Função social da propriedade agrária: numa leitura hermenêutica

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Resumo: O presente artigo aborda os aspectos gerais do instituto da propriedade, enfocando a questão da função social, como exercício e como conteúdo, a qual passou por muitas mudanças ao longo de sua história e, atualmente, apresenta contornos mais sociais, visando o bem-estar da coletividade. Nesse ínterim, será tratado o tema num contexto da realidade agrária do país, em especial o direito ao acesso à terra, trabalhando, en passant, conceitos como desapropriação e reforma agrária.


Palavras-chave: propriedade, função social, desapropriação, reforma agrária.


Abstract: This article go address the general aspects of the institute of property, focusing on the issue of social function, such as exercise and as content, which went through many changes over its history and, currently, has more social contours, to the welfare of the community. Meanwhile, the subject is treated in the context of reality of the country’s land, especially the right to access to land, working, en passant, concepts such as expropriation and land reform.


Keywords: property, social function, expropriation, land reform.


Résumé: Cet article va traiter des aspects généraux de l’institut de la propriété, en se concentrant sur la question de la fonction sociale, comme l’exercice et que le contenu, qui a connu de nombreux changements au cours de son histoire et, actuellement, a des contours plus sociale, au bien-être de la communauté. Pendant ce temps, le sujet est traité dans le contexte de la réalité de la terre du pays, notamment le droit à l’accès à la terre, de travail, en passant, des concepts tels que l’expropriation et la réforme agraire.


Mots-clés: propriété, fonction sociale, expropriation, réforme agraire.


Sumário: 1. Intróito: Evolução Histórica e Características do Instituto da Propriedade; 2. Função Social: Limitação ao Direito de Propriedade?; 3. Função Social da Posse e Função Social da Propriedade: Uma Leitura Sistêmica do Ordenamento Jurídico Brasileiro; 4. Propriedade Agrária: Função Social e Acesso à Terra; 5. Considerações Finais (Inconclusões).


1. INTRÓITO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO DA PROPRIEDADE


Num devenir histórico da propriedade, em seus diversos momentos ao longo da existência humana, percebe-se que ocorreram grandes transformações, em especial no que tange a sua relação com o titular desse direito.


Antes mesmo da existência da propriedade, vale lembrar-se da posse, a qual é anterior à organização jurídica dos povos, na medida em que as coisas necessárias à vida rude dos primitivos estavam ao alcance daqueles que as pudessem colher.


Para Locke[1], partindo de uma situação de comunismo original, na qual as provisões naturais eram abundantes, aquele que empregasse sua força de trabalho para possuir determinado bem comum, adquiriria sobre ele o direito de propriedade.


Entretanto, esse ato de apoderar-se dos bens naturais estava limitado pela necessidade, uma vez que a propriedade era concedida por Deus para a fruição do ser humano, e tudo quanto excedesse essa circunstância pertenceria aos outros, ou melhor, não teria um proprietário, mas sim se mantinha na sua condição original de bem comum[2].


A propriedade da terra, para o mesmo autor, também estava ligada ao labor, assim aquele que a arasse, cuidasse dos animais nela existentes, enfim agregasse a ela sua força de trabalho tinha o direito de se apropriar da mesma.


Nesses termos, o trabalho era um título de propriedade sobre esses bens comuns, o qual vigoraria independente do consentimento geral, contrariando o que argumentavam alguns autores[3]. Aquele que quisesse reivindicar a terra de outrem estaria tentando beneficiar-se dos esforços alheios, não tendo tal direito.


A propriedade, enquanto elemento jurídico absoluto, independente de sua utilização efetiva e de lhe ser agregada produtividade, consagra-se num contexto de liberalismo econômico e das formas de produção capitalista.


Entretanto, muito antes desse sistema vigorar, a Igreja, com seus dogmas, dominava os pensamentos da “Época das Trevas”. A construção de direitos e, em especial, deveres eram reflexos das Sagradas Escrituras. Como bem destaca Carlos Frederico Marés[4], “a defesa da propriedade seria uma reinterpretação do Evangelho, das Sagradas Escrituras e das palavras dos santos”.


Ressalte-se que, para Santo Tomás de Aquino a propriedade não era um direito natural, absoluto, oponível contra todos e tudo, inclusive aos interesses sociais e às necessidades comuns e alheias. Pelo contrário, esse teólogo já defendia que a propriedade deveria respeitar sua função social, para quem o proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora pertençam a um só, logo os bens supérfluos são devidos por direito natural ao sustento de quem necessita, dos pobres[5].


A partir do século XIII até o XIX, com o movimento iluminista, finda Idade Média, a Igreja perdeu consideravelmente seu espaço no campo intelectual e filosófico, cedendo espaço aos filósofos do Iluminismo.


O termo propriedade vem do latim, proprietas, de proprius (particular, peculiar, próprio), “genericamente designa a qualidade que é inseparável de uma coisa, ou que a ela pertence em caráter permanente, no sentido jurídico, propriedade seria a condição em que se encontra a coisa, que pertence, em caráter próprio e exclusivo a determinada pessoa”[6].


Diante disso, pode-se inferir a construção teórica que marcou a época do século XVIII, em que se confundia direito com coisa, a propriedade com a terra, o imóvel etc., e nesse momento o pensamento de direito natural, absoluto, oponível erga omnes agrega-se a propriedade, apoiado e difundido, inclusive pela Igreja Católica, passando-se a demarcá-la, cercá-la, identificá-la como de um determinado dono[7].


A partir do século XVIII observou-se também um processo de codificação, tendo como fundamento os valores do liberalismo econômico, bem como a exacerbação do individualismo. Nesse contexto, “a propriedade foi alçada à condição de direito subjetivo paradigmático, absoluto, funcionalizado basicamente ao atendimento dos interesses individuais e egoísticos do homem-proprietário”, tendo John Locke como um dos grandes pensadores da propriedade moderna, individualista e liberal, o qual “organizou a defesa teórica da propriedade burguesa”[8].


No entanto, o liberalismo não atendia as necessidades do povo, deflagrando-se uma situação de grande exploração do homem pelo homem, e nesse momento as idéias marxistas ganham força, apresentando-se como duras críticas àquele contexto, no qual “a propriedade era um elemento mobilizador da riqueza, objeto de troca e de supremacia do capital sobre o trabalho”[9].


No Século XX duas Grandes Guerras foram deflagradas, e nessas circunstâncias de guerras e pós-guerras, algumas reflexões começaram a tomar forma, cor e força, inclusive no meio jurídico. As Constituições no mundo começam a buscar um cunho mais social em suas abordagens, não apenas econômico e privatista, surgindo na Europa um movimento conhecido como Welfare State[10], ou simplesmente Estado de Bem-estar, atingindo em especial a propriedade, a qual é agregada ao conceito de função social, buscando-se uma ordem fundiária mais justa e fundada no uso da terra, com um Estado mais intervencionista, no intuito de diminuir as desigualdades sociais, e atingir o tão sonhado bem-estar da coletividade.


O Brasil teve em suas Constituições de 1824 (imperial) e de 1891 (republicana) uma impregnação do pensamento liberalista, configurado pela “plenitude do direito de propriedade”[11], acompanhado pelo Código Civil de 1916. Com as Constituições de 1934 e 1937, impregnadas pelas ideias intervencionistas de governo, “iniciou-se um processo de limitação do direito de propriedade no Brasil, alterando os dispositivos do Código Civil que garantiam o caráter absoluto ao direito de propriedade”[12]. E a Constituição de 1946 condicionou o exercício do direito de propriedade ao bem-estar social, e o ideário de sua distribuição em compasso com o interesse comum[13], há a desapropriação por interesse social, utilidade e necessidade públicas, com indenização prévia e justa, em dinheiro.


Em 09 de novembro de 1964 foi promulgada a Emenda nº10, na qual, no que se refere à propriedade rural, surge a figura da desapropriação para fins de Reforma Agrária, que juntamente com o Estatuto da Terra do mesmo ano, representam marcos ao surgimento do Direito Agrário no Brasil[14].


As Constituições de 1967 e de 1969[15] trouxeram pela primeira vez a expressão função social da propriedade como princípio de fundamentação da ordem econômica e social, a qual tinha por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social. E a Constituição Federal de 1988 (CF/88), atualmente em vigor, avança, incluindo a propriedade e sua função social no rol dos direitos e garantias fundamentais, tendo natureza de cláusula pétrea. Previu, ainda, “condições para seu atendimento e estabelecendo as sanções pertinentes, em caso de descumprimento das normas”[16]. Acompanhando essa vertente funcionalista da propriedade, surgiu o Código Civil de 2002.


No entendimento de Clóvis Bevilacqua[17], a propriedade, considerada como direito, é o poder de dispor, arbitrariamente, da substância e das utilidades de uma coisa, com exclusão de qualquer outra pessoa. Entretanto, é importante ressaltar, que, no Ordenamento Jurídico pátrio, o direito de propriedade, como a maioria dos direitos, sofre limitações, que, apesar de parecer contraditório, vêm resguardar o próprio direito em questão, só que na esfera do outro, do terceiro, e do interesse público.


Diante dessas considerações, é importante elencar o que a doutrina reconhece como características do direito de propriedade, ao passo que, se trará o contraponto dessas, partindo para uma análise sistêmica, numa avaliação hermenêutica do Ordenamento Jurídico, momento em que são observáveis algumas limitações, como abaixo se segue[18]:


a) Absolutismo: refere-se ao amplo poder do proprietário sobre a coisa, ou seja, ao proprietário é conferido o poder de fazer na coisa tudo que lhe aprouver da maneira mais completa possível, usando, fruindo ou dispondo, gratuita ou onerosamente.


Entrementes, o Direito moderno vem se desprendendo de um liberalismo individualista para um ambiente acentuado de exigências de ordem social[19]. Há limitações por restrições convencionais de ordem privada (ônus real, usufruto, uso, servidão, habitação, equilíbrio ecológico, patrimônio histórico e artístico, água, ar, etc); por normas administrativas, verbi gratia, leis de posturas municipais; outras pela intervenção do Estado na propriedade, v.g., desapropriação, ocupação temporária, tombamento; pelas normas que tutelam o direito de vizinhança e, ainda, o direito ambiental, em sede de recursos minerais, jazidas, potenciais de energia hidráulica, etc;


b) Exclusividade ou Exclusivismo: característica, trazida do Direito Romano, tem por significado a autonomia do direito de propriedade em relação a cada titular sobre o bem; mesmo nas relações de co-propriedade, o que há é a incidência de dois ou mais domínios diversos sobre a mesma coisa indivisa, convencional ou legal, como por exemplo, nas regras da Lei Civil sobre condomínios. É limitada pelas servidões e outras formas de utilização da propriedade alheia[20];


c) Elasticidade (fragmentação): Orlando Gomes[21], traz ainda, essa característica, a qual é a possibilidade da propriedade sofrer fragmentação dos seus poderes ou faculdades ante a incidência de restrições e retornar a sua plenitude, v.g., direitos reais sobre coisa alheia;


e) Perpetuidade: pertence ao proprietário enquanto não ocorrer nenhum dos modos de perda, através de causa extintiva legal ou oriunda da própria vontade do titular desse direito, garantindo-se, ainda, o direito de herança, id est, a propriedade é perpétua, não no sentido da imortalidade, mas sim, no sentido que não há perda desta pelo não uso do bem[22]. Para que aconteça a extinção do domínio deverá estar caracterizado o abandono (que depende de manifestação indubitável do titular) ou o nascimento de outro direito com aquele incompatível, como a usucapião.


E diante dessas características e limitações, bem como de toda evolução no direito de propriedade, desembocando no reconhecimento da função social, há que se analisar a atual situação desse instituto funcional, e quanto ao seu contexto de elemento integrador ou limitador daquela.


2. A FUNÇÃO SOCIAL: LIMITAÇÃO AO DIREITO DE PROPRIEDADE?


“A palavra função vem do latim functio, functionis, que quer dizer trabalho, exercício, cumprimento, execução”[23].


O princípio da função social da propriedade tem controvertida origem. Há quem a reconheça, numa inspiração mais remota, em Santo Tomás de Aquino, como mencionado anteriormente, entrementes, para boa parte dos doutrinadores[24], teria sido formulada por Auguste Comte e postulada por Léon Duguit, sendo que para esse, “os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comporta-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário”, passando de direito individual para se tornar função social do detentor da propriedade. Na mesma esteira, Pietro Perlingeri assegurou que a propriedade não tem função social, mas é uma função social[25].


A função social da propriedade foi positivada, no direito nacional, com o advento da Constituição Federal de 1988, inteligência que se depreende do art.5º, inciso XXIII, como já exposto. Também, em seu art. 170, inciso III, determina que a ordem econômica observará a função da propriedade, impondo freios à atividade Empresarial, transformando, pois, o instituto da propriedade em um direito de finalidade social.


Entretanto, a funcionalização, para alguns, não é meramente um atributo da propriedade, ou como acreditava Léon Duguit[26], a propriedade como função social, apontando como mais coerente o entendimento de que a essa integra o conceito jurídico-positivo de propriedade, daí dizer-se que essa é um limite positivo promocional, em que a função social deve ser atuada, como uma finalidade a ser cumprida.  Tal instituto estaria ligado ao cumprimento da finalidade, a qual o direito preceituou, estando localizado no plano de existência do negócio jurídico, e exercitado no plano da eficácia.


Gama e Oliveira[27] tem posicionamentos um tanto divergentes, apontando:


Todas essas manifestações, apesar de insuficientes, colaboram para o árduo dever de definir o conteúdo da função social da propriedade. O que não se pode admitir, no entanto, é que a função social da propriedade continue sendo caracterizada como uma limitação do direito à propriedade ou, ainda, que a norma que a reconhece não seja dotada de qualquer efetividade.


(…) deve-se reconhecer que a função social integra a propriedade; a função social é a propriedade, e não algo exterior (…). E, uma vez não cumprida a função social, o direito de propriedade será esvaziado.”


Em contrapartida, Benedito Ferreira Marques[28] diz que é um exagero afirmar que a propriedade é a função social, assim como, em razão disso, “que o processo expropriatório previsto no ordenamento jurídico pátrio seria questionável, na medida em que ele pressupõe indenização, e esta não deveria existir em favor do proprietário que não faz a terra cumprir o sei papel como bem de produção”. Para ele, “o princípio da função social transformou o conceito de propriedade, inserindo-se, nesse direito, como mais um elemento estrutural. Integra-se-ia em seu próprio conteúdo”.


Como diz Miguel Reale[29], “a propriedade é como Janus bifronte: tem uma face voltada para o indivíduo e outra para a sociedade. Sua função é individual e social”. A função social da propriedade requer não só que o uso do bem seja efetivamente compatível à sua destinação socioeconômica, como também que sua utilização respeite o meio ambiente, as relações de trabalho, o bem-estar social e a utilidade da exploração. A propriedade está, portanto, impregnada de sociabilidade e limitada pelo interesse público, como se depreende, v.g., do art.1.238, §1º, do CC/02.


Diante do exposto, a função social não é uma limitação ao exercício dos poderes do proprietário, mas sim, se confunde com o próprio direito de propriedade. Essa, não a tem, simplesmente, como medida, limite e direção. Seria mitigar o verdadeiro sentido da funcionalidade, a qual integra aquele instituto, que se esvazia sem essa, conjugando-se o interesse do proprietário e do Estado ou do social.


3. FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: UMA LEITURA SISTÊMICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


É necessário destacar, inicialmente, que a função social da posse é um tema que não tem sido objeto de uniformidade na doutrina. Muitos autorizados doutrinadores têm defendido a impossibilidade da posse cumprir uma função social. O ordenamento pátrio, quando introduziu a função social, com o advento da Constituição Federal de 1988, não propugnou que, também, a posse deveria cumprir uma função social. Aliás, à posse, com seu nítido caráter fático, não poderia ser cobrada uma funcionalização, quando a relação entre possuidor e bem não se consubstanciava em uma relação jurídica. Assim, decorrência normal dos tratados clássicos sobre os direitos reais, se negava a existência de uma função social a ser cumprida na posse, sendo essa tratada no Código Civil, num local a parte da explanação dos direitos reais.


O Código Civil atual perdeu a oportunidade de trazer expressamente uma teoria mais avançada quanto à posse, a que considera a sua função social, tese cujo principal defensor foi Saleilles, no entanto o princípio da função social da posse é implícito à codificação emergente, principalmente pela valorização da posse-trabalho, que será objeto de análise a seguir.


Vale saber, entretanto, que há um Projeto de Lei nº 6.960/02, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, traz uma nova leitura ao artigo 1.196, o qual passará a ter, se aprovado, a seguinte redação: “considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência sócio-econômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse”.


Nesses termos, a função social da posse é um instrumento recente, e veio satisfazer uma necessidade social e econômica. Razão pela qual não deve ser confundido com a função social da propriedade, assim como sua utilização na doutrina e jurisprudência. Também enfatiza-se a ocorrência e interpretação da função social da posse na legislação.


Inicialmente pode-se dizer que a posse vem atender o princípio da dignidade da pessoa humana. E, os motivos pelo qual a posse é exercida estão fundamentados na posse-trabalho e na posse-moradia, pois é nestas ramificações da posse que vislumbramos melhor a função social da posse. Por isso pode-se dizer que a função social da posse não é limitação ao direito de posse, mas sim, exteriorização do conteúdo imanente da posse, permitindo uma visão mais ampla do instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia diante de outros institutos jurídicos como o do direito de propriedade. A posse possui como valores sociais a vida, a saúde, a moradia, igualdade e justiça.


Sem embargo, cabe fazer a distinção entre função social da propriedade e função social da posse: a função social da posse é mais evidente, já que é dinâmica em seu próprio conceito e, o fundamento da função social da posse revela uma expressão natural da necessidade; a função social da propriedade é menos evidente, sua finalidade é instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição do conceito estático e, o fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade o que há de eliminável.


Pode-se elencar a dogmática jurídica, materializadora da função social da posse, nos arts. 1.238, parágrafo único e 1.242, parágrafo único (prevêem a redução dos prazos para a usucapião extraordinária e ordinária, respectivamente, quando se tratar de bens imóveis, diante de uma situação de posse-trabalho, nos casos em que aquele que tem a posse utiliza o imóvel com intuito de moradia, ou realiza obras e investimentos de caráter produtivo, com relevante caráter social e econômico); e 1.228, §§ 4º e 5º (trata da desapropriação judicial por posse-trabalho), todos do novo Código Civil.


Além desses, tem-se ainda o artigo 1.239, do Código Civil, em que há a usucapião especial de imóvel rural, que traz como um dos requisitos a fixação de residência na área e a produção, ou seja, a função social da posse; o artigo 1.240, do Código Civil, também pode ser citado, no qual é tratada a usucapião especial urbana, onde um dos requisitos é a moradia do requerente e sua família; e, ainda, o artigo 1.241, parágrafo único, do Código Civil, aborda o justo título decorrido da posse unida ao tempo.


Também não se pode deixar de ressaltar os parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228, do Código Civil, onde o dispositivo do parágrafo quarto elenca a perda da propriedade, ou seja, o proprietário é privado da coisa esbulhada em troca de uma indenização a título de desapropriação indireta em favor de um terceiro; e, o parágrafo quinto aborda as questões referentes ao pagamento da indenização e o registro da sentença. Como pode-se observar essa desapropriação judicial é dada pela posse-trabalho que demonstra, mais uma vez, a função social da posse.


Na verdade, mesmo sendo exteriorização da propriedade, o que também comprova a sua função social, a posse com ela não se confunde. É cediço que determinada pessoa pode ter a posse sem ser proprietária do bem, já que ser proprietário é ter o domínio da coisa. A posse significa apenas ter a disposição da coisa, utilizando-se dela e tirando-lhe os frutos, com fins sócio-econômicos. Pelo conceito que consta atualmente no Código Civil, podemos dizer que todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário (arts. 1.196 e 1.228 do CC/02).


Deve-se salientar que a posse é um instituto jurídico que vem satisfazer uma necessidade, seja ela individual ou coletiva; é a utilização de um bem segundo sua destinação econômico-social. Essa necessidade é social e econômica, e por isso a posse precisa de função social para cumprir os requisitos a ela atinentes. Neste sentido, destaque-se as colocações de Albuquerque[30]:


“Vale dizer, este gérmen da funcionalização social do instituto da posse é ditado pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, enfim, necessidades básicas que pressupõem o valor de dignidade do ser humano, o conceito de cidadania, o direito de proteção à personalidade e à própria vida”.


Pode-se enumerar duas grandes importâncias da função social da posse: a) Todo homem tem direito natural ao uso dos bens e à apropriação individual desses bens através da posse, a fim de atender a necessidade individual como também para proporcionar vantagens para o bem comum; e, b) Essa importância vem ditada, não só pelo contato do homem com a terra, mas pelo aproveitamento do solo pelo trabalho de acordo com as exigências pessoais e sociais, transformando a natureza em proveito de todos.


Apesar da função social da posse ser trabalhada apenas com princípios constitucionais positivados isso não a torna menos importante que a função social da propriedade, por exemplo, mas não devemos confundir os institutos, pois eles são autônomos e independentes. A função social da posse relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício. E por uso da propriedade é possível verificar o modo com que são exercidas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de propriedade.


A função social da posse está em um plano distinto, pois a função social é mais evidente na posse e muito menos na propriedade, que mesmo sem o uso pode se manter como tal. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável, ou seja, tem limitações fixadas no interesse público e tem a finalidade de instituir um conceito dinâmico a propriedade. O fundamento da função social da posse, por sua vez, revela uma expressão natural da necessidade.


“A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridicizada a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos[31].”


Já a função social da propriedade está integrada ao conteúdo do direito de propriedade, assumindo aspectos diversos da função social da posse, como podemos verificar:


“A função social (da propriedade) está integrada, pois ao conteúdo mínimo do direito de propriedade, e dentro deste conteúdo está o poder do proprietário de usar, gozar e dispor do bem, direitos que podem ser objetos de limitações que atentem a interesses de ordem pública ou privada. […] A função social da propriedade assume dois relevantes aspectos, […] o primeiro, se referindo aos aspectos estático da propriedade, da sua apropriação, estabelecendo limites para a extensão e aquisição da propriedade por parte do proprietário. O segundo, legitimando a obrigação de fazer ou de não fazer, incidindo diretamente sobre a atividade de desfrutamento e de utilização do bem e condicionando a estrutura do direito e o seu exercício[32].”


Conclui-se, portanto, que a posse, assim como a propriedade, só merece proteção na medida em que atenda à sua função social.


4. PROPRIEDADE AGRÁRIA: FUNÇÃO SOCIAL E ACESSO À TERRA


Nesse momento do texto, tomar-se-ão por base os pensamentos de Jacques Alfonsin[33], o qual busca fazer um paralelo entre o que está posto em nossa Magna Lex e como o Judiciário tem decidido sobre o tema em análise, e, nesse ínterim, discute-se o acesso à terra como meio de efetivar direitos, tais quais à moradia e à alimentação, tidos no Ordenamento Jurídico pátrio como fundamentais a todo ser humano, ressaltando-se a obediência devida a sua função social, realizando-se, pois, a cidadania.


O autor traz a lume na discussão que a CFB/88, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reza em seu texto a celebre frase, na qual “todos são iguais perante a lei”, entretanto é flagrante as disparidades entre as diversas pessoas, viventes nesse planeta capitalista, sendo suficiente para se chegar a essa conclusão um simples olhar sobre as condições de acesso à terra, ou melhor, a falta de condições de acesso. Diante de tais fatos, contrapõem-se os tidos como “sujeitos de direitos” que moram em favelas, lonas na beira de estradas, em situações mais diversas, sem o mínimo de condições de sobrevivência digna, expostos as mais variadas sortes, face àqueles que possuem latifúndios, terras que pela sua extensão acabam por improdutivas em sua maior parte, como se infere do trecho abaixo[34]:


Objetar-se-á que isso não é verdade a partir do respeito devido ao próprio princípio constitucional da função social. Pois aí já se encontra uma primeira obscuridade. Esse princípio, pelo menos no que se refere à propriedade rural, pode ser considerado obedecido com a só “produtividade” desse bem, o que é sinônimo de simples produtividade econômica para grande parte dos sujeitos cognoscentes. Aliás, de acordo com sérias opiniões, colocando assim na C.F. justamente para esse efeito…


Como compatibilizar, então, os dados reais inafastáveis da nossa excelente produção agrícola e pecuária, tão enfatizada a cada ano pelos latifundiários, com o crescente número de sem terra famintos, e de gente sem casa no Brasil? Se a produtividade é, realmente, um dado real inafastável, fruto do respeito devido à liberdade de iniciativa econômica, há que se reconhecer pesar sobre tais liberdades e produtividades esse outro dado real inafastável, ou seja, de que nem a propriedade nem a posse da terra onde elas se exercem estão diminuindo a fome e satisfazendo a necessidade de casa do povo, o que viola a dignidade pessoal de milhões de despossuídos, e revela descumprimento visível das funções sociais do espaço físico por elas ocupado.”


Jacques Távora, em seus estudos, parte para uma análise de precedentes jurisprudenciais[35] e, de imediato, expõe posicionamento de negação da “eficácia ao princípio da função social da propriedade, isentando o proprietário de provar que o obedece, não tomando conhecimento da posse de não proprietários sobre terra, como possível substituta daquela obediência”. Nesses termos, há uma espécie de presunção ao efetivo exercício da função social de sua propriedade, prevalecendo o direito privado patrimonialista face ao dever de se realizar a gestão devida ao bem público que lhe foi confiado, no intuito de servir a todos, uma vez que esse é a verdadeira essência daquela.


Tem-se, ainda, “julgados que desconhecem a função social da propriedade, por alegadas lacunas e antinomias presentes na sua disciplina legal”[36], sendo dispensadas, nesses precedentes, provas, uma vez que não há uma regulamentação, explicitamente detalhada, em lei do que seria o efetivo exercício daquela, na qual a regra constitucional seria meramente programática, sem eficácia plena e imediata, necessitando, pois, de lei infraconstitucional regulamentado-a.


Há precedentes, em contrapartida, em que num dado caso concreto, o magistrado, mesmo diante dessa característica “programática”, não há que se falar em necessidade de lei regulamentadora, uma vez que a função social é posta em nossa Carta Política como inerente a propriedade, havendo um dever de cumpri-la. Diante disso, o Estado-juiz tem o munus publico, como intérprete e aplicador da norma, de realizar a justiça e garantir a paz social, efetivando, então, um direito-dever, posto em nossa Constituição Federal.


Por tudo o exposto, Alfonsin cita Piero Calamandrei, na análise de um julgado que negou eficácia plena e imediata à função social da propriedade, face ainda a exigência de sua aplicação não ser retroativa, do qual se faz mister a transcrição de um pequeno trecho:


“(…) o intérprete que queira realizar o pequeno esforço que implica levantar a cabeça da página de seu Código e olhar por um instante, da sua janela, o que está acontecendo na rua, dá-se conta facilmente que o significado de certos preceitos, cujo texto não foi tocado pelo novo ordenamento, tem na atualidade caráter completamente oposto ao que tinha no regime anterior[37].”


E, por fim, os julgados diametralmente opostos a maioria dos acima referidos, em que o acesso à terra surge como efeito da sua função social, reconhecendo eficácia plena e aplicabilidade imediata a este princípio, bem como o fato do ônus da prova recair sobre o titular do direito de propriedade.


Pelo exposto, insta destacar os julgados, nos quais se colocou em xeque os direitos patrimoniais face aos direitos de diversas famílias à reforma agrária, garantindo a todos o acesso à terra, e, diante da demora na realização desses direitos, não há que se culpar “sem-terras” ou “sem-tetos” em situação de “ocupantes”, uma vez que agem em estado de necessidade, diante da realidade vivenciada pelos mesmos, sem lugar para morar, criar seus filhos, alimentá-los, prover seu sustento, enfim, ferindo todo o exposto na Magna Carta como direitos fundamentais, por meio da inércia dos seus “Representantes”, que agem muitas vezes de modo a observar seus próprios interesses, ao invés de representar aqueles que são do “povo”.


Nesse diapasão, o autor prossegue com a discussão do que seria efetivamente a função social da propriedade, destacando julgados em que o simples argumento de terra produtiva não condiz com a efetivação daquele princípio.


Ressaltem-se, ainda, citações da lição de Domingos Dresch da Silveira[38], em que, a despeito de discussões acerca do fato da propriedade ser direito absoluto ou relativo, o que se precisa observar é que esta deve trazer algo de absoluto em seu bojo, qual seja a concretização de sua função social.


Ainda na exposição dos mais variados aspectos do tema, ora em questão, Alfonsin apresenta a seus leitores o fato de pessoas que vivem em locais há anos, na posse de fato, entretanto sem título que as coloque a salvo no mundo jurídico de qualquer intervenção de terceiros ou do próprio Estado, vivendo num paralelo entre o exercício de seu direito fundamental ao acesso à terra e a ilegalidade, num mundo positivista.


Nessa realidade, muitos Municípios têm lançando mão da “regularização fundiária”, como meio de “legalizar” a situação de – muitas vezes – famílias inteiras, garantindo-lhes, inclusive, os direitos a uma moradia, com saneamento básico, luz elétrica, dentre outros que, atualmente, são o mínimo para que se tenha uma vida saudável e digna.


Destaque-se o presente trecho[39]:


A obscuridade expositiva que ainda marca muitos estudos sobre esse princípio constitucional, seja ele referido à propriedade, seja referido à posse, parece dever-se, em grande parte, a uma busca precipitada de segurança que encerre qualquer discussão sobre uma lide possessória ou reivindicatória sobre terra, à luz, tão só, do registro do imóvel.


Ora, esse dado, sabidamente, não é inafastável, por mais fortemente que esteja agora previsto nos arts. 1245/1247 do Cód. Civil, mas a fome, por exemplo, ou a falta de teto, se não forem “afastadas”, satisfeitas, põem em risco a dignidade e a vida dos não possuidores.


Sob pena de contradição invencível, portanto, esse poder “erga omnes”, esse “contra todos” do direito de propriedade sobre a terra, somente pode ser garantido desde que rigorosamente relativizado pelos deveres que o subordinam às necessidades, aos interesses, aos direitos humanos fundamentais enfim, que a função social daquele bem impõe, tanto pela própria natureza do último quanto pela proteção jurídica devida à dignidade humana de quanta(o)s não o possuam.”(grifos do autor).


O ilustre doutrinador aborda[40], ainda, aspectos do ônus da prova, no que tange a posse mansa e pacífica de terceiro, sem vínculo legal ao bem, e a não existência do abandono pelo seu titular, devendo esse comprovar tal situação, bem como o cumprimento efetivo da função social da res em disputa, do contrário, perderia sua prerrogativa à posse e à propriedade.


Nesse segundo momento, após toda a exposição de argumentos, queixas e visões do jurista Jacques Távora Alfonsin, quanto ao acesso à terra e seus desdobramentos no Judiciário Brasileiro, é de suma relevância destacar alguns elementos, a fim de se construir um debate (claro que este se desenvolverá num plano imaginário, mas ao escrever um livro, há a possibilidade de dialogar com todos aqueles leitores que se interessam, ou não, pelo tema exposto pelo autor, construindo em seu subconsciente um debate, de acordo com seus princípios, desejos, modo de viver e ver o mundo).


Ressalte-se, portanto, que os textos trazem alguns pontos primordiais ao entendimento da vida em sociedade, tal como essa se apresenta, onde é cada vez mais corriqueiro o tratamento desigual dos seres humanos – destaque-se que isso ocorre não no intuito de igualá-los, numa vertente ulpiana, mas sim como meio de alargar as diferenças sociais –, disseminando o que Giorgio Agamben[41] chama de “homo sacer”, ou como citado no texto “cidadãos-servos”, ou, simplesmente, aqueles indivíduos destituídos de direitos públicos e civis, inclusive à vida, à moradia, à alimentação, ao acesso à terra, sujeitos a serem sacrificados, em função da manutenção do status quo.


Nessa vertente, podemos identificar como principal, dentre os pontos controvertidos das obras intelectuais, a defesa da função social da propriedade, enquanto norma de eficácia imediata e plena, tendo aqui uma discussão sem fim, ao menos enquanto perdurar o sistema socioeconômico vigente no Brasil e na maior parte do mundo.


Diante dos mais diversos argumentos, a despeito da tentativa de Alfonsin em trazer eficácia plena ao princípio de que todo agente tem que desenvolver a função social de sua propriedade, insta destacar que assim não é tratada, pois a nossa sociedade se desenvolve num contexto de exploração do homem pelo homem, numa análise marxista, bem como todo direito exposto como direito fundamental, é na verdade programático, não se tendo a intenção de efetivá-los, já que o acúmulo de riquezas e bens estaria vulnerável, bem expresso em um dos pareceres juntados ao texto, considerando como possível a especulação imobiliária, mantendo uma propriedade “parada”, sem destinação social, até que surja um momento mais propício a sua utilização, ressaltando, ainda, que ficará sujeita as vontades do “mercado”.


Apesar do engodo de que atualmente temos uma Constituição-cidadã, é flagrante que conferir ao legislador infraconstitucional o poder-dever de viabilizar a sua realização ex vi legis é um meio de mitigar sua efetivação, uma vez que não há meios eficazes e legais de “obrigar” tal ato, ficando, em verdade, as normas programáticas como limitadoras dos direitos fundamentais, necessitando-se, para mudar essa situação, que os direitos sociais passem a ser vistos como “poderes sociais”, muito bem exposto no início do texto, entretanto desconsiderado ao longo da discussão.


No momento em que a sociedade passar a ter o poder de acessar à terra, as discussões quanto a eficácia ou não das normas constitucionais tidas como programáticas perdem sua razão de ser, passando a algo muito mais real e relevante, qual seja se o direito existe, o inverso é apenas um meio de postergar a solução dos conflitos sociais ad eternum.


O fato da função social da propriedade não ter eficácia plena e imediata, a despeito de estar expressa na nossa Magna Lex, é um fato, uma vez que não há norma que a defina, delimite, caracterize, ficando ao arbítrio do Estado-juiz concretizá-la de acordo com seus princípios e “interesses”, ou simplesmente deixar a cargo do Estado-legislador sua limitação no mundo jurídico-abstrato, para só posteriormente subsumi-las ao caso concreto.


Diante disso, insta trazer à discussão que o acesso à terra não é uma garantia de efetivação de outros direitos, tais quais à moradia e à alimentação, muitas vezes aquele é viabilizado, entretanto se apresenta inócuo, em virtude do fato de que não se pode da terra pura promover a sobrevivência daqueles que tiveram o acesso garantido, numa alusão quase cinematográfica de uma passagem, imortalizada pela personagem “Scarlett O’Hara”, no filme “E O Vento Levou” (Gone With the Wind), na qual “jamais passará fome novamente”, facilmente observável na realidade da “Reforma Agrária”, onde famílias sem conhecimento prático do cultivo à terra “que tudo dá”, sem instrumentos básicos para fazê-lo, tampouco capital para adquiri-lo, enfim, sem estrutura alguma para viabilizar a função social daquela “terra”, acaba por abandoná-la.


Enfim, há muito que caminhar, ou “retroceder”, para se chegar a uma sociedade mais humana, na qual não se precise de “leis”, “direitos” escritos num “papel” para serem efetivados, uma vez que na realidade não são garantias absolutas, e para ilustrar temos a Constituição-social de Weimar, a qual não foi obstáculo ao desenvolvimento de anomalias políticas, como a nazista.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS (INCONCLUSÕES)


Pelo exposto, pode-se perceber que a palavra de ordem é eficácia, buscar produzir um direito eficaz e efetivo é um dos maiores desafios da realidade brasileira, e muito provavelmente mundial.


A função social da propriedade, enquanto princípio constitucional e conteúdo da propriedade, deve ser encarada de modo a satisfazer interesse sociais, gerais, sendo constituída de poder superior ao direito absoluto daquela, vindo a ser conditio sine qua non haverá um esvaziamento daquele instituto, perecendo esse direito, em benefício da sociedade e de seu bem-estar.


Pensar diferente é referendar uma falácia, na qual se disseminou o entendimento de que um sujeito tem a posse e propriedade de algo, oponível contra todos, na maioria das vezes latifúndios, que pelo próprio termo tem grande parte de seu território improdutivo, enquanto crianças morrem de fome, homens e mulheres moram nas ruas, há uma barreira física e psicológica mantendo-os em “seus lugares”, resignados, sem direitos, apesar de lhes ser assegurado o contrário pela Magna Carta.


Apesar de não ser o elemento suficiente, ter acesso à terra e fazê-la cumprir sua função social são meios eficazes de se diminuir as desigualdades, flagrantemente marcadas ao longo da história pela restrição territorial para alguns, mitigando o direito de todos.


Nesses termos, não pensando em conclusão da discussão, pois a mesma só terá seu fim quando existir uma resposta mais eficiente à demanda por justiça e igualdade social, pode-se dizer que no Brasil há uma urgência pela aplicação eficaz do princípio da função social à propriedade agrária, buscando por fim a latifúndios improdutivos, desapropriando-os e destinando a terra à Reforma Agrária. Não se pode falar em funcionalidade social a mera produtividade, deve-se exigir que esta se destine ao bem-estar da sociedade brasileira, e por que não falar em mundial, visando mais que lucro, mas sim a vida digna de todos.


 


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

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Notas:

[1] LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 410-4. Quanto à teoria de Locke, que se tornou a base do pensamento mercantilista, burguês, Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista (op. cit.) indagam: “Mas, o trabalho do proletário, o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário?”. E respondem, em seguida: “De modo nenhum” (p.30). Em outro momento, ponderam: “Não queremos de nenhum modo abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho (…). O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação, que faz com que o operário só sirva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesses da classe dominante” (p. 32).

[2] Mencione-se que, para Locke, esses bens necessários deveriam ser observados na medida da utilização e do não perecimento. Aquele que acumula bens e os deixa perecer, esta desrespeitando as leis naturais, entretanto, quanto aos bens não perecíveis (metais preciosos, por ex.), podem ser acumulados infinitamente, uma vez que não está causando prejuízo a outrem, não há desperdício pelo não uso. Pensamentos esses considerados como a base da política mercantilista.

[3] Dentre esses autores, destaca-se Filmer, o grande contraponto da obra de Locke, podendo-se dizer que foi quem contribuiu para a construção do pensamento desse autor, numa lógica dialética hegeliana, na qual da tese e antítese surge a síntese. Locke, diferentemente de diversos autores de sua época, liga a propriedade ao homem, que se utiliza de algo que lhe pertence, ou seja, o trabalho, para agregar valor e apoderar-se de um bem comum, satisfazendo suas necessidades. Contrariando aqueles que diziam que essa propriedade, oriunda do comunismo original, era adquirida através de um consentimento geral.

[4]MARÉS, Carlos Frederico.  A função social da terra. Porto Alegre: SAFE, 2003., p. 20.

[5] Apud MARÉS, op. cit., pp. 21-22. Diferentemente de Locke, Santo Tomás de Aquino entendia que o excedente não deveria ser utilizado como moeda de troca, mas sim ser distribuído a quem necessitasse, seguindo os parâmetros de São Basílio.

[6] Thelma Araújo Esteves Fraga in BARROS, Ana Lucia Porto et alli. O Novo Código Civil Comentado. vol. 3. Freitas Bastos Editora, 2002, p. 1151.

[7] MARÉS, op. cit., p. 27.

[8] Guilherme da Gama e Andrea de Oliveira, Função Social da Propriedade e da Posse, In GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.). Função Social no Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2007.

[9] Ibidem,p. 44.                 

[10] Segundo Lenio Luiz Streck, o Estado de Bem-estar tem o direito como provedor; já no Estado Democrático de Direito, é instrumento transformador da realidade (Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. 3ª Ed. rev., ampl. e com posfácio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 10).

[11] TORRES, Paulo Rosa. Direito Agrário e reforma agrária. Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. Salvador, a.4, v.5, p.1. já/jun.1999.ISSN 1414-0101.

[12] Ibidem.

[13] NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de Reforma Agrária. Revista de Direito Agrário. Brasília, a.10, n.12, 2º semestre, 1994.

[14] TORRES, op. Cit.

[15] Para alguns, deve ser tratada como Emenda Constitucional nº 1. Entretanto, devido às profundas mudanças feitas ao texto da CF/1967, apresenta verdadeiro caráter de nova Constituição.

[16] GAMA, op, cit., p.47.

[17]  BEVILACQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil, Volume 3, 1958, p. 44 apud BARROS, Ana Lucia Porto et alli. O Novo Código Civil Comentado. vol. 3. Freitas Bastos Editora, 2002, p.1151.

[18] Tomando como base as considerações de Thelma Araújo Esteves Fraga in BARROS, Ana Lucia Porto et alli. O Novo Código Civil Comentado. vol. 3. Freitas Bastos Editora,2002.

[19]  MS 2046/DF; Mandado de Segurança (1992/0032937-3). Fonte: DJ 30/08/1993 p. 17258. Relator(a) Min. Hélio Mosimann (1093) – Rel. p/ acórdão min. Milton Luiz Pereira (1.097), apud BARROS, Ana Lucia Porto et alli. O Novo Código Civil Comentado. vol. 3. Freitas Bastos Editora,2002, p.1151-3.

[20] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 22ª Ed. rev. e atual. nos termos da Reforma Constitucional (até a EC nº 39 de 19.12.2002). São Paulo: Malheiros, 2003, p. 279.

[21] GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

[22] Ressalte-se, como bem leciona José Afonso da Silva (op. cit, p. 280), há uma limitação a essa característica que é a desapropriação, considerando-se que o não uso pode gerar a perda da propriedade pelo desrespeito à sua função social.

[23] GAMA, op. cit.

[24] Dentre eles GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.5: direito das coisas. 3ª ed. rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

[25] PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problemática della proprietà. Nápoles: ESI, 1970.

[26] De acordo com Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 569), para Duguit, a propriedade deixou de ser direito subjetivo do proprietário, para se transformar na função social do detentor da riqueza (grifos do autor).

[27] GAMA, op. cit., p. 44.

[28] MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 7ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2007, p. 34.

[29] Apud DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. 4: direito das coisas. 23 ed. rev., atual. e ampl. de acordo com a Reforma do CPC e com o Projeto de Lei n.276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008.

[30] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002 apud ROSA, Marizélia Peglow da. A Função Social Da Posse, No Direito Brasileiro Atual, Enquanto Instrumento De Efetivação Dos Direitos Fundamentais Ao Trabalho E À Moradia. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/campos/marizelia_peglow_da_rosa-1.pdf. Acesso em: 21 ago.2008.

[31] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002 apud ROSA, Marizélia Peglow da. A Função Social Da Posse, No Direito Brasileiro Atual, Enquanto Instrumento De Efetivação Dos Direitos Fundamentais Ao Trabalho E À Moradia. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/campos/marizelia_peglow_da_rosa-1.pdf. Acesso em: 21 ago.2008.

[32] ibidem

[33] ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: SAFE, 2003; e A função social da posse como pressuposto de licitude ético-jurídica do acesso e da conservação do direito à terra. Revista de Direito Agrário. A.1, n.1, 2º trimestre de 1973. Brasília: Incra, 1973.

[34] Alfonsin,1973:177.

[35] Alfonsin, 2003:239.

[36] Ibidem, p.242.

[37]Ibidem, p. 249.

[38] Apud Alfonsin, 2003:256.

[39] Alfonsin, 1973:181.

[40] Alfonsin:2003:249 ss.

[41] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.


Informações Sobre o Autor

Daniela Rocha Teixeira

Pesquisadora em Meio Ambiente do Trabalho, Conflitos Coletivos de Terra e Tributação Municipal. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Mestranda em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social. Bolsista de Mestrado por produtividade do CNPq. Advogada


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