Fundamentos da dignidade da pessoa humana

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Resumo: No presente artigo, pretende-se discorrer acerca dos fundamentos da dignidade da pessoa humana em razão da importante densidade jurídico-normativa que lhe foi atribuída através da evolução do direito constitucional brasileiro. Buscar-se-á identificar sua origem e evolução, assim como perquirir acerca do seu conteúdo, sua extensão e alcance, como elemento essencial a uma interpretação constitucional comprometida com a justiça.

Palavras-chaves: Constitucionalismo; Dignidade da Pessoa Humana; Direitos Fundamentais.

Abstract: In this article, we intend to argue about the foundations of human dignity because of the important legal and normative density assigned to it through the evolution of Brazilian constitutional law. Search will identify its origin and evolution, as well as to question about its content, its length and scope, as essential to a constitutional interpretation committed to justice.

Keywords: Constitutionalism; Human Dignity; Fundamentals Rights.

Sumário: 1 – Introdução. 2 – Breves Considerações Acerca do Novo Constitucionalismo Brasileiro. 3 – A Evolução do Conceito de pessoa humana. 4 – Evolução da Noção de Dignidade Humana. 5 – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Considerações Finais.

1 – Introdução

Nas considerações que serão feitas ao longo deste trabalho de pesquisa procurar-se-á abordar acerca dos fundamentos da dignidade da pessoa humana, identificando seus contornos e limites, bem como a definição do seu âmbito de aplicação.

Com efeito, ao texto constitucional de 1988, foram incorporadas tendências do novo paradigma do constitucionalismo mundial[1], inspirado em valores comprometidos com a construção de um Estado Democrático de Direito.

Segundo BARROSO (2001, p. 7), esse constitucionalismo conseguiu oferecer à sociedade contemporânea:

a) “legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte;

b) limitação do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias;

c) valores – incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade.”

As principais características do Direito em uma perspectiva clássica podem ser resumidas em: “a) caráter científico; b) emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade da lei e a neutralidade do intérprete”. Trata-se, portanto, de um ordenamento jurídico fechado, completo, no qual as eventuais lacunas somente seriam resolvidas pelo costume, pela analogia e pelos princípios gerais. A lei é o seu significado máximo, sem qualquer compromisso com os fundamentos de sua validade. (2001, p. 9)

De fato, o direito constitucional brasileiro incorporou pelo menos duas mudanças de paradigma, que, conforme Barroso (2001, p. 29), conferiram-lhe uma nova dimensão, quais sejam: “o compromisso com a efetividade de suas normas e o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional”.

Nesse novo constitucionalismo, ganha maior relevância o reconhecimento da normatividade de seus princípios, ensejando, via de consequência, a construção de uma interpretação coerente com as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais. (2001, p. 20)

Essa perspectiva, inspirada na normatividade dos princípios, inaugura uma nova sistemática de interpretação em torno da supremacia da dignidade da pessoa humana. (grifamos)

Em razão da importante densidade jurídico-normativa que lhe foi atribuída através da evolução do direito constitucional brasileiro fundada em uma interpretação constitucional comprometida com a justiça, trataremos o princípio da dignidade da pessoa humana, em razão da sua estreita vinculação para com os direitos fundamentais.

O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988, compreendido como núcleo essencial da República Federativa do Brasil, traduz-se no reconhecimento do valor do indivíduo como limite e fundamento da organização política da sociedade. Constitui o fundamento de validade que harmoniza e inspira todo o ordenamento constitucional vigente, informando a base do ordenamento republicano e democrático. (CANOTILHO, 1998, p. 219)

2 – Breves Considerações Acerca do Novo Constitucionalismo Brasileiro

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1998, inicia seu texto com uma proclamação de princípios e uma declaração de seus grandes objetivos e finalidades.

O preâmbulo, embora não seja compreendido como norma constitucional e, portanto, não possua força normativa, é considerado juridicamente relevante. Os princípios proclamados em seu texto constituem as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, segundo as quais se operará toda a interpretação e integração das normas constitucionais (MORAES, 2004, p. 51).

Em julgamento do STF, na AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ADI 2076 / AC, realizado em 15/08/2002, pelo Tribunal Pleno – REQTE.: Partido Social Liberal – PSL – REQDA.: Assembléia Legislativa do Estado do Acre, o ilustre Relator, Ministro CARLOS VELLOSO, pronunciou-se sobre o tema, de cujo voto extraímos as seguintes considerações:

“O preâmbulo, […], não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. É claro que uma Constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local.”

O Constituinte originário, incorporando tendências de um novo paradigma do constitucionalismo[2] mundial, fundou a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios, Distrito Federal e da própria União, bem como a constituiu em Estado Democrático de Direito. (Grifamos)

Com o propósito de definir os contornos de uma Constituição moderna, observa Canotilho:

“O constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada Constituição moderna. Por Constituição moderna entende-se a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.” (1998, p. 46)

CANOTILHO pondera, no entanto, que o conceito apresentado trata-se de um conceito ideal, que não corresponde a nenhum dos modelos históricos de constitucionalismo[3]. Como exemplo, destaca: a dificuldade que teria um cidadão inglês em aceitar falar-se de “ordenação sistemática e racional da comunidade através de um documento escrito”; bem como, a dificuldade que teria um americano em aceitar a “sugestão de uma cultura projetante traduzida na programação racional e sistemática da comunidade”; etc. (1998, p. 46)

Noutro passo, assevera Barroso:

“O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça.” (2001, p. 19-20).

BARROSO conclui que a característica marcante do novo paradigma do constitucionalismo não se encontra na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica, mas, no reconhecimento de sua normatividade. (2001, p. 20)

Acrescenta ainda:

“Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.” (BARROSO, 2001, p. 20)

Para BARROSO, “a Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”. (2001, p. 21)

Não é o propósito deste estudo aprofundar a pesquisa sobre a teoria dos princípios. Entretanto, é pertinente ao tema apresentar um resumo da trajetória da teoria dos princípios, desenvolvida por Paulo Bonavides, como se segue:

“A teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.” (BONAVIDES, 2006, p.294)

BONAVIDES conclui que, erigidos à categoria de norma das normas, os princípios fazem a “congruência, o equilíbrio e essencialidade de um sistema jurídico legítimo”. (2006, p. 294)

Essa perspectiva, inspirada na normatividade dos princípios, inaugura um novo paradigma do ordenamento jurídico brasileiro, cujos valores fundantes são: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. (grifamos)

3 – A Evolução do Conceito de pessoa humana

Atribui-se ao período axial (século VIII a.C. ao século II a.C. a ruptura com o saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. Nasce, assim, a concepção do indivíduo enquanto ser que exerce a sua faculdade de criticar racionalmente a realidade, questionando os mitos religiosos tradicionais e fundando as bases do critério supremo das ações humanas, qual seja o próprio homem. 

Identifica-se nesse período o início da construção dos fundamentos intelectuais que irão buscar a compreensão da pessoa humana em sua igualdade essencial, porque dotada de liberdade e razão, não obstante as diferenças de gênero, raça e costumes, assim como a afirmação da existência de direitos universais a ela inerentes.

Coube aos teólogos, a partir dos conceitos desenvolvidos pela filosofia grega, a missão de aprofundar a ideia de existência de uma natureza comum a todos os homens.

Para os estoicos, a dignidade é compreendida como uma qualidade humana universal e intrínseca diferenciada em relação a quaisquer outras criaturas, cuja dimensão do seu significado é vinculada à pretensão de respeito e consideração para com o outro.

SARLET destaca a existência nesse período de uma concepção com duplo significado, qual seja: uma dignidade decorrente da posição de prevalência que o homem ocupa na hierarquia da natureza (sentido absoluto), como ser racional; um outro sentido, segundo o qual a dignidade encontra-se vinculada à posição social do indivíduo, sendo, portanto, relativa, na medida em que pode sofrer alterações durante a sua existência.[4]

COMPARATO apresenta um resumo da evolução do conceito de pessoa humana dividido em cinco fases que serão apresentadas a seguir.

A primeira fase é marcada pela especulação acerca da identidade de Jesus Cristo, segundo a qual duas interpretações antagônicas se apresentavam: uma afirmava a natureza exclusivamente divina de Jesus Cristo e a doutrina ariana informava que Jesus não tinha uma natureza consubstancial a Deus, uma vez que fora efetivamente gerado por Ele. A conclusão apresentada em concílio ecumênico reunido em 325 decidiu pela natureza dupla, humana e divina, em uma única pessoa.

A segunda fase foi inaugurada no início do século VI com Boécio, cujos escritos influenciaram todo o pensamento medieval. Segundo sua definição, diz-se propriamente pessoa a substância individual da natureza racional. Ou seja, a substância é a característica própria de um ser.

Essa concepção foi recepcionada por Santo Tomás de Aquino e difundida pela renascença e pelo iluminismo, consubstanciada em uma compreensão do significado da dignidade como sendo a qualidade que tem o indivíduo de construir de forma livre e autônoma sua própria existência.

Decorre da concepção medieval de pessoa a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano, que formará o núcleo do conceito universal de direitos humanos como direitos comuns a toda a espécie humana, portanto, resultantes da sua própria natureza. Nega-se, via de consequência, a concepção de que os direitos humanos seriam uma criação da política. 

Na terceira fase, encontra-se a filosofia de Kant, na qual a dignidade da pessoa é concebida como um ser considerado e tratado como um fim em si mesmo, resultando que, em razão da sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, como ente capaz de agir segundo as leis que ele próprio edita. 

Conforme destaca COMPARATO, para Kant, “o princípio primeiro de toda a ética é o de que o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante”. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem, considerados como se fossem meus.

Com tal afirmação, Kant relativiza o valor das coisas em oposição ao valor absoluto da dignidade da pessoa humana, estabelecendo sob o fundamento da liberdade o que COMPARATO denomina de “o mundo das preferências valorativas”, bem como o mundo das normas, enquanto preceitos suscetíveis de consciente violação.

A quarta etapa resulta da compreensão de que a pessoa é o único ser vivo capaz de dirigir sua vida em função de preferências valorativas, sujeitando-se voluntariamente as normas valorativas criadas por ela própria.

A quinta etapa tem suas bases fixadas a partir da filosofia da vida e o pensamento existencialista próprios da primeira metade do século XX. A partir da constatação da crescente despersonalização do homem contemporâneo, como consequência da mecanização e burocratização da vida em sociedade, a reflexão filosófica acentua o caráter único e irreprodutível da personalidade individual. Cada ser possui uma identidade inconfundível com a de qualquer outro.

Contudo, reconhece-se a realidade essencialmente relacional da vida, por que a pessoa encontra-se imersa no mundo, entendendo-se, portanto, como circunstância.

Decorre desse caráter único e irreproduzível de cada pessoa, portador de valor próprio, a existência singular da dignidade da pessoa em todo indivíduo.

COMPARATO (2010, p. 44) observa que as reflexões da filosofia contemporânea acerca da essência histórica da pessoa humana, conjugadas à evolução dos fundamentos científicos da biologia fortaleceram a tese do caráter histórico dos direitos humanos, tornando sem sentido a controvérsia acerca das suas bases fundadas no direito natural imutável, bem como no positivismo jurídico que vê no Estado a única possibilidade da existência do direito.

4 – Evolução da Noção de Dignidade Humana

Percebe-se do exposto que o valor da pessoa humana já encontrava suas raízes no pensamento clássico, bem como na reflexão teológica. Enquanto o cristianismo difundia que o ser humano não podia ser reduzido à condição de mero objeto, por que é dotado de um valor próprio que lhe é intrínseco, uma vez que foi criado à imagem e semelhança de Deus, a reflexão filosófica clássica elaborava um significado para a dignidade humana fundada na posição ocupada pelo indivíduo na sociedade, assim como o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da sociedade.[5]

Ao evoluir, a formulação da dignidade foi se distanciando das concepções tradicionais clássicas e religiosas, consolidando uma ruptura com o paradigma anterior e fundando uma formulação secular e racional da dignidade da pessoa humana, tendo como escopo a liberdade moral como característica do ser humano, e não a natureza humana em si.[6]

Todavia, o processo de secularização foi consolidado a partir da concepção kantiana acerca da dignidade enquanto manifestação da autonomia ética da pessoa humana.

Com efeito, conforme observa WEBER (2009, p. 233), autonomia[7] e dignidade, são considerados (…) como intrinsecamente relacionados e mutuamente imbricados. A dignidade pode ser considerada como o próprio limite do exercício do direito de autonomia. E este não pode ser exercido sem o mínimo de competência ética.

Em Kant, autonomia da vontade é atributo exclusivo dos seres racionais, sendo considerado o fundamento da dignidade da pessoa humana. Como afirma WEBER (2009, p. 238), não há dignidade sem autonomia. Consiste em que a vontade legisladora não esteja subordinada a nenhuma outra que lhe seja superior (RAWLS apud WEBER, 2009, p. 239).

Portanto, o homem é um fim em si mesmo, sendo inválida quaisquer tentativas de coisificação. Para que a vontade seja livre e autônoma, importa que a razão seja o determinante a priori da vontade. Implica dizer que a decisão encontra-se livre de quaisquer influências externas ou de conteúdo empírico. No pensamento de Kant não há liberdade em agir contra a lei, pois, a liberdade só decorre do agir conforme a lei moral.[8]

SARLET adverte, no entanto, que essas concepções acerca da dignidade da pessoa humana desenvolvidas por Kant, a partir de uma dimensão axiológica (dignidade como valor intrínseco) inter-relacionada com as noções de autonomia, racionalidade e moralidade como seus fundamentos, encontram-se sujeitas à crítica em razão do seu acentuado antropocentrismo.

É que, considerado o atual estágio de desenvolvimento da sociedade, ganha relevo as preocupações com a defesa do meio ambiente e a proteção de todos os recursos naturais, que nem sempre têm como objetivo garantir aos seres humanos uma vida com dignidade, senão com a preservação da vida em geral e do patrimônio ambiental. Nesse passo, abre-se oportunidade para que se amplie a dimensão e o alcance do significado da dignidade da pessoa humana, resultando disso obrigações e deveres mínimos e análogos de proteção para com os demais seres. [9]

Apesar das críticas, as formulações de Kant representam um marco nas reflexões jurídico-filosóficas que influenciaram profundamente o pensamento e a produção jurídica.

SARLET destaca como contraponto ao pensamento kantiano o pensamento de Hegel, para quem a dignidade constitui uma qualidade a ser conquistada. Hegel refuta a concepção ontológica defendida por Kant, na medida em que compreende a dignidade como qualidade a ser adquirida a partir do momento em que o homem assume sua condição de cidadão. O pensamento de Hegel não reconhece a pessoa e a dignidade como qualidades inerentes a todos os seres humanos, bem como não condiciona a condição de pessoa, sujeito e dignidade à racionalidade.[10]

Nada obstante, a influência dos fundamentos metafísicos da dignidade da pessoa humana, bem como a ideia de que a dignidade decorre, independemente de qualquer outra circunstância, apenas de sua condição humana ainda continua prevalecendo na maioria dos sistemas jurídicos comprometidos em constituírem um Estado Democrático de Direito.

Sob a perspectiva jurídico-normativa, é na conceituação de dignidade da pessoa que se encontra o grande desafio da reflexão jusfilosófica. Embora se reconheçam as críticas que destacam o caráter polissêmico, ambíguo e impreciso atribuídos à noção de dignidade da pessoa, não se deve renunciar à tarefa de buscar sua fundamentação, assim como a construção permanente de um conceito comprometido com a sua concretização.[11]   

De fato, o aprofundamento na controvérsia que se apresenta em torno da dimensão e alcance conceitual da dignidade da pessoa humana extrapolaria os objetivos propostos no presente trabalho, dada a complexidade dos argumentos de natureza filosófica, ideológica e cultural que orbitam em torno da discussão.

O fato é que o constitucionalismo contemporâneo se comprometeu com a ideia de que a pessoa humana, em razão da sua exclusiva condição humana é titular de direitos que devem ser reconhecidos e protegidos pelo Estado e por terceiros. Entretanto, a dignidade da pessoa, como ficou demonstrado, não é criação constitucional. Como adverte SARLET, citando José Afonso da Silva, entre outros, embora a dignidade não exista apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, o Direito pode exercer um papel fundamental na sua proteção, assim como na sua promoção.

É importante destacar que a liberdade – autonomia que se apresenta como base do pensamento kantiano é considerada como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminação da própria conduta. Portanto, seu sentido é abstrato. Todavia, conforme observa SARLET (2011, p. 63) apenas a dignidade de determinada pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pessoa em abstrato. Trata-se de atributo da pessoa concreta e individualmente considerada.

Nesse sentido, há quem discorde da ideia de dignidade da pessoa fundada exclusivamente como inerente à natureza humana. Para essa vertente afirma-se coexistir com a dimensão ontológica uma dimensão histórica e cultural que não pode ser desconsiderada, que exige uma construção conceitual que leve em consideração a situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana da comunidade em geral para com todos e para com cada uma.

Sendo assim, ganha relevância o argumento que defende uma dimensão defensiva da dignidade, segundo a qual se reconhece um limite intransponível em defesa da individualidade e da autonomia da pessoa contra qualquer tipo de interferência por parte do Estado e de seus semelhantes, assim como uma dimensão prestacional da dignidade, que se manifesta na promoção da dignidade mediante a criação de condições que promovam o pleno exercício e fruição da dignidade. Ladeur, Augsberg, Luhmann e Dworkin são alguns dos autores citados por SARLET que compartilham a ideia apresentada.[12]

Com efeito, não há como desconsiderar a dimensão social da dignidade, uma vez que todos são iguais em dignidade e direitos. Mais relevante, ainda, é que o desenvolvimento das ideias acerca da natureza relacional da dignidade da pessoa humana contribuiu para vincular a igual dignidade que todas as pessoas humanas possuem à qualidade comum, conforme afirmou FUKUYAMA, de que como seres humanos partilhamos uma humanidade comum que permite a todo ser humano se comunicar potencialmente com todos os demais seres humanos no planeta e entrar numa relação moral com eles.[13]

Vê-se, a toda evidência, como é complexo reduzir em termos genéricos e abstratos uma noção de dignidade da pessoa que acolha toda a dimensão do seu conteúdo e significado. Contudo, como já salientado em passagem anterior, não se deve renunciar à busca de uma definição necessariamente aberta e minimamente objetiva, que seja passível de comprovação à luz da relação existente entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, por ser no âmbito dessa relação que se opera e se concretiza a produção dos seus efeitos jurídicos. 

Nesse sentido, SARLET desenvolve um conceito que propõe seja ao mesmo tempo multidimensional, aberto e inclusivo da dignidade da pessoa humana, o qual transcrevemos no original:

“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.” (2011, p. 73)

5 – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988, constitui fundamento de validade que harmoniza e inspira todo o ordenamento constitucional vigente, informando, de modo expressivo, a base do ordenamento republicano e democrático.

Deve ser compreendido como o núcleo essencial da organização política da sociedade brasileira, traduzindo-se na finalidade essencial, no objetivo inarredável, ou seja, trata-se daquilo que Canotilho denominou de “reconhecimento do valor do indivíduo como limite e fundamento do domínio público da República” (CANOTILHO, 1998, p. 219).

É valor espiritual e moral que exprime uma ideia, segundo a qual o indivíduo é conformador de sua própria vida e condição, isto é: manifesta-se, conforme defende Moraes (2004, p. 52), na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e na pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, assegurando a unidade dos direitos e garantias fundamentais e impedindo, via de consequência, que ocorram limitações ao exercício dos direitos fundamentais. (MORAES, 2004, p. 52)

Para BARROSO, o princípio da dignidade da pessoa humana “representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar”. O autor argumenta que o conteúdo jurídico do princípio está vinculado aos direitos fundamentais e envolve aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais.

Destaca-se no argumento do autor a defesa da existência de um “mínimo existencial, composto de um “conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade,” cuja lesão, “ainda que haja sobrevivência”, suprime a “dignidade”. (BARROSO, 2001, p. 26-27)

Verifica-se, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui uma norma constitucional essencial à interpretação e integração do nosso ordenamento jurídico, conferindo unidade e sentido a todas as demais normas do ordenamento jurídico, em especial, na concretização dos direitos fundamentais e na implementação dos direitos sociais, na medida em que nega o homem como objeto e acolhe a ideia da pessoa humana enquanto fim em si mesma, portanto sujeito de direitos que carecem de reconhecimento e proteção.

6 – Considerações Finais

Transcorridos quase quinze séculos desde as primeiras concepções acerca do significado da dignidade da pessoa enquanto qualidade que tem o indivíduo de construir de forma livre e autônoma sua própria existência, verifica-se que, a despeito da complexidade conceitual e da dificuldade de identificar a extensão de seus efeitos em toda a sua dimensão, é notório a importância que a ideia de dignidade da pessoa humana adquiriu no mundo contemporâneo.  

Influenciados pela filosofia de Kant, na qual a dignidade da pessoa é compreendida como um ser considerado e tratado como um fim em si mesmo, resultando que, em razão da sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, como ente capaz de agir segundo as leis que ele próprio edita, os sistemas políticos e jurídicos foram sendo consolidados e difundidos pelo mundo ocidental. 

A assertiva de que a pessoa é o único ser vivo capaz de conduzir sua vida em função de suas preferências valorativas, sujeitando-se voluntariamente às normas valorativas criadas por ela própria, foi sendo aperfeiçoada pelos vários ciclos históricos e consolidando o reconhecimento de uma outra dimensão do significado, coerente com a realidade relacional da vida, uma vez que a pessoa encontra-se imersa no mundo.

É nesse contexto que o constitucionalismo contemporâneo se compromete com a ideia de que a pessoa humana, em razão da sua exclusiva condição humana, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e protegidos pelo Estado e por terceiros, como limite último contra o impactante resultado do modo de vida contemporâneo e despersonaliza e mecaniza a vida do ser humano.

 

Referências bibliográfcas
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WEBER, Thadeu. Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana em Kant. Direitos Fundamentais e Justiça, n. 9 – out/dez. 2009.
 
Notas:
 
[1] Luís Roberto Barroso (2005, p. 2) nos revela que esse novo paradigma pode ser identificado historicamente a partir da “reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2ª Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX”. Segundo o Autor, esse movimento “redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas”, através de uma nova forma de organização política inspirada na “aproximação entre as ideias de constitucionalismo e de democracia”. 

[2] Trazemos à colação uma noção básica sobre o tema formulada por J. J. Gomes Canotilho: “Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo.” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª edição, pág. 45). Ainda sobre o tema, também, a lição de Luís Roberto Barroso : “Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito. […] A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico.” (Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. In http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547, extraído em 7/12/2006, pág. 8)

[3] “Por constituição em sentido histórico entender-se-á o conjunto de regras (escritas ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem jurídico-política num determinado sistema político-social”. (1998:47)

[4] Idem, p.36.

[5][5] SARLET, 2011, p. 34,

[6] SARLET, 2011, p. 38-39.

[7] Segundo WEBER, no pensamento de Kant, autonomia pode ser compreendida como “a supremacia da razão”. A possibilidade de um povo dar-se a si a própria lei. Quere para todos o que se quer para si é a expressão máxima da autonomia. Só há autonomia quando o sujeito agente se submete a si mesmo, isto é, quando obedece a lei da qual é autor. (2009, p. 234 e 238) Em SARLET,(apud WEBER, 2009, p. 239) “a autonomia deve ser considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto”.

[8] WEBER, 2009, p. 244 e 257.

[9] SARLET, 2011, p. 43-45.

[10] Idem, p. 47.

[11] SARLET, 2011, p. 52.

[12] SARLET, 2011, p. 57-64.

[13] FUKUYAMA apud SARLET (2011, p 67)


Informações Sobre o Autor

Geraldo da Silva Datas

Auditor Fiscal da Receita Estadual junto à Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais; Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestrando em Direito Empresarial junto à Faculdade de Direito Milton Campos


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