A expansão do colarinho branco: reflexos criminológicos da luta contra a criminalidade dourada

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Pedro Guilherme Müller Kurban[1]

Felipe Bochi Damian[2]

Resumo: O artigo aborda os efeitos penais deletérios generalizados provocados pelo afã de combater desigualdades sociais e criminalizar a classe alta, destacando o ativismo judicial e a cobertura midiática enquanto componentes do fenômeno na sociedade complexa.

 

 

Riassunto: L’articolo si occupa degli effetti penali deleteri generalizzati provocati dall’ansia di combattere le disuguaglianze sociale e criminalizzare l’alta società, sottolineando l’attivismo giudiziario e la copertura mediatica come componenti del fenomeno della società complessa.

Parole chiave: Colleto Biancho. Etichettamento. Ipertrofia legislativa. Attivismo. Media.

 

Sumário: Introdução. 1. Etiquetamento às avessas: o inimigo agora é outro. 2. A criminalização como resposta social. 3. A expansão no contexto do dinamismo econômico da sociedade complexa. 4. O ativismo judicial como reflexo. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

São sentidos hoje os efeitos reflexos da perseguição aos crimes de colarinho branco, que se inserem em um contexto de evolução histórica paulatina, moldados a partir de diferentes frontes estruturais, muitos deles sem um contato explícito nesse tocante. Sedimentada no imaginário popular a necessidade imperiosa de punir as autoridades e, mais generalizadamente, os ricos, vistos a priori indistintamente como opressores e espoliadores sociais, o sistema penal foi redesenhado, ainda que por vias transversas, para que o objetivo fosse efetivado.

A ânsia de penalizar a classe alta, identificada indissociavelmente com os crimes financeiros e à noção de colarinho branco, provoca flexibilizações das garantias, hipertrofia de regulamentação e criminalização, carregando em seu bojo a intoxicação do aparato jurídico como um todo, trazendo consequências duradouras a todos os clientes – atuais e futuros – do sistema.

Importa perscrutar as interconexões entre as práticas investigatórias e processuais adotadas com os antecedentes criminológicos que redundaram no consenso acadêmico da impunidade dos ricos, protegidos pela supositiva leniência social diante da criminalidade dourada, além da condescendência, por vezes efusiva, com invasivas regulamentações, com coletas abrangentes de dados pessoais e econômicos, e com a expansão legislativa.

Da mesma forma, o clima psicológico instaurado, com especial contribuição midiática, forneceu as escusas e os subterfúgios éticos para o ativismo escancarado, verdadeiramente análogo ao despotismo esclarecido, ganhando desmedida proeminência sobre os demais poderes e sobre os atores sociais e jurídicos.

Não se trata, porém, de prognosticar o que há de vir com os elementos correntes, mas, sim, de constatar um estado de coisas já instalado e que, talvez exatamente por sua naturalidade, já seja sinal de alarmo suficiente, ou, conforme oximoro consagrado, um silêncio ensurdecedor. Também essa falta de reconhecimento, a falta de mea-culpa, é indicativo do fenômeno alastrado e de difícil reversão.

 

  1. ETIQUETAMENTO ÀS AVESSAS: O INIMIGO AGORA É OUTRO

Em tempos de Lava Jato, o país encontra um novo ciclo de depuração ética, impactando diretamente todas as áreas das ciências criminais, havendo um novo horizonte acerca da punição dos dirigentes e dos mais altos empresários. Sem embargo, o custo jurídico empreendido nesse objetivo deu azo a uma fragilização do sistema jurídico, irradiando seus efeitos para além daqueles que ganharam maior destaque no noticiário. É constatável um apelo crescente pela exposição de altas figuras públicas a situações policiais visando atender a um ímpeto de justiça, mesmo que o deslinde processual não redunde em condenação, até porque “cabe registrar que a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas pelo simples contato com o sistema penal” (ZAFFARONI, 1991, p.134).

 

Tudo o que afeta a imaginação das multidões apresenta-se sob a forma de uma imagem comovente e clara, desprovida de interpretação acessória ou não tendo outro acompanhamento senão alguns fatos admiráveis: uma grande vitória, um grande milagre, um grande crime, uma grande esperança. […] Cem pequenos delitos ou cem pequenos acidentes não afetarão em nada a imaginação das multidões, ao passo que um único crime, uma única catástrofe as comoverão profundamente” (BON, 2008, p.69).

 

Esse contexto sócio midiático apelativo é alimentado pela eleição política de novos inimigos da sociedade. Em determinado momento histórico, os inimigos sociais eram, via de regra, seres marginalizados – pobres, periféricos, negros; entretanto, o discurso político adequou-se à atual insatisfação dos populares ante os criminosos de colarinho branco. Boa parte das técnicas distorcidas e verticais de criminalização (cifra branca da criminalidade) utilizadas por agentes políticos – há muito denunciadas pela criminologia crítica – foram remanejadas a novos “anseios populares”. O inimigo agora virou outro; segundo Zaffaroni (2017), a declaração de guerra a determinados inimigos incluídos e identificados no discurso político sobrecarregam o sistema penal e o discurso somente tem eficácia quando utilizado como instrumento meio para obtenção de votos e popularidade; em suma, cria-se o veneno para vender o remédio. O termo guerra é colocado propositalmente, pois o poder neste combate posto como imprescindível é, de fato, bélico e autoritário.

O fenômeno de vindita popular contra seus dirigentes vem de um processo desenvolvido ao longo dos anos, que contou com a contribuição da própria intelectualidade e com a colaboração transversal, só que de maior penetração, da mídia, erigindo um paradigma de desnível do pobre-oprimido e do rico-opressor, cujos reflexos podem ser verificados na área penal.

 

“A penalidade, portanto, diversamente das finalidades oficiais proclamadas pela dogmática do direito penal (retribuição, prevenção geral ou especial) […] exerceria, desde o ponto de vista da psicanálise, a função de satisfação das necessidades inconscientes de castigo da sociedade através da eleição de símbolos de expiação sobre os quais se projetam suas tendências delituosas, conscientes e/ou inconscientes” (CARVALHO, S., 2008, p.201).

 

O Crime do colarinho branco, no imaginário popular, é uma definição amalgamada de todo e qualquer delito que envolva pessoas tidas como poderosas ou endinheiradas. Essa classificação extravasa a intenção pessoal e a conduta do indivíduo, sendo instrumento movediço e plástico para habilmente encaixar-se no contexto pretendido, sendo pespegada a bel prazer, partindo-se de algum traço previamente definido em que se possa adredemente enquadrar o sujeito, com claro intuito desmoralizador e ignominioso. “Convencida da culpabilidade do agente, a mídia o persegue, espalha testemunhos sobre ele, traça sua biografia, faz o retrato de um matador, entrega-o à vindita popular. Um verdadeiro linchamento midiático” (RAMONET, 2001, p.73).

Tal percepção passa a ser compartilhada pela sociedade, que deseja respostas punitivas em relação às suas lideranças. Se as autoridades são opressoras e mantém a conduta com base na violência – real, simbólica, virtual ou potencial – elas devem ser punidas com rigor exemplar pela injustiça cometida, já que temperada pelo peso da qualificação de violência histórica. Nesse tocante, a exploração midiática desses episódios ganha especial relevo. “O alimento criminológico do público, portanto, são esses hambúrgueres conceituais, servidos em poucas linhas nos jornais e em poucos segundos na televisão” (BATISTA, 2003, p.09). A noção de direito é secundarizada, afinal, “se a emoção que vocês sentem ao ver o telejornal é verdadeira, a informação é verdadeira” (RAMONET, 2001, p.22).

 

“Até o excesso de informação pode ser maléfico, ao contribuir para o aparecimento do fenômeno conhecido como “disfunção narcotizante”, que significa substituir a ação participativa do indivíduo pelo contato indireto com o mundo, através da leitura, da televisão e de outros meios de comunicação” (MARQUES, 2001, p.22) [grifo do autor].

 

A influência exercida pela imprensa sobre o sistema penal é fato já amplamente analisado e apontado historicamente pela criminologia. “Os meios de comunicação social de massa – especialmente a televisão – são hoje elementos indispensáveis para o exercício de poder de todo o sistema penal” (ZAFFARONI, 1991, p.127); todavia, com a evolução tecnológica, a atuação jornalística parece exercer ainda mais efeito, sendo indispensável sempre repisar esse ponto da interdependência entre a mídia e a criminalização. “Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orientará por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa” (ZAFFARONI, 1991, p.133).

Ora, não surpreendem as comemorações a cada prisão de uma figura pública e a satisfação no seu declínio pessoal, cumprindo mais uma etapa do quiçá infindável processo de depuração ética perpetrado em prol do epíteto da justiça social. “Creia-me, Senhor, aqueles que tentam nivelar nunca igualam” (BURKE, 2014, p.70). A debacle cumpre a função de expiação popular frente às mazelas nacionais, satisfazendo, ao menos momentaneamente, o anseio pela punição das classes altas, que se potencializa com o natural e mórbido sentimento primitivo de punição.

 

“A investigação destas situações-limite, destes casos de graves ofensas à noção de civilização, que legitimariam a intervenção punitiva, caracteriza, em grande parte, o interesse que as pessoas têm pelas ciências criminais. Nota-se, quando a discussão criminal é pautada, verdadeiro fascínio pelos atos de crueldade, pelo excesso de violência, pelo abuso da força e o uso desmedido do poder. Fenômenos desta ordem, contudo, mais do que indicadores da curiosidade mórbida pelas mais distintas formas de imposição de sofrimento às pessoas, expõe a fraqueza do humano frente aos modelos de conduta traçados como ideais pela modernidade” (CARVALHO, S., 2008, p.1).

 

Há um paralelo indeclinável com a ideia de etiquetamento, constantemente trabalhada pela criminologia crítica e nascida do labeling approach. Deveras, etiquetar significa escolher determinado(s) indivíduo(s) e lhe fixar a imagem (o estigma) de criminoso; do conceito, ele carregará todas as depreensões negativas que referida pecha intrinsicamente possui.

 

“A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas” (ANDRADE, 2003, p. 41).

 

Desde essa perspectiva, inicia-se um novo processo de etiquetamento, só que às avessas, criando-se a pré-concepção de que o indivíduo, enquanto pertencente à determinada classe ou à determinada profissão, é, sim, um potencial delinquente protegido pelo véu de impunidade que recobre os poderosos opressores da classe dominante. Se ele é capaz de fazer frente ao sistema, já que teria mais recursos à sua disposição, simplesmente relativiza-se o sistema para que ele perca sua alegada vantagem judicial. Indexa-se tais agentes à corrupção, inculpando-os narrativamente à prática: empresários, políticos ou, mais radicalmente, quem quer que possa ser incluída na Classe A “como se as ações humanas resultassem diretamente do saldo bancário e não dos desejos alimentados pela imaginação” (CARVALHO, O., 2015, p.359).

Veja-se que a nova criminologia dominante é intensamente baseada nos esquemas conceituais e nas análises do paradigma da criminologia crítica e de suas derivações. Há um forte apelo às raízes marxistas e, portanto, conduz os estudos por um viés de luta de classes, fomentando a ideia de controle da classe dominante através da lente da opressão e da violência – física e simbólica. Essa base teórica é marcante nos principais baluartes referenciais da intelectualidade e da academia brasileiras. Uma consequência palpável dessas formulações é explicada, ao menos em parte, no sentimento disseminado de vingança contra essa classe dominante, abarcando nesse conceito diversos indivíduos que possam representar pictoricamente o opressor e, do outro lado, o oprimido.

 

“Não obstante o direcionamento à ilustração e ao positivismo etiológico, o pensamento pós-moderno permite crítica aos idealismos de algumas vertentes das criminologias críticas, visto a proliferação de inúmeras tendências da criminologia radical em romantizar o autor de atos delitivos e incorrer em determinismos economicistas” (CARVALHO, S., 2009, p.317-318).

 

Ainda assim, insta notar que esses mesmos setores jamais renunciaram à lógica punitivista dos adversários político-ideológicos, muito menos abraçaram a ideia de descriminalização geral paulatina; ao contrário, seletivamente ao gosto político constituíram determinadas condutas para descriminalizar enquanto que, por outra vertente, apologizaram o endurecimento penal e a criminalização, vide o feminicídio, a homofobia, os pretensos discursos de ódio, os vários tipos de assédios e sexismos, entre outros do mesmo matiz; sempre evidentemente justificando-se a partir de uma pretendida preocupação com os direitos sociais sob o paládio do humanitarismo, conquanto para efeitos meramente publicitários, a fim de expor a sua agenda sem que com isso soe explicitamente engajamento militante, mas, sim, uma aspiração universal e consensual.

Este delírio de ampliar a criminalização de condutas aliada à inclusão de pautas progressistas (direitos sociais, transindividuais, coletivos) no direito penal gera um efeito colateral: a chamada panpenalização. Nesse sentido, é valiosa a lição de Salo de Carvalho (2008) acerca da concepção romântica dos direitos humanos – visando à consolidação de direitos sociais e transindividuais – que acaba maximizando a intervenção estatal. Ou seja, há uma inversão ideológica no discurso liberal-conservador de direito social mínimo e direito penal máximo.

 

“A prova mais contundente é a proliferação de novas delegacias e varas de justiça especializadas, que se segue a cada nova proclamação de direitos: delegacia da mulher, delegacia do menor, delegacia da terceira idade […] Nenhuma avaliação séria da relação custo-benefício deixará de nos mostrar que essas entidades recém-criadas darão aos novos direitos é apenas uma possibilidade teórica, ao passo que a ampliação do poder estatal é o resultado imediato, líquido e certo de sua mera existência. […] E quando se verificar enfim que todo esse crescimento canceroso da burocracia não diminuiu em nada as violências que lhe servem de pretexto, isto só será um novo pretexto para verberar a irresponsabilidade moral dos cidadãos e justificar a criação de mais e mais órgãos policiais, judiciais, assistenciais e assim por diante” (CARVALHO, O., 2015, p.361).

 

Esta inflação legislativa em relação ao direito penal extravagante, nomeadamente àquele setor legislativo que busca punir os crimes dos poderosos, podendo-se mencionar a lei dos crimes ambientais, crimes contra a economia popular, contra a ordem econômica, contra a propriedade industrial, contra o sistema financeiro.

 

“É fenômeno causado tão-só para censurar fatos (e não seus autores, por não se mostrarem perigosos), uma vez que não geram penalidade in concreto. Trata-se de uma legislação promulgada para ser ‘virtual’, cuja finalidade é ser estigmatizante de determinados fatos e, a um só tempo, indulgente para com seus autores” (FIGUEIREDO, 2010, p.305).

Quanto mais instrumentos repressivos estejam à disposição das autoridades, concomitantemente à facilitação da identificação de um potencial infrator, cria-se maior probabilidade da penalização indistinta e discricionária de qualquer um que tenha a infausta sina de ser fisgado pelo Estado-Polícia, seja através de tipificações penais, procedimentos invasivos, ou controles estatais de qualquer natureza, criando burocracia e exigências administrativas.

 

  1. A CRIMINALIZAÇÃO COMO RESPOSTA SOCIAL

No afã de criminalizar os ricos, criminaliza-se também os pobres; deveras, expandem-se não só os processos de criminalização, mas também as redes de vigilância e de coleta de dados, que, dentro de uma realidade de conexões tecnológicas múltiplas da sociedade do risco, traz em seu âmago o monitoramento constante, em tensão com direitos fundamentais, notadamente a privacidade. E qual foi o resultado desse esforço teórico? A criminalização generalizada e desmedida, acompanhada da diversificação dos instrumentos repressivos e da vigilância sobre todos. “A abertura dos tipos incriminadores produz ruptura nos mecanismos formais de limitação da punitividade, cujo efeito será a potencialização do poder de coação direta (estado de polícia), estado último do direito penal de exceção” (CARVALHO, S., 2008, p. 207).

A população, persuadida por essa formulação hegemônica do sistema penal como reflexo da opressão capitalista classicista, não só coadunou como aplaudiu qualquer iniciativa repressiva em prol da justiça social, a partir do sentimento de vingança popular insuflado sociocriminologicamente pela indefectível cantilena da tríade capitalismo, opressão e estigmatização do pobre.

 

“A seleção dos que vão desempenhar o papel de criminoso, de mau, de inimigo – os bodes expiatórios – naturalmente, também obedece à regra básica da sociedade capitalista, ou seja, a desigualdade na distribuição de bens. Como se trata aqui da distribuição de um atributo negativo, os escolhidos para receber toda carga de estigma […] são preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas” (KARAM, 1993, p.206).

 

Vale destacar a contribuição paradoxal da intelectualidade, incluindo dos próprios criminólogos, para o inchaço do sistema penal, sistema esse que tanto alardeavam o seu descrédito quanto buscavam combatê-lo. Enquanto legado do marxismo da criminologia crítica, ainda imperante nos meios acadêmicos e intelectuais, denunciava-se a impunidade dos ricos e ressaltava-se a criminalização privilegiada dos pobres como manifesto contra a desigualdade social. Nesse tocante:

 

“basta pensar, por exemplo, que, num país com o Brasil, onde escândalos na Administração Pública são quase rotina, são raríssimos os casos de pessoas processadas, condenadas ou presas, por peculato ou corrupção […] E a impunidade não acontece apenas por questões conjunturais ou por deficiências operacionais. A seleção de criminosos é uma característica inerente ao sistema penal” (KARAM, 1993, p.201-202).

 

A própria autora Karam ensaia um mea-culpa (1996), reduzindo, todavia, a crítica lateralmente à obsessão pela perseguição à criminalidade dourada, e como esse empreendimento acaba conduzindo ao recrudescimento do estado policial, concluindo que isso se deve não pelo discurso dominante (o qual a própria autora adere), mas por um mesquinho interesse eleitoreiro imediatista dos setores tidos como progressistas.

 

“Desejando e aplaudindo prisões e condenações a qualquer preço, estes setores da esquerda reclama contra o fato de que réus integrantes das classes dominantes eventualmente submetidos à intervenção do sistema penal melhor se utilizam de mecanismos de defesa, frequentemente propondo como solução a retirada de direitos e garantias penais e processuais (…) certamente não se resolveria com a retirada de direitos e garantias, cuja vulneração repercute sim – e de maneira muita mais intensa – sobre as classes subalternizadas” (KARAM, 1996, p.80-81).

 

Contextualiza-se que, no texto mencionado, o país ainda não vivenciara as manifestações despertadas com a Operação Lava Jato e o arrebatamento penal de altas figuras públicas e ricos empresários, indivíduos pertencentes, pois, às classes dominantes. À época, por outro lado, vivenciava-se a década das CPI’s, do movimento pela ética na política, do frenesi dos dossiês e da arapongagem, eclodidos a partir do governo Collor e do escândalo dos Anões do Orçamento; não é irônico, mas causal, que atores de proa no denuncismo então vigente tenham eles próprios sido enredados nos escândalos das décadas seguintes, encontrando seu ocaso político e social no novo ciclo de limpeza ética, sofrendo os efeitos do etiquetamento social da pecha de corrupto que tanto bradavam contra os oponentes no passado. De fato, “a revolução devora seus próprios filhos” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p.168).

 

“O hábito brasileiro de olhar as manifestações culturais como um adorno supérfluo impede de enxergar as tremendas conseqüências práticas que as idéias filosóficas, mesmo difundindo-se apenas num estreito círculo de intelectuais, podem desencadear sobre a vida de milhões de pessoas que nunca ouviram falar delas e que, se ouvissem, não as compreenderiam” (CARVALHO, O., 2015, p.38).

 

Esse insistente paradigma pode obnubilar novas realidades que se apresentam, já que constantemente retroalimentado, como por exemplo:

 

“no sistema capitalista de hoje, é fácil perceber que quem vai realmente preso, ou seja, aquele que sofre com o cárcere é o não-consumidor, o pobre, o negro, o desempregado, etc., enfim, todos aqueles esquecidos pela sociedade, pois é mais barato para o Estado prender do que fazer uma política de reintegração social. Estão rotulados pela comunidade, tanto que nunca foram presos e torturados tantos negros e pobres como hoje em dia” (BARROSO, 2009, p.92).

 

A própria ideia pretensamente redentora de catalisar os direitos sociais como solução para redução das desigualdades, e da lírica construção de uma sociedade mais justa enquanto alternativa ao direito penal, embute inerentemente a edificação de toda uma burocracia regulamentatória e fiscalista para assegurar tais direitos. “O Estado tende a alimentar a irresponsabilidade moral para poder alimentar-se dela” (CARVALHO, O., 2015, p.362). Não se pode olvidar que, criando-se um direito, criam-se concomitantemente obrigações de outra parte e assim, de justiça social em justiça social, o Estado pantagruélico se agiganta ainda mais.

 

“Eis como o progresso dos direitos nominais não se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais. Mas esta distinção escapa aos porta-vozes da ideologia progressista, que confundem palavras com coisas e intenções com atos. Mas, complicada que seja a sociedade, a dialética do poder no Estado moderno é diabolicamente simples: incentivados a fazer uso de seus direitos, os cidadãos reivindicam mais e mais direitos; os novos direitos, ao serem reconhecidos, transformam-se em leis; as novas leis, para poderem ser aplicadas, requerem a expansão da burocracia fiscal, policial e judiciária, e assim o Estado se torna mais poderoso e opressivo quanto mais se multiplicam as liberdades e direitos humanos” (CARVALHO, O., 2015, p.350).

 

Além disso, o próprio paradigma de que crimes financeiros e tecnológicos são praticados pela classe alta vem sofrendo críticas, levando em conta seu caráter hermeticamente classicista, derivado do supedâneo marxista de enxergar a sociedade com valores “de classe”. Sob esse prisma, importa citar o estudo acompanhado de pesquisa de campo elaborado na cidade de Braga, em Portugal, concluindo que:

 

“para todos os tipos de crime identificados são indicados criminosos com mais do que um tipo de estatuto social, o que nos permite concluir que, de facto, para o cometimento deste tipo de criminalidade, não é necessário pertencer a determinado estrato social, gozar de especial estatuto social ou ser possuidor de conhecimento específico de qualquer natureza” (FERREIRA, 2013, p.53).

 

Em arremate, é oportuno respigar, outrossim, o seguinte trecho do estudo, em que se encontra um paralelo com o Brasil, enfraquecendo a tese de que a criminalidade sofisticada emana exclusivamente das classes altas:

 

“Não deixa de ser curiosa a constatação de um dos Inspetores que investiga crimes de alta tecnologia, de que os autores dos mesmos têm normalmente conhecimentos e formação geralmente mais acessível à classe média, tal como a vemos em Portugal. No entanto, e não obstante tal constatação, tais crimes são na generalidade cometidos por indivíduos de classes baixas (isto na vertente dos crimes com recurso a meio informático cometidos de forma reiterada), sendo sobretudo oriundos de países tais como Brasil, Ucrânia e Roménia, o que permite aventar a hipótese que no seu país de origem, muito provavelmente, estes indivíduos faziam parte da classe média, e que no nosso país encontraram no crime, através dos benefícios económicos que este gera, a forma mais rápida de ascensão sócia” (FERREIRA, 2013, p.52) [grifo nosso].

 

  1. A EXPANSÃO NO CONTEXTO DO DINAMISMO ECONÔMICO DA SOCIEDADE COMPLEXA.

Em outra frente, o dinamismo da realidade econômica da atual sociedade complexa – poder-se-ia dizer ex concessis do capitalismo moderno (GRAU, 2013, p.123) – acaba por tensionar continuamente a ordem jurídica, sendo da sua natureza mesma transgredi-la e odiá-la pelo seu escopo de desenvolvimento, produção e inovação, obrigando assim o Estado a regular e a atuar quase sempre ex post facto.

 

“No atual quadro de invenção de novos bens jurídicos-penais, novo discurso legitima o controle punitivo: o direito penal do risco. À retórica fundada na ideia de risco incontrolável e catastrófico alia-se a ansiedade de poder antecipar e de obstaculizar, através do direito (penal de prevenção), os eventos trágicos inerentes às características da sociedade contemporânea” (CARVALHO, S., 2008, p.91).

 

As rápidas e constantes transformações da sociedade dão ao direito criminal uma característica de crise contínua (ZAFFARONI, 2017); por esse motivo tornou-se natural o surgimento de novos inimigos, novos desafios e, consequentemente, novos arsenais legislativos, malgrado inúteis. A própria legalidade jurídico-penal é vulgarizada – e ainda traída em duplo sentido, como ensina Francesco Pallazo: “la legalitá è stata tradita innanzitutto del legislatore e poi, in parte, anche della Corte Costituzionale” (2016, p.2).

No entanto, esse agir, não obstante necessário para tolher excessos e ocasionais desvios, tem o condão de instrumentalizar um aparato sufocante que exacerba o intuito primitivo, atingindo uma gama de agentes muito mais ampla que os econômicos, legando um rastro de criminalizações e de regramentos invasivos e vigilantes, conduzindo, pois, ao indefectível paradoxo entre liberdade e segurança, surgindo o questionamento do quanto se deve permitir o risco ínsito da sociedade de mercado sem que o seu controle estatal implique, por outro lado, uma asfixia social e, por reflexo, também econômica. Em síntese, valeria a pena sacrificar liberdades gerais para evitar o enriquecimento ilícito desde o controle financeiro? Neste talvegue, o norte de uma sociedade fraterna, justa e combatente da desigualdade é objetivo ou desculpa?

Nesse panorama, o Estado reinventa-se avocando novas funções para si próprio; enquanto abstém-se da economia, ocupa e intervém em todas as demais áreas, notadamente a vida privada, hipertrofiando a legislação com regramentos cada vez mais invasivos e fiscalistas, subsidiando, para isso, um incremento burocrático acompanhado de todo um aparato repressor a fim de garantir eficiência ao sistema, que, não logrando a perfectibilização do objetivo alardeado, retroalimenta-se com a necessidade de mais e mais expansão, “e referenda que a resposta penal nunca é suficiente para o gigante criminalidade. O mercado da culpabilização [sic] punitiva é inesgotável” (ANDRADE, 2003, p.23).

 

“Por isso a ideologia neoliberal, tão veraz ao discernir os fatores que obstaculizam ou fomentam o desenvolvimento econômico, equivoca-se ao sugerir que o “enxugamento” do Estado – sua retirada das atividades “impróprias” – esteja associado de modo automático e óbvio a uma promessa de maior liberdade para os cidadãos. Pois não é só mediante o exercício de atividades impróprias e acidentais que o Estado oprime as pessoas, mas sim também – e principalmente – daquelas que lhe são mais essenciais e próprias: o fisco, a polícia, a justiça, a educação pública. E estas, em vez de retrair-se no novo quadro neoliberal, tendem antes a crescer desmesuradamente. A razão disso é dupla: primeira, que foi precisamente para poder expandi-las que o Estado se retirou da economia; segunda, que à medida que se descarrega do fardo econômico o Estado busca para si novos papéis que justifiquem a sua existência, e acaba por se imiscuir em todos os setores da vida humana antes entregues ao arbítrio privado” (CARVALHO, O., 2015, p.351) [grifo nosso].

 

O resultado, enfim, é a supressão das liberdades garantidas a todos os segmentos sociais, sem que, com isso, necessariamente atinja-se a ambicionada erradicação da corrupção, ou pelo menos a inibição dos crimes de colarinho branco. O repercussão é assaz perniciosa, e não se restringe aos abastados, mas engolfa todos os estratos da população. O esvaziamento da presunção de inocência, por exemplo, é corolário lógico, visto exercer um impeditivo extrínseco a coibir os excessos.

 

“Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência” (LOPES JR., 2013, p.230).

 

Novamente, indeclinável apontar a atuação midiática a subverter a ordem legal:

 

“com a ‘vantagem’ da comunicação instantânea, a mídia parece falar direto com o público e surge como sua representante de fato, prometendo uma agilidade contraditória aos rituais do direito. Não é difícil perceber que esses rituais, existentes para o respeito a garantias como o devido processo, a presunção de inocência, o benefício da dúvida, etc., são postos sob suspeita como manobras que, paradoxalmente, visariam a evitar a realização da justiça” (MORETZSOHN, 2003, p.08) [grifo nosso].

 

É contra esses efeitos nocivos que se insurge a presunção de inocência:

 

por tudo isso, a presunção de inocência, enquanto reitor do processo penal, deve ser maximizada em todas suas nuances, mas especialmente no que se refere à carga da prova (regla del juicio) e às regras de tratamento do imputado (limites à publicidade abusiva [estigmatização do imputado] e à limitação do (ab)uso das prisões cautelares)” (LOPES JR., 2013, p.229) [grifo nosso].

 

Sem embargo, sendo o sistema um só, uma vez relativizado, o precedente consolida-se e poderá muito bem valer para outro sujeito apanhado pela sanha persecutória, seja ele rico ou pobre. Democratiza-se a punição e, em vez de reduzir o gigantismo estatal, os poderes de repressão e a hipertrofia que recaem (ou recaíam) exclusivamente sobre os mais vulneráveis, o Estado ganha novos contornos de ainda mais força para atingir a camada superior. O estamento burocrático, na clássica definição de Raymundo Faoro (2012), continua fortalecendo-se, ainda que se veja forçado a mutilar algumas de suas partes para preservar-se como um todo, ancorando-se no pretexto de equidade de tratamento. Afinal, conforme a consagrada lição de poder de O Leopardo, “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (TOMASI DI LAMPEDUSA, 2017, p.31).

Combinando-se a um turbilhão de novas tecnologias, a maioria com desconhecidas extensões e capacidades de processamento de dados e de exposição dos usuários, em uma realidade de verdadeira ­Vigilância Líquida, da qual bem descreve BAUMAN (2014), tem-se a estrutura perfeita para o controle social através da vigilância disfarçada, aliás, consentida pelos cidadãos, os quais negligenciam os manejadores dessas informações e o seu destino, tudo em prol do combate à impunidade e à eficiência do sistema.

 

“A vigilância eletrônica é um delator em tempo real que, afora eventuais violações da intimidade, dispensa todo o debate moral e jurídico de seus símiles humanos. Era completamente natural que tal insumo técnico fosse aproveitado pelo sistema penal, no exercício de seu poder de vigilância. Não menos natural, contudo, seria que as agências de comunicação social do sistema penal, dispondo de equipamentos de última geração, se vissem tentadas a empregá-los diretamente” (BATISTA, 2003, p.11).

 

De fato, o incremento da vigilância sobre a população, descrita por Zaffaroni (1991, p.25), ganha novos contornos, ultrapassando as classes sociais perseguidas (ZAFFARONI, 1991, p.131), tornando a população inteira vulnerável ao tino arbitrário estatal, escudando-se na pantomima de neutralizar os corruptos, ou melhor, de passar o Brasil a limpo.

 

  1. O ATIVISMO JUDICIAL COMO REFLEXO

A leitura crítica inoculou o ovo da serpente de diversas outras problemáticas contemporâneas, como o ativismo judicial e a exacerbação do Judiciário em detrimento dos outros poderes.

 

“Achávamos – e nisso me incluo – que o direito era um instrumento de dominação e da reprodução dos privilégios das camadas dominantes (…) Até 1988, aqueles que militavam em alguma corrente crítica do direito apostavam numa espécie de ‘democracia judicial’ pela qual buscavam fortalecer as posturas acionalistas [sic] acerca do direito” (STRECK, 2017a, p.154).

 

Para fins de atender ao apelo de combate à impunidade, representado na figura dos ricos – sejam políticos, sejam empresários – os magistrados, que também sofrem influxos imaginativos da cultura vicejante, propõem-se a essa luta enquanto objetivo maior, mesmo que ao arrepio da legislação e dos limites constitucionais, avalizados, a um, pelo corporativismo da classe; a dois, pelo respaldo midiático-popular, e “as coisas resultam terrivelmente perigosas quando juristas, juízes e tribunais à nossa volta danam-se a decidir a partir de valores, afastando-se do direito positivo” (GRAU, 2013, p.138). Basta relativizar conceitos jurídicos e estribar-se na extremo esgarçamento hermenêutico para buscar na Constituição Federal qualquer justificativa para o ativismo, já que “em um país como o Brasil, o que não é inconstitucional?” (STRECK, 2017a, p.160).

Nesse contexto, interessantes as preocupações de Geraldo Prado (2019, p.12) no que tange à própria cadeia de custódia da prova no processo penal, pois com a expansão insuperável – e o consequente aumento do poder dos juízes -, abandona-se, cada vez mais, “o rigoroso controle epistêmico que seja capaz de dominar os decisionismos”.

Não só a população e especialmente a mídia abstêm-se de criticar tais posturas, como aplaudem-nas, insuflando o espírito ativista dos juízes que, no ensejo de combate à impunidade e às mazelas sociais, invocam mais e mais atribuições, exorbitando as suas competências originárias e constitucionais, adentrando, ademais, nas funções dos outros poderes, incrementando para si o papel decisório final na república, no fenômeno que se convencionou chamar de juristocracia. “Insisto que ativismo e democracia não se coadunam. Ativismo está relacionado ao despotismo do sujeito moderno” (STRECK, 2017a, p.153).

 

“A submissão de todos nós a essa tirania é tanto mais grave quando se perceba a promiscuidade dos valores que, por força de ponderações que os revalorizam, ocorre no plano da aplicação do direito. Refiro-me, reiteradamente, às ponderações entre princípios que os juristas – em especial os juízes – operam visando a impor os seus valores, no exercício de pura discricionariedade, em regra não se dando conta de que o fazem” (GRAU, 2013, p.121) [grifo do autor].

 

Em que pese o giro filosófico da vontade de razão (Descartes) pela vontade de poder (Nietzsche), as decisões judiciais não podem ferir a tradição jurídica, ou melhor, a coerência e integridade do direito. A adequação das leis às necessidades presentes não permitem atribuir ao direito qualquer sentido, afinal, como salienta Lenio Streck (2017b), o direito não parte de um grau zero de sentido, uma vez que já há uma pré-compreensão (Vorverständnis) das coisas.

Com efeito, nem mesmo o Poder Moderador da Constituição de 1824 gozava de tantas prerrogativas e de tamanha interferência. A juristocracia subverte a democracia, então “temos dois fenômenos que demonstram bem esse risco: a judicialização da política e o ativismo judicial” (STRECK, 2017a, p.160). Cria-se verdadeiro círculo vicioso, pois “deixa mais empoderados os juízes como atores e expostos os juízes como atores, em igualdade de condições com outros poderes públicos e os poderes selvagens privados” (ANITUA, 2018, p.110). Observa-se, no mesmo diapasão, a “‘judicialização’ da política (quando algum juiz ou uma espécie de “partido judicial” torna-se protagonista do jogo político e decide sobre políticas concretas, ou atua para além das suas funções para deslegitimar o inimigo político)” (ANITUA, 2018, p.110).

Evidentemente que o subjetivismo passa a reinar e, com ele, todas as incertezas ínsitas do decisionismo justificado, o que, em matéria penal, ganha traços ainda mais dramáticos.

 

“Aí a destruição da positividade do direito moderno pelos valores. Os juízes despedaçam a segurança jurídica quando abusam dos uso de “princípios” e praticam – fazem-no cotidianamente! – os controles da proporcionalidade e da razoabilidade das leis. Insisto neste ponto: juízes não podem decidir subjetivamente, de acordo com seu senso de justiça. Estão vinculados pelo dever de aplicar o direito (a Constituição e as leis). Enquanto a jurisprudência do STF estiver fundada na ponderação entre princípios – isto é, na arbitrária formulação de juízos de valor -, a segurança jurídica estará sendo despedaçada!” (GRAU, 2013, p.22) [grifo do autor].

 

Não tendo havido oposição a decisionismos emanados da Suprema Corte no princípio, especialmente porque mascarados de progressismos humanistas, o tribunal, respaldado pela opinião pública e pela leniência da comunidade jurídica dominante, passou a ousar mais e mais, chegando a decisões que, em nome da justiça e dos mais altos valores pretensamente proclamados, distorceram o conceito de trânsito em julgado, criaram tipos penais por analogia in malam partem, relativizaram nulidades; enfim, o ativismo dócil de antanho transmutou-se no punitivismo corrente. Ao reforçar a retórica punitivista desenfreada está-se a criar, ainda que tacitamente, um possível bumerangue recriminador.

 

“Aqui a transgressão é escancarada, praticando-a frequentemente os tribunais, para excluir determinadas situações de incidência das normas do sistema. Os textos a que correspondem essas normas que sobre essas situações incidiriam são interpretados a partir da proporcionalidade e/ou da razoabilidade, consumando-se, então, essa exclusão. Esse tipo de transgressão tem sido praticado reiteradamente pelo STF, no exercício do insustentável controle da proporcionalidade e da razoabilidade das leis (…) A transgressão do sistema, agora sob o pretexto de aplicação desses princípios, é praticada à larga” (GRAU, 2013, p.136).

 

Essa é a nova realidade criminológica que o país se depara e urge uma compreensão global do fenômeno, para além de parâmetros ideológicos facilitadores e, portanto, reducionistas.

 

CONCLUSÃO

Todo o desenvolvimento teórico disseminado pela intelectualidade e reproduzido pela mídia avalizou o presente estado de coisas, por mais que o intuito primevo fosse diverso. O reducionismo classista tem o pernicioso condão de insuflar sentimentos de discórdia e dissenso que, mesmo a opressão e as desigualdades reais jamais provocariam por si só tamanhos descalabros aptos a permitir injustiças e efeitos tão deletérios como os que se percebe na realidade político social do país. Ora, o denuncismo viceja, o Estado se engrandece com regulamentações e criminalizações, as liberdades e garantias são relativizadas, o Judiciário se afasta da lei e incorpora um ativismo militante crescente; como arremate, o país mergulha na barbárie, até porque “a barbárie é tendência à dissociação. E assim, todas as épocas bárbaras foram tempos de espalhamento humano, pululação de pequenos grupos separados e hostis” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p.149).

Nessa senda, os desafios da criminologia contemporânea são intrincados, e demandam uma análise mais global, despida de ideias e concepções de mundo pré-emolduradas, fazendo-se necessário – e quiçá inderrogável – questionar-se a si própria, atacando os dogmas modernos estabelecidos e que, por consenso tácito, os profissionais se quedam silentes quanto às suas responsabilidades e insensibilidades sobre a realidade crua, fora da redoma acadêmica. A crítica não pode encontrar barreiras nos novos paradigmas erigidos, que, apresentando-se como destruidores dos paradigmas passados, avocam para si mesmos a intocabilidade e a obtusidade que apontavam nos pretéritos. Giza-se: não pode haver ideia imune à discordância.

Com efeito, a corrupção mental operada, a hipertrofia dos sistemas persecutório e fiscalista, a desarmonia dos poderes da república e a distorção floreada das leis pelo ativismo, têm per se o potencial de ser ainda mais danosas que os crimes econômico-financeiros e a desigualdade social que se proclama combater; o fim almejado não pode carregar em seu bojo o esfacelamento das instituições e da sociedade que se julga defender, porquanto “os meios criminosos, uma vez tolerados, tornam-se rapidamente preferidos, pois apresentam um caminho mais curto para o objetivo do que a estrada das virtudes morais” (BURKE, 2014, p.101).

 

REFERÊNCIAS

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[1] Advogado. Graduado pela PUCRS. Tesoureiro do Instituto Lia Pires (ILP). Formação Complementar em Direito Penal Empresarial (PUCRS); Introdução ao Direito Penal Internacional – Introduction to International Criminal Law (Case Western Reserve University, EUA). [email protected]

[2] Advogado Associado no Jobim Advogados Associados. Pós-graduando em Ciências Penais (PUCRS). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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