a complementação da lei, da Constituição, não sendo possível a restrição de direitos por ela, segundo a doutrina clássica. A partir do raciocínio de ROUSSEAU somente a lei deve ser considerada legítima, tendo em vista que decorre da vontade geral.[xxx]
Com efeito, a discussão na Ação Declaratória de Constitucionalidade menciona a competência do Conselho Nacional de Justiça para editar normas primárias, ou seja, a previsão do art. 103 da Constituição da República, inciso IX, com redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, não sendo considerado Poder Legislativo.
Da inicial proposta pelo constitucionalista Luis Roberto BARROSO cinco foram os questionamentos principais para se propugnar pela constitucionalidade da mencionada Resolução, quais sejam: a competência constitucional do Conselho Nacional de Justiça para zelar pela observância do art. 37 da Constituição, a vedação do nepotismo enquanto mandamento constitucional que decorre dos princípios da impessoalidade e moralidade administrativas, a vinculação do Poder Público não somente à legalidade, mas à juridicidade, o fato de que a Resolução não fere o equilíbrio entre os Poderes, porque não subordina um poder a outro, e tampouco o pacto federativo, e, finalmente, de que não há óbice em relação aos direitos de terceiros contratados pela Administração ou mesmo violação aos direitos dos servidores públicos.
Confirmou o Supremo Tribunal Federal que a Resolução 07/05 do Conselho Nacional de Justiça se reveste de atributos de generalidade e abstratalidade, possuindo caráter normativo primário. Ademais, afirma-se que esta Resolução densifica quatro princípios do art. 37 da Constituição da República, impessoalidade, eficiência, igualdade e moralidade, de forma que os votos dos ministros na Medida Cautelar da Ação Declaratória de Constitucionalidade serão analisados pontualmente na seqüência.
No que tange ao voto do Ministro Carlos BRITTO, Relator da Medida Cautelar em Ação Declaratória de Constitucionalidade ADC-MC 12/DF, o mesmo sustentou que
“Por isso que imediatamente inovadora do ordenamento jurídico, sabido que a Constituição não é diploma normativo destinado a tal inovação, mas à própria fundação desse ordenamento. Já a segunda tipologia da vontade estatal-normativa, vontade tão-somente secundária, ela é assim chamada pelo fato de buscar seu fundamento de validade em norma intercalar, ou seja, vontade que adota como esteio de validade um diploma jurídico já editado, este sim, com base na Constituição. Logo, vontade que na tem aquela força de inovar o Ordenamento com identidade”.[xxxi]
Com isso, prevê que o constituinte criou a lei em sentido formal, editada por órgãos legislativos, com base na representação popular, pressupondo um Estado Democrático de Direito, a partir de um sistema republicano, com todos os atos que integram o processo-legislativo, ressalvando que ninguém será privado de algo senão em virtude de lei. Todavia, conforme menciona o Ministro a partir de uma irradiação sistêmica, admite-se contemporização dos dispositivos constitucionais, com a devida atenuação, visando ceder espaço a valores e interesses importantes e que merecem tratamento diverso.
Por isso que previu competência privativa ao Senado para dispor sobre normas referentes a operações de crédito externo e interno da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, além de suas autarquias, dentre outras competências. No mesmo passo foram introduzidas as Medidas Provisórias e também foram conferidas competências ao Judiciário para criar seus regimentos internos. Chegando nesse ponto, questiona o Ministro Carlos Ayres BRITTO se o “Conselho Nacional de Justiça foi aquinhoado com essa modalidade primária de competência? Mais exatamente: foi o Conselho Nacional de Justiça contemplado com o poder de expedir normas primárias sobre as matérias que servem de recheio fático ao inciso II do §4º do art. 103-B da Constituição?”
“Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:
4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;
V rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
VI elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa”.
Da leitura do mencionado artigo o Ministro aponta o Conselho Nacional de Justiça como órgão central de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, havendo, portanto, núcleos expressos e inexpressos, e aqui sim, ocorre a outorga de competência para dispor primariamente sobre cada um dos núcleos expressos. Numa segunda linha argumentativa menciona que a partir de uma “interpretação panorâmica ou sistemática ou imbricada que se possa fazer dos dispositivos que se integram na compostura vernacular de todo o art. 103-B da Constituição”. E superadas essas idéias passa-se à análise dos princípios de direito administrativo em que se pautou a Resolução do Conselho Nacional de Justiça.
Assim, pela Impessoalidade, há um repúdio ao personalismo, proibindo-se um marketing pessoal com os cargos com a metáfora de que “não se pode fazer cortesia com o chapéu alheio”. De outro lado, o princípio da eficiência determina a colocação de mão-de-obra qualificada na Administração Pública, sobretudo no que tange à capacitação técnica. Partindo-se do pressuposto de que o servidor é do público é preciso punir todos aqueles que não se comportam de acordo com o que se espera do Poder Público, o que dificulta quando isto decorre de relação de parentes. Finalmente, o princípio da igualdade fere os parâmetros de igualdade para capacitação profissional. Conclui o Ministro que
“O juízo de que as restrições constantes do ato normativo do CNJ são, no rigor dos termos, as mesmas restrições já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência e da igualdade, sobretudo. Quero dizer: o que já era constitucionalmente proibido permanece com essa tipificação, porém, agora, mais expletivamente positivado”.
O Ministro Eros Roberto GRAU entende não haver restrições a direito de servidores públicos e de terceiros pela resolução, primeiro porque não há que se falar em direito adquirido, em segundo lugar, porque a contratação se dá por tempo determinado. Sobre o argumento da legalidade, diferencia reserva de lei de reserva de norma, concluindo que é tempo de afastar concepções liberais do século XIX nutriam a respeito dos regulamentos.
O Ministro Joaquim BARBOSA inicia seu voto analisando que somente a lei tem a primazia de criar direitos e obrigações, mas isso foi flexibilizado desde a Emenda Constitucional 32/2001. Afirma a aplicação da Teoria dos Poderes Implícitos de Hamilton com a Emenda Constitucional 45/2004, não havendo qualquer vício formal que contamine a Resolução 07/2005 do Conselho Nacional de Justiça. Como o Poder Judiciário é uno, o CNJ é um órgão nacional, buscando as normas por ele estabelecidas dar uma efetividade aos princípios da moralidade e impessoalidade administrativa. Finalmente, socorre-se da própria moral para dar embasamento ao seu entendimento aduzindo que
“O direito não pode dissociar-se da Moral, isto é, de uma moral coletiva, pois ele reflete um conjunto de crenças e valores profundamente arraigados, que emanam da autoridade soberana, ou seja, do povo. Quando, em determinada sociedade, há sinais de dissociação entre esses valores comunitários e certos padrões de conduta de alguns segmentos do aparelho estatal, tem-se grave sintoma de anomalia, a requerer a intervenção da justiça constitucional como força intermediadora e corretiva”.
O Ministro Cezar PELLUSO começa sua analisando afirmando que o Conselho Nacional de Justiça tem o poder jurídico de explicitar o alcance do princípio na matéria, aplicando os preceitos do art. 37 da Constituição da República, criando-se explicitamente de expedir atos regulamentares. Na seqüência faz remição ao art. 38 de uma Lei de 1828 que apresentou um primeiro momento de vedação ao nepotismo, ainda que de forma tímida. Com isso, adentra o Ministro na questão da impessoalidade, recorrendo-se das lições de Caio TÁCITO e Fábio Konder COMPARATO, afirmando que a impessoalidade apresenta duas dimensões
“diz respeito à titularidade em si e ao exercício do poder discricionário, jungido ao interesse público e ao bem comum. Seus traços substanciais estão exatamente nesses dois alcances: primeiro, coibir o exercício do poder voltado a favorecer ou a prejudicar pessoas, e, depois, impedir o personalismo no exercício desse poder mediante atos de promoção pessoal, que a mesma Constituição proíbe de maneira peremptória”.
A restrição de direitos fundamentais, conforme determina a Magna Carta deve ocorrer por meio de lei. Quanto à restrição de direitos fundamentais a Constituição da República assegura que os cargos públicos são acessíveis aos brasileiros e aos estrangeiros residentes em território brasileiro. E por isso questiona-se se uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça ou mesmo uma Súmula Vinculante seriam instrumentos aptos a ensejar a vedação, eis que em termos normativos não há uma lei que vede o acesso de parentes aos cargos comissionados.
O Ministro Gilmar Ferreira MENDES faz sua análise a partir de tópicos: preliminares, existência de controvérsia constitucional relevante; competência do Conselho Nacional de Justiça; Separação de Poderes e ato Administrativo – limites do Ato administrativo que concretiza a Constituição, nepotismo e conceito de parentesco utilizado pela Resolução nº 07/05; Princípio Federativo; Efeitos da Cautelar em ADC.
Sobre o mérito cabe assinalar que foram apontadas como questões a Resolução trata-se de um ato administrativo, e que deveria estar submetido à lei, conforme García de ENTERRÍA. Com a competência atribuída ao Conselho Nacional de Justiça, de forma de
“se cabe ao CNJ zelar pelo cumprimento dos princípios de moralidade e de impessoalidade, é de sua competência fiscalizar os atos administrativos do Poder Judiciário que violem tais princípios. E não há dúvida de que os atos que impliquem a prática de nepotismo ofendem diretamente os princípios da moralidade e da impessoalidade. A indeterminação semântica dos princípios da moralidade e da impessoalidade não pode ser um obstáculo à determinação da regra da proibição de nepotismo”.
Assim, para o Ministro, concordando com o exposto na Petição Inicial “a Resolução limitou-se a explicitar, de modo declarativo, o que já resultava da normatividade da Constituição”. Ademais, argumenta que a Resolução não afronta o princípio federativo, conforme já decidido na ADI 3367, na qual ficou decidido que o Conselho Nacional de Justiça “não anula o pacto federativo, mas o reafirma”, manifestando-se pelo deferimento da Cautelar.
A Ministra Ellen GRACIE acabou resgatando um pouco do que já fora trabalhado pelos outros ministros, também deferindo o pedido.
O Ministro Marco Aurélio aduz que não possui o Conselho Nacional de Justiça poder normativo, não encontrando base constitucional para normatizar de forma abstrata, substituindo-se ao Congresso, lembrando inclusive que a Ação Declaratória de Constitucionalidade é uma ação de mão dupla, mas limitou-se a indeferir a medida acauteladora.
Por sua vez, o Ministro Celso de MELLO inicia seu voto aduzindo que o Conselho Nacional de Justiça dispõe de competência constitucional para formular a Resolução, traduzindo-se como emanação direta do que prescreve o próprio texto constitucional, e para isso socorre-se de valores morais, como se vê:
“A prática do nepotismo, tal como corretamente repelida pela Resolução CNJ 07/05, traduz a própria antítese da pauta de valores cujo substrato constitucional repousa no postulado da moralidade administrativa, que não tolera – porque incompatível com o espírito republicano e com a essência da ordem democrática – o exercício do poder “pro domo sua””.
Sustenta não vislumbrar desrespeito ao postulado da separação de poderes e ao princípio federativo. Ao confirmar a Resolução do CNJ aquela Corte confirma a força normativa da Constituição, a partir da indiscutível supremacia formal e material de que estão revestidas as normas constitucionais, construindo, assim, um significado mais amplo em torno do conceito de Constituição.
Por isso conclui que o Conselho Nacional de Justiça
“definiu de modo compatível com o sistema constitucional normas destinadas a obstar a formação de grupos familiares cuja atuação, facilitada pelas nomeações em comissão ou designações para funções de confiança, acaba, virtualmente, por patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão de postulados republicados, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum,mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações particulares”.
Finaliza seu voto afirmando que “quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República”. Assim, o nepotismo desrespeita os postulados da República, da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa além de ser ilegítimo.
O Ministro Sepúlveda PERTENCE aduz que a questão mais delicada diz respeito aos provimentos anteriores à proibição. Conforme ele sustenta “nem aí há a admitir-se, sobretudo cuidando-se de cargos de investidura precária, a existência de direito adquirido à sua permanência. Ao contrário, em princípio a vedação de nomeação de determinadas pessoas implica – em princípio, repito – a vedação de continuidade de ocupar o cargo respectivo”.
Além disso, vislumbra ofensa à isonomia que surge a propósito de normas antinepotismo, mas a impessoalidade de deve estar resguardada, finalizando seu voto, afirmando que “não há conceito constitucional de parentesco ou de extensão do parentesco. Por isso, a uma norma infraconstitucional válida é dado atribuir, para determinados efeitos, conceitos diversos daquele insculpido no Código Civil).
Superada a análise dos votos, cabe fazer algumas ponderações sobre os questionamentos levantados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ninguém contesta que o nepotismo deve ser coibido no sistema brasileiro, mas a discussão perpassa pelo modo de operacionalização disso. Enfim, uma Resolução realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, cujo Presidente desse ente é o próprio Ministro Gilmar MENDES, juntamente com outros membros componentes do Poder Judiciário ser posteriormente ter sua constitucionalidade revisada por seus colegas é, no mínimo, um pouco temerário.
De qualquer forma, o que se tem é que a “vida brasileira de judicializou de ponta a ponta”[xxxii] e com isso toda a discussão sobre o ativismo judicial e sobre a jurisdição constitucional. Nesse sentido Marcelo Andrade Cattoni de OLIVEIRA menciona que
“O tema jurisdição constitucional torna-se muito importante num país como o Brasil, com recorrentes momentos de inércia e déficit de integração social, que são tradicionalmente percebidos e interpretados, por teorias jurídicas especializadas em questões normativas, como contrastes ou hiatos entre um Direito Constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e econômicas recalcitantes, um ideal a ser buscado e uma crua realidade”.[xxxiii]
Fala-se no contexto atual sobre o papel criativo do juiz e por isso a análise sobre o ativismo judicial que será feita na seqüência, em que se tenta ao menos refletir qual o status democrático possui o magistrado e quais são, ou deveriam ser, suas limitações em questões tão importantes quanto essa mencionada na Ação Declaratória de Constitucionalidade.
4 ATIVISMO JUDICIAL
Em tempos de democracia tensões se apresentam em discussões sobre limitação de poder e constitucionalismo. Com o mencionado texto constitucional, da leitura de seu primeiro artigo dois são os princípios basilares que merecem ser observados: soberania e Estado de Direito (que assegura a juridicização do poder e a observância aos direitos fundamentais. [xxxiv]
A partir dos tempos modernos a história passa a ser vista com base nas Constituições. Nesse contexto “na era que se proclama a morte das utopias, pode-se dizer que a utopia constitucionalista subsiste de pé”[xxxv] Assim sendo, com esse fenômeno do constitucionalismo é possível vislumbrar a apropriação de fenômenos políticos pelo direito com sua conseqüente juridicização.[xxxvi]
É notório verificar a tensão existente entre organização democrática da sociedade e a função de revisão das normas feita pelo poder judiciário[xxxvii] com as decisões “invasoras de subsistemas”[xxxviii].
A história traz ciclos em que o poder é repassado a diferentes entes. Nesse contexto, é possível perceber ao longo dos três últimos séculos uma transferência de responsabilidades aos três poderes tendo como marco histórico o final do século XVIII, pois não era possível vislumbrar nos modelos anteriores teorias que almejassem a limitação do poder.
Desses valores “o papel do constitucionalismo é o de harmonizar esses ideais até um “ponto ótimo” de equilíbrio institucional e o desenvolvimento da sociedade política, sendo tal ponto a medida do sucesso de uma Constituição.”[xxxix] Com toda essa proposta de consolidação do aspecto material da Constituição acaba por se recepcionar no sistema jurídico exigências da moral na forma de direitos fundamentais de forma que “o direito adquiriu uma forte carga axiológica, assumindo fundamental importância a materialidade da Constituição”.[xl]
Complementando essa análise sobre o crescimento da jurisdição constitucional em relação aos atos do próprio poder público, se antes a controvérsia se resumia às questões privadas, hoje se tem o Estado como o maior usuário do Poder Judiciário, seja pela criação de novos mecanismos de provocação dele, incluindo-se aqui o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, seja por ações requerendo-se do poder público a efetivação de direitos fundamentais, sejam eles de primeira, segunda ou terceira dimensão. Assim sendo, o judiciário sofreu processo de ascensão política e institucional.
O Supremo Tribunal Federal enquanto protetor da Constituição tem o dever da sua guarda, mas inclusive ele está adstrito ao texto constitucional, sob pena de cometer inconstitucionalidades. Aqui cabe incitar o papel da hermenêutica como verdadeira aliada nos processos de interpretação dos textos constitucionais e dos demais instrumentos normativos.
Nos séculos anteriores a técnica de interpretação era operada a partir da filosofia da consciência o que foi alterado para a filosofia da linguagem. Nesse sentido, segundo Lenio Luiz STRECK
“A reviravolta lingüística vai se concretizar como uma nova concepção da constituição do sentido. Esse sentido não pode mais ser pensado como algo que uma consciência produz para si independentemente de um processo de comunicação, mas deve ser compreendido como algo que nós, enquanto participantes de uma práxis real e de comunidades lingüísticas, sempre comunicamos reciprocamente, assinala D. Böhler, citado por Araujo, que acrescenta essa virada rumo à explicação de um caráter prático, intersubjetivo e histórico da linguagem humana tem forte sustentação em Wittgenstein, cuja posição é próxima da nova hermenêutica de matriz heideggeriana. Tanto em Wittgenstein como em Heidegger, a linguagem é o dado último enquanto é uma ação fática, prática. Precisamente enquanto práxis interativa, ela não pode ser explicada como produto de um sujeito solitário, como ação social, mediação necessária no processo intersubjetivo de compreensão”.[xli]
Com toda essa transformação da própria linguagem cabe uma adequação das próprias instituições, e aqui, ressalte-se, do Judiciário.
Observa-se um crescimento das demandas perante o Poder Judiciário nas últimas décadas que com a Constituição da República de 1988 veio auxiliado da proposta da aplicabilidade imediata de direitos e garantias fundamentais, Ação de Inconstitucionalidade por Ação e Omissão, Mandando de Injunção, Mandado de Segurança Coletivo, Ação Civil Pública e Ação Popular como mecanismos de assegurar políticas públicas, ampliação da legitimação para propositura sobre o controle de constitucionalidade das leis.[xlii]
Enfim, inúmeros são os questionamentos apontados pela doutrina, mas fato é que não existe Estado Democrático de Direito sem Justiça Constitucional – que o viabiliza – embora o papel a ser desempenhado pelas constituições seja o mesmo.[xliii]
Com a proposta de “força normativa da Constituição”[xliv], caracterizando-se o texto como dirigente e compromissório[xlv] exige-se do magistrado um papel pró-ativo, não bastando a simples aplicação da lei seca, mas lhe é demandado o conceito de justicialidade constitucional, ou seja, de fazer cumprir os direitos fundamentais propostos no texto constitucional, afirmando Lenio Luiz STRECK ter havido uma revolução copernicana no sentido de que, se antes as normas constitucionais dependiam de leis que lhe trouxessem aplicabilidade, afirma-se hoje uma justiça constitucional autônoma e legitimada.[xlvi]
Certo é que a soberania do parlamento deu lugar à soberania da Constituição, sendo os direitos fundamentais os curingas que permitem essa atuação criativa dos magistrados. Mas o problema aparece justamente nos seus limites? Sabe-se que a Constituição é o meio e o fim pelo qual se legitima esse tipo de interpretação, mas quais são seus limites? Essa decisão se torna defasada com o tempo? É possível revisá-la? Quais membros/órgãos do Poder Judiciário podem exercer essa tarefa (qualquer magistrado, o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça)? Para que serve o próprio direito nesse contexto?
De qualquer forma, a partir do que menciona Lenio Luiz STECK
“enquanto existencial, o Estado Democrático de Direito fundamenta, antecipadamente (efeito hermenêutico), a legitimidade de um órgão estatal que tem a função de resguardar os fundamentos (direitos sociais-fundamentais e democracia) desse modelo de Estado de Direito. O caráter existencial do Estado Democrático de Direito passa a ser, nessa espiral hermenêutica, a condição de possibilidade do agir legítimo de uma instância encarregada até mesmo – no limite – de viabilizar políticas públicas decorrentes de inconstitucionalidades por omissão, constituindo-se em remédio (às vezes amargo, mas necessário) contra a atuação das maiorias”.[xlvii]
Conforme se vê, diante da inércia do Poder Legislativo e Executivo, o Judiciário vem aos poucos regulamentando matéria que deveria ser analisada pelos demais, provocando a judicialização das diferentes matérias. E não são poucas. A Reforma da Previdência foi ponderada pelo Supremo quando por Emenda Constitucional que analisou a constitucionalidade sobre a contribuição dos inativos na Previdência Social. O mesmo ocorreu com a Reforma do Judiciário e a criação do Conselho Nacional de Justiça. A Reforma Política aos poucos vem sendo ponderada também pelo Supremo Tribunal Federal com a verticalização, a fidelidade partidária, a cláusula de barreira. Ainda é de se considerar a análise sobre os direitos fundamentais, perpassando pela pesquisa com células-tronco, a liberdade de expressão com o caso Elwanger, a possibilidade de aborto de anencefálicos, a união homoafetiva. E mais, tarifa de transporte, planos de saúde, mensalidade de telefonia básica, dentre outros.[xlviii]
Assume nesse diapasão a jurisdição constitucional as funções do legislador, de forma concorrente, ou no mínimo subsidiária com uma “ordem concreta de valores” com o desenvolvimento de convicções axiológicas majoritárias. Afirma-se que a jurisdição constitucional deveria corrigir ou até mesmo antecipar-se ao Legislativo.[xlix]
A partir do caso mencionado é possível questionar até que ponto pode o Supremo Tribunal Federal e as instâncias judiciárias como um todo sendo os verdadeiros responsáveis em determinar se uma norma é válida ou não. Como é possível conceber em uma democracia esse tipo de decisão em que a maioria das pessoas é derrubada por uma decisão judicial? Um pequeno grupo de onze pessoas, embora extremamente cultas e com conhecimentos jurídicos notórios, que sequer são eleitos diretamente pela cidadania e tampouco estão sujeitos a avaliações periódicas populares.[l]
Dois conceitos podem ser analisados o de legitimidade da jurisdição constitucional e legitimidade no exercício dessa jurisdição. Tem-se que o primeiro deles é bem aceito pela sociedade, ocorrendo as discussões com o segundo. Assim a primeira matéria é de ordem
“institucional, estática, a segunda, axiológica e dinâmica; aquela inculca adequação e defesa da ordem constitucional, esta oscila entre o Direito e a política. À verdade, tribunal ou órgão de Estado, consagrado à fiscalização de constitucionalidade que não congregue requisitos indeclináveis ao desempenho de tal função ou não preencha os fins aí implícitos, terá sua legitimidade arranhada e contestada ou comprometida, como ora acontece em determinados sistemas judiciais dos países da periferia. Neles o influxo das interferências executivas sobre o Judiciário se fazem sentir com mais força e intensidade, descaracterizando, não raro, a natureza do controle, transvertido em instrumento ou veículo de interesses infestos à causa da justiça e da democracia, e sempre orientados no sentido do fortalecimento e hipertrofia, já do poder do Estado, já do arbítrio dos governantes. Assim acontece com as “ditaduras constitucionais” de algumas repúblicas latino-americanas, das quais o exemplo mais atual, frisante e ilustrativo é o Brasil na presente conjunção. Por onde se infere que neste país, o Poder Executivo busca fazer o controle de constitucionalidade se exercitar cada vez mais no interesse do grupo governante e cada vez menos no interesse da ordem constitucional propriamente dita, de que é guarda o Poder Judiciário”. [li]
Nesse sentido, denomina-se doutrina da self-restraint ou autocontenção judicial aqueles receosos com o papel, bem como as funções da jurisdição constitucional, por temer essa técnica da judicial review uma verdadeira afronta à vontade geral.[lii] De qualquer forma “não obstante, a própria história do judicial review demonstra que a doutrina do judicial self-restraint não se solidificou, posto a história demonstrar uma verdadeira expansão dos poderes do Judiciário, inclusive em matérias de políticas públicas e sociais”.[liii]
A questão cinge-se a delimitar se questões políticas poderiam ser resolvidas juridicamente e qual a legitimidade dessas decisões. De qualquer forma, a jurisdição constitucional não se limita a simples processos constitucionais[liv] a daí a discussão entre substancialistas e procedimentalistas.
Assim, o ativismo judicial é criticado pelos procedimentalistas, corrente essa capitaneada por autores como HABERMAS, GARAPON, ELY em contraposição à substancialista proposta por CAPELLETTI, ACKERMAN, L. H. TRIBE, M. J. PERRY, H. H. WELLINGTON juntamente com os brasileiros Paulo BONAVIDES, Celso Antonio Bandeira de MELLO, Eros Roberto GRAU, Fábio Konder COMPARATO.[lv]
Enfim, HABERMAS “critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo direito”. Por esse paradigma pretende-se ultrapassar a distinção entre política e direito por meio da teoria do discurso. Embora seja aceitável o reconhecimento que a legislação exerce uma determinada tarefa política “vê no Judiciário o centro do sistema jurídico, mediante a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação através da qual se revela ao máximo o postulado de Ronald DWORKIN da exigência de imparcialidade não só do Executivo, mas, sobretudo, do juiz, na aplicação e definição cotidiana do Direito”. [lvi] Para o autor “o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do direito”. [lvii]
Como contraponto os substancialistas afirmam que o procedimento somente se concretiza se se pressupõe uma teoria de direitos e valores substantativos. Nesse sentido, mais do que equilibrar as relações entre os poderes ou harmonizá-los, o judiciário deve exercer efetivamente o papel de intérprete, ainda que contramajoritariamente, praticando, dessa forma, a jurisdição constitucional. [lviii]
HABERMAS não pressupôs em sua análise o Estado Democrático de Direito, que ultrapassa os modelos anteriores (Liberal, Social) atribuindo-se ao direito um papel de transformação, conferindo-se legitimidade para tanto, com novo pacto também. A Constituição impõe tarefas a serem observadas pelo Estado, com uma nova pactuação. [lix]
Enfim, de uma leitura mais acurada, não caberia ao magistrado determinar o que é melhor ao país, ou mesmo aos cidadãos, tampouco valorar se a lei é prudente ou justa, mas sim se ela é constitucional.[lx]
Na Ação Declaratória de Constitucionalidade recorreu-se a princípios gerais do direito, princípios do direito administrativo, à moral, mas isso pode ter tanto uma finalidade positiva à sociedade como não tão positiva. Assim, com a legitimação dessas práticas corre-se o risco de cair no arbítrio de onze juízes que acabam decidindo conforme os valores que entendem convenientes.
Por isso começa a haver o questionamento do próprio poder judiciário enquanto órgão legítimo para resolver questões de tanta relevância sem a possibilidade de elaboração de lei. Nesse contexto é evidente que chegará o momento que também o Judiciário falhará nessa tarefa de efetivação de direitos fundamentais, retornando o ciclo, ou criando-se uma nova estrutura de poderes. De qualquer forma, cabe agora analisar o momento atual de ampliação de poderes do Judiciário.
De que qualquer forma é evidente que o que está em voga é a discussão não do papel do Judiciário, do Legislativo ou Executivo, mas sim da execução da Constituição, do Estado Democrático de Direito e a realização dos direitos fundamentais, sendo que a harmonia entre os poderes e a realização de cada qual o seu papel acabam por instrumentalizar o que fora anteriormente mencionado. Sendo assim “quanto mais se rompa com a retórica do “constitucionalismo simbólico” e com as tradições de exclusão advindas de um passado que ainda se faz presente, tanto mais o próprio sistema político deverá, ainda que a longo prazo, passar a se compreender a ser compreendido em termos constitucionais.”[lxi]
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Judiciário passa por uma fase de transição, em que se questiona sua legitimidade para determinar tão importantes questões.
No Estado Moderno criou-se o princípio da separação de funções, o que determinou a divisão das diferentes tarefas entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Viu-se que no período pós-revolução francesa a confiança foi depositada no Poder Legislativo. Não por outro motivo o princípio da legalidade tornou-se tão importante naquele momento histórico produzindo seus efeitos até os dias atuais. Como a tentativa era de inibir a atividade criativa do juiz, ele deveria ficar adstrito à lei, e suas decisões sê-lo-iam da mesma forma. No mesmo diapasão a Administração Pública estaria submissa à lei.
Mas não bastava apenas prever os mandamentos, era necessário cumpri-los, sendo criadas formas de instrumentalização com o agigantamento do Poder Executivo. Com isso, além de serem atribuídas mais tarefas ao mencionado poder, o que só era possível com uma maior arrecadação, o Estado interferiu nas relações privadas nesse contexto (a exemplo das regulamentações no direito trabalhista). Tratou-se, pois, de um Estado Social, com a promoção de direitos fundamentais, sendo o Executivo o principal responsável nesta época por isso.
Todavia, anuncia-se a falência do Estado (por alguns chamada de falaciosa), com a redução do Executivo, a chegada de auxiliares da iniciativa privada (desburocratização, privatização, dentre outros institutos podem ser mencionados aqui). Assim, como o Legislativo não conseguia dar conta da efetivação dos direitos fundamentais e tampouco o Executivo, vem o Judiciário com verdadeiro “superpoderes” para proteger os cidadãos.
É evidente que existe um déficit de democracia nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Ao se verificar a mencionada Ação Declaratória de Constitucionalidade ADC-MC 12/DF, viu-se que a moralidade, enquanto fundamento das decisões, esteve presente em muitos dos votos quando do julgamento da Medida Cautelar. A questão cinge-se em analisar quais valores que perfazem a moralidade em tempos de sociedades plurais, ficando difícil determinar valores comuns a todos, e por isso, tornando árdua a tarefa de se embasar juridicamente decisões a partir de aspectos morais.
Enfim, do caso em apreço pode-se dizer que o STF não se limitou apenas a julgar a constitucionalidade daquele dispositivo (Resolução do Conselho Nacional de Justiça), mas foi ainda mais audacioso e acabou por sumular a matéria ele mesmo atuando como legislador na omissão do poder legiferante.
É verdade que aparece o Supremo Tribunal Federal como o verdadeiro depositário de todas as frustrações, mas conforme já mencionado no decorrer do trabalho é importante ter extrema cautela, a fim de que daqui a algum tempo o povo brasileiro não fique submisso a uma ditadura do judiciário. Por conseguinte, embora essa atuação do Supremo Tribunal Federal deva ser vista com “bons olhos”, também deve ser encarada com “os dois pés atrás”.
Informações Sobre o Autor
Carolina de Freitas Paladino
Graduada em Direito pela Unibrasil em 2006, Pós-graduada pela Academia Brasileira de Direito Constitucional em 2006, Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar, Mestranda em Direito Constitucional pela Unibrasil (2008-2010), Professora de Direito Constitucional e Administrativo em Curitiba na Fapar, Servidora do Tribunal de Justiça do Paraná