A mídia e os poderes da Justiça

A versão da verdade não é história e sim estória.

A imensa sociabilidade da natureza humana, com efeito, leva o homem não só ter que conviver com os demais, mas o homem precisa acima de tudo compartilhar valores, interesses, crenças, informações. Donde se ressalta a intensa relevância da comunicação o que permite os homens participarem de troca de idéias e sentimentos, miscigenando estados subjetivos e, sobretudo devolvendo educação linear e niveladora.

È próprio da natureza humana a necessidade de obter informação, de estar atento de maneira mais ampla que possível ao seu ambiente, aos seus pares, de modo que possa organizar sua vida, seu comportamento individual coletivo, o que fatalmente impregna o inconsciente coletivo e a formação da opinião das massas e também do Poder constituído.

É certo que a informação e, a busca constante de identidades faz fortalecer ainda mais a solidariedade humana, ferramenta essencial para se enfrentar os desafios do mundo contemporâneo.

È direito fundamental, o direito de informação que é dotado de duplo aspecto: o primeiro referente a liberdade de imprensa, tipicamente consagrado como direito ativo, que deve ser exercido sem o perigo da censura e das retaliações. O segundo aspecto é o direito de ser informado, nitidamente passivo, mas que exige uma postura positiva do próprio poder constituído.

Não à toa que para se obter a concessão de canais de rádio e televisão há um forte controle do Estado, ex vi o art. 223 do CF/88. É indubitável que sob o crivo da concessão pública o homem ao ser informado pode com maior ênfase participar das decisões políticas e da formação da opinião pública.

O funcionamento da democracia prescinde da mídia, ainda que alguns doutrinadores dentro do perfil atual do Estado atentem para a nocividade das notícias ventiladas, e para a manipulação das pesquisas (principalmente as eleitorais) que vem as vezes contrariar a opinio populis.

É indubitável que sob o crivo da concessão pública o homem tem também o direito de ser informado, e assim poderá com maior ênfase participar das decisões políticas e da formação da opinião pública, munido da realidade ou da releitura do real, poderá formar juízo próprio e de cooperar ativamente dentro dos parâmetros constitucionais no processo democrático.

Não acreditemos que o direito de ser informado e de comunicação se limita no direito de ser cientificado sobre o que acontece na sociedade e de divulgar as notícias, compreendendo o direito de obter e veicular a informação verídica. Daí a curial distinção entre noticiário e narrativa literária ou reportagem.

Ab initio o princípio da proteção da liberdade de imprensa apenas visava garantir aos indivíduos a sua livre manifestação de expressão de opinião em face do Estado e de uma realidade social. É óbvio que no pluralismo das opiniões e doutrinas, haveria de se resguardar os fatos verídicos e palpáveis.

Numa ótica mais primitiva cumpre também proteger não só a liberdade da imprensa com todas as especialidades da Lei de Imprensa como também a liberdade face à imprensa. Pois a mesma imprensa não possui legitimidade para devassar as garantias fundamentais de liberdade dos cidadãos e, quiçá do Estado. Mas, não queremos que tal véu torne-se espúrio o suficiente para encobrir vexames e vicissitudes de um mau governo.

A revelação do poder social da imprensa capaz de afetar direitos dos particulares como honra, intimidade, reputação, imagem, e, etc…  Ademais não é possível conceber uma liberdade de imprensa absoluta. Mas, indaguemos o que é informação, e o que é deformação?? A liberdade de imprensa não pertence aos meios de comunicação e nem mesmo aos jornalistas, é do povo.

Nenhum direito fundamental é absoluto eis que imerso entre órbitas jurídicas que hão de serem respeitadas, a delimitação dos direitos fundamentais atende sobre tudo ao homem dentro do grupo social, integrado, uma parte do todo, sem a qual a parte não é parte e nem o todo será todo.

Duverger estabelece clara distinção entre liberdades civis e liberdades públicas: para este nobre doutrinador, as liberdades civis são aquelas que dizem respeito à atividade privada. Significa a garantia, a proteção contra prisões arbitrárias e garantem, por exemplo, a inviolabilidade do domicílio, a liberdade de correspondência, o sigilo bancário.

Desta forma, temos a liberdade de imprensa e de outros meios de expressão do pensamento, como livros, rádio, televisão, a liberdade de reunião e de associação, essas as chamadas liberdades públicas, portanto de grande relevância para a garantia da expressão do pensamento. Embora tanto as liberdades privadas como as públicas se encontrem no mesmo plano dos Direitos individuais fundamentais.

Karl Loewenstein estabelecerá um outro critério para a classificação das liberdades da pessoa, as liberdades civis em sentido próprio, e as liberdades econômicas e políticas. Podemos incluir entre as primeiras a proteção contra a arbitrária privação de liberdade ou o habeas corpus que vem como recurso heróico, nesse rol, inclui-se também a inviolabilidade de domicílio, a liberdade e segredo de correspondência, de dados bancários, entre outros.

Na segunda categoria das liberdades fundamentais estão as econômicas, a liberdade de escolha de profissão, a liberdade da livre disposição sobre a propriedade e a liberdade de contrato um pouco tangida pela função social do contrato e pela boa fé objetiva.

Em episódio recente, mostradas as entrevistas de Suzane von Richthofen  que nos brindou com uma faceta infantilóide, com choros compulsivos e, orientada com rigidez ora por seu tutor, ora por seu advogado, o que redundou em sua prisão preventiva a pedido do MP, mas se a prova é ilícita, e não presta para os doutos tribunais, restou comovida a opinião pública nacional.

E, qual liberdade terá o julgador diante de tão emocionada e comovida opinião pública ao desfavor de Suzane. Corrompeu-se o processo penal?  Corrompeu-se a isenção e imparcialidade do juiz?  Parecerá ao leitor desatento que estou a defender uma acusada de homicídio duplo (dos pais)… Mas, a verdade é que precisamos sustentar o Estado de Direito e nem tolerar quebra de sigilo bancário realizada por altas autoridades e nem atrozes homicídios dos pais… Temos que ser implacáveis, mas respeitados todos os princípios que norteiam o processo penal e a defesa da paz social.

A propósito, esta acusada está passível se for intentada por legítimos interessados de ação declaratória de indignidade e, não de deserdação como foi anunciado pelo jornal… Mas, até aonde soube, o irmão a havia perdoado, e este como único herdeiro enfeixa a legitimidade para intentar a referida ação que teria o condão de excluí-la da sucessão dos pais. E, veja que tal pena cível nem depende da condenação na esfera criminal, posto que os indícios sejam suficientes.

Mas qualquer liberdade exercida sempre será conjugada com o binômio liberdade/responsabilidade e remonta da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e, de outros documentos internacionais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969.

Recaséns Siches bem configura o objeto predominante dos direitos individuais, uma conduta própria do indivíduo, a qual este pode decidir livremente, a religião, a opinião, a expressão, desta forma, as garantias ou defesas individuais inibem que o homem seja submetido a escravidão, a torturas, a desigualdades perante a lei, e torna patente seu direito de ser julgado conforme a lei com todas as garantias processuais.

Desta forma, se aplico a lei sem o respeito da dignidade da pessoa humana, transformo-a em lei de talião, e, perco toda legitimidade de punir, pois tudo se transforma em apenas em revanche institucionalizada, transforma a arquitetura indispensável do devido processo legal numa sanca imprestável de gesso, a dar moldura apenas a uma pretensa legalidade e legitimidade,

O próprio art. 220, caput e § 1º, da Carta Magna de 1988 traz restrições à publicação de fatos e notícias pelos órgãos de divulgação de massa, entre as quais merece destaque a vedação do anonimato, o direito de resposta, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, incisos IV, V e X).

Precisamos entender que a liberdade de comunicação mais que apenas um direito fundamental já exercido pelo homem desde dos tempos da ágora, assume agora caráter de poder audiovisual. Desde forma conforme bem ressalta Jorge Miranda que por imperativo do Estado de Direito e do regime democrático pluralista, esse poder deve ser dividido e nem pode ser absorvido pelo poder político de conjuntura e nem por qualquer outro poder social, notadamente o econômico.

Na realidade, os grupos econômicos monopolizam os canais de informação que é transmitida através de redes, de todos os órgãos de imprensa chegam a afirma a mesmíssima coisa sobre um acontecimento que sempre possui um dodecaedro de angulações possíveis, imolando a liberdade do receptor de formar seu próprio convencimento sobre o fato e, de conhecer outras arestas além das que foram ventiladas pela mídia. Não à toa, a chamamos de quarto poder.

O único meio de o cidadão comum descobrir se é verdadeira a informação ou notícia, é pelo confronto dos discursos dos diferentes meios de comunicação. Então, se todos uníssonos afirmam a mesma coisa, há um nivelamento da sociedade de massa. Sufocando o indivíduo num imenso way of life ditado pelo sistema regiamente alimentado pelos meios de comunicação. Condenando o homem a uma heterodireção. São homens com uma conduta standard, com uma reação standard previsíveis e perfeitos homo medius que tão bem conhece o Direito e, particularmente a responsabilidade civil.

Na era da globalização neoliberal ou pseudoliberal sem observar qualquer parâmetro ético ou jurídico, relegando a segundo plano o bem-estar material e espiritual do homem, a brutal concentração dos meios de comunicação nas mãos de grandes grupos econômicos, transformam a imprensa escrita, falada num domínio do pensamento de mercado,  que só fazem ampliar seus interesses de influenciar a sociedade e os governos contemporâneos. Deixando de criticar os grupos que controlam o Estado. Deixando o papel da autocrítica mais burlesco e caricato.

Passamos de configuração vertical de poder, de cunho hierárquico e autoritário para um poder horizontal, reticular, uniforme, consensual, consenso este obtido certamente pelas manipulações da mídia. Chega-se a criar uma confusão entre a definição de mídia dominante e o poder político, deixando entre reticências se a imprensa contemporânea exerce de fato sua missão crítica.

Na verdade, nesse caso da Suzane von Richthofen , me pergunto até aonde a mídia se interessa pela tragédia de uma família e, até aonde pode influir positiva ou negativamente para dirimir os conflitos criados? Sendo certo, que tudo pode ter simplesmente ocorrido por mero acaso ou descuido, ou até numa tentativa de retirar-lhe a máscara de semi-imputabilidade.

No tocante ao processo penal sabença geral que é há constitucionalmente a presunção da inocência do réu até que se prove o contrário, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. E o pior que a exposição de certos acusados, e réus ainda  que conta por vezes com a colaboração das autoridades que possuem o dever profissional de não expô-los. Será que a farsa canastrona de Suzane não seria identificada num regular e eficaz processo penal com o respeito aos princípios que os norteia. Ou será que o judiciário precisa da índole investigativa e desbravadora da mídia?

Ademais, com a criação da Lei da Mordaça que proíbe os representantes do MP de opinar em investigações em curso, será que não seria uma tentativa de edificar conduta que abdicasse da independência, imparcialidade e soberania que deve ter o Poder judiciário e o MP como instituições restauradoras da paz social. É preciso ter coragem e cuidado para não se contaminar a atividade jurisdicional com o chamado clamor público, com as luzes e holofotes das entrevistas, debates e reportagens, orquestradas por uma mídia particularmente interessada num caso criminal.

Quantas Suzanes existem por aí? E quantas vítimas precisam morrer para se valorizar a vida o bastante, ao ponto de se conseguir resguardá-la a salvo de tudo e de todos?

Com sábia assertiva Alexandre Freitas Câmara traz à lume que o juiz deve ser imparcial mas jamais será neutro, posto que ser humano imerso em contingências e sentimentos e crenças próprias formadas ao longo de seu viver. Daí, o art. 335 do CPC se referir as próprias experiências técnicas do juiz como fonte de decisão e fundamentação.

Para se resguardar a necessária soberania de julgar é preciso coibir a intromissão da mídia em trabalhos judiciais, devendo o magistrado utilizar os mecanismos processuais necessários, para poder atuar com firmeza e retidão, sem que seja pressionado indevidamente a tomar decisões de forma sumária e atentatória às garantias constitucionais e processuais vigentes. Conquistas essas da maioria dos cidadãos e que enfatiza a razão de ser da democracia.

Konrad Hesse com rigor enfatiza que a mídia é fator essencial na formação da opinião pública, sendo a imprensa um dos mais relevantes meios de controle público permanente. Quase um olho que tudo vê. Porém, não podemos cooptar com a prática que seja desrespeitosa à dignidade humana, mesmo aquele que cometeu o delito por mais hediondo que seja, e, tampouco pela infelicidade justa de encontrar segregado.

E a nefasta pressão da mídia sobre a investigação criminal ou na própria instrução processual e no julgamento efetuados capaz de comprometer em muito a independência funcional dos agentes públicos do exercício dessas atividades, prejudicando o objetivo maior da persecução penal que consiste na apuração da verdade real.

Concluímos que é extremamente relevante a contribuição efetiva do poder público com a informação e na formação dos cidadãos, de maneira que possam afirmar e formar sua própria opinião “desmassificada” em relação a determinado fato, ou necessidade, sem que sejam seqüestrados pela mídia, e assim inibidos de participar do processo democrático, e no aperfeiçoamento das instituições sociais.

Deve-se se prestigiar a informação verdadeira e não somente aquela que é mercadológica, e hábil a pinçar maiores leitores ou ibopes, numa pode o fervor capitalista da mídia sufocar a missão democrática de bem informar, e servir de fonte legítima de expressão de poder.

Não podem os três poderes do Estado restarem submissos à ação vigorosa, cotidiana e cáustica da mídia, que em proclamações nacionais e internacionais, passam a tornear o convencimento e moldar consciências prévias.

É necessária a sabedoria dos homeopatas, pois é perigoso se transformar o remédio em veneno, e construímos vítimas impotentes e indefesas perante um grande tribunal onisciente, onipotente da mídia, destruindo a própria liberdade de imprensa, transformando-a na madrasta má da liberdade.

A imprensa nasceu da liberdade, e da necessidade de informar e ser informar, e uniformizar a informação, seria condenar a todos ao extenso corredor polonês que a golpes vigorosos de alienação trucidam a nossa democracia incipiente.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Gisele Leite

 

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.

 


 

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