Identidade, memória e patrimônio: implicações nos aspectos políticos do movimento de ocupações das escolas (2015 e 2016)

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GHELLERE, Francielle de Camargo[1]

SANTOS, Olirio Rives dos[2]

Resumo: O objetivo do presente artigo é refletir sobre as relações entre as categorias identidade, memória e patrimônio, bem como sua respectiva relevância na vertente e no desenvolvimento do fenômeno de ocupações das escolas desencadeado pelos estudantes segundaristas do Estado de São Paulo em 2015 e do Paraná em 2016, ambos estados localizados no Brasil. Nesse sentido, é considerado na análise o nascedouro, o desenrolar e as consequências do mencionado processo de reivindicação e resistência protagonizado pelos ocupantes, tendo em consideração que a causa fundamental e primeira do objeto estudado foi à política de reorganização escolar proposta pelo governo paulista e a reorganização do Ensino Médio de iniciativa do governo federal, culminando em vitória dos estudantes no que tange ao fator jurídico e derrota no que se refere à seara política. Assim ocorreu tanto na arena paulista, quanto na paranaense, uma vez que em São Paulo, mesmo que de forma “sorrateira”, o governo colocou em prática a política que pretendia, ao passo que no âmbito federal, também foram aprovadas as politicas propostas através da Emenda Constitucional nº 95/2016 e da Lei Federal 13.415/2017.

Palavras-chave: Memória; Patrimônio; Identidade; Ocupação e Escola.

 

Resumen: El objetivo de este artículo es reflexionar sobre las relaciones entre las categorías identidad, memoria y patrimonio, así como su respectiva relevancia en el aspecto y desarrollo del fenómeno de las ocupaciones escolares desencadenadas por estudiantes de secundaria del Estado de São Paulo en 2015 y el Paraná en 2016, ambos estados ubicados en Brasil. En este sentido, se considera en el análisis la nacedora, el desarrollo y las consecuencias del mencionado proceso de reclamo y resistencia llevado a cabo por los ocupantes, teniendo en cuenta que la causa fundamental y primera del objeto estudiado fue la política de reorganización escolar propuesta por el gobierno de São Paulo y la reorganización de la Educación Secundaria por iniciativa del gobierno federal, que culminó con la victoria de los estudiantes con respecto al factor legal y la derrota con respecto al campo político. Este fue el caso tanto en la arena de São Paulo como en la de Paraná, ya que en São Paulo, incluso de una manera “furtiva”, el gobierno puso en práctica la política que pretendía, mientras que a nivel federal, las políticas propuestas también fueron aprobadas a través de Enmienda Constitucional 95/2016 y Ley Federal 13.415 / 2017.

Palabras clave: memoria; Patrimonio; Identidad; Ocupación y escuela.

 

Sumário: Introdução. 1 Identidade, memória e patrimônio. 2 Aspectos políticos do movimento de ocupações das escolas considerações finais. Referências bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade analisar: identidade, memória e patrimônio, assim como suas respectivas relações e implicâncias nos processos do Movimento de Ocupação das Escolas[3], e o fará a partir da base teórica salientada nas referências e que se relacionam com o assunto. Nesse sentido, será considerada a relação entre as categorias referidas, assim como a significação das mesmas com as atividades do fenômeno das ocupações desencadeado pelos estudantes, em especial o ocorrido no Brasil em 2015 no Estado de São Paulo e 2016 no Estado do Paraná. Será analisado ainda o itinerário de evolução do movimento estudantil, considerando fatores que afloram, tanto no âmbito da sala de aula, quanto na unidade escolar como um todo, até se estender para a rede educacional de um modo geral.

Além da bibliografia especializada sobre a temática, será considerado de forma complementar as demais bibliografias constantes nas referências, bem como aquelas de cunho legislativo, inclusive a Emenda Constitucional nº 95 de 15 de dezembro de 2016; as Propostas de Emendas Constitucionais nºs 55/2016 (Senado) e 241/2016 (Câmara dos Deputados); Medida Provisória nº 746/2016, assim como as Leis Federais 9.394 de 20 de dezembro de 1996 e 13.415 de 17 de fevereiro de 2017. O estudo das legislações em questão se faz imprescindível em razão da política nela contida ser a causa do movimento de ocupação das escolas no período analisado

Observa-se que no período estudado (2015 e 2016) o tencionamento entre estudantes e governo ocorreu justamente em razão das mudanças na legislação então propostas pelo Poder Executivo Federal e aprovada através do parlamento, ocasião na qual foram suprimidos direitos estudantis conquistados outrora no decorrer dos processos de lutas. Nesse sentido, com base nos estudos sobre as legislações apresentadas, em modificação, mas, principalmente, sobre a estrutura e a dinâmica do movimento dos estudantes, aliados ao contexto da trilogia identidade, memória e patrimônio, almeja-se, de acordo com os limites do estudo, obter uma melhor compreensão e visualização do ocorrido, além de sua significância no que tange as melhorias almejadas pelo setor educacional conforme salientado acima.

Compreende-se que: identidade, memória e patrimônio, têm relação com o movimento de ocupação das escolas ocorridos nos últimos anos, inclusive o ocorrido no Brasil em 2015 e 2016, que por sua vez possui origens no movimento estudantil chileno denominado “Revolução dos Pinguins”[4], além de forte e relevante contribuição das ações desencadeadas pelos estudantes argentinos através da “Frente de Estudantes Libertários” e sua cartilha denominada “Como Tomar Um Colégio”. O referido documento chegou ao meio estudantil paulista e logo foi traduzido por outro coletivo denominado “O Mal Educado”, instrumento que teve larga aplicação no decorrer dos processos de ocupação escolar, especialmente no Estado de São Paulo no ano de 2015 e Estado do Paraná no decorrer do ano de 2016, em cujo momento ocorreu o ponto mais alto das atividades desenvolvidas pelos estudantes (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016).

Essa caminhada dos estudantes em busca do direito à educação tem ocorrido em razão dos problemas históricos que tanto afetam o sistema educacional na América Latina, além das políticas neoliberais aplicadas pelos governos latinos americanos, em indiscutível prejuízo às políticas educacionais de seus países.

A situação é semelhante ao que vivemos no Brasil, já que o clamor que ocorreu e continua ocorrendo, é em função da Proposta de Emenda Constitucional nº 241/2016 e 55/2016 de autoria do Governo Federal, e também da Medida Provisória 746/2016, igualmente de iniciativa do então Presidente Michel Temer, além de uma série de outros problemas graves relacionados à questão estrutural, inclusive no que se refere aos interesses do magistério, portanto, da carreira dos professores.

 

1 IDENTIDADE, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO

Os fatores relacionados à identidade, a memória e ao patrimônio estão imbricados com o Movimento de Ocupação das Escolas e se relacionam em todos os aspectos. Representam o nosso passado, tanto individual quanto coletivo, se imiscuem no cotidiano que vivenciamos e, por consequência, pautam o nosso futuro, seja como valor único, ou como somatórias que nos dão significados e assim definem a nossa cultura, influenciando em todos os espaços em que militamos, seja no meio social, no econômico ou no político, eis que se colocam como consequência e ao mesmo tempo como gênese de ações que praticamos e projetos que desenvolvemos, seja no espaço individual, ou nos meios relacionados às demandas coletivas, a exemplo do que ocorre com os movimentos sociais de modo geral.

Nesse sentido, Joel Candau (2011) demonstra o andar desse embricamento, e o faz dizendo o seguinte:

 

“Se identidade, memória e patrimônio são “as três palavras-chave da consciência contemporânea” – poderíamos, aliás, reduzir a duas se admitimos que o patrimônio é uma dimensão da memória, é a memória, podemos afirmar, que vem fortalecer a identidade, tanto no nível individual quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir sua identidade” (CANDAU, 2011, p. 16).

 

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, lapida e nos conduz seguindo as consequências dos acontecimentos, também sofre a nossa influência e se constrói por nós modelada. E isso resume a dialética da memória e da identidade que se conjugam, pois se nutrem mutuamente, são valores que se apoiam um no outro para produzir uma trajetória ou projeto de vida, uma história, um mito, ou que seja uma narrativa, embora ao final reste apenas o esquecimento, de acordo com o pensamento de Candau (2011, p. 16). Nesse sentido, a memória acaba por fundar ou lapidar a identidade, que por sua vez se constitui em patrimônio.

 

“Sem lembranças, o sujeito é aniquilado. É a memória, ainda, que iria fundar as identidades coletivas: no final da idade média, na Alemanha, dizia-se que os camponeses, quando se rebelavam frente ao poder senhorial, “esqueciam-se” de que “se haviam desconhecido” esquecendo ‘quem eram’”(CANDAU, 2011, p. 17).

 

E, assim, ao citar Isac Chiva, Candau conceitua identidade e o faz nos termos a seguir delineados:

 

“Igualmente, Isac Chiva, ao definir identidade como “a capacidade que cada um tem de permanecer consciente de sua vida através das mudanças, crises e rupturas”, enraíza igualmente a identidade em um processo memorial” (CANDAU, 2011, p. 16).

 

E ainda insiste Candau, “De fato, memória e identidade se entrecruzam indissociáveis, se reforçam mutuamente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução” (CANDAU, 2011, p. 19). Como se vê, no pensamento de Candau é sólido a convicção do entrelaçamento entre memória, identidade e patrimônio, cuja trindade delega à identidade a função de nos manter conscientes ao que defendemos ao longo da vida e independendo dos sobressaltos relacionados às crises, incidentes e grandes mudanças.

Boa Ventura de Souza Santos (1993) argumenta que:

“sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação” (SANTOS, 1993, p. 31).

 

Para o autor, as memórias, mesmo as mais sólidas, guardam um mecanismo de transformação, pois:

 

Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constantes processos de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso” (SANTOS, 1993, p. 31).

 

Constata-se que a questão da identidade se traduz em uma reinterpretação fundadora capaz de converter um déficit de sentido da pergunta, no excesso de sentido da resposta (SANTOS, 1993, p. 32).

 

“E o faz, instaurando um começo radical que combina fulgurantemente o próprio e o alheio, o individual e o coletivo, a tradição e a modernidade” (SANTOS, 1993, p. 32).

 

Transparece certa tensão entre o pensamento de Joel Candau (2011) e Boaventura de Souza Santos (1993) quanto à identidade, uma vez que os textos suprarreferidos demonstram que Candau vê a identidade como uma espécie de estado consciente intransponível, ao passo que Santos enxerga uma mescla de pensamento ancorado no passado e ao mesmo tempo pronto ou conectado às mudanças impostas pela modernidade. Observa-se que ambos têm a identidade como uma espécie de plataforma que se coloca como nosso sustentáculo, seja no plano individual ou no coletivo. Portanto, em síntese, para os dois autores a identidade é a nossa memória e ao mesmo tempo o nosso patrimônio, sobre os quais tomamos decisões e traçamos o rumo do futuro que almejamos, inclusive considerando as necessidades e as imposições da atual fase da modernidade, a rigor do que adiante demonstraremos.

Com isso, é importante se ater ao pensamento de Stuart Hall (1992) sobre a questão da identidade.

 

A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 1992. P. 7).

 

E nesse entendimento prossegue Hall (1992):

 

A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudanças, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 1992, p. 7).

 

Dessa forma, diante do exposto, entende-se que a influência da identidade em nosso cotidiano e ações que praticamos é ancorada no passado através da memória e nas mudanças que se impõem de forma ampla. É indiscutível que esse processo de mudança nas sociedades modernas influencia todo o contexto social, inclusive os movimentos sociais e o movimento estudantil de ocupação das escolas ocorrido no Brasil em 2016, a exemplo do mesmo fenômeno de 2015 em São Paulo, bem como na Argentina, Chile e outros países Sul Americanos ao longo dos últimos anos.

Com o fim de demonstrar uma possível relação entre o referido movimento estudantil e os aspectos atinentes à identidade, memória e patrimônio, busca-se nas considerações de Joel Candau (2011), o sentido demonstrado ao movimento reivindicatório dos estudantes, o qual, no nosso entendimento, está diretamente relacionado ao fator identidade e aí transparece, também, o aspecto memória, inclusive quanto ao nível, se memória forte ou memória fraca[5].

 

Entre as categorias organizadoras de representações vou privilegiar aqui a memória. Seu efeito será proporcional a sua força. Denomino memória forte uma massiva, coerente, compacta e profunda, que se impõe a uma grande maioria dos membros de um grupo, qualquer que seja seu tamanho, sabendo que a possibilidade de encontrar tal memória é maior quando o grupo é menor” (CANDAU, 2011, p. 44).

 

Candau (2011) demonstra a vigência da memória fraca e da memória forte no interior dos grupos humanos, considerando a convivência entre os indivíduos e o vivenciado no cotidiano, o que, pelo contexto do movimento dos estudantes e as suas vivencias no dia a dia escolar, pode se caracterizar como uma memória fraca ou forte, dependendo da situação concreta e das demandas dos estudantes em caso específico. Nesse sentido, o autor salienta como se constituem as memórias coletivas, onde entendemos que estão inclusas as vivencias do meio escolar.

 

“As sociedades caracterizadas por um forte e denso conhecimento recíproco entre seus membros são, portanto, mais propicias à constituição de uma memória coletiva – que será nesse caso uma memória organizadora forte – do que as grandes megalópoles anônimas” (CANDAU, 2011. P. 45).

 

Como a identidade é uma base fundamental a partir da qual tomamos decisão, seja no plano individual ou no coletivo, e considerando ser evidente que os estudantes no interior das instituições de ensino, tanto nos grupos reduzidos da sala de aula, quanto de maneira mais ampla envolvendo o contexto das séries, equipes e times de praticas esportivas, até chegar ao contexto da unidade escolar como um todo, tomam decisão na defesa dos seus interesses e o fazem a partir da identidade formada em conjunto com os colegas de estudo ao longo dos meses e anos de convivência em razão do cotidiano escolar, sendo que as referidas práticas, hábitos e modo de fazer, é o que descrevem em suas argumentações, ao nossos ver, os teóricos acima referidos.

Entende-se que os movimentos sociais, em especial os movimentos estudantis, inclusive aqueles que ocuparam as escolas com vista à melhoria das condições educacionais, no contexto do Brasil em 2015 e 2016, sempre têm por objetivos as reivindicações de melhorias ou manutenções do status quo que outrora foram conquistados e que estão constantemente diante de ameaças de retrocessos impostas pela ausência de ação que lhes é imposta, conforme argumenta Maria da Glória Gohn (2014):

 

“Do exposto até o momento podemos tirar uma primeira dedução, a saber: movimento social refere-se à ação dos homens na história. Esta ação envolve um fazer – por meio de um conjunto de procedimentos – e um pensar – por meio de um conjunto de ideias que motiva ou dá fundamento à ação. Trata-se de uma práxis portanto” (GOHN, 2014, p. 247).

 

E prossegue Gohn:

 

“Na segunda acepção a categoria fundamental e a de força social, traduzida numa demanda ou reivindicação concreta, ou numa ideia-chave que, formulada por um ou alguns, e apropriada por um grupo, se torna um eixo norteador e estruturador da luta social de um grupo – qualquer que seja seu tamanho – que se põe em movimento” (GOHN, 2014, p. 248).

 

Nesse sentido e linha de raciocínio que estamos esboçando, considerando que os movimentos dos estudantes se caracterizam como movimentos sociais e, portanto, significam coletivos em movimentos e em busca de novos direitos ou pela manutenção daqueles já conquistados. Diante do entendimento tanto de Candau (2011), quanto do Boaventura (1993) e Hall (1992), parece ser evidente que o suporte das mencionadas ações estudantis se ancoram nas plataformas de valores e interesses postos pelo tripé identidade, memória e patrimônio.

Tal entendimento parece tender à solidificação em razão da reivindicação estudantil rejeitar a perda ou almejar aquilo que ainda não tem[6], porém, sempre com vista a uma satisfação, e isso significa assegurar ou garantir a identidade, portanto, preservar a memória e por consequência o patrimônio, já que são valores que se conjugam, se complementam e se mantêm sólidos pelo menos por um determinado período, a rigor do que foi demonstrado acima.

Candau (2011) demonstra como ocorre a formação do sentimento de memória e identidade, portanto, de âmbito coletivo, onde as ações dos estudantes estão logicamente incluídas.

 

De fato, cada vez que no interior de um grupo restrito as memorias individuais querem e podem se abrir facilmente umas às outras, como nos casos em que existe uma “escuta compartilhada” visando os mesmos objetos (por exemplo, monumentos, comemorações, lugares que terão o papel de “ponto de apoio”, de “sementes de recordação”), percebe então uma focalização cultural e homogeneização parcial das representações do passado, processo que permite supor um compartilhamento da memória em proporções maiores e menores” (CANDAU, 2011, p. 46).

 

E nesse sentido prossegue Joel Candau (2011):

 

Uma memória verdadeiramente compartilhada se constrói e reforça deliberadamente por triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as heranças. Pude verificar isso por ocasião de uma pesquisa sobre a memória dos odores e saberes profissionais” (CANDAU, 2011, p. 47).

 

Para Candau (2011) o que se vê nas interações dos estudantes no interior das escolas e no movimento estudantil é compartilhamento vivencias. Os estudantes estão sempre em grupos e não encontram dificuldades em compartilharem suas memorias. O que facilita a formação do sentimento coletivo, seja no que tange as lembranças ou no que se refere à constituição de meios para solução de problemas futuros, seja ele próximos ou remotos.

Candau (2011), citando Maurice Bloch e Daniele Hervieu-Léger, argumenta:

 

A evocação, observa Maurice Bloch, implica em uma comunicação com o outro e, no curso desse processo, a lembrança individual, sem cessar, submetida às transformações e reformulações, “perde seu caráter isolado, independente e individual”. Nesse sentido, observa Danièle Hervieu-Léger, a memória coletiva “funciona como uma instância de regulação de lembrança individual” (CANDAU, 2011, p. 49).

 

E finaliza Candau (2011):

 

“Quando os caminhos tomados por estas se cruzam e se confundem, esse encontro confere alguma pertinência à noção de memória coletiva que, nesse momento, dá conta de uma relativa permeabilidade de consciências, em certos casos excepcionais e provisória, de sua “fusão” e da convergência perfeita entre as representações do passado elaboradas por cada indivíduo. Quanto maior essa convergência, maior será aquela das representações identitárias e mais pertinente será a retórica holista. Ao final, a memória coletiva segue as leis das memórias individuais que, permanentemente, mais ou menos influenciada pelos marcos de pensamento e experiência da sociedade global, se reúnem e se definem, se encontram e se perdem, se separam e se confundem, se aproximam e se distanciam, múltiplas combinações que formam, assim, configurações memoriais mais ou menos estáveis, duráveis e homogêneas” (CANDAU, 2011, p. 49).

 

Diante do exposto é possível verificar a identidade cultural, bem como os aspectos políticos do movimento de ocupação das escolas a partir de sua dinâmica e hábitos vividos. Portanto, não somente à identidade, mas também à memória e ao patrimônio. Nesse caso o avanço da consciência política, ao longo do decorrer do processo de ocupação e respectivo saldo acumulado é sempre positivo, o que transparece após o encerramento do contexto das atividades, já que é aí que visualizamos o referido saldo, ou seja, as conquistas estudantis que ocorreram no processo de ocupação das escolas de São Paulo em 2015 e Paraná em 2016, de acordo com o que é narrado na bibliografia que trata do assunto.

 

2 ASPECTOS POLÍTICOS DO MOVIMENTO DE OCUPAÇÕES DAS ESCOLAS

Para Gohn (2014), movimento social refere-se à ação dos homens e um pensar, por meio de um conjunto de ideias que motiva ou dá fundamentação à ação. Compreende-se a partir da autora, que a identidade, memória e patrimônio, são ações dos homens, pois eles agem a partir dos seus valores constituídos como patrimônio imaterial e assim visam transformar a realidade em um determinado momento histórico, sempre almejando melhorias ou, então, a manutenção daquilo que já conquistaram, cuja base primeira e fundamental se constitui na memória.

Nos termos lembrados por Santos,

 

Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas – escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constantes processos de transformação” (SANTOS, 1993, p. 31).

 

Os movimentos de ocupação das escolas, com a sua identidade e política, visam ou almejam a manutenção de direitos conforme ocorreu na ocupação das instituições de ensino no ano de 2015 no Estado de São Paulo e em 2016 no Estado do Paraná, fazem a partir do fortalecimento de novos valores, nesse caso iminentemente político, pois enfrentam o aparato dominante consubstanciado no Estado e, isso, propiciando ou não o sucesso de suas demandas, torna inevitável a ascensão da consciência política desse universo de jovens estudantes, uma vez que passam a compreender e perceber a possibilidade de organização e de enfrentamento do Estado capitalista e todo o seu aparato de repressão[7].

Conforme demonstra Joel Candau (2011, p.47) ao argumentar que uma memória verdadeiramente compartilhada se constrói e reforça deliberadamente por triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as heranças. Mais uma vez, a exemplo de todo o suporte teórico supratranscrito, transparece que o valor memória, compartilha e constrói, avançando sem hesitações, em busca de acréscimos ou eliminações sobre aquilo que já existe e se pretende manter ou então eliminar. É justamente isso que se vê na caminhada do movimento estudantil de ocupação das escolas, pois a partir de sua identidade, portanto, de seus valores, avança deliberadamente em busca do objetivo que traçou, seja para manter direitos ou para a conquista de novas bandeiras do interesse do mundo escolar e estudantil.

Dessa forma, como já dito inicialmente, é impossível negar que o movimento de ocupação das escolas, e nesse debate se inclui os movimentos sociais de um modo geral, se mobiliza e tem relação direta com esse conjunto de valores composto pela identidade, memória e patrimônio. Esse alicerce fundante é a vivência cotidiana da sala de aula, bem como na comunidade escolar como um todo, porém, tendo a escola como suporte contextual e primeiro, eis que é aí que os valores estudantis fluem e se cruzam, se diluem e se somam, se espraiam e se condensam até formar uma unidade e assim se constituir como identidade e, de tempos em tempos, termina sendo ao mesmo tempo a âncora e o fomento para os processos de reivindicações na condição de identidade a ser mantida.

Se é assim, então, como se dá esse passo a passo entre os estudantes no seio escolar? Primeiro é preciso considerar a convivência estudantil, que não ocorre apenas por alguns dias ou simples semanas, mas sim, por longos meses e inclusive anos, o que faz com que os jovens se conheçam profundamente, bem como fortaleçam os laços e vínculos de amizade, percebendo que os momentos de conforto e desconforto são semelhantes e muitas vezes os mesmos. Isso facilita o afloramento do sentimento de solidariedade e necessidade de ajuda mútua, energia que termina se canalizando para o mesmo sentido nos momentos de reivindicação, uma vez que aflora essa identidade estudantil consubstanciada em querer, em força ou energia.

Ao longo de meses e anos de vida estudantil, os jovens convivem juntos as dores um do outro, bem como as alegrias, satisfações, enfim todo o cabedal de motivos e objetivos que os fazem chorar e rir tantas vezes, o que tudo se transforma em memória e faz novamente contribuir para o surgimento da identidade coletiva e, portanto, no combustível que é usado não somente nas ocasiões de reivindicações, mas em uma série de outros momentos, inclusive por ocasião das festividades.

É esse itinerário que faz o coletivo juvenil, a partir do individual, compreender que a precariedade escolar, como é o caso do cabedal de carências materiais e de recursos humanos vivenciados pela escola e a sala de aula, atingem não apenas um ou outro, mas todos os estudantes daquela unidade escolar e, quase sempre, os alunos do sistema como um todo. Esse conjunto de dificuldades vivenciadas cotidianamente, sem dúvida, fica alojado na lembrança e, portanto, trata-se de memória e aflora de forma paulatina e de maneira crescente por ocasião das reivindicações, impulsionando os para a ação, uma vez que a identidade assim determina e que agora já fez aflorar a consciência quanto luta política.

Esse tema é vasto, portanto, o debate precisa ser alongado e profícuo, o que não é possível nesse momento. Faz-se necessário considerar, senão toda, pelo menos uma parte de fatores que implicam para o gosto e também para o desgosto no cotidiano de cada um dos estudantes. Isso consolida com o passar do tempo formas unificadas do estudante ver a escola, a sociedade, a política, enfim, tudo aquilo que os atinge e com isso aflora a consciência de uma realidade que muitas vezes precisa ser mantidas. Em outras situações a modificação é o que se impõe, e essa consciência coletiva é identidade e também patrimônio, valores construídos a partir de outro valor também fundamental chamado memória, e aqui, no caso, a memória é coletiva que impulsiona à ação.

As medidas legislativas propostas, com indiscutível afetação das questões estruturais, passaram a incorporar o sistema legal brasileiro, no caso, as Propostas de Emendas Constitucionais nº 241/2016(Câmara dos Deputados) e nº 55/2016 (Senado), tornaram-se a Emenda Constitucional nº 95/ 2016, com indiscutível caráter de medida neoliberal e de contenção de despesas, enquanto a Medida Provisória nº 746/2016 evoluiu para a Lei Federal nº 13.415/2017, também com perfil indiscutivelmente neoliberal, a rigor do debate acadêmico que tem se colocado, pois alterou profundamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 1996); a lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Lei nº 11.494, de 2007), com indesejada e imediata repercussão no setor educacional de todo o país, tendo em vista o seu conteúdo, o que tem aumentado ainda mais o tencionamento no setor e, portanto, fomentado os movimentos dos estudantes.

Portanto, como se vê, o movimento de ocupação das escolas, eminentemente político, teve o seu nascedouro nas medidas adotadas pelo governo e que estão flagrantemente em desencontro com o que almeja o mundo escolar brasileiro, ansioso por resolução das mazelas estruturais que tanto o afeta, fazendo o movimento desaguar, ao longo de 35 (trinta e cinco) dias, na ocupação de inúmeras escolas e universidades no ano de 2016. Isso com a participação de milhares de estudantes e centenas de integrantes da comunidade escolar, demonstrando claramente que não estamos diante de reivindicações pontuais e restritas a um ou outro ponto no espaço e no tempo, pelo contrário, trata-se de ação de âmbito geral em função da afetação dos direitos dos estudantes (SCHMIDT; DIVARDIM e SOBANSKI, 2016).

Essas ações dos estudantes lhes propiciaram um saldo político muito interessante, porém, mesmo assim, seja no Brasil ou mesmo no contexto Latino-americano como um todo, se vê preponderar à vontade dos governos ao avesso do que quer o movimento dos estudantes[8], inclusive com agravamento da problemática nas regiões fronteiriças, cujos problemas são ainda mais profundos em função dos fatores históricos relacionados às questões colonizadoras e a insistente ausência de políticas eficazes no setor educacional, o que mantem neste caso, uma identidade que precisa ser transformada com vista à conquista de novos direitos (CAMPOS; MEDEIROS e RIBEIRO, 2016).

Isso tudo, considerando a relevância do tema, nos coloca diante da missão de demonstrar onde está o ponto central do embate entre as políticas de governo e aquelas defendidas pela juventude estudantil, que, sem dúvida, referem-se às questões estruturais e aquelas atinentes à concepção política pedagógica, ao mesmo tempo em que se faz necessário demonstrar que as reivindicações precisam mudar a sua formatação com vista a melhores resultados.

A mudança em questão se faz necessária em razão da vasta distância existente entre a reivindicação e o resultado agregado pelo movimento no final das ocupações, em que pese o patrimônio político acumulado, o que precisa ser feito a partir de profunda análise e reflexão pelo conjunto do movimento e seus apoiadores, portanto, o estudo e reflexão sobre o assunto pede maior aprofundamento, inclusive no que se refere à demonstração dos fatores que implicam na constituição da identidade estudantil, conforme já foi dito anteriormente, pois nesse sentido parece facilitar o acúmulo em termos de conhecer a memória, fortalecer a identidade e, por isso, o patrimônio imaterial no final do processo poderá ser muito maior, o que propiciará avanços para o movimento estudantil como um todo e importante consequência na sociedade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o que foi analisado ao longo do texto, é possível perceber um indiscutível embricamento entre identidade, memória e patrimônio, bem como uma direta e fundante condição da referida trilogia como vertente de alimentação do movimento estudantil.

Assim, percebe-se que é na identidade, tendo ela na memória e no patrimônio, como valores independentes e dependentes ao mesmo tempo, que está o seu fundamento e suporte primeiro da atividade estuda, qual seja o movimento de ocupação das escolas, o que se estende para os movimentos sociais de maneira geral, já que os referidos valores se consolidam na interação e na convivência contínua e duradoura dos estudantes no decorrer do cotidiano, assim, como dos trabalhadores de uma maneira geral, o que possibilita que sejam impulsionados para as ações de defesa, resistência e conquista de direitos quando entendem necessário e conforme as imposições de uma determinada conjuntura econômica, social e política.

Em que pese o entendimento alcançado, considerando a complexidade e abrangência do fenômeno, é de grande importância o aprofundamento da reflexão e da pesquisa sobre o tema, uma vez que se faz necessário a verificação do alcance dessa realidade no tempo, ou seja, se identidade, memória e patrimônio, de fato, têm a mesma abrangência no desencadear do movimento estudantil e dos demais movimentos sociais ao longo dos ciclos.

Portanto, se os movimentos estudantis foram influenciados pelas pautas das gerações passadas e se colocam como “âncora” dos movimentos reivindicatórios de direitos no presente, se faz necessário saber qual será a sua capacidade de influência sobre os processos de resistência, bem como de reivindicação de direitos para as gerações futuras, o que acreditamos que poderá ser feito a partir da análise da relação entre identidade, memória e patrimônio e seu processo de enfraquecimento ou de metamorfose para a constituição de novo tripé (identidade, memória e patrimônio).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Emenda constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm>. Acesso em: 15 nov. 2017.

 

BRASIL. Emenda Constitucional nº 241 de 15 de julho de 2016. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=208835>. Acessado em: 18 nov. 2017.

 

BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional nº 55/2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol53>. Acessado em: 17 jan. 2017.

 

BRASIL. Lei Federal nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acessado em: 06 nov. 2017.

 

BRASIL. Lei Federal nº 13.415 de 17 de fevereiro de 2017. Disponível em: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/Lei-13415-2017.htm>. Acessado em: 06 jul. 2017.

 

BRASIL. Medida Provisória nº 746 de 22 de setembro de 2016. Disponível em: <https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/126992>. Acessado em: 18 nov. 2017.

 

CAMPOS, Antonia M. MEDEIROS, Jonas. RIBEIRO, Marcio M. Escolas de Luta. São Paulo: Veneta, 2016.

 

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2011.

 

GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loiola, 2014.

 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

 

SANTOS, Boaventura de Souza. Modernidade, identidade e cultura de fronteira. São Paulo: Revista de Sociologia USP, 1993.

 

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. DIVARDIM, Thiago. SOBANSKI, Adriane. Ocupa PR 2016: Memórias de Jovens Estudantes. Curitiba: W&A Editores, 2016.

 

 

[1] Professora Pedagoga. Doutoranda em Sociedade Cultura e Fronteiras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

[2] Advogado. Mestre em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

[3] A locução “Movimento de Ocupação das Escolas”, será escrita ao longo do texto com as iniciais maiúsculas, uma vez que, em analogia à expressão “Sem Terra”, em maiúsculo e sem hífen significa uma identidade de pertencimento de grupo ou coletivo. Não é mais um sujeito individual que não possui terra, portanto, sem terra. Sem Terra significa sujeitos de uma escolha: a de lutar por mais justiça social e dignidade para todos (CALDART, 2003). No mesmo sentido os estudantes, pois se encontram lutando por uma escola pública de qualidade em benefício à nação como um todo, considerando os seus anseios profissionais e a busca do pleno desenvolvimento da pessoa humana.

[4] Documentário Lá Rebelion Pinguina, dirigido por Carlos Pronzato.

[5] Para Candau (2011) “[…] memória fraca [é] uma memória sem contornos bem definidos, difusa e superficial, que é dificilmente compartilhada por um conjunto de indivíduos cuja identidade coletiva é, por esse mesmo fato, relativamente intangível. Uma memória fraca pode ser desorganizadora no sentido de que pode contribuir para a desestruturação de um grupo” (p. 44-45).

[6] Uma escola pública gratuita e de qualidade para todos.

[7] Nesse aparato de repressão estão inclusos os órgãos policiais e o Poder Judiciário.

[8] Pois contrariando o movimento de ocupação das escolas, via parlamento, o Governo Temer logrou êxito e aprovou as reformas através da Emenda Constitucional nº 95/2016 e Lei Federal nº 13.415/2017.

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