Críticas à aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça do instituto do dano presumido ao Erário em dispensa indevida de licitação

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Camila Ramos Celestino Silva – Especialista em Direito Público pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE em parceria com pelo Ius Getium Conimbrigae – Faculdade de Direito de Coimbra, Pós-graduanda em Direito Processual pela PUC Minas, Bacharel em Direito pela UFMG.

 

RESUMO: O tema a ser desenvolvido trata-se da figura do dano in re ipsa no ato de improbidade administrativa decorrente de afastamento indevido de licitação, ao qual é imputado o dever de ressarcimento aos cofres públicos, ainda que não comprovado o efetivo prejuízo pecuniário ao erário. Esse debate ganha importância devida a atual e recente divergência levantada no Superior Tribunal de Justiça, quanto ao caráter presumido ou não do dano ao erário no caso de dispensa indevida de licitação. Esse novo posicionamento traz consigo dentre outras consequências, a concreta insegurança jurídica aos jurisdicionados, pois marca a incerteza do dever ou não de ressarcir, ainda que não se tenha um dano comprovado.

No desenvolvimento, far-se-á uma excursão pelo instituto da improbidade administrativa, notadamente, pelas hipóteses de afastamento indevido de licitação, o atual entendimento da doutrina e dos Tribunais Superiores sobre o tema.  Ao final, será feita uma proposta de compreensão da questão, promovendo uma interpretação adequada do instituto legal, cujo resultado alcance o equilíbrio dos interesses envolvidos, quais sejam: a tutela da moralidade administrativa e limite da responsabilização dos agentes que incorrem na conduta ora discutida.

PALAVRAS CHAVES: improbidade administrativa, dispensa de licitação, dano ao erário, ressarcimento.

 

ABSTRACT: The subject to be developed deals with the figure of damage in re ipsa in the act of administrative improbity arising from improper removal from public bidding, which is imputed the duty to reimburse the public coffers, even though the actual pecuniary damage to the Treasury has not been proven. This debate gains importance due to the current and recent divergence raised in the Superior Court of Justice, as to the presumed or not of the damage to the treasury in the case of undue dispensation of bidding. This new position brings, among other consequences, concrete legal uncertainty to the courts, as it marks the uncertainty of duty or not to reimburse, even if there is no proven damage. In the development, an excursion will be made by the institute of administrative improbity, notably by the hypotheses of improper removal from public bidding, the current understanding of the doctrine and the Superior Courts on the subject. In the end, a proposal will be made to understand the issue, promoting a proper interpretation of the legal institute, whose result reaches the equilibrium of the interests involved, such as: guardianship of administrative morality and limitation of accountability of agents who incur in the conduct discussed herein.

KEYWORDS: administrative improbity, damage to the treasure, reimburse.

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Elementos constitutivos dos atos de Improbidade Administrativa prevista na Lei 8.429/1992. 2. Atos de Improbidade que causam prejuízo ao erário. 3. Afastamento Indevido De Licitação: (in)dispensabilidade da comprovação do Dano. 3.1. Licitação: Conceito, Fundamentos, Inexigibilidade e Dispensa. 3.2. Afastamento indevido de licitação e natureza do dano ao erário. 4. Críticas à aplicação do instituto do dano presumido ao erário, em dispensa indevida de licitação face a nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Conclusão. Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal 1988 foi responsável por dar um novo contorno a temática da moralidade administrativa, vez que a consagrou como o princípio constitucional regente das atividades de toda Administração Pública, de modo a prever, em seu Art. 37, §4º, que atos de improbidade administrativa seriam punidos com a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo a ação penal cabível.

Em outras palavras, o texto constitucional que cuidou tão somente de prever as consequências jurídicas, mas não descreveu condutas tidas como ímprobas, de modo que delegou ao legislador infraconstitucional essa missão, nesse sentido, transcreve-se o § 4º do Art. 37 da CF/88:

  • 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

A fim de regulamentar a disposição constitucional do supramencionado artigo, foi promulgada a Lei 8.429/92, apresentando os ditos atos de improbidade administrativa, os sujeitos ativos e passivos desses atos, as sanções, assim como os procedimentos administrativos e judiciais cabível.

A Lei 8.429/92 não trouxe expressamente um conceito específico para ato de improbidade administrativa, por outro lado, apresentou e distinguiu as espécies de atos de improbidade em três categorias distintas, a partir das consequências causadas à Administração Pública, sendo eles: atos de improbidade de importam enriquecimento ilícito, os que causam prejuízos ao erário e os que atentam contra os princípios da Administração Pública.

Ante a ausência de um conceito legal expresso do ato de improbidade administrativa, a doutrina debruçou-se a fim de formular um conceito que refletisse o sentido das normas que buscavam classificar e punir esses atos classificados como ímprobos. Para tanto se parte da noção de improbidade administrativa como uma resultante da interseção da legalidade e da moralidade. Isso importa dizer que a caracterização do ato ímprobo corresponde à subsunção a um ilícito tipificado, mas também que se caracteriza por uma repercussão negativa no campo da moral administrativa. Nas palavras de José Afonso da Silva a probidade administrativa:

“(…) é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial na Constituição, que pune o improbo com a suspensão do direito político (art. 37,§4º). A probidade administrativa consiste no dever de o “funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades dela decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”. O desrespeito esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao improbo ou a outrem. (SILVA, 2014, p. 668-669)”

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro existe dificuldade em estabelecer distinção entre a moralidade administrativa e a probidade administrativa, pois

“A rigor, pode-se dizer que são expressões que se relacionam com a ideia de honestidade na Administração Pública. Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com a observância da lei; é preciso também a observância dos princípios éticos, de lealdade, de boa-fé, de regras que assegure a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública. (DI PIETRO, 2004, p. 695)”

Ante essas elucidações, poder-se-ia dizer que o ato improbo é aquele que não somente o agente público está proibido de fazer, assim como, enquanto agente público não deveria fazer à luz da boa-fé, da ética e da honestidade, isto é, não se resume a um ato ilícito que lesa o erário, mas também à moralidade administrativa.  Com efeito, traça-se a discussão do presente trabalho, vez que ciente que os atos ímprobos não somente atingem a esfera pecuniária do patrimônio público, mas também a esfera intangível da moralidade, discute-se se é possível presumir e imputar o dever de ressarcimento ao erário, mesmo que não demonstrado ou metrificado determinado dano quando nas hipóteses de afastamento indevido de licitação.

 

  1. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DOS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A Constituição da República de 1988 concedeu à moralidade administrativa significativo peso, tornando-a, inclusive, princípio constitucional expresso no caput do Art. 37. A exigência de uma atuação moral relaciona-se com o dever de probidade, ética e honestidade da Administração Pública. O texto constitucional cuidou de prever que atos de improbidade administrativa seriam punidos com a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo a ação penal cabível.

Logo, embora não exclua a possibilidade de persecução penal, em razão da natureza das medidas sancionadoras, a Constituição acaba por caracterizar o ato ímprobo como um ilícito de natureza civil e política “porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário” (DI PIETRO, 2004, p. 703). Portanto, embora possa coincidir com crime tipificado, a conduta considerada ímproba responde na esfera administrativa, civil e política de forma autônoma e independente, cabendo a aplicação das sanções “na forma e gradação previstas em lei”.

A Lei 8.429/92 justamente, cumpriu o papel estipulado no texto de constitucional de prever a forma e gradação das sanções. Em outras palavras o referido diploma objetivou, sobretudo, trazer contornos concretos e regulamentares às disposições do Art. 37, §4ª da Constituição da República. Para tanto delimitou sujeitos e classificou os atos de improbidade administrativa em três espécies: (i) atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); (ii) atos de improbidade que causam prejuízo ao erário (art. 10º); (iii) atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).

Em 2016, a Lei Complementar nº 157 acresceu o Art. 10-A ao referido diploma, trazendo uma nova espécie de ato de improbidade administrativa, qual seja: “ação ou omissão para conceder aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõe o caput e o §1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003”. O disposto somente ganhou vigência a partir de 30 de dezembro de 2017, por força do que dispõe o art. 6º c/c art. 7º, §1º da LC 157/2016.

No tocante a conduta típica genérica descrita nos caput dos artigos, tem-se que os atos de improbidade que provocam enriquecimento ilícito, previstos no Art. 9º da Lei 8.249/1992, remetem-se a aferição de qualquer vantagem patrimonial indevidamente em favor de determinado indivíduo quando na constância de função, cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º da LIA (AMORIM, p.75/76). Por essa razão, Marcelo Figueiredo (2004, p.85) acredita que:

“o art. 9º, caput, apresenta-se como sendo a norma central, o verdadeiro coração da Lei de Improbidade. Isso porque os atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito, sem dúvida alguma, afiguram-se como um dos mais graves tipos que a lei encerra em seu conteúdo. É dizer: os agentes públicos ou terceiros que verdadeiramente infrinjam tais normas serão os típicos ímprobos da Administração Pública, seus corruptos, ou corruptores.” (FIGUEIREDO, 2004, p.85)

Pela leitura do Art. 9º tem-se que o pressuposto central para a configuração desse ilícito é o recebimento de vantagem patrimonial indevida, no exercício da função pública, independentemente, se houve ou não o dano ao erário (AMORIM, 2014, p.77).

Em geral, tem-se que o enriquecimento ilícito é o resultado de qualquer ação ou omissão que possibilite ao agente auferir vantagem não prevista em lei, cujo conceito, doutrinariamente amplo, abrange prestações, positivas ou negativas, diretas ou indiretas, recebidas pelo agente público (GARCIA, 2006, p.251).

A conduta típica dos atos de improbidade que provocam dano ao erário, prevista no Art. 10 da Lei 8.249/1992, remetem-se às ações ou omissões que “causam lesão ao erário em razão de perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das acima mencionadas” (MOREIRA, 2014, p.682).

Os atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública, por sua vez, alocados no Art. 11 da Lei 8.249/1992, tem como conduta típica “ação ou omissão que viole deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealda às instituições” (MOREIRA, 2014, p.682)

No tocante aos sujeitos ativos, diz a LIA que pratica ato de improbidade administrativa o agente público ou terceiro que induza ou concorra para a prática de ato ou sele se beneficie sob qualquer forma, direta ou indireta. Nesse sentido, dispõem os artigos 1º e 3º:

Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.

“Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.”

O sujeito passivo encontra-se, também, disposto no Art. 1º, a saber, administração direita, indireta ou fundacional de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Territórios, assim como das empresas púbicas ou entidades cuja criação ou manutenção ocorra através do erário.

Relativamente ao elemento subjetivo, tem-se que o Art. 10 consigna expressamente que atos que causam lesão ao erário serão punidos, em quaisquer ações dolosas e/ou culposas. Contudo, nos Artigos 9º e 11 não se faz menção ao elemento subjetivo.

Diante disso, tanto a doutrina como a jurisprudência convergiram no sentido que para as condutas previstas nos artigos 9º e 11 é necessária a aferição do elemento subjetivo intencional, do dolo na prática do ilícito.

Em suma, portanto, pode-se sintetizar os elementos constitutivos dos atos ímprobos em: a ocorrência de um ato ilícito praticado contra a administração pública que importe enriquecimento ilícito, que cause prejuízo ao erário ou que atente contra os princípios da administração pública, praticado por agente público ou terceiro privado que concorra na conduta, induza ou se beneficie do ato, mediante dolo, à exceção dos que causam prejuízo ao erário, no qual é exigido ao menos culpa.

 

  1. ATOS DE IMPROBIDADE QUE CAUSAM PREJUÍZO AO ERÁRIO

Em sequência, o Art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa tipifica os atos que causam prejuízo ao erário, conceituando-os como ação ou omissão, dolosa ou culposa, que acarreta perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres da Administração Pública e demais entidades mencionadas no art. 1.º da Lei de Improbidade Administrativa, nos seguintes termos:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1.º desta lei, e notadamente:

I – facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1.º desta lei;

II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1.º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

III – doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistenciais, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1.º desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie;

IV – permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1.º desta lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado;

V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado;

VI – realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea;

VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente;

IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento;

X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;

XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;

XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente;

XIII – permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1.º desta lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.

XIV – celebrar contrato ou outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar as formalidades previstas na lei;

XV – celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei.

Segundo Daniel Alves Amorim “o pressuposto central para tipificação do ato de improbidade, no caso, é a ocorrência de lesão ao erário, sendo irrelevante o eventual enriquecimento ilícito do agente público ou do terceiro.” (AMORIM, ANO, p. 82) Em outras palavras, o ato ímprobo tipificado no Art. 10 refere-se a reprimenda legal às condutas que tragam efetivo prejuízo ao erário público. Além da ocorrência da lesão ao erário, o ato de improbidade tipificado no art. 10 da LIA exige a comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa) do agente e o nexo de causalidade entre sua ação/omissão e o respectivo dano ao erário, vez que a própria redação do artigo aponta a presença de “dolo ou culpa” como qualificador da conduta, seja ela comissiva ou omissiva.

Doutrinariamente, há diferenciação entre “erário” e “patrimônio” público, sendo que esse primeiro se reporta aos recursos financeiros provenientes dos cofres da Administração Pública direta e indireta, assim como aqueles destinados pelo Estado às demais entidades mencionadas no art. 1.º da LIA (AMORIM, 2014, p.83). Ao passo que o vocábulo “patrimônio público” possui conotação mais ampla e compreende não apenas os bens e interesses econômicos, mas também aqueles com conteúdo não econômico (AMORIM, 2014, p.83).

Nesse sentido, DI PIETRO classifica que o termo “patrimônio público” em seu sentido restrito refere-se ao patrimônio econômico, o que se aproximaria da classificação de erário, ao passo que patrimônio público em seu sentido amplo reportaria ao art. 1.º, § 1.º, da Lei 4.717/1965 (Lei da Ação Popular) considera patrimônio público “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (2004, p.712). Acompanha o conceito de patrimônio público no sentido amplo, Fernando Rodrigues Martins nos seguintes termos:

“Conjunto de bens, dinheiro, valores e direitos pertencentes aos entes públicos (União, estado, Distrito Federal e Município) através da administração direta ou indireta e fundacional, cuja observação seja de interesse publico ou difuso, estando não só os administradores, como também os administrados, vinculados à sua proteção e defesa.” (MARTINS, 200, p17)

Para Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior o erário público “conjunto de órgãos administrativos encarregados da movimentação econômico-financeira do Estado (arrecadação de tributos, pagamentos, aplicação de verbas etc.)” (1996, p. 176).

À luz dos autores colacionados e, especialmente, em remissão à Lei de Ação Popular, patrimônio público abarca o sentido dos bens materiais e imateriais da Administração Pública, o que inclui valores e princípios, desse modo o conceito de erário estaria contido no de patrimônio público, na esfera econômica. Portanto, poder-se-ia afirmar que a tipificação do Art.10 refere-se a dano à esfera pecuniária do patrimônio público, razão pela qual elencam-se hipóteses trariam prejuízo econômico ao patrimônio público. Em síntese, o ato ímprobo capitulado no referido artigo é aquele proveniente de conduta ilícita da qual decorre lesão ao patrimônio econômico do Estado.

 

  1. AFASTAMENTO INDEVIDO DE LICITAÇÃO: (IN)DISPENSABILIDADE DA COMPROVAÇÃO DO DANO

Conforme anteriormente elencado, no Art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa encontram-se elencadas as condutas que causam prejuízo ao erário, sendo que dentre elas está alocado o afastamento indevido de licitação, in verbis:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente

As sanções previstas no diploma legal para as condutas descritas no Art. 10 encontram-se alocadas no Art. 12, II, in verbis:

Art. 12.  Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:

II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

Nota-se que a primeira sanção elencada é justamente o do ressarcimento integral do dano, isso corroboraria o esposado anteriormente, que o pressuposto do tipo é justamente a lesão ao erário, afinal, o próprio sentido do termo “ressarcimento” é de reparação, compensação, indenização. Logo, para se ressarcir é preciso se aferir e quantificar a extensão do referimento dano.

Contudo, vem se travando debate doutrinário e, mais recentemente, jurisprudencial, acerca da natureza do respectivo dano, sob o argumento de que uma vez elencadas condutas presumidamente lesivas ao erário, dispensa-se a comprovação do efetivo dano, haja vista que esse também se torna presumido, especialmente, no tocante a conduta de afastamento indevido de licitação. Para se adentrar nesse debate é necessário, inicialmente, recuperar conceitos e noções acerca do próprio instituto.

 

3.1. LICITAÇÃO: CONCEITO, FUNDAMENTOS, INEXIGIBILIDADE E DISPENSA

Primeiramente, em relação ao conceito de licitação, não restam grandes debates, segundo CARVALHO FILHO (2014, p. 238) trata-se do

“(…) procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico.”

No mesmo sentido, DI PIETRO (2004, p.299) assenta que se trata de

“(…) procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitam às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato.”

Hely Lopes Meirelles traz, também, conceituação amplamente difundida “licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse” (LOPES, 1999, p.23)

No tocante aos fundamentos legais, a Constituição Federal de 1988 referiu-se expressamente à licitação, de modo a estabelecer além de competência privativa da União para legislar sobre as normas gerais, o princípio da obrigatoriedade da licitação, salvo em situações autorizadas pela legislação. Em outras palavras, segundo o Art. 37, XXI da CF/88, não pode a Administração abdicar do certame licitatório antes da celebração de seus contratos, salvo em situações excepcionais definidas em lei. Com efeito, impera na Administração Pública brasileira a presumida obrigatoriedade do procedimento licitatório.

Segundo CARVALHO FILHO (2014, p. 243/244), essa obrigatoriedade encontra fundamento nos princípios da Moralidade Administrativa e na Igualdade de oportunidades, nesse sentido asseverou:

“Quando foi concebido o procedimento de licitação, assentou-se o legislador em determinados fundamentos inspiradores. E um deles foi, sem dúvida, a moralidade administrativa.

Erigida atualmente à categoria de princípio constitucional pelo art. 3 7, caput, da

CF, a moralidade administrativa deve guiar toda a conduta dos administradores. A estes incumbe agir com lealdade e boa-fé no trato com os particulares, procedendo com sinceridade e descartando qualquer conduta astuciosa ou eivada de malícia.23

A licitação veio prevenir eventuais condutas de improbidade por parte do administrador, algumas vezes curvados a acenos ilegítimos por parte de particulares, outras levados por sua própria deslealdade para com a Administração e a coletividade que

representa. Daí a vedação que se lhe impõe, de optar por determinado particular. Seu dever é o de realizar o procedimento para que o contrato seja firmado com aquele que apresentar a melhor proposta. Nesse ponto, a moralidade administrativa se toca com o próprio princípio da impessoalidade, também insculpido no art. 3 7, caput, da Constituição, porque, quando o administrador não favorece este ou aquele interessado, está, ipso facto, dispensando tratamento impessoal a todos.

(…)

O outro fundamento da licitação foi a necessidade de proporcionar igualdade

de oportunidades a todos quantos se interessam em contratar com a Administração, fornecendo seus serviços e bens (o que é mais comum), ou àqueles que desejam apresentar projetos de natureza técnica, científica ou artística.

A se permitir a livre escolha de determinados fornecedores pelo administrador,

estariam alijados todos os demais, o que seria de se lamentar, tendo em vista que, em numerosas ocasiões, poderiam eles apresentar à Administração melhores condições de contratação.

Cumpre, assim, permitir a competitividade entre os interessados, essencial ao

próprio instituto da licitação. Como é evidente, esse fundamento se agrega à noção que envolve os princípios da igualdade e da impessoalidade, de obrigatória observância por todos aqueles que integrem os quadros da Administração.”

Portanto, a instituição do procedimento de licitação no Estado brasileiro tem por objetivo a proteção dos princípios basilares da Administração Pública: moralidade administrativa, a impessoalidade e igualdade.

Além disso, resta também homenageado o princípio da indisponibilidade do interesse público, vez que o objetivo, à luz do conceito trazido pelo professor Hely Lopes Meirelles, tem-se que a licitação garante, ou ao menos objetiva, alcançar, justamente, a melhor opção ante as diversas ofertas, de sorte a atender da melhor forma e ao menor custo o interesse da Administração Pública e, não, a interesses e conveniências privadas, razão pela qual a licitação é a regra geral é trazida na CF/88 como regra geral.

Embora regra geral, há situações que a lei exonerou o gestor público do princípio da obrigatoriedade da licitação, o que, para Paulo Magalhães da Costa Coelho (2004, p. 191) “como exceções ao princípio da licitação, a dispensa e a inexigibilidade só podem ser admitidas em circunstâncias especialíssimas, lógicas e razoáveis, não podendo nem mesmo o legislador criar hipóteses arbitrária, à vista do comando”. Isso ocorre, pois há situações em que não poderá ou não haverá licitação previamente às celebrações de contratos, as quais se dividem em dois grupos: situações de inexigibilidade e situações de dispensa de licitação (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p.700).

A inexigibilidade da licitação trata-se de hipótese em que a licitação é juridicamente impraticável, pois a própria concorrência ser impossível. Segundo Hely Lopes Meirelles a impossibilidade jurídica de competição decorre da natureza específica do negócio ou dos objetivos visados pela Administração, não sendo possível ou cabível a pretensão de “melhor proposta”. Cumpre destacar que a inviabilidade da licitação nesse caso decorre da impossibilidade competitiva, justamente, porque a licitação deriva da noção de competição, concorrência entre particulares para a melhor oferta a ser escolhida pelo Poder Público. Logo, se não é possível competir, não como para licitar.

Ao seu turno, a dispensa de licitação é aquela em que “embora exista viabilidade jurídica de competição, a lei autoriza a celebração direta do contrato ou mesmo determina a não realização do procedimento licitatório” (ALEXANDRINO; PAULO, 2015, p. 704). Em síntese à diferença entre inexigibilidade e dispensa de licitação, DI PIETRO (2004,p.31) aduz que

“A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação, de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável.”

Dessa maneira, não se exige a licitação quando ela for inviável pela carência de sua característica primordial: a concorrência, ou quando a lei optou, pelas suas razões, dispensá-las ou facultar sua dispensa. A regulamentação normativa geral encontra-se na Lei 8.666/1993, complementada pela Lei 10.520/2002, que inaugurou modalidade licitatória chamada pregão. Ambos os diplomas possuem caráter nacional e são de observância obrigatória.

Na Lei 8.666/1993 encontra-se as hipóteses de inexigibilidade de licitação e dispensa. A primeira aloca-se no Art. 25, cuja exegese é justamente a inviabilidade concorrencial, em razão da singularidade do objeto, do fornecedor ou do serviço a ser contratado, nesse sentido apresenta em três incisos rol exemplificativo:

Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

I – para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;

II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

Em relação a dispensa de licitação, essa está topografa no extenso rol taxativo de hipóteses dos artigos 17, incisos I e II e 24, sendo que DI PIETRO (2004, p.312) aloca em quatro grandes grupos:

“As hipóteses de dispensa poder ser divididas em quatro categorias:

  1. Em razão do pequeno valor;
  2. Em razão de situações excepcionais;
  3. Em razão do objeto;
  4. Em razão da pessoa (cf. Lúcia Valle Figueiredo, 1980:32)”

Destaca-se, ainda, que a doutrina diferencia que as situações do Art.17 tratam-se de hipóteses de licitações dispensadas, isto é, a dispensa do procedimento licitatório não é facultada e sim determinada pela lei, escapando, assim à discricionariedade do administrador (DI PIETRO, 2004, p. 311). Em suma, a licitação é procedimento administrativo, via de regra, obrigatório à Administração Pública para a contratação com particulares, imperando sobre ele o pressuposto da concorrência em igualdade de condições, a fim de se alcançar a melhor oferta que atenderá ao interesse público. Não obstante o princípio da obrigatoriedade, a legislação reservou algumas hipóteses em que a licitação não seria viável, haja vista que prejudicado o pressuposto concorrencial ou ainda dispensável ou dispensada, em razão do valor, objeto, excepcionalidade ou da pessoa.

Logo, o afastamento legal de licitação deve estar alocado às hipóteses de impossibilidade concorrência ou dispensa legal, sob pena de ser considerado indevido, o que, aprioristicamente, frustraria a proteção do interesse público, impessoalidade e moralidade administrativa, afinal, o sistema jurídico brasileiro elegeu a licitação como o meio precípuo para a seleção da melhor oferta a ser contratada com a Administração Pública.

 

3.2. AFASTAMENTO INDEVIDO DE LICITAÇÃO E NATUREZA DO DANO AO ERÁRIO

Conforme elucidado, o procedimento licitatório, geralmente é obrigatório, pois se trata de instrumento protetor e realizador do interesse público, afinal, através de uma sequência de atos e critérios, legalmente previstos, seleciona-se a melhor oferta à demanda estipulada pelo Poder Público.

Em vista da obrigatoriedade presumida da licitação, do rol taxativo de dispensa de licitação e da natureza da inexigibilidade, bem como ter seu primordial objetivo a contratação da melhor oferta, a Lei de Improbidade Administrativa, conforme já apontada, elenca no Art. 10, inciso VIII, como ato de improbidade que causa prejuízo ao erário, o afastamento indevido de licitação, de modo a estipular no Art. 12, inciso II as seguintes sanções:

Art. 12.  Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).

II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

Sobre as sanções estipuladas, passa-se a debater, nesse trabalho, a de ressarcimento do dano ao erário. Atualmente trava-se debate, doutrinário e, especialmente, jurisprudencial, acerca da imposição das sanções de reparação ao erário em caso de afastamento indevido de licitação, sob ótica se o dano a ser ressarcido é presumido, isto é, in re ipsa, ou carece de efetiva comprovação e dimensionamento.

Historicamente, o Superior Tribunal de Justiça, em sua Primeira e Segunda Turma, confirmava o posicionamento de que a sanção de ressarcimento integral do dano dependia da efetiva comprovação, não podendo ser presumido, nesse sentido pode-se citar alguns exemplos de julgados, a saber, Recurso Especial nº 1447237/MG, acórdão publicado em 09/03/2015, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Recurso Especial nº1.228.306/PB, acórdão publicado em 09/10/2012, de relatoria do Ministro Castro Meira, Recurso Especial nº805.080/SP, acórdão publicado em 06/08/2009, de relatoria da Ministra Denise Arruda e Recurso Especial 621.415/MG, acórdão publicado em 30/05/2006, de relatoria da Ministra Eliana Calmon. Dos julgados citados, cumpre fazer destaque para passagens do Voto do Min. Relator Napoleão Nunes Maia Filho, no julgamento do Recurso Especial nº 1.447.237:

“21. Pondera-se, neste caso, que é possível cogitar de eventual ofensa à moralidade administrativa – conforme destacado pelo Acórdão do Tribunal de origem; a violação à boa-fé e aos valores éticos esperados nas práticas administrativas, contudo, não configura elemento suficiente para ensejar uma presunção de lesão ao patrimônio público, conforme sustenta o Tribunal a quo; e assim é porque a responsabilidade dos agentes em face de conduta praticada em detrimento do Estado exige a comprovação e a quantificação do dano, nos termos do art. 14 da Lei 4.717/65.

  1. Neste ponto, por oportuno, ressalta-se não ser preciso ir muito além da própria Teoria Geral da Responsabilidade Civil, que impõe como pressuposto para a condenação ressarcitória o comportamento antijurídico, sendo o dano seu pressuposto etiológico.
  2. A reparação do mal causado imprescinde, portanto, da comprovação do prejuízo, como bem salienta o Professor CAIO MÁRIO DA SILVAPEREIRA:

De tal sorte o dano está entrosado com a responsabilidade civil, que Aguiar Dias considera verdadeiro truísmo sustentar que não pode haver responsabilidade sem a existência de dano, porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, “logicamente não pode concretizar-se onde nada há que reparar” (Responsabilidade Civil de Acordo com a Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 39).”

E, ainda, do Voto-Vista do Min. Castro Meira no julgamento do REsp 621.415:

“A Primeira Seção, no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial n.º 260.821/SP, por maioria de votos, vencido o Ministro Luiz Fux, apreciou caso semelhante, tendo concluído ser necessária a prova da lesão para que o agente público seja condenado a ressarcir o erário. Na oportunidade, acompanhando o entendimento do Ministro João Otávio de Noronha, teci as seguintes considerações:

(…) O pedido condenatório, entretanto, demanda a comprovação do prejuízo, ainda que imaterial, experimentado pelo Poder Público. Se o autor da demanda pretende condenar o réu a ressarcir o erário, deverá fazer prova concreta da lesão. Como se sabe, o pressuposto da indenização é o desfalque patrimonial causado por ação ou omissão dolosa ou culposa (…).”

A leitura dos julgados citados e passagens de alguns dos votos demonstram que o entendimento dominante na Corte Superior de Justiça, naquele momento, exigia além da ilegalidade do ato, lesividade efetiva ao patrimônio como imprescindíveis para a sanção de ressarcimento ao erário.

Contudo, recentemente, o STJ inaugurou novo entendimento de que o dano ao erário em casos de afastamento indevido de licitação é presumido. Essa discussão acerca do dano in re ipsa em matéria de improbidade administrativa teve como uma de suas primeiras manifestações a apreciação do AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC, rel. min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 18/10/2016, no qual se destaca a seguinte passagem: “A fraude à licitação tem como consequência o chamado dano in re ipsa, reconhecido em julgados que bem se amoldam à espécie”.

O aresto citado inaugurou ciclo de reprodução em cadeia no repertório do STJ de que o dano ao erário se presume em caso de dispensa indevida de licitação, aplicando-se assim as sanções de ressarcimento integral do dano, nesse sentido destacam-se os julgados Recurso Especial nº 1499706/SP, acórdão publicado em 14/03/2017, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, Recurso Especial nº 1581426/PB, acórdão publicado em 12/03/2018, de Relatoria do Ministro Francisco Falcão, AgInt nos EDcl no Recurso Especial nº 1750581 / SP, acórdão publicado em 21/05/2019, de Relatoria do Ministro Og Fernandes.

Em análise dos julgados citados acima, destaca-se a compreensão que o fundamento para a condenação à presunção do dano ao erário vem da concepção de que frustrado o processo licitatório, a Administração Pública deixa de contratar a melhor oferta possível, surgindo assim, presumidamente o dano ao erário, nesse sentido destaca-se trecho do voto do Ministro OG Fernandes: “(…) a jurisprudência do STJ que se firmou no sentido de que o prejuízo decorrente da dispensa indevida de licitação é presumido (dano in re ipsa), consubstanciado na impossibilidade da contratação pela administração da melhor proposta”.

Portanto, nota-se que, até meados de 2016, o Superior Tribunal de Justiça havia pacificado entendimento acerca da natureza do dano ao erário em casos de improbidade administrativa por afastamento indevido de licitação, qual seja dano real, isto é, imprescindível comprovar a efetiva lesividade ao patrimônio econômico-financeiro do Estado. Contudo, essa pacificação restou superada pela inauguração de nova compreensão de que o dano é presumido em caso de dispensa indevida de licitação, pois frustrado o procedimento licitatório, tem-se que, presumidamente, a Administração Pública deixou de contratar a melhor oferta, logo, lhe causou prejuízo a ser ressarcido, nos moldes do Art. 12, II da LIA.

Não obstante o novo posicionamento ter sido inserido no repertório das decisões mais recentes do STJ, a divergência permanece, restando, assim em aberto o debate, vez que a natureza do dano em caso de afastamento indevido de licitação não é um consenso na doutrina ou jurisprudência, de modo que o presente trabalho apresentar reflexões críticas ao novo posicionamento que vem sendo reproduzido nas decisões mais recentes do Superior Tribunal de Justiça.

 

  1. CRÍTICAS À APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO DANO PRESUMIDO AO ERÁRIO, EM DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO FACE A NOVA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Conforme pormenorizado nesse trabalho, o procedimento licitatório tem como objetivo alcançar a melhor oferta, através de balizas de técnica, qualidade e preço, como efeito pode-se elucidar que a licitação guarda íntima relação com o erário público, isto é, com os cofres públicos. Afinal, o que busca a Administração é o maior custo benefício em contratação com particulares, para atender ao interesse público, através de procedimento imparcial e isonômico de concorrência. Dessa forma, o objetivo primordial da licitação é contratar a melhor oferta, proporcionando igualdade competitiva.

Ademais, a licitação não escapa aos princípios sagrados à Administração Pública, notadamente, moralidade, probidade, indispensabilidade do interesse público, impessoalidade, publicidade e legalidade e congêneres. Desse modo ao frustrar o procedimento licitatório, os agentes envolvidos também afrontam os princípios na Administração Pública, o que nos termos da Lei de Improbidade Administrativa classifica-se como conduta improba, vide Art. 11.

Entretanto, embora o procedimento licitatório tenha sido meticulosamente pensado e engendrado para que seu resultado represente a contratação da melhor oferta e a realização do interesse público, ele não é inexoravelmente imprescindível, vez que, inclusive, a própria Lei 8.666/93 estipula hipóteses em que o procedimento será dispensável, dispensado ou inexigível. Ora, por essas exceções, conclui-se que a inexistência de procedimento licitatório, por si só, não representa atentado ao erário público, do contrário seria admitir que a própria lei autoriza conduta danosa.

Por outro lado, por ser regra geral da Administração Pública, é inexorável que a dispensa do procedimento licitatório às hipóteses que escapam à Lei 8.666/93 afronta os princípios da Administração Pública, nesse sentido DI PIETRO (2004, p. 712) aduz que

“A rigor, qualquer violação aos princípios da legalidade, da razoabilidade, da moralidade, do interesse público, da eficiência, da motivação, da publicidade, da impessoalidade e de qualquer outro imposto à Administração Pública pode constituir ato d improbidade administrativa.”

Por essas razões é que DI PIETRO (2004, p.713) ensina que um mesmo ato pode enquadrar-se em uma, duas ou nas três hipóteses de improbidade administrativa prevista na Lei, justamente, por vezes representarem atentados aos princípios da administração pública e enriquecimento ilício, ou ainda enriquecimento ilícito acompanhado por prejuízo ao erário.

Conforme já elucidado nesse trabalho, a Lei de Improbidade Administrativa – LIA tipifica seus atos em três grandes grupos: (i) atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); (ii) atos de improbidade que causam prejuízo ao erário (art. 10º); (iii) atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11). Em sua redação original, o Artigo 21 da LIA dizia que:

Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:

I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público;

II – da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal ou Conselho de Contas.

Sobre isso, Marcelo Figueiredo (1997.p. 101) explica que

Entendemos que se pretendeu afirma que a lei pune não somente a lei material à administração, como também qualquer sorte de lesão ou violação à moralidade administrativa havendo ou não prejuízo no sentido econômico. De fato, pretende a lei, em seu conjunto punir os agentes ímprobos, vedar comportamentos e práticas usuais de corrupção (sentido leigo). Muitas dessas práticas revertem em benefício do agende e nem sempre causam prejuízo econômico-financeiro à administração. O dispositivo, ainda, ao não exigir ‘a efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público’, pode levar o intérprete a imaginar que o juiz será obrigado a aplicação as sanções da lei independente do dano. Não parece a melhor exegese, como vimo. Já desenvolvemos alhures a ideia que o Judiciário é cometida a ampla análise do agente. Assim, poderá aplicar a pena, dosá-la em função do prejuízo causado ao erário. Nota-se que, ausente qualquer tipo de prejuízo, mesmo moral, seria um verdadeiro ‘non-sene” punir-se o agente.

Ocorre que em redação dada pela lei 12.120/2009, o Art. 21 da Lei de Improbidade Administrativa passou a constar da seguinte forma:

Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:

I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento; (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).

II – da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal ou Conselho de Contas.

Em vista do elucidado pelo administrativista Marcelo Figueiredo e pela nova redação do inciso I do Art. 21, ao analisar o posicionamento recente que vem sendo reproduzido no Superior Tribunal de Justiça, que toma o dano ao erário como presumido em hipóteses de afastamento indevido de licitação, de modo a imputar seu ressarcimento, observa-se que houve desvio interpretativo da exegese do texto legal, alcançando esferas contralegem.

Não há dúvidas que o conceito de patrimônio público abrange os bens e valores materiais e imateriais da Administração Pública. Contudo, é também notório o procedimento licitatório é um instrumento, precipuamente, protetivo ao erário, por isso, eventuais prejuízos decorrentes de fraudes e desrespeitos à licitação possuem signo precípuo econômico-financeiro. Logo, ao assumir que o afastamento indevido da licitação, presumidamente, levará a um prejuízo material, imputando seu ressarcimento, sem exigir a demonstração e comprovação do respectivo dano, extrapola o texto legal que, taxativamente, consagra a demonstração do dano como critério ao ressarcimento.

Em adição, extrapola a lógica jurídica de condenações indenizatórias e reparatórias materiais, vez que o Direito brasileiro consagra como regra da responsabilização civil material a ocorrência e metrificação do dano.  Excede, ainda, o princípio da legalidade, haja vista que se concebe, sem prévia lei que a defina, uma nova hipótese de improbidade administrativa, a saber a atos que geram danos ao erário por presunção mediante dolo ou culpa. Isso, porque as demais hipóteses de improbidade administrativa que não prescindem o dano ao erário, exigem o dolo do agente, ao passo que as condutas que exigem o dano, podem ocorrer com dolo ou culpa. Contudo, a partir da nova exegese do Superior Tribunal de Justiça, dispensa-se o dano, assim como o dolo, o que cria verdadeiro cenário de insegurança jurídica.

O argumento de que ao prejuízo decorre do fato da Administração deixar de contratar a melhor oferta, também, mostra-se uma perigosa ficção jurídica, vez que se a própria legislação, por vezes, excetua a regra da licitação em benefício da Administração, isso significa que a licitação não é sempre imprescindível a melhor oferta. Isso poderia levar a um absurdo jurídico que mesmo diante de hipóteses autorizadas de dispensa ou inexigibilidade licitatória, se se apontar que havia no mercado melhor oferta, o agente seria responsável pelo ressarcimento, já que não houve a contratação da melhor oferta.

Ademais, ao se presumir um dano patrimonial, haja vista que as condutas do Art.10 referem-se ao dano ao erário, isto é, aos cofres público, de modo a condenar-se ao ressarcimento, sem contudo exigir sua comprovação, em última instância, se chancelou a possibilidade de enriquecimento sem causa da Administração, o que é até então vedado pelo nosso ordenamento. Afinal, ressarcir prejuízo econômico-financeiro sem correspondente dano material sequer comprovado amolda-se, perfeitamente, o enriquecimento sem causa.

Por essas razões que historicamente a Corte Superior de Justiça exigia para a condenação ao ressarcimento ao erário a demonstração do binômio ilegalidade-lesividade, concomitantemente, isto é, o afastamento indevido da licitação opera no campo da ilegalidade quando era exigível ao agente público, ao passo que a lesividade é possível consequência a ser dimensionada e, não presunção.

Dessa forma, no presente trabalho filia-se ao entendimento de que, mesmo diante do afastamento indevido da licitação, o dano ao erário público, não se presume, se afere, razão pela qual a própria lei estipula a sanção de ressarcimento frente a ocorrência de efetivo dano ao patrimônio público, do contrário, como seria possível ressarcir aquilo que sequer foi dimensionável? Entretanto isso não implica dizer que a conduta ímproba e ilegal que afasta o procedimento licitatório, mas não, comprovadamente, lesa o erário público, não é passível de punição. Isso vez que conforme estipulado no próprio texto normativo, as demais punições não carecem da demonstração do dano ao patrimônio público. Em outras palavras, o dano ao erário carece de demonstração e aferição, mas isso não importa dizer abstenção da punição, pois a ilegalidade do ato reclama a aplicação das demais sanções.

 

CONCLUSÃO

Conforme desenvolvido no presente trabalho historicamente o ato ímprobo de dispensa indevida de licitação que importa dano ao erário, capitulado pela Lei de Improbidade Administrativa, era interpretado pelo Superior Tribunal de Justiça com ilícito de resultado concreto, isto é, reclamava a expressa demonstração do dano efetivo ao patrimônio público para que houvesse o dever do ressarcimento. Ocorre que a partir de 2016, inaugurou-se nessa Corte nova exegese conferida ao dano ao erário, a saber, o dano presumido ou in re ipsa, que passou a ser repetido desde então.

Contudo, esse entendimento abre perigoso precedente de interpretação judicial que se afasta do sentido legal, uma vez que a figura do dano in re ipsa mostra-se para além do delineamento normativo do Art. 10 da Lei 8.429/92 e da máxima do não enriquecimento sem causa e, em última instância, a configuração dos tipos infracionais do artigo 10 da Lei 8.429/92 sem prévia lei que a defina, a saber, uma nova hipótese de improbidade administrativa: a dos atos lesivos ao erário por presunção, mediante ação ou omissão com dolo ou culpa.

 

REFERÊNCIAS

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COELHO. Paulo Magalhães da Costa. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 191.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.

FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa (Comentários à Lei 8.429/92 e Legislação Complementar). 5ª ed., São Paulo: Editora Malheiros, 2004.

MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo, 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de Direito Administrativo, 16ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2014.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Improbidade Administrativa.2ª ed., São Paulo: Método,2014.

PAZZAGLINI FILHO, M., ROSA, M. F. E., FAZZIO JR., W.. Improbidade Administrativa. 48ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37ªed., São Paulo: Malheiros, 2014.

 

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