A Judicialização da Saúde e o Papel Das Câmaras de Conciliação no Estado da Bahia

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Catarine Chagas Alves[1]

Orientador: Prof. Me Carlos Alberto José Barbosa Coutinho[2]

 

RESUMO: A promoção e a proteção da saúde pelo poder público relacionam-se com os direitos fundamentais, os quais, positivados na Constituição Federal/88, possuem como fundamentação e legitimação o princípio da dignidade da pessoa humana. Este princípio, dotado de aplicabilidade e eficácia, atua tanto como limite à atuação estatal, no sentido da não redução da vida digna como geradora do dever prestacional. O direito à saúde, como direto social positivado, comporta-se como direito fundamental, o qual densifica o princípio da dignidade da pessoa humana. A saúde, portanto, gera para suas titulares pretensões subjetivas, transformando-se em verdadeiros direitos individuais. Diante do dever do Estado em amparar tal direito para fins de cumprimento constitucional, depara-se com duas dimensões dos direitos fundamentais: os direitos sociais que se submetem às políticas orçamentárias e à reserva do possível, incluindo, ainda, o caráter essencial do mínimo existencial, garantidos até mesmo se não contemplados por políticas públicas, sendo estes aptos à judicialização. Dessa forma, concomitante com a crise no serviço público, assiste-se, nas últimas décadas, a ingerência do Poder Judiciário, cujos comandos têm força de lei, ocasionando uma tensão constante entre os poderes, bem como para as partes em um litígio. Ante o exposto, o presente artigo tem o objetivo de estabelecer vias jurídicas alternativas referentes à judicialização da saúde e sua fundamentalidade constitucional, tendo como objeto principal a Câmara de Conciliação de Saúde, inaugurada em novembro de 2016, a qual promove a desjudicialização de demandas processuais relativa a diversos vetores de cuidados com a saúde, as requerem maior celeridade quanto ao acesso e ao atendimento.

Palavras- chave: Judicialização da  Saúde. Políticas públicas. Direitos fundamentais. Direitos sociais. Direito à saúde.

 

ABSTRACT: The promotion and protection of health by the public power are related to fundamental rights, which, affirmed in the Federal Constitution / 88, have as foundation and legitimation the principle of the dignity of the human person. This principle, endowed with applicability and effectiveness, acts both as a limit to state action, in the sense of not reducing the dignified life as generating the duty of service. The right to health, as a positive social bill, behaves as a fundamental right, which strengthens the principle of the dignity of the human person. Health, therefore, generates for its holders subjective pretensions, transforming into true individual rights. Faced with the State’s duty to protect this right for the purpose of constitutional compliance, it faces two dimensions of fundamental rights: social rights that are subject to budgetary policies and the reserve of the possible, including the essential character of the existential minimum , guaranteed even if not contemplated by public policies, being these able to the judicialization. Concurrent with the crisis in the public service, in the last decades, there has been interference by the Judiciary, whose commands have the force of law, causing a constant tension between the powers as well as the parties to a litigation. In view of the above, this article has the objective of establishing alternative legal pathways related to the judicialization of health and its constitutional fundamentality, having as main object the Health Conciliation Chamber, inaugurated in November 2016, which promotes the adjudication of procedural demands relative to different health care vectors, require them to be faster in terms of access and care.

Keywords: Health Judicialization. Public policies. Fundamental rights. Social rights. Right to health.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. OS DIREITOS FUNDAMENTIAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; 2. OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; 3. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: NOÇÕES JURÍDICAS GERAIS; 4. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SUAS IMPLICAÇÕES; 4.1 A JUDICIALIZAÇÃO E A QUESTÃO ORÇAMENTÁRIA; 5. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SEUS GASTOS NO BRASIL E NA BAHIA: A VIABILIDADE DAS CÂMARAS DE CONCILIAÇÃO NA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS; CONSIDERAÇÕES FINAIS.

 

INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde tem demonstrado como o caminho mais prático e seguro para obtenção de direitos fundamentais, mas também como o meio mais caro para os gestores públicos.  A visão de um judiciário como o meio mais eficaz para se resolver conflitos, inclusive os que envolvam políticas públicas, é um reflexo da própria história política pelo qual o país passou. Durante a Ditadura, não se podia confiar em um Executivo e Legislativo que não garantiam nem mesmo o bem jurídico mais importante de todos: a vida. Neste contexto, somente o Judiciário se sobressaía como idôneo para garantir uma atenção real às necessidades dos cidadãos.

Atualmente, os políticos ainda continuam bastante desacreditados, mesmo com a mudança do regime de governo e com a promulgação da Constituição Federal de 1988 fundamentada no princípio maior da dignidade da pessoa humana e com seus direitos fundamentais positivados. Por outro lado, o Judiciário, como poder garantidor do cumprimento da Constituição só vem ganhando mais prestígio no que se refere à implementação dos direitos fundamentais sociais.

A CRFB/88, em seu art. 6º, garante a todos os cidadãos o direito fundamental social à saúde. Por força de vários dispositivos constitucionais em diálogo normativo, no art. 196 prescreve: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco da doença e de outros agravos e de acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A implementação dos direitos sociais fundamentais, sobretudo por ter aplicação imediata como estabelece o parágrafo 1º do art. 5º, obriga o Estado a atuar de forma positiva, através de políticas públicas. O grande problema das políticas públicas é adentrar na órbita do orçamento público, o qual, como se sabe, não é suficiente para atender toda demanda de uma nação; há escassez de recursos, o que provoca a crise no serviço público. Diante disso o STF já se posicionou que os direitos intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez, pois a reserva do possível não poderá ser oponível à realização do mínimo existencial.

Decorre que, o Estado que se omitir na sua implementação poderá ser condenado à obrigação de fazer, por meio do que se conhece como “judicialização das políticas públicas” ,  que concorre para o conflito entre os direitos sociais, no caso, a saúde, com o orçamento estatal. De acordo com notícia veiculada pelo Ministério da Saúde em seu portal: “em 2017, o Ministério da Saúde destinou R$ 1,02 bilhão para aquisição de medicamentos e tratamentos exigidos por demandas judiciais. No último ano, o Ministério da Saúde adquiriu aproximadamente 700 itens entre medicamentos e outros insumos para atendimento a demandas judiciais. Neste ano, até o mês de maio, o Ministério da Saúde já destinou R$ 290,9 milhões para atender ações judiciais”.

De acordo Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), em toda a Bahia são gastos, em média, R$ 88 milhões por ano somente com ações judiciais.  Com o objetivo de reduzir a quantidade de processos e a burocracia para resolução de problemas na esfera da saúde, o governo do Estado da Bahia criou o núcleo de Conciliação e Prevenção aos Litígios da Saúde, o qual reúne representantes de diversos órgãos e secretarias.

Diante do exposto, o presente artigo visa responder a seguinte pergunta de pesquisa: diante a judicialização da saúde e toda a questão que envolve a obrigação de fazer e as questões orçamentarias, qual o papel das Câmaras de Conciliação no estado da Bahia?

Para a execução da pesquisa, valeu-se de revisão bibliográfica através de doutrina, artigos científicos, dados oficiais sobrea saúde no Estado da Bahia, bem como legislação e entendimento jurisprudencial pátrio.

 

1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O entendimento sobre a saúde perpassa, inicialmente, pela compreensão dos direitos fundamentais. Estes possuem o caráter essencial da proteção dos sujeitos devidamente estipulado pela Constituição e, ainda, devem dialogar com os princípios e tratados e convenções internacionais celebrados e ratificados pelo ente estatal.

Conforme George Marmelstein (2014, p.3), o próprio Adolf Hittler afirmava que “Os Direitos do homem estão acima dos direitos do Estado”. Ironicamente, o líder nazista tinha uma clara conceituação sobre direitos humanos, porém com concepções equivocadas. Para o positivismo, a ideologia que sustentava o regime nazista, a lei estatal estava acima de tudo e sobre todos devendo ser cumprida independentemente de seu conteúdo.

Após a Segunda Guerra e com advento do pós- positivismo, a lei cede espaço para os princípios, os quais devem ser tratados como normas jurídicas. A lei continua tendo a primazia, porém não mais uma norma “neutra’ e, sim, revestida de forte carga princípiológica.

Logo, diante do exposto inicialmente e diante da força dos princípios, pode-se afirmar que “as regras/leis somente seriam válidas se estivessem de acordo com as diretrizes traçadas nos princípios, reforçando uma ideia atualmente aceita de que os princípios possuem uma função de fundamentação e de legitimação do ordenamento jurídico”, (MARMELSTEIN, 2014, p. 11).

Portanto, pode-se afirmar que as seguintes premissas como positivação constitucional de valores éticos, crença na força normativa da Constituição, compromisso com a dignidade da pessoa humana e crítica ao legalismo e ao formalismo jurídico formam o fundamento da teoria dos direitos fundamentais.

Diante do exposto, de acordo com Marmelstein (2014, p.17) pode-se dizer a compreensão inicial dos direitos fundamentais: “Os direitos fundamentais possuem um inegável conteúdo ético (aspecto material) e normativo (aspecto formal). Eles são os valores básicos para uma vida digna em sociedade. Neste contexto, eles estão intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder”.

Ainda com base no referido autor, ainda se pode tecer sobre direitos fundamentais com base na dignidade da pessoa humana como: “normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação de poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico”.(MARMELSTEIN, 2014, p. 17).

No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, cuja força normativa gera para seus titulares, vantagens, e para seus destinatários, obrigações. Como afirmou Rui Barbosa (1933, p.488): “Não há, numa Constituição, cláusula a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular de seus órgãos.

Todo direito fundamental gera dever de respeito (aspecto negativo de abstenção) o que significa que o Estado tem o dever de agir em conformidade com o direito fundamental, não podendo violá-lo.  Afirma Marmelstein (2014) que, onde houver violação aos direitos fundamentais, há uma obrigação de reparação do dano. Há, para o Estado, não só o dever abstenção, mas também o dever de proteção dos direitos fundamentais, através de um Legislativo que edite normas com vistas à tutela desses direitos, de um Executivo que promova e repare eventuais lesões a esses direitos e um judiciário, cujo dever seja defender os direitos fundamentais.

Por fim, há o dever de promoção obrigando o Estado a adotar medidas concretas, através de políticas públicas que propiciem às pessoas em situação de desvantagem econômica a fruição de seus direitos fundamentais, como acredita Marmelstein (2014), ou seja, o Estado tem a obrigação de tornar efetivos os direitos fundamentais.

Por serem os valores básicos e com parâmetros da Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais estão inseridos num sistema jurídico de regras e princípios. Neste sentido, pode ser extraído dos ensinamentos de Dirley da Cunha Jr ( 2017, p. 565) que os direitos fundamentais são aqueles que tem como núcleo interpretativo a dignidade da pessoa humana e que estão inseridos no corpo da Constituição (fundamentalidade formal), bem como aqueles que, mesmo que não estejam literalmente na lei maior, mas pelo seu conteúdo e importância, são considerados direitos fundamentais (fundamentalidade material).

Os direitos fundamentais estão positivados na Constituição, o que enseja a inconstitucionalidade de qualquer norma contrária aos valores por eles consagrados. No entanto, nada impede que novos direitos sejam acrescentados ao rol dos direitos fundamentais através de emedas constitucionais e/ou através de convenções e tratados internacionais de direitos humanos, os quais deverão ser incorporados no ordenamento jurídico brasileiro seguindo-se a formalidade constitucional.

Por isso, ao tratar da temática, não se pode perder de vista a essência dos direitos fundamentais na operacionalidade do ordenamento jurídico através dos parágrafos 2º e 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988:

  • 2º: “ Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
  • 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

Ou seja, não necessariamente só as normas constitucionais originárias veiculam normas de direitos fundamentais. A sua essência pode ser vista em outros dispositivos constitucionais, através de emendas constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos, os quais também ganham status de emenda constitucional, seguindo-se a formalidade prevista na Constituição; pode até mesmo ser visto em normas infraconstitucionais, pois estão em constante processo de expansão.

Importante também não esquecer a diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos, com o fim de delimitar o objeto de estudo deste tema. Os direitos fundamentais, como já conceituado neste trabalho, são direitos ligados à dignidade da pessoa humana e à limitação do poder Estatal, sendo estas características comuns aos direitos humanos, no entanto, àqueles estão positivados no plano interno, isto, é, no âmbito constitucional e inseridos no plano internacional, através de tratados, convenções e pactos.

Outro fundamento importante é que os direitos fundamentais estão espalhados por toda a Constituição vigente, como é o caso dos direitos e garantias individuais, direitos sociais (estando aí o direito a saúde), direitos da nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos. Diante do exposto, comprova-se que a interpretação central dos direitos fundamentais está na dignidade da pessoa humana, o qual merece tópico especial para a sua explanação.

 

1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O Princípio da dignidade da pessoa humana é inerente ao ser humano, qualidade intrínseca do homem, portanto é pré-constitucional, conforme entendimento de alguns doutrinadores, como Kant. No entanto, essa posição encontra opositora ao exemplo de Hegel, segundo o qual a “dignidade constitui uma qualidade a ser conquistada” (HEGEL, 2011, p.45).

Para Barroso, o princípio da dignidade da pessoa humana seria o núcleo essencial dos direitos fundamentais; Konrad Hesse, (1998, apud Nicolodi e Jung, 2013, p. 44),  trata-o como “um princípio superior, incondicional e, na maneira de sua realização, indisponível na ordem constitucional”, cabendo ao Estado sua proteção. A CF/88 concede à dignidade da pessoa humana a condição de princípio estruturante, possuindo um status no âmbito jurídico normativo de princípio, norma e regra. Encontra-se como fundamento do Estado Democrático de Direito, no seu artigo1°, inciso III:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(…)

III -a dignidade da pessoa humana.

Por ser fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana integra os anseios do Estado e da sociedade, tal como afirma Marmelstein (2014, p. 14): “o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da autonomia da vontade, da liberdade de expressão, do livre desenvolvimento da personalidade, da legalidade, da democracia, seria tão vinculantes, quanto qualquer outra norma jurídica’’.

A dignidade da pessoa humana possui uma ampla interpretação, inclusive quanto ao respeito e proteção pelo Estado. Para isso, deve-se valer dos ensinamentos de Ingo Sarlet (2018, p.268): “ […] é o Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas.” Portanto, o Estado existe em função da pessoa humana, pois o homem constitui a finalidade primordial da atividade estatal. Como norma jurídico-positivada, a dignidade da pessoa humana existe, não apenas como uma declaração de conteúdo ético e moral, mas possui, “status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente dotado de eficácia e aplicabilidade, alcançando, portanto, também a condição de valor jurídico fundamental da comunidade”.

Pode também atuar como regra; para tal ilustração diz Sarlet (2018, p.269): “bastaria lembrar que a regra que proíbe a tortura e todo e qualquer tratamento desumano e degradante (art. 5.o, III, da CF), constitui regra diretamente deduzida do princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que inexistisse previsão de tal proibição no texto constitucional”.

Finalmente, segundo o mesmo autor: “A inserção deste Princípio no Título dos Princípios Fundamentais (e não no Preâmbulo) é indicativa de sua eficácia e aplicabilidade, ou seja, da sua condição de norma jurídica, ademais de valor(…)assim, quando se fala em direito à dignidade, se está, em verdade, a considerar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, sem prejuízo de outros sentidos que se possa atribuir aos direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa”. (SARLET, 2018, p. 270)

Uma das funções que a dignidade da pessoa humana assume é a de fundamentar a criação, interpretação e compreensão das normais constitucionais e infraconstitucionais, submetendo toda a ordem jurídica a tais fundamentos. Isso quer dizer que ela deve ser observada amplamente no processo decisório judicial, inclusive no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com particular destaque para casos envolvendo a proteção e promoção dos direitos fundamentais, como é o caso da saúde.

Aliás, dentro do contexto de uma prática jurídica submissa a este princípio, diz Warat (2010 apud Mendes e Mendes, 2013, p.88) o seguinte: “ as práticas jurídicas precisam encontrar a saída para o mundo, aproximar-se aos excluídos do labirinto, e ainda aos que estão pior que os excluídos, que são os esquecidos do mundo; aqueles que o social sequer repara a sua existência”.

Outra característica é a sua atuação como limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral (portanto, de todos e de cada um), condição que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva (negativa) ou prestacional (positiva) da dignidade.

Com efeito, verifica-se que na sua atuação como limite, (dimensão negativa), a dignidade, como fundamento e conteúdo de direitos fundamentais, implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de ela mesma servir como escudo contra atos que a violem ou a exponham a ameaças e riscos, gerando a não intervenção por parte do Estado.

Como tarefa (dimensão positiva) o reconhecimento jurídico-constitucional da dignidade da pessoa humana implica deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção, sem prejuízo da existência de deveres fundamentais da pessoa humana para com o Estado e os seus semelhantes.

 

2 OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Os direitos sociais são direitos fundamentais, tanto no seu aspecto formal, quanto no material, por conta disso todos os meios processuais disponíveis podem ser utilizados para protegê-los indistintamente pelos seus titulares. Por outro lado, alguns doutrinadores como Ricardo Lobo Torres (2009, p.53), discordam dessa concepção e reservam a expressão “direitos fundamentais sociais” ao mínimo existencial.

Os direitos sociais fazem parte do rol dos direitos fundamentais de segunda geração e está devidamente mencionado no art. 6º da Constituição Federal de 1988. Através dos seus textos, tais direitos buscam a igualdade material e a inserção dos indivíduos num contexto econômico e cultural, inaugurando o Estado Social, como confirma a própria dicção do mencionado dispositivo: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”.

Os titulares desses direitos são considerados aqueles em desvantagem social. Segundo Paul Singer (2003 apud Marmelstein, 2014, p.237), os direitos sociais são direitos condicionais, ou seja, vigem para aqueles que dependem deles para ter acesso a uma condição fundamental para sua sobrevivência física e social. Neste sentido, Novais (2016 apud Nicoodi e Jung, 2013, p.46) leciona que os direitos sociais tutelam minorias que carecem de proteção e garantia dos direitos fundamentais mediante o Estado de Direito, logo é o socorro das partes mais frágeis e ameaçadas.

Assim, todas as pessoas podem ser titulares dos direitos sociais, no entanto o Estado é obrigado a prover a assistência à saúde e à educação, por exemplo, para aqueles que não têm acesso a esses direitos por conta própria, o que se conclui que apenas esses indivíduos podem exigir judicialmente o cumprimento da norma constitucional.

Desde a Declaração Universal Do Direitos Humanos, pode-se observar o grande salto que os direitos sociais obtiveram no mundo jurídico. No Brasil, a Constituição de 1988 passa a ser constituída por normas de plena eficácia e dotadas de juridicidade, vinculando o Estado e a sociedade, não mais uma Constituição repletas de promessas vazias e de cunho político (LEITE, 2011). Os direitos sociais, ao serem positivados são protegidos constitucionalmente, possuindo o caráter de direitos fundamentais (alguns juristas, até mesmo, defendem que as normas definidoras dos direitos sociais sejam cláusulas pétreas).

E é a partir da Constituição de 1988 que os direitos fundamentais, e consequentemente, os direitos sociais, ganham um status de “justiciáveis”, o que significa que a doutrina chancelava, desde aquela época, a judicialização de direitos sociais não implementados, cobrando do Poder Executivo uma ação positiva quando este ou o Legislativo tivessem sido omissos.

Segundo o Sarlet (2018), a exemplo das demais normas de direitos fundamentais, as normas consagradoras de direitos sociais possuem aplicabilidade direta, ainda que o alcance de sua eficácia deva ser avaliado sempre no contexto de cada direito social e em harmonia com outros direitos fundamentais (sociais ou não), princípios e mesmo interesses públicos e privados.

Apesar dos direitos sociais gerarem pretensões subjetivas para seus titulares, transformando-se em verdadeiros direitos individuais, eles enfrentam muitos obstáculos para assegurar esta pretensão reivindicatória na via judicial: abrangência das definições dos direitos sociais, limites ao controle judicial das políticas públicas, dependência da disponibilidade de recursos, ou seja, do impacto da assim chamada reserva do possível.

Por outro lado, Leite (2011) defende que os direitos sociais não podem ser judiciáveis no mesmo patamar dos direitos políticos e civis, por exemplo; os direitos sociais repercutem diretamente nas normas orçamentárias, as quais não dispõem sobre casos particulares, mas, sim, sobre políticas públicas, as quais deverão ser desempenhadas em um intervalo temporal, de modo que alterações redundariam em diversas consequências longe da análise judicial.

Para Torres (2009), que se afasta um pouco do pensamento até aqui exposto, mas cujo pensamento vesm ganhando cada vez mais espaço, não se deve confundir os direitos fundamentais com os direitos sociais. Os primeiros são garantidos até mesmo se não contemplados por políticas públicas. Já os sociais estão sujeitos à reserva do possível (reserva de políticas públicas e de verbas orçamentárias), o que não os torna aptos a judicialização.

Cabe, até mesmo, segundo ele, uma diferenciação dos direitos fundamentais sociais e direitos sociais: enquanto os direitos sociais estão vinculados à reserva do possível e são sujeitos às escolhas políticas da maioria, os direitos fundamentais sociais (mínimo existencial), “postula as políticas públicas maximalistas, pois deve ser dinamizado e ampliado em sua extensão máxima” (TORRES, 2009, p.121).  Para os internacionalistas, apesar da indivisibilidade dos direitos humanos (ao considerar que os direitos sociais são uma extensão dos direitos de liberdade), os direitos sociais não são plenamente justiciáveis.

Parte da jurisprudência e doutrinadores brasileiros vêm se coadunando com o pensamento de Torres e admitindo a existência de um direito subjetivo definitivo (gerador de uma obrigação de prestação por parte do destinatário), pelo menos para garantir o mínimo existencial, ou seja, a vida com dignidade, o que se denomina de “redução da jusfundamentalidade.”.

Segundo Torres (2009, p.36), a teoria do mínimo existencial é explicada como um “direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (=imunidade) e que ainda exige prestações estatais positivas”. Compreende o núcleo irredutível dos direitos fundamentais originários e os direitos fundamentais sociais, “todos em sua expressão essencial, mínima e irredutível”. Continua explicando o referido autor: “sem o mínimo necessário a existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições matérias da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados”. (TORRES, 2009, p. 37)

De acordo com esta teoria, posiciona-se Marmelstein (2014, p.318): “apenas o conteúdo essencial dos direitos sociais teriam um grau de fundamentalidade capaz de gerar, por si só, direitos subjetivos aos respectivos titulares. Se a pretensão estiver fora do mínimo existencial, o reconhecimento de direitos subjetivos ficaria na dependência de legislação infraconstitucional regulamentando a matéria, não podendo o judiciário agir além da previsão legal”.

Os direitos fundamentais e o mínimo existencial têm uma extensão maior nos países em desenvolvimento se comparados com as nações mais ricas. Há uma necessidade maior à  “proteção estatal aos bens essenciais à sobrevivência das populações miseráveis”. (TORRES, 2009, p.122).  No entanto, um dos maiores problemas que surgem em relação a esta temática é a quantificação do mínimo existencial e a mensuração da qualidade de vida. Para Torres (2009, p. 126 ), “as políticas públicas, inclusive judicializadas, devem garantir o máximo do mínimo existencial, e não apenas o mínimo do mínimo existencial. Os seus limites fáticos são relativos”.

Apesar das divergências sobre direitos fundamentais abarcarem ou não os direitos sociais, pode-se afirmar que os direitos sociais geram para o Estado o dever de prestações positivas, na esfera econômica e social, característica intrínseca aos direitos de segunda geração. O direito social à saúde, próximo tópico a ser abordado, demonstra o dever estatal em garantir à população carente condições de vida que se coadune com o princípio da dignidade da pessoa humana, através da sua proteção e promoção.

 

  1. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: NOÇÕES JURÍDICAS GERAIS

Diante do conhecimento dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa humana, dos direitos sociais, cabe destacar o direito à saúde. Esta, conforme a Organização Mundial de Saúde (1946,, aplicada no Brasil por meio do Decreto 26.042/1948) é a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade. Sarlet (2007, p.82), por exemplo, equipara a vida digna à vida saudável, “o completo bem-estar físico, mental e social” densifica o princípio da dignidade da pessoa humana, “pois não é possível imaginar a vida com dignidade em um ambiente insalubre, em condições inadequadas”.

O Direito à saúde, o qual faz parte da seguridade social (art. 194/CF 88) foi consagrada na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental (=mínimo existencial) e social, inserida no título destinado à ordem social, que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 6º, estabelece como direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância.

Em seguida, no art. 196, a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde pública como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Essa proteção constitucional à saúde seguiu a trilha do Direito Internacional, abrangendo a perspectiva promocional, preventiva e curativa da saúde, impondo ao Estado o dever, através da formulação de políticas públicas sociais destinadas à promoção, proteção e à recuperação da saúde e econômicas, de tornar possível e acessível à população o tratamento que garanta senão a cura da doença, ao menos, uma melhor qualidade de vida.

No fim do século XX, porém, começou-se a observar um recuo em relação à proteção da saúde como direito fundamental a ser prestado pelo Estado. Dallari e Ventura, (2007 apud Silva, 2013), afirmam que o Estado teria uma participação apenas subsidiária na prestação de cuidados à saúde dos cidadãos, suprimindo assim, pouco a pouco, o questionamento das estruturas socioeconômicas implícitas ao problema sanitário.

Essa tendência à responsabilização individual pela saúde acompanhou o nascimento e evolução de Teorias como a da vedação ao retrocesso de direitos e da reserva do possível, ou seja, o Estado não poderia arcar com o previsto na Constituição devido ao caráter finito dos recursos orçamentários e os custos das prestações positivas.

Diante do exposto, o grande problema é a falta de condições econômicas de muitos brasileiros para obtenção de tratamentos médicos adequados para manutenção, recuperação ou prevenção da saúde, ficando totalmente dependentes da atuação estatal para obtê-las, sobretudo mediante provocação do Poder Judiciário.

Caberá, portanto ao Estado o papel prestacional, através de políticas públicas, para a satisfação destas necessidades, enquanto as pessoas não tiverem condições de arcarem por si mesmas com os custos da saúde, assumindo, dessa forma, seu papel de provedor de necessidades sociais onde se fizer relevante. O Estado, portanto, de acordo com Brito (2013) não poderá se eximir onde faltar a proteção de direitos e, sim, deverá equilibrar, preencher lacunas, principalmente no caso da saúde, direito fundamental que reflete com transparência a questão do mínimo existencial.

Assim se manifestou o Senhor Ministro Marco Aurélio no relatório do RE 566471: “A saúde (…) constitui bem vinculado à dignidade do homem. É verdade que o desenvolvimento da dimensão objetiva do direito à saúde deve ficar a cargo de políticas públicas. Todavia, os traços de fundamentalidade, inalienabilidade, essencialidade e plena judicialização desses direitos estarão sempre presentes na dimensão do mínimo existencial. O direito à saúde como direito ao mínimo existencial é direito fundamental”.

A saúde não é apenas um direito social, mas valor fundamente na vida das pessoas, o que requer maior proteção e prestação do Estado. Para isso, os obstáculos diante da utilização das vias judiciais devem ser superados com meios alternativos para a tutela dos indivíduos e da coletividade, motivo pelo qual merece destaque nos próximos tópicos.

 

  1. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SUAS IMPLICAÇÕES

Os direitos fundamentais geram uma pretensão subjetiva para os seus titulares, os quais poderão reivindicá-los na via judicial, com vistas à sua aplicação forçada pelo Poder público, devido a uma ação estatal ou inércia governamental não condizentes com os deveres de respeito, proteção e promoção.

A Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 8° estabelece a necessidade de se permitir a proteção judicial desses direitos: “todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei’.”

A CF/88, em seu art. 5°, XXXV, expressa que: “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça de lesão a direitos”, isto é a conferência da inafastabilidade do Poder Judiciário quando provocado por direitos lesados ou ameaçados.

Neste sentido, Barroso (apud Silva, 2013, p. 02 ) explica: “Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo (…). Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro”.

Se a Constituição Federal de 1988, por um lado, deixou claro que a implementação dos direitos sociais fundamentais se dá mediante políticas públicas e, para garantir sua efetividade,  ampliou o acesso ao Judiciário, por outro, por influência da common law, e diante da crise do serviço público,  percebeu-se um ativismo judicial que “determina comandos com força de lei” (LEITE, 2011, p.148), ordenando o atendimento dessas demandas.

Como guardião da Constituição, o Judiciário viu-se no dever de efetivar todos os direitos positivados no mais alto grau, como afirma Leite (2011). Neste sentido, diz Zaffaroni (1995 apud Silveira e Goedert, 2013, p.152 ) ante a crescente necessidade de atuação do Estado para que se garanta os direitos de uma população carente, surge uma demanda de “protagonismo” dirigida aos juízes, para suprirem o que o “Estado- providência prometeu, mas não cumpriu”.

Diante desse quadro, ensina Estefânia Maria de Queiroz Barbosa (2007 apud Silveira e Goedert, 2013, p.155) que “há uma grande tensão entre o Poder Judiciário e os Poderes Legislativo e Executivo, a qual consiste num reflexo da crise social por que passa a sociedade brasileira que busca, cada vez mais, a efetivação dos direitos fundamentais(…)”. Oscar Vilhena (2011 apud por Silveira e Goedert, 2013, p.155), retrata este quadro como a Supremocracia, o que aponta para um desequilíbrio do sistema de freios e contrapesos exigidos pela separação de Poderes, uma “singularidade do arranjo institucional brasileiro”.

Da mesma forma, Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia (2011 apud Silveira e Goedert, 2013, p.156) indaga acerca do protagonismo do judiciário, “que decide casos ou  a partir de razões de direito ou por ser uma superentidade que exerceria o papel de superego de uma sociedade órfã”.

Sob este contexto, está um grande conflito no direito constitucional brasileiro: a ingerência do Poder Judiciário, cuja postura deverá ser ativa para dar efetividade aos direitos fundamentais, na competência do Legislativo e Executivo que conflita com o princípio da separação dos poderes. (MARMELSTEIN, 2014).

Manifesta-se Maria Estefânia de Q. Barbosa (2007 apud Silveira e Goedert, 2013, p.158 ): “(…) deve o poder judiciário assumir que exerce função política, sim, e na medida que interpreta, por meio de amplo esforço de compreensão valorativa das regras, principalmente de direitos sociais, prevista na Constituição de 88, ao estabelecer novos papeis a serem desempenhados pelo Estado, enquanto provedor de serviços básicos, enquanto promotor de novas relações sociais, enquanto planejador de atividades econômicas, etc. e efetivar os direitos sociais prestacionais, segundo os valores políticos e sociais consagrados na Constituição e conforme os anseios da população. A Constituição não pode ser mais entendida como norma jurídica superior, sem preocupação ou vinculação com a realidade social, como mera garantia do status quo. A Constituição brasileira, ao trazer valores sociais alçados a direitos fundamentais, acaba por legitimar o juiz constitucional”.

De um lado, encontram-se os defensores da judicialização dos direitos sociais, os quais se apoiam nos seguintes critérios apontados por Silva (2013): estímulo à concretização do direito social; desestímulo do mau funcionamento do Estado, coibir o esvaziamento de investimentos do setor e gerar dificuldade ao retrocesso social.

Já aqueles contrários ao movimento listam aspectos negativos do mesmo, como pondera Silva (2013): confusão entre microjustiça e macrojustiça, em que, muitas vezes, o Judiciário autoriza demandas perante o Estado para a satisfação de demandas inter partes (microjustiça) sem considerar, em tese, a globalidade de políticas públicas (macrojustiça); substituição de decisões técnicas (planejamento orçamentário anual) por decisões superficiais (laudos médicos); desrespeito à reserva do possível e ao orçamento; eventual violação da harmonia entre os poderes.

Um dos grandes impasses da efetivação das garantias fundamentais através da judicialização é que a Constituição não delimitou o objeto desses direitos, como o do direito à saúde, ou seja, “não definiu um patamar judiciável de sua efetividade” (LEITE, 2011, p.161). Diante deste quadro, podem surgir incertezas diante da definição de seu conteúdo e na exigibilidade de satisfação do conteúdo definido; importa saber o nível determinado ou idealizado pelo legislador. Leite (2011, p.156), acrescenta: “Há casos que a satisfação mínima basta. Noutros, a proteção deve ser maior”.

Silva (2011) reflete sobre o que estaria subtendido: se esta prerrogativa é alí tida como direito a prestações de todo e qualquer tipo, necessárias à manutenção da salubridade humana (atendimento médico, fornecimento de óculos, aparelhos dentários, etc.) ou se está limitada às prestações básicas e vitais, de acordo com o previsto nos artigos 196 a 200 da Carta Maior.

Para Torres (2009, p. 245-246), desde o advento da Lei n° 6080/90, as leis orgânicas de saúde “[…] que criou a utopia da gratuidade nas prestações da saúde e definiu o direito à saúde como fundamental”, nunca mais ficou claro o limite entre o mínimo existencial e a otimização dos direitos sociais; para ele a solução seria distinguir entre o mínimo existencial (direitos fundamentais sociais) e direitos sociais e, assim, conhecer o “limite dentro do qual é obrigatório prever e implementar a entrega de prestações públicas”.

Para Torres (2009, p.133), uma outra questão problemática que envolve a judicialização dos direitos sociais consiste: “no seu caráter antidemocrático, eis que tais direitos se afirmam nas vias das eleições (…). As Cortes Constitucionais não podem agir contra as maiorias nas questões políticas, mas apenas nas decisões que afetam a jusfundamentalidade dos direitos; os direitos sociais, dependentes de argumentos de policy, não são trunfos contra a maioria, como os fundamentais. Além disso, as decisões casuísticas agravam as desigualdades entre as pessoas. No Brasil assiste-se à predação de renda pública pela classe média e pelos ricos, especialmente no caso de remédios estrangeiros, com o risco de se criar um impasse institucional entre o Judiciário e os poderes políticos, se prevalecer a retórica dos direitos individuais para os sociais”.

Enquanto os direitos sociais máximos são efetivados por via das políticas públicas, reflexo das leis orçamentárias, os direitos sociais fundamentais, para sua concretização, necessita de uma crescente ingerência do poder Judiciário para sua efetivação, ao se reduzirem ao mínimo existencial, como é o caso do direito à saúde, o qual envolve condições mínimas de vida saudável.  Com isso, cria-se um conflito de poderes no Brasil, pois a judicialização da saúde está intimamente ligada a recursos públicos, alocação de verbas, podendo causar, através de sentenças judiciais que julgam conflito inter partes, uma ineficácia das leis orçamentárias.

 

4.1 A JUDICIALIZAÇÃO E A QUESTÃO ORÇAMENTÁRIA

Outro ponto para enfrentamento que está diretamente associado à saúde e a judicialização é a questão orçamentária. Isso coloca em evidência as divergências práticas entre o Legislativo, os recursos estatais e a efetividade de direitos, bem como a discussão sobre a reserva do possível.

Segundo Cléve (2000 apud Mendes e Mendes, 2013, p. 89), tem-se ainda as seguintes considerações: “não há como possa o Estado resolver de uma vez um quadro de deterioração das condições de vida que acompanha o Brasil há séculos. Mas pode o Estado, sim, implementar políticas para, progressivamente, resolver aquilo que é reclamado pelo documento constitucional (…) os recursos públicos devem ser muito bem manejados. O cuidado com a escassez permitirá, dentro do limites oferecidos pela riqueza nacional, implementar políticas realistas (…)incumbe ao poder público consignar na peça orçamentárias dotações necessárias para a realização progressiva dos direitos (…) é imperioso a luta por um rígido controle de execução orçamentária, exigindo-e que a lei orçamentária, experimentadas condições de normalidade, seja cumprida como aprovada pelo Congresso Nacional”.

A CF/88, também chamada de Constituição cidadã, aproximou mais o judiciário da realidade social, tornando-o legítimo para defender as normas constitucionais. A questão é quando o STF passa a decidir por critérios puramente políticos, invade a competência dos demais poderes.

As decisões judiciais deveriam garantir a proteção do mínimo existencial. Porém, as discussões sobre a vinculação orçamentária para o atendimento das prestações públicas de saúde, a inexistência de dinheiro como empecilho a entrega da prestação prevista ou o esgotamento, pela Administração pública, da verba orçamentária se houver dinheiro em caixa ainda estão longe de se esgotarem.

Com o advento da emenda constitucional 62/2009, o § 6º do art. 100 da CF/88 passou a dispor sobre a obrigação da dotação orçamentária e dos créditos abertos de serem consignados ao Poder Judiciário, devendo o Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exequenda, determinar o pagamento integral e autorizar o sequestro quando requerido pelo credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de preferência ou de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do débito, restando ao credor a certeza da satisfação do seu crédito, não se opondo mais argumentos outrora utilizado, como a falta de dotação orçamentária.

De acordo com Carta Magna no seu artigo 166, parágrafo 3°, II e 167, V, e com julgados recentes do STF, na insuficiência de verbas ou em casos de despesas em que não haja dotação orçamentária específica, o Executivo, através de projeto de lei e depois de aprovado pelo Legislativo, deverá suplementá-las ou abrir crédito especial pressionado pelo Judiciário. De qualquer forma, deverá indicar os recursos necessários, admitidos os que sejam provenientes de anulação de despesas.

Cléve (2000 apud Mendes e Mendes, 2013) defende a ideia de que cabe ao poder público implementar políticas realistas, previstas dentro dos limites dos recursos nacionais, através da consignação na peça orçamentária das dotações necessárias para realização progressiva dos direitos. A execução orçamentária deverá ser rigidamente fiscalizada, com vistas ao seu cumprimento como aprovada pelo Congresso Nacional.

Outras questões decorrentes da tensão entre os poderes e verbas orçamentárias, seriam: é possível criar uma reserva para questões judicializadas? E no âmbito da saúde, em

que as despesas são imediatas, como se pode pensar juridicamente? Recai-se, portanto, na discussão da reserva do possível. Essa expressão, cunhada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, país onde os direitos sociais não são considerados direitos fundamentais, se aplica no sentido de que “as prestações sociais se legitimam pelo princípio democrático da maioria e pela sua concessão discricionária pelo Legislador” (Torres 2009, p.105). Neste sentido afirma J. Isensee (1999 apud Torres, 2009, p. 105), as prestações sociais dependem da “soberania orçamentária do Legislador”, a proteção dos direitos sociais depende da conjuntura econômica e “as normas constitucionais não afastam as crises econômicas” Para Torres (2009, p.106), a reserva do possível não poderia se aplicar ao mínimo existencial, “que se vincula à reserva orçamentária e às garantias institucionais de liberdade, plenamente sindicáveis pelo Judiciário nos casos de omissão administrativa ou legislativa”. Por outro lado, as prestações positivas para implementação, proteção e promoção dos direitos sociais “dependem de reserva da lei instituidora das políticas públicas, de reserva de lei orçamentária e do empenho da despesa por parte da Administração. A pretensão do cidadão é à política pública, e não à adjudicação individual de bens públicos”. No Brasil, porém, a expressão “reserva do possível” perdeu seu sentido original, e passou a ser entendida como “reserva do possível fática”, no sentido de que sujeitou os direitos fundamentais e o mínimo existencial àquela cláusula, enfraquecendo os direitos fundamentais e alargando a judicialização da política orçamentária até o campo dos direitos sociais, ao confundi-los com os fundamentais.

Vale dizer, a possiblidade de adjudicação de direitos prestacionais só ocorre se houver disponibilidade financeira, a qual pode ser compreendida como “existência de dinheiro na caixa do tesouro, ainda que destinado a outras dotações orçamentárias”, conforme explica Torres (2009, p.106 – 107 ).

Assim se posicionou o relator Ministro Humberto Martins, no julgado Resp n.1185.474-SC,  a “realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarado como tema que depende unicamente da vontade política.” Nem pode ser limitado em “razão de escassez, quando esta é fruto das escolhas do administrador”, exatamente por isso a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial, não podendo ser arguida para deslegitimar a intervenção judicial quando se está em jogo assegurar as condições mínimas de existência.

O Pleno do STF, apreciando o recurso extraordinário nº 592.581/RS, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, assentou, sob o ângulo da repercussão geral, que “é lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer”, se assim for, “para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana”, “não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos Poderes”.

Ainda sobre a judicialização da saúde, devem ser mencionados futuros julgamentos do Supremo Tribuna Federal. O primeiro é o Recurso Extraordinário n° 566471, cujo relator  é o Ministro Marco Aurélio, cuja discussão é o  reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, dependendo, no entanto,  da comprovação da imprescindibilidade e da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil. Continuando na mesma esfera, o acórdão dado pelo Plenário Virtual ao RE 855178, perante o qual a União opôs embargos declaratórios, ainda pendente ainda de julgamento, reafirmou a jurisprudência dominante da Corte no sentido de que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados, podendo o polo passivo ser composto por qualquer um deles, isolada ou conjuntamente.

Por fim, há proposta de súmula vinculante n° 4, cujo tema está sobrestado e será retomado com o julgamento do mérito do RE n° 566.471, acima mencionado, proposta pela Defensoria Pública- da União, com o objetivo de que fique expressa a: “responsabilidade solidária dos entes federativos no que concerne ao fornecimento de medicamento e tratamento médico ao carente, comprovada a necessidade do fármaco ou da intervenção médica, restando afastada a alegação de ilegitimidade passiva corriqueira por parte das Pessoas jurídicas de Direito Público”.

Ainda trata sobre: “a possibilidade de bloqueio dos valores públicos para o fornecimento de medicamentos e tratamento médico ao carente, comprovada a necessidade do fármaco ou da intervenção médica, restando afastada, por outro lado, a alegação de que tal bloqueio fere o art. 100, caput e parágrafo 2°, da CF/88”.

Diante do exposto, duas conclusões podem ser extraídas. A primeira é a necessidade da efetividade da tutela referente a saúde, por ser, além de um direito social, um dever do Estado, a condição indispensável para a vida sobrevivência e mantença da vida dos indivíduos.

A segunda conclusão é que, por que hajam as ferramentas processuais e ajuizamento de ações e instauração de processos, muitos deles procedentes em relação a saúde, recai-se nas metodologias da obrigação de fazer do Estado que se esbarra nas questões administrativas e, sobretudo, orçamentárias, as quais devem seguir o rito legal, especialmente o quanto previsto na Constituição.

Diante disso, o presente artigo propõe um novo olhar jurídico deve ser proposto para destravar os obstáculos de efetivação da saúde, bem como os desafios encontrados na realidade entre os três poderes e realidade orçamentária dos entes federados para a efetivação da saúde. Eis, portanto, a proposta das Câmaras de Conciliação no Estado da Bahia.

 

  1. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SEUS GASTOS NO BRASIL E NA BAHIA: A VIABILIDADE DAS CÂMARAS DE CONCILIAÇÃO NA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Após as considerações acima, em que se comprova a celeuma da efetivação do direito à saúde, as agruras perante o Poder Judiciário e entraves orçamentários, cabe mencionar a viabilidade e efetividade das Câmaras de Conciliação, especialmente na Bahia. Cabe ressaltar que a discussão não tem fins de esgotamento, mas expor os pontos principais para a contribuição dos meios alternativos para o acesso aos direitos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Relatório Justiça em Números 2017, ano-base 2016 e os resultados, de forma geral, mostram que as ações judiciais continuam crescendo e a judicialização da saúde segue o mesmo ritmo do quanto explicado anteriormente:

 

Relatório Justiça em Números 2017:

Tipos de processos: Quantidade de processos:
Saúde 103.907
Fornecimento medicamento SUS 312.147
Tratamento médico-hospitalar 98.579
Assistência à Saúde                                                         28.097
Ressarcimento ao SUS                                                     3.439
Reajuste da tabela do SUS                                                 2.439
Convênio médico com o SUS                                           1.037
Repasse de verbas do SUS 786
Terceirização do SUS 676
Plano de saúde (direito do consumidor) 427.267
Serviços hospitalares- consumidor 23.725
Planos de saúde (benefícios trabalhistas) 56.105
Doação e transplantes órgãos/tecidos 597
Saúde mental 4.612                                      
Controle social e Conselhos de saúde 2.008
Hospitais e outras unidades de saúde 8.774
Erro médico 57.739
Total 1.346.931

 

Os dados extraídos da publicação “Números atualizados da judicialização da saúde no Brasil”, do Juiz Federal Clenio Jair Schulze, baseado no Relatório Justiça em Números (CNJ) identificam que tramitaram 1.346.931 processos judiciais de saúde de natureza cível ajuizados até 31/12/2016 e em trâmite no 1º grau, no 2º grau, nos Juizados Especiais, no Superior Tribunal de Justiça, nas Turmas Recursais e nas Turmas Regionais de Uniformização”.

De acordo com o relatório, as demandas judiciais causam enormes prejuízos econômicos e sociais e psicológoicos, tanto para as partes como para o órgão público. É necessário se buscar por uma solução de litígios alternativa, afinal, as questões envolvendo saúde requerem uma celeridade maior sem necessariamente ter que buscar pelas vias judiciais.

A partir da década de 1960, com maior ênfase nos anos 70, nasce nos Estados Unidos um movimento do meio jurídico e político conhecido como ‘Alternative Dispute Resolution’ (ADR). Este movimento surge como resposta por vias alternativas à utilização dos meios judiciais. Cappelletti (1994) considera a ADR como a terceira onda de acesso à justiça, a qual denomina de justiça coexistencial, porquanto as partes têm uma participação corresponsável na solução dos conflitos.

Os meios alternativos de resolução de conflitos representam instrumentos de efetivação do direito ao processo justo. Em demandas de saúde, a solução rápida e consensual, decorrente da utilização da mediação e da conciliação, proporciona, acima de tudo, a concretização do direito fundamental à saúde do jurisdicionado. Vem ao caso mencionar Alvarez (2003, p. 304): “[…] o poder das partes para resolver seus próprios conflitos é a expressão de uma sociedade democrática e o acesso à justiça para os grupos mais necessitados é a expressão de uma sociedade justa.” .

Para Asensi, (2013 apud Barbosa e Schulman, 2017), a atuação extrajudicial tem sido utilizada pelo próprio Judiciário em algumas comarcas, que amplia as possibilidades de sua atuação e de efetivação do direito à saúde. Dessarte, ocorre a juridicização das relações sociais (conflitos são discutidos sob o ponto de vista jurídico) sem ocorrer necessariamente uma judicialização (ao máximo, evita-se levar os conflitos ao Judiciário). Em virtude dessa atuação, o diálogo é valorizado, de modo a gerar ações efetivas no encaminhamento e resolução dos conflitos. Além disso, contribui decisivamente para a constituição de uma política judiciária de saúde.

Carlini citada por Barbosa e Shulman (2017, p.294) sugere: “Solução de conflitos por mecanismos não judiciais pode ser interpretada como sinal de maturidade de uma sociedade organizada, porque atribui importância ao diálogo e ao sopesamento de argumentos em lugar da busca por uma solução ditada por um magistrado que nem sempre terá condições objetivas de levar em conta o impacto de sua decisão para o conjunto da mutualidade pública ou privada”.

Nessas demandas, a conciliação prévia pode ser uma alternativa eficaz de resolução de conflitos. No Brasil, os marcos regulatórios que disciplinam os métodos consensuais são três: (a) a Resolução n. 125/201022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); (b) a Lei n. 13.105/201523 (Código de Processo Civil); e (c) a Lei n. 13.140/201524, que trata da mediação.

Na Bahia, a câmaras de conciliação de saúde, inaugurada em novembro de 2016, promove a desjudicialização de demandas processuais relativas a medicamentos e nutrição enteral e já registra um índice de 80% de soluções dos casos, garantindo uma maior agilidade e eficácia no acesso da população à saúde. Até julho de 2017, a unidade havia emitido 1,3 mil pareceres e atendido 634 pessoas.

A Câmara é resultado da Resolução nº 107 de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que sugeriu aos tribunais de todo o País a adoção de medidas que garantissem maior eficiência na solução de demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.

Tem o objetivo de encontrar soluções  dos conflitos na área da saúde, por meio da análise de casos concretos em que o cidadão não conseguiu resolver sua pendência diretamente com o SUS, minimizando a necessidade de pacientes acionarem a Justiça para resolver alguns tipos de questões, como a oferta de medicamentos e fornecimento de fórmulas alimentares especiais para pacientes de doenças crônicas que residam em Salvador, sempre em conformidade com a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Assim, a CCS busca dar suporte administrativo e apoio jurídico a questões que podem ser resolvidas extrajudicialmente, evitando a judicialização e oferecendo alternativas àqueles conflitos já judicializados.

A Câmara de Conciliação de Saúde é resultado de uma cooperação de diversos órgãos públicos: Tribunal de Justiça da Bahia, Tribunal Regional Federal, o Governo do Estado, por meio da Secretaria Estadual de Saúde, Ministério Público do Estado, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, Procuradoria Geral do Município e as Defensorias Públicas do Estado e da União.

Diante da exposição, ressalta-se a importância de saúde como direito fundamental, em que os conflitos devem ser solucionados com maior celeridade, sob pena de violação irreparável ao direito à vida. Da mesma forma, pode-se afirmar que, ainda que se tenha o acesso à justiça tutelado constitucionalmente, ainda se tem altas demandas sobre o referido direito, o que ressalta a importância de soluções alternativas com a participação das partes na solução de conflitos, evitando-se as vias processuais ou mesmo diminuindo o tempo do andamento processual.

Ainda pode ser evidenciado que a criação de regras de autocomposição administrativa, bem como a instalação de câmaras administrativas de conciliação sustentam a tendência da solução alternativa de conflitos, o que enseja o estímulo deve ser incorporado pelas partes, pelos advogados, juízes, Ministério Público e a própria Administração Pública. Neste sentido Didier Junior (2016, p. 167) aduz: “Pode-se, inclusive, defender atualmente a existência de um princípio do estimulo da solução por autocomposição – obviamente para os casos em que ela é recomendável. Trata-se de princípio que orienta toda a atividade estatal na solução dos conflitos jurídicos”.

Diante do exposto, as Câmaras de Conciliação em saúde é um instrumento de fomentação do direito fundamental a saúde, fazendo com que os interessados possam dialogar para resolver o conflito no lugar do processo judicial e todos os elementos que o cercam.

 

CONSIDERAÇÕES  FINAIS

Os crescentes litígios e, consequentemente, suas reivindicações, fundamentam-se no direito constitucional à saúde, que inclui o dever estatal de prestar assistência à saúde individual, de forma integral, universal e gratuita, no Sistema Único de Saúde (SUS), sob a responsabilidade conjunta da União Federal, Estados e municípios.

O papel dos órgãos públicos na promoção de medidas alternativas para solução desses conflitos torna-se fundamental para diminuir os custos com o aparato judicial, dar uma solução maior aos conflitos decorrentes da negativa no fornecimento de remédios ou suplementos nutricionais e amenizar os problemas sociais e psicológicos que sobrevêm aos pacientes.

De acordo com um estudo inédito realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) em parceria com o Ibope, em 2018, 70% dos brasileiros não tinham plano de saúde particular e dependiam exclusivamente do Sistema único de saúde; 56% acreditavam que a saúde pública havia piorado nos últimos doze meses. Diante desse quadro, com a crise no serviços médico-hospitalares, o caminho da judicialização acaba tornando-se mais efetivo, porém não resolve o problema de acesso aos tratamentos do SUS.

A judicialização da saúde, porém, fomenta outros problemas que vão muito além das partes do processo, como os gastos públicos, não especificados na lei orçamentária. De acordo com dados fornecidos pela Advocacia-Geral da União, em 2007, a União teve de pagar R$ 23 milhões para cumprir as decisões do poder judiciário; já em 2018, a cifra foi de R$ 1,1 bilhão.

A  Advocacia Geral da União (AGU) aponta ainda que, de 2007 a 2018, os gastos da União com a judicialização da saúde cresceram 4.600%. O gestor público de saúde acaba sofrendo uma grande tensão com a falta de orçamento para cumprir as decisões, as ordens de prisão, bloqueio de contas pessoais de secretários, e a obrigação de cumprir com a lei orçamentária.

A resposta judicial, em geral, tem-se limitado a determinar o cumprimento pelos gestores de saúde da prestação requerida pelos reivindicantes, respaldados por uma prescrição médica individual. De acordo com o pensamento jurisprudencial, o STF determina a presença, cumulativamente, dos seguintes requisitos: comprovação por laudo médico da imprescindibilidade do medicamento/tratamento; comprovação de registro na ANVISA e a comprovação da incapacidade financeira do requerente.

O ativismo Jurídico tem resultado em uma forte tensão e discussão sobre a legitimidade e a competência técnica e/ou legal-institucional do poder judicial, para decidir sobre o conteúdo e o modo como a prestação estatal deve ser cumprida pelo Executivo da Saúde, uma vez que muitos magistrados não tem ideia de como funciona o SUS, muito menos o impacto no orçamento público. Esta deliberação, a princípio, é de competência dos Poderes Executivos em conjunto com as instâncias deliberativas da gestão administrativa do SUS.

Dessarte, as câmaras de conciliação na Bahia vêm atender a esses conflitos, uma vez que promove uma interlocução entre gestores de saúde e órgãos do judiciário com o objetivo de se evitar a via judicial, tendo como princípio atender aos reclamos por uma vida digna, considerando as implicações orçamentárias e técnicas que envolvem a questão do direito à saúde.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Aluna do 9° semestre do curso de Direito do turno noturno da Universidade Católica do Salvador. E-mail: [email protected]

[2] Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade, Pós-Graduado em Processo Civil pela JusPodium, Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL, Professor de Direito da Universidade Católica do Salvador.  E- mail: [email protected]

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