Atribuições institucionais do Banco Central: o problema das solicitações de perícia

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Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar a viabilidade jurídica do atendimento de solicitações de perícia dirigidas ao Banco Central do Brasil, emanadas do Poder Judiciário, à luz das normas que disciplinam as atribuições e o funcionamento daquela autarquia e o rol de atribuições funcionais dos seus servidores.

Palavras-chave: Banco Central. Atribuições legais. Perícia. Poder Judiciário. Inviabilidade.

Sumário: Introdução. 1. Viabilidade jurídica da realização de perícias. Conclusão.

Introdução

Tenciona o presente artigo aquilatar a viabilidade jurídica e a obrigatoriedade de o Banco Central do Brasil – e, de resto, as entidades públicas congêneres – atenderem a solicitações de perícia por parte do Poder Judiciário, à luz das normas processuais penais e civis que compõem o ordenamento jurídico pátrio, do rol de atribuições institucionais da autoridade monetária e, por fim, dos encargos funcionais legalmente atribuídos aos servidores da referida autarquia.

Serão objeto de análise, assim, as circunstâncias em que o Banco Central do Brasil deve atendimento às solicitações emanadas no Poder Judiciário, e as situações em que tais solicitações extrapolam os limites do mero pedido de documentos ou informações – passando a constituir verdadeira perícia –, fazendo ausente a obrigatoriedade de seu atendimento.

1 Viabilidade jurídica da realização de perícias

Sabe-se que, no exercício da função jurisdicional – que é seu mister institucional – deve o Poder Judiciário lançar mão de todos os mecanismos que estejam ao seu alcance para o deslinde da questão posta à sua apreciação.

Para isso, conta com a necessária interveniência das partes, que, na defesa dos seus interesses, postulam ao órgão jurisdicional as providências processuais e a produção das provas que lhes sejam mais convenientes e que, naturalmente, levem o julgador à conclusão que lhes seja mais favorável.

Com efeito, “O processo, na visão do ideal, objetiva fazer a reconstrução histórica dos fatos ocorridos para que se possa extrair as respectivas conseqüências em face daquilo que ficar demonstrado. O convencimento do julgador é o anseio das partes que litigam em juízo, que procurarão fazê-lo por intermédio do manancial probatório carreado aos autos. (…). A demonstração da verdade dos fatos é feita por intermédio da utilização probatória, e a prova é tudo aquilo que contribui para a formação do convencimento do magistrado, demonstrando os fatos, atos, ou até mesmo o próprio direito discutido no litígio. Intrínseco no conceito está a sua finalidade, o objetivo, que é a obtenção do convencimento daquele que vai julgar, decidindo a sorte do réu, condenando ou absolvendo” (TÁVORA, ALENCAR, 2011, p. 357-358).

Demais disso, não se olvida o fato de que o julgador também tem a faculdade de determinar a produção de provas de ofício, mormente no processo penal, em que a busca da verdade real tem direta e imediata ligação com o status libertatis do indivíduo, e é precisamente esta a face mais sensível da relação processual penal.

Nessa senda, afirmam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar que, “no curso do processo, poderá o magistrado determinar a produção probatória de ofício, para dirimir eventual dúvida acerca de ponto relevante” (TÁVORA, ALENCAR, 2011, p. 379), muito embora manifestando a preocupação de que a atuação jurisdicional, em matéria de iniciativa de prova, seja feita com ponderação e razoabilidade, “para que uma suposta busca incondicional da verdade não dispa o magistrado dos valores inerentes ao mister jurisdicional” (TÁVORA, ALENCAR, 2011, p. 379).

Deve ficar assentado, assim, que não é apenas uma faculdade do julgador, mas mesmo um dever seu, buscar as provas necessárias à escorreita análise das questões debatidas em juízo, e é mister admitir, igualmente, que o magistrado deve ater-se às regras que disciplinam sua atuação probatória, bem assim, nas hipóteses em que pretende a colaboração de entidades ou órgãos públicos, às normas que delimitam as atribuições institucionais destes e de seus servidores, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, de indevida ingerência na intimidade da administração pública e, por conseguinte, de incidir em flagrante lesão ao princípio da separação dos poderes.

É nesse cenário que se inserem as solicitações que, vez por outra, o Poder Judiciário faz ao Banco Central do Brasil, requerendo aos servidores de sua área técnica que procedam à análise de farta e complexa documentação, à realização de inspeções e fiscalizações in loco, à produção de relatórios e laudos periciais, enfim, que efetuem toda ordem de atividades que desbordam a mera prestação de informações e apresentação de documentos.

Cabe aqui, nesse passo, uma distinção fundamental.

Todas e quaisquer entidades ou órgãos públicos têm o dever de colaborar com o Poder Judiciário no exercício da sua função institucional. Aliás, esse dever não é imposto apenas ao Estado e suas entidades, mas também aos particulares. Eis porque é dirigido a todos os cidadãos o dever de testemunhar, de forma veraz, a respeito de fatos que tenham presenciado ou de que tenham conhecimento – sob pena, inclusive, de praticar crime de desobediência (art. 330 do CP) ou de falso testemunho (art. 342 do CP) –, ou mesmo de apresentar documentos que interessem ao deslinde da causa em trâmite perante órgão jurisdicional (arts. 362 do CPC e 234 do CPP).

Nesse sentido, afirmam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart que “é dever da parte trazer a prova para o Judiciário, quando assim solicitada, ainda que esta venha em seu prejuízo”, ressalvando apenas os casos em que “a exibição da prova pela parte (ou o seu depoimento) possa acarretar-lhe risco de sofrer ação penal” (grifo no original) (MARINONI, ARENHART, 2008, p. 332).

Do mesmo modo, as entidades públicas devem atender às solicitações de informações e documentos realizadas por órgão jurisdicional, pois a elas é também imposto o dever de colaborar com a atividade judiciária (art. 399 do CPC).

Acresça-se a isto o fato de que, sendo tais entidades gestoras da coisa pública, devem prestar satisfação à sociedade a respeito das atividades que exerçam, permitindo a fiscalização por parte desta e dos órgãos de controle.

Assim, mesmo diante de pedidos de informações de cidadãos, deve a Administração Pública prestar os esclarecimentos devidos, em respeito ao quanto disposto no art. 5º, XXXIV, “a”, da Carta da República. Este dever, aliás, ficou ainda mais evidente e ganhou nova coloração com a entrada em vigor da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que disciplinou o acesso dos cidadãos às informações referentes às atividades estatais.

Dessa forma, se é dado a qualquer cidadão solicitar informações de toda ordem à Administração Pública, não seria lícito a esta última negar tais informações ao Poder Judiciário, no regular exercício de suas atribuições institucionais.

Diferente, todavia, é a situação em que o Poder Judiciário solicita não simples informações ou documentos que possui o órgão da Administração, mas sim uma complexa e extensa atividade de fiscalização, avaliação, análise e exames diversos, inclusive com respostas a quesitos apresentados pelas partes, além da produção de relatórios ou laudos a respeito de situação debatida nos autos do processo judicial.

Em casos tais, como é claro a todas as luzes, é requerido um facere à equipe técnica da entidade pública – in casu, o Banco Central do Brasil –, ou seja, um trabalho acurado de análise de documentos, culminando com uma conclusão técnica, a ser fornecida ao solicitante, com respostas aos quesitos apresentados.

Cuida-se, assim, de verdadeira perícia.

Não se trata de mera remessa de documentos ou informações de posse da autoridade monetária, mesmo porque, frequentemente, o Banco Central nem mesmo dispõe, quando lhe são dirigidas tais solicitações, daquilo que a autoridade judiciária deseja; para o atendimento da solicitação, o material encaminhado necessita ser periciado pela equipe técnica da entidade, para posterior elaboração de laudo e resposta aos quesitos apresentados.

Em situações como estas, aquilo que o magistrado deseja do Banco Central ostenta, assim, como acima dito, todos os contornos de uma atividade pericial e, se assim é, forçoso reconhecer a necessidade de seguir o regular trâmite para a realização de perícias.

Assim é que, em sendo o caso de exame que envolva matéria para a qual o Estado disponha de órgão oficial de perícia – leia-se: órgão cujas atribuições, legalmente previstas, incluam a realização de atividade pericial –, devem ser-lhe solicitadas as pertinentes análises técnicas – é o que ocorre nos exames de corpo de delito realizados por peritos dos institutos de criminalística das polícias civis, ou então pelo corpo de peritos da Polícia Federal.

Nos exemplos citados, ressalte-se, o órgão oficial de perícia integra a estrutura da própria polícia judiciária, que, por definição, deve prestar apoio ao juízo no cumprimento de suas decisões e no que mais lhe interessar.

Nesse sentido, Eugênio Pacelli afirma que “Normalmente, o próprio Poder Público tem em seus quadros de carreira os peritos judiciais, responsáveis pela realização das perícias solicitadas pela jurisdição penal. São os chamados peritos oficiais”. Em sequência, fazendo referência ao art. 159, §1º, do CPP, o ilustre autor afirma que “Na hipótese de ausência de perito oficial na comarca ou no juízo, o exame será realizado por duas pessoas idôneas, necessariamente portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área específica” (PACELLI, 2012, p. 418).  

Caso diverso ocorre quando não há, relativamente à matéria tratada nos autos de processo judicial – e a respeito da qual se deseja o trabalho do expert –, órgão institucionalmente incumbido da realização de perícias, sendo mister, neste caso, a nomeação de perito pelo juiz, inclusive com pagamento de honorários, para prestar auxílio ao juízo na área técnica em que especializado.

O Banco Central, como é consabido, não é órgão oficial de perícia. Com efeito, não consta do rol de atribuições desta Autarquia, definido na Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, a realização de exame pericial para auxiliar órgão jurisdicional.

Linha de raciocínio semelhante é adotada no âmbito da Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil, que entende exatamente que, quando a solicitação do Poder Judiciário envolve exame técnico especializado, está-se a demandar, em verdade, uma perícia, não estando tal atividade inserida no plexo de atribuições da autoridade monetária, sendo, portanto, interditado o seu atendimento.

Nota-se, dessa forma, que a própria lei que define as atribuições do Banco Central – Lei nº 4.595, de 1964 – não prevê a realização de perícias por parte deste. Assim sendo, não se mostra possível ao Poder Judiciário requisitar-lhe tais providências, sob pena de malferir os princípios da legalidade e da separação dos poderes.

Com efeito, a lei é que define a conformação geral da estrutura orgânica da Administração Pública e, também em linhas gerais, sua competência administrativa.

Afirma Dirley da Cunha Júnior que “Como decorrência da indisponibilidade do interesse público, a atividade administrativa só pode ser exercida em conformidade absoluta com a lei” (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 933). Destarte, se a própria lei não cometeu à Administração determinada atribuição, não se mostra possível ao Judiciário fazê-lo.

Doutra banda, como é absolutamente impossível ao legislador definir minudentemente toda a estrutura da Administração, prevendo todas as situações com que poderia lidar o administrador público, é também permitido – e mesmo necessário – que ela própria, a Administração, no exercício de atribuição normativa, promova o detalhamento das previsões legais a respeito de sua competência administrativa, de forma a melhor atender ao interesse público.

Assim, cabe às próprias entidades administrativas estabelecer normas mais específicas de funcionamento de seus órgãos e de regulação das atribuições de seus agentes, pois o legislador não teria como acompanhar as mudanças vertiginosas ocorridas na sociedade, com as quais o administrador público tem diariamente que lidar.

Entretanto, se, por um lado, é correto afirmar que à própria Administração é dado disciplinar, de forma mais detalhada, suas atribuições e de seus agentes – respeitando, sempre e sempre, os limites traçados na lei –, não é lícito ao Poder Judiciário interferir em tal atividade, fazendo indevida ingerência na vida intestina da Administração, podendo mesmo causar, em certos casos, embaraços ao exercício da atividade administrativa.

Assim é que o cometimento de atividades específicas aos servidores da Administração Pública só se admite se a determinação provier de órgão integrante de sua estrutura, com atribuição legal para a adoção de tal medida e com ascendência hierárquica que lhe permita expedir ordens aos servidores de determinado órgão ou entidade, e, ainda assim, se compatível com as atribuições funcionais previstas na lei de criação do cargo.

A propósito, a Lei nº 9.650, de 27 de maio de 1998, que dispõe sobre o plano de carreira dos servidores do Banco Central do Brasil, não prevê, como incumbência funcional destes, a realização de perícia.

Ademais, sempre que um magistrado pretende que servidores do Banco Central desenvolvam atividades que exorbitem das atribuições institucionais da entidade, tal postura tem aptidão para impor sérios prejuízos a esta, pois os agentes públicos, em caso de atendimento ao pleito, deixam suas atribuições ordinárias para atender ao que requerido pelo Judiciário, em franco prejuízo às atividades rotineiras da autarquia.

É importante destacar que as atividades do Banco Central estão vinculadas a parcela importante da vida econômica nacional, e são planejadas de acordo com critérios que atendam ao melhor interesse público.

Assim, por exemplo, as rotinas de fiscalização in loco empreendidas por seus departamentos são estabelecidas de forma a otimizar os recursos materiais e humanos disponíveis e, em especial, buscando fazer com que os agentes econômicos respeitem a legislação de regência de suas atividades, evitando o cometimento de ilícitos e a causação de prejuízo de grande monta à economia nacional.

Há efetivo planejamento, não sendo arbitrária ou aleatória tal atividade. As fiscalizações são efetivadas, por exemplo, nas instituições em que se suspeita tenha havido fraudes ou ilicitudes quaisquer, de forma a evitar prejuízos aos demais agentes econômicos e, em última análise, a toda a coletividade.

Conclusão

Conclui-se, destarte, que, ante a absoluta ausência de previsão normativa, não se pode impor ao Banco Central do Brasil a realização de perícias de interesse do Poder Judiciário, sem embargo do dever que tem esta autarquia – e, de resto, as demais entidades públicas – de colaborar com o referido Poder e de apresentar-lhe os documentos e informações de que dispuser.

Noutros termos, se o pedido tratar de mera prestação de informações ou de remessa de documentos que a Administração Pública possua, esta última está vinculada ao atendimento da solicitação do juízo. Todavia, caso se cuide de perícia, há que se defender a impossibilidade de atendimento do pleito, se o órgão ao qual foi dirigido não tiver, como incumbência institucional, a realização de exames periciais, ou se não houver previsão legal, em relação aos cargos que o compõem, de realização de tais atividades.

Note-se, ainda, que reiterados pedidos de realização de perícias decerto levariam os servidores da Administração Pública a interromper suas atividades ordinárias para lhes prestar atendimento, em franco prejuízo das questões habituais com as quais têm que lidar diariamente.

Assim, para ter esclarecimentos técnicos a respeito de matéria submetida à sua apreciação, podem os juízes e tribunais socorrer-se da polícia judiciária, que possui setor especializado em perícias, ou mesmo nomear perito para auxiliar o juízo, obedecendo aos regulares trâmites processuais, mas jamais impondo a sua realização a órgão da Administração que não tenha tal incumbência.

 

Referências
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2011.
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2012.
TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Jus Podivm, 2011.

Informações Sobre o Autor

Luiz Eduardo Galvão Machado Cardoso

Procurador do Banco Central do Brasil. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia


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