Descriminalização dos crimes contra a honra

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Resumo: O presente estudo remete a uma reflexão sobre a penalidade aplicada aos crimes contra honra. Busca demonstrar uma visão mais moderna do Direito Penal trazendo uma crítica ao Código Penal que foi promulgado em 1940 e não se adequou às mudanças da sociedade. Tem como objeto de análise os crimes contra honra e pretende discutir se a penalidade aplicada ao indivíduo que comete um desses crimes é exagerada devendo deixar de ser um ilícito penal e passar a ser considerado tão somente um ilícito civil prezando-se desta forma pela efetiva aplicação do princípio da intervenção mínima e do caráter subsidiário do Direito Penal.
Palavras-chave: Honra penal intervenção mínima indenização constituição.

Sumário: 1. Teoria geral do bem jurídico penal 2. Base principiológica e a subsidariedade do direito penal 3. Panorama geral acerca dos delitos contra a honra 4. Dos crimes contra a honra analisados sob a ótica do sistema prisional vigente 5. A ausência da recepção constitucional dos crimes contra a honra 6. A disponibilidade da honra 7. A ineficácia da sanção penal dos crimes contra a honra sob o prisma da vítima. 8. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

A honra é a faculdade de apreciação ou o senso que se faz acerca da autoridade moral de uma pessoa, consistente na sua honestidade, no seu bom comportamento, na sua respeitabilidade no seio social, na sua correção moral; enfim, na sua postura calcada nos bons costumes.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, X, menciona, expressamente, serem invioláveis a honra e a imagem das pessoas. Honra é, portanto, um direito fundamental do ser humano, protegido constitucionalmente e que deve ser respeitado por toda coletividade.

A honra é um direito personalíssimo que, quando violado, atinge a moral do indivíduo que sofreu a ofensa. A pessoa que comete um crime de injúria, calúnia ou difamação ofende, via de regra, o indivíduo e a sua liberdade não necessita ser retirada em prol da segurança da população, tampouco pela gravidade do delito que cometeu. 

A situação carcerária do nosso país é caótica. Os presos são submetidos a situações humilhantes e degradantes, lançados à própria sorte em celas sem qualquer higiene ou salubridade, submetendo-se a toda e qualquer situação.

Colocar no cárcere pessoas que cometeram infrações de menor reprovabilidade e que, em regra, não oferecem tanto risco à sociedade, como nos delitos de maior gravidade, seria, antes de tudo, retirar deles a socialização, pois, a partir do momento que passam a conviver num ambiente tão corrompido, chamado vulgarmente de “escola do crime”, a possibilidade de vê-los sair dali aptos para voltarem a conviver numa vida em sociedade é quase nula. Como diz Zaffaroni: “a prisão corrompe, embrutece, dessocializa” (ZAFFARONI, 1993, p. 106).

Assim, pelos motivos ora expostos, e sendo a injúria, calúnia e difamação delitos de menor potencial ofensivo, e sendo o grau de reprovabilidade menor, o indivíduo que comete um crime contra a honra deve ter a sua liberdade cerceada pelo Estado como forma de punição?

A resposta nos parece negativa. O Direito Penal tem como um de seus alicerces o princípio da intervenção mínima. Significa isto que somente incumbe ao ordenamento jurídico penal tutelar condutas que não possam ser objeto dos outros ramos do Direito. É por este motivo que se diz que tal ramo do Direito deve ser utilizado tão somente como ultima ratio, punindo condutas realmente graves. O princípio da intervenção mínima vai de encontro aos crimes tipificados nos artigos 138 a 145, CPB. Isto porque, em tais crimes, o Direito Penal se faz presente em condutas que não são efetivamente graves.

Além disso, os delitos em questão não causam qualquer ameaça à sociedade. Muito pelo contrário, atingem o direito, a moral e a honra de um único ou um grupo de indivíduos, restando claro, assim, que a sanção aplicada deve ser a reparação do dano sofrido pela vítima, a título de indenização e não a privação de liberdade do autor do fato.

A pena privativa de liberdade, nesse sentido, não deve ser regra e sim exceção, e só deveria ser imposta a indivíduos reincidentes ou que cometessem crimes graves, baseado no perigo que eles oferecem à sociedade e no seu maior grau de reprovabilidade social.

O movimento de descriminalização de certos comportamentos visa deixar de configurar ilícitos penais, não obstante possam ser considerados ilícitos de outra natureza.

O presente artigo tem o fito de demonstrar que o Direito Penal somente se legitima enquanto ultima ratio, e a privação de liberdade do ser humano é medida sancionatória demasiadamente exagerada para punir as condutas tipificadas no Código Penal nos seus artigos 138 a 145.

1. TEORIA GERAL DO BEM JURÍDICO-PENAL

É unânime, na doutrina e jurisprudência pátrias, que uma conduta somente pode ser criminalizada desde que lese ou ameace de lesar um bem jurídico penal. Entretanto, quando se trata de conceituá-lo, diverge-se profundamente, não havendo um consenso acerca do assunto.

Neste diapasão, primeiramente, necessário se faz abordar as correntes principais com relação ao pensamento sobre bem jurídico, quais sejam, as teorias sociológicas e constitucionalistas, que tratam do tema bem jurídico.

No âmbito das correntes de natureza sociológica, duas são fundamentalmente suas subdivisões, denominadas “teoria social” e “teoria do conflito”. A teoria social tem como fundamento o sistema social e descreve ser o mesmo um sistema que agrega funções para sua auto-sobrevivência, funções essas que devem ser realizadas de forma adequada. Caso seja praticada qualquer conduta que cause algum dano social, estar-se-á causando uma disfunção no sistema e a conduta disfuncional terá de ser corrigida e reorientada de acordo com a funcionalidade sistêmica. Amelung foi um dos principais criadores desta corrente. Costa Andrade, em sua obra, comenta sobre o pensamento de Amelung:

“[…] privilegia Amelung a teoria do sistema social nas versões de Parsons e Luhmann. Nessa linha, começa por definir a sociedade como um ‘sistema de interacções’, que a si mesmo se mantém e que transcende a duração temporal da vida do indivíduo, se completa através da reprodução biológica e assume o encargo da socialização das novas gerações. É esta representação da sociedade, em termos sistêmico-funcionalistas, que permite a Amelung identificar em moldes pré-jurídicos as perturbações das condições da convivência humana. Isto é, lhe permite definir a categoria da danosidade social de que o crime constituirá apenas uma forma particular de revelação. Socialmente danoso é, neste sentido, uma manifestação da disfuncionalidade, um fenômeno social que impede ou dificulta a superação pelo sistema social dos problemas da sua sobrevivência e manutenção. Tais fenômenos sociais podem revestir as formas mais diversificadas […]”. (AMELUNG apud ANDRADE, 1991, p. 97)

Diante do exposto acerca do pensamento de Amelung, fica evidente que a sua teoria não trata o ser humano como centro das atenções do Direito Penal, dando-se ênfase ao sistema. Fere-se o sistema Garantista, já que não preserva as garantias fundamentais e individuais do ser humano, colocando-o sempre dentro de um sistema. Ademais, esta corrente vai de encontro ao Estado Democrático de Direito, pois, ao dizer que o delito é visto como uma mera disfuncionalidade e que cabe ao legislador, através de um conjunto de opções políticas, determinar o que seja socialmente danoso, não fornece nenhum atributo que possa efetivamente limitar a atividade do Estado no processo de criminalização de condutas.

Já a “teoria do conflito”, também sociológica, deixa de analisar os valores dentro de um único sistema e analisa-o em uma sociedade de classes estruturadas e divididas com base num modelo sócio-econômico. Baseia-se esta teoria no pensamento de que a sociedade é composta de grupos e classes de acordo com as diferenças culturais e econômicas e, sendo os interesses de cada grupo distintos, um determinado comportamento poderia ser considerado fato delitivo para alguma classe e não ser para outra. Assim, ao contrário da teoria social, a relevância do bem jurídico não era vista de forma conjunta; ao contrário, o bem jurídico que para uns era considerado como relevante não era para outros. Molina aduz que, para a teoria do conflito,

“(…) o Direito representa os valores e interesses das classes ou setores sociais dominantes, não os gerais da sociedade, aplicando a justiça penal e as leis de acordo com referidos interesses; o comportamento delitivo e uma reação a desigual e injusta distribuição de poder e riqueza na sociedade” (MOLINA, 1992, p. 213).

Para esta teoria, o crime era um comportamento político, pois os conflitos entre as diferentes castas faziam com que os grupos dominantes utilizassem a política de controle social e, particularmente, o Direito Penal, para criminalizarem e punirem as condutas praticadas pelos mais fracos. Mais uma vez, não se preservava o Estado Democrático de Direito, pois inexistiam mecanismos possíveis para limitar o poder criminalizador, quando se tem uma Constituição Democrática como parâmetro.

Por fim, cumpre esclarecer a teoria constitucional do bem jurídico, teoria esta com a qual nos filiamos. Esta teoria surgiu em virtude de se impor critérios mais seguros de determinação dos bens jurídicos penalmente relevantes. Tais critérios se encontram nas normas constitucionais. Ou seja, de acordo com as teorias constitucionais, o legislador só poderá criminalizar condutas que não violem os princípios previstos na Constituição Federal, seja implícita ou explicitamente. Ademais, para os adeptos desta teoria, as condutas só poderão ser criminalizadas desde que violem bens com suporte em valores constitucionais, considerados fundamentais para a convivência em comunidade. Neste sentido, preleciona Queiroz:

“Definir, ou redefinir, os fins e os limites do direito de punir supõe, portanto, antes, os fins, e os limites do próprio Estado. E o faz a Constituição Federal, explícita ou implicitamente, fixando as bases e os limites do Direito Penal, que é o braço armado da Constituição Nacional” (QUEIROZ, 2001, p. 122)

Assim, com o objetivo apenas de trazer ao presente artigo uma visão geral sobre o bem jurídico e com base nas teorias constitucionais e no Estado Democrático de Direito, cumpre-nos conceituá-lo, se é que se configure possível emitir um conceito com precisão: um valor de grande relevância para o Direito Penal, que tem por base a Constituição Federal, na medida em que se justifique a violação ao princípio da liberdade, prezando-se sempre pela dignidade da pessoa humana e pela realidade social.

No mesmo sentido, Cezar Roberto Bittencourt define o bem jurídico como “todo valor da vida humana protegido pelo direito, constitucionalmente assegurado.” (BITENCOURT, 2000, p. 14). Apesar de concordarmos com o autor, acreditamos ser o seu conceito incompleto, pois não menciona a realidade social. Sustentamos que o bem jurídico, para ser caracterizado como tal, deve ser considerado como fundamental à convivência pacífica em sociedade.

Além disso, o bem jurídico deve estar intimamente correlacionado aos princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Isto porque entendemos que a criminalização de uma conduta é institucionalização de uma violência pelo Estado, à medida que implica a restrição de liberdade do ser humano, só devendo, portanto, ser promovida em casos de extrema necessidade, prevalecendo-se o pensamento de que o Direito Penal deve ser a ultima ratio e a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada.

Por fim, cumpre esclarecer as principais funções do bem jurídico-penal, quais sejam, função de limitação ao jus puniendi Estatal e função sistemática. A primeira tem a finalidade de limitar o direito de punir do Estado. A segunda facilita a interpretação dos tipos penais, dividindo a matéria penal criminalizada no Código Penal de acordo com os bens jurídicos protegidos.

2. BASE PRINCIPIOLÓGICA E A SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL

Primeiramente, neste tópico, resta demonstrar que os crimes contra a honra são delitos que violam em sua totalidade grande parte dos princípios norteadores do Direito Penal, bem como o seu caráter subsidiário.

O princípio da intervenção mínima tem um caráter limitador do poder punitivo do Estado, na medida em que é o responsável pela indicação dos bens de maior importância que merecem a atenção do Direito Penal. Este princípio preconiza que a criminalização de uma conduta só se legitima necessária se outras sanções ou outros meios de controle social revelam-se insuficientes. Assim, se medidas civis ou administrativas forem suficientes de modo a restabelecer a ordem jurídica, estas que devem ser empregadas e não as penais. O princípio da ultima ratio preconiza que o Direito Penal deve interferir o mínimo possível na vida das pessoas – já que, ao fazer isto, estar-se-á ferindo a liberdade do ser humano – e somente deve ser solicitado quando os demais ramos do Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger os bens considerados fundamentais.

Ora, ao se analisar a Constituição Federal no seu art. 5º, X, – que será objeto de crítica de forma detalhada mais a frente –, ao dispor que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, está-se a sinalizar que a afronta aos bens que tal artigo dispõe, dentre os quais se encontra a honra, pode muito bem ser resolvida unicamente no âmbito indenizatório.

Não estamos a desmerecer ou desvalorizar a honra de quem quer que seja ou ainda dizer que esse bem jurídico erigido à garantia constitucional fundamental não mereça proteção legal. Não, não é isto. Apenas defendemos que, diante das suas características, os conflitos dele surgidos podem ser muito e melhormente solucionados à luz de outro ramo do Direito, que não o Penal; ou seja, à luz do Direito Civil.

Ademais, devemos ressaltar o caráter subsidiário do Direito Penal. Ou seja, este ramo do Direito, ao intervir na vida em sociedade, ele, por si só, não constitui atos ilícitos próprios, autônomos; apenas limita-se a reforçar, por meio de sua drástica intervenção, a proteção de bens jurídicos pretendidamente fundamentais. Por isso se afirma ser este ramo do direito subsidiário, complementário, acessório, secundário em relação aos demais ramos da ordem jurídica.

Ocorre que, pelo caráter subsidiário do Direito Penal, este somente deve ser invocado quando os demais ramos do direito e as demais sanções já existentes não forem eficazes, suficientes de modo a resolver o conflito. A sanção penal seria um “plus”, de modo a tornar mais efetiva à solução do problema. Nesse sentido, preleciona Queiroz:

“[…] e essa subsidariedade decorre […] de imposição político-criminal, pois, sendo o direito penal a mais enérgica manifestação da ordem jurídica estabelecida, segue-se que a sua intervenção somente deve ter lugar nas hipóteses de singular afronta a bens jurídicos fundamentais e para cuja repressão não bastem as sanções do ordenamento jurídico ordinário-principal, demandando, enfim, um plus de gravidade proporcional à gravidade da lesão e à significação social dos danos causados, o que se concretiza pela intervenção, subsidiária, do direito criminal […]” (QUEIROZ, 2002, p. 58)

Como já exposto, a sanção civil contra o indivíduo que ataca a honra de alguém, ou seja, a indenização a ser paga a vitima, é completamente suficiente, de modo a reparar o dano causado pelo agressor. Não há qualquer necessidade da intervenção criminal, seja porque o caráter subsidiário penal, nessas situações, não se justifica, seja porque as condutas-objeto dos delitos contra a honra, em regra, não atingem nem reflexamente a sociedade. Pelo contrário, são fatos que dizem respeito somente às duas partes e que, repita-se, poderiam ser tutelados pelo Direito Civil através de indenização.

Desta forma, o legislador, ao tipificar os delitos contra a honra, ultrapassa o caráter subsidiário do Direito Penal e fere os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade. Isto porque não condiz com o pensamento de somente castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes, nem tampouco respeita a natureza fragmentária do Direito Penal, já que ultrapassa a limitada parcela de bens e condutas que devem estar sob sua proteção – condutas importantes e necessárias ao convívio em sociedade. Nesse sentido, leciona Grecco:

“[…] Depois da escolha das condutas que serão reprimidas, a fim de proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, uma vez criado o tipo penal, aquele bem por ele protegido passará a fazer parte do pequeno mundo do Direito Penal. A fragmentariedade, portanto, é a concretização da adoção dos mencionados princípios, analisados no plano abstrato anteriormente à criação da figura típica”. (GRECCO, 2006, p. 66).

É de suma importância também correlacionar os princípios da adequação social ao presente tema.

Welzel foi o primeiro penalista a perceber a impossibilidade de se considerar como delituosa uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica. Logo, se um comportamento, em determinadas circunstâncias, não recebe juízo de reprovação social, não pode constituir um crime. Mais uma vez, repita-se, não se pretende com o presente trabalho liberalizar os comportamentos de indivíduos que atacam a honra de outrem, nem tampouco tornar lícito algo ilícito. O que se quer dizer é que, devido às modificações da sociedade e tomando por base o ano em que o Código Penal foi promulgado – 1940 –, os delitos contra a honra analisados dentro de um contexto social não são mais dignos de proteção penal, se adequando, tão somente, ao Direito Civil.

 Tal situação nos leva a crer que o legislador deve repensar os tipos penais. Pois, da mesma forma que o princípio da intervenção mínima, o princípio da adequação social orienta o legislador na escolha de condutas a serem proibidas ou impostas, bem como na revogação de tipos penais.

3. PANORAMA GERAL ACERCA DOS DELITOS CONTRA A HONRA

A honra é o conjunto ou complexo de predicados da pessoa que lhe confere condição social e estima própria. A doutrina sub-classifica a honra em objetiva e subjetiva. Honra objetiva é o julgamento que a sociedade faz do indivíduo; é a reputação, imagem, bom nome da pessoa. É o juízo de valoração que a coletividade faz. Já a honra subjetiva é o julgamento que o indivíduo tem de si mesmo, os valores que o ser humano se auto-atribui; é o sentimento de estima própria, conceito que temos de nós mesmos. A distinção entre as duas espécies de honra existe para identificar a classificação da figura típica e o momento de consumação do delito, mas, na realidade, o direito à honra é único e indivisível.

O primeiro delito contra a honra tipificado no Código Penal no seu artigo 138 é a calúnia. Consiste em proferir a outrem uma acusação não verdadeira, atribuindo um fato falso definido como crime. Atinge a honra objetiva da pessoa, tirando a sua credibilidade no seio social. Para que se configure o crime de calúnia, é preciso que existam alguns elementos, tais quais: 1º) A imputação deve referir-se a um fato determinado, e não a atributos pejorativos da pessoa. 2º) O fato ainda deve ser falso e o agente deve ter conhecimento da falsidade do fato ou, pelo menos, ter dúvida – caracterizando-se, nesse caso, o dolo eventual. 3º) O fato deve ser definido como crime. Assim, se for definido como contravenção penal, não caracterizará o delito. 4º) Por fim, exige-se, ainda, o propósito de caluniar, ou seja, a existência do animus caluniandi, por se tratar de delito que somente existe na forma dolosa e que exige elemento subjetivo do tipo específico. Sua consumação se dá quando o conhecimento da falsa imputação chega à terceira pessoa, ou seja, exige-se a publicidade e não o conhecimento da ofensa pela vítima para consumação do delito. Admite-se exceção da verdade, sendo esta a faculdade atribuída ao suposto autor do delito de provar que, efetivamente, os fatos narrados por ele são verdadeiros e que o ofendido é realmente autor de fato definido como crime. Com isso, afasta-se a infração penal.

O segundo crime contra a honra previsto no art. 139 do CPB é a difamação. Difamar significa desacreditar publicamente numa pessoa, maculando-lhe a reputação. Comete este delito quem divulga fato infamante à imagem de alguém, seja ele verdadeiro ou falso. O bem jurídico protegido é o mesmo que o da calúnia (honra objetiva). Esse crime consiste na conduta de atribuir-se a alguém fato determinado (que não precisa ser falso nem definido como crime), mas que atinja a reputação da pessoa, entendida esta como a estima moral, intelectual ou profissional que alguém goza no meio em que vive. O elemento subjetivo é o dolo que exige o especial fim de difamar, a intenção de ofender e atingir a honra do ofendido. Há consumação quando o conhecimento da imputação chega a uma terceira pessoa e não quando apenas a vítima tem ciência da imputação. Não se admite exceção da verdade, pois, de nada adiantaria comprovar que os fatos divulgados pelo agente são verdadeiros, uma vez que, ainda assim, estar-se-ia configurado o delito de difamação. Entretanto, excepcionalmente, admite-se a exceção da verdade no crime de difamação quando o fato ofensivo é imputado a funcionário público no exercício de suas funções.

Por fim, a injúria está prevista no artigo 140 do Código Penal e consiste na conduta ofensiva à dignidade ou decoro de alguém. O objeto da proteção jurídica, nesse caso, é a honra subjetiva, representada pelo sentimento que temos a nosso respeito. A injúria é um insulto que arranha o conceito que a vítima tem de si mesma: é uma manifestação de desprezo e desrespeito com idoneidade suficiente para ofender a honra do ofendido em seu aspecto interno. Diferentemente da calúnia e difamação, não há imputação de fatos, mas sim de atributos pejorativos: há emissão de conceitos negativos e falsos. Para se consumar, é necessário que a injúria chegue ao conhecimento do ofendido, não necessitando que alguém além da vítima tenha conhecimento desta, pois é o aspecto interno da honra que é lesado pelo crime. Elemento subjetivo é o animus injuriandi, ou seja, intenção de atingir diretamente a honra subjetiva da vítima. A exceção da verdade é totalmente inadmissível. Há ainda duas modalidades qualificadas previstas no art. 140, § 2º e 3º, quais sejam, injúria real e preconceituosa.

4. DOS CRIMES CONTRA A HONRA ANALISADOS SOB O SISTEMA PRISIONAL VIGENTE

Importante se faz abordar a situação carcerária do nosso país e demonstrar que o indivíduo que comete um delito de pequeno potencial ofensivo não pode nem deve ser submetido ao sistema prisional vigente. A prisão é o último lugar social. Ali a exclusão é finalizada de forma plena e contundente.

O nosso Código Penal adotou, em seu artigo 59, a teoria mista da pena, conjugando, em seu final, as funções atribuídas à mesma, quais sejam, retributiva e preventiva do crime. Assim, de acordo com a nossa legislação penal, a pena deve reprovar o mal produzido pela conduta praticada pelo autor de delito, bem como prevenir futuras infrações penais. Operadores do Direito adotam o discurso da ressocialização do recluso. Dizem que a função da prisão é ressocializar o indivíduo. Assim, a prisão funciona para punir, afastar do convívio social o infrator e, ao mesmo tempo, recuperar esse elemento, tornando-o capaz de conviver novamente no seio da sociedade.

É evidente que este discurso da ressocialização, bem como as funções preventiva e retributiva da pena, se esvai a um olhar sobre a realidade. Sobra apenas a função punitiva, o afastamento compulsório e os rituais degradantes que seguem. É impraticável avaliar a real extensão das perdas pela experiência do cárcere. Lá não há qualquer tipo de ressocialização; muito pelo contrário, os indivíduos, quando presos, voltam muito pior: aprendem a delinqüir e cometer crimes ainda mais graves. O Estado não exerce o seu ius puniendi de forma correta e as funções retributiva e preventiva da pena não passam de um sonho distante, quando analisadas na prática. Grecco preleciona em sua obra argumento que foi retirado do autor Raúl Cervini:

“A prisão, como sanção penal de imposição generalizada não é uma instituição antiga e que as razões históricas para manter uma pessoa reclusa foram, a princípio, o desejo de que mediante a privação da liberdade retribuísse à sociedade o mal causado por sua conduta inadequada; mais tarde, obrigá-la a frear seus impulsos anti-sociais e mais recentemente o propósito teórico de reabilitá-la. Atualmente, nenhum especialista entende que as instituições de custódia estejam desenvolvendo as atividades de reabilitação e correção que a sociedade lhes atribui. O fenômeno da prisionização ou aculturação do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras criminais (fenômeno do contágio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda instituição inibem qualquer possibilidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloqüentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agravam esse terrível panorama”. (CERVINI, 1995 apud GRECO, 2006, p. 528)

A displicência do governo e dos órgãos públicos contribui para a situação drástica dos presídios. A falta de investimento e fiscalização ajudam para que o presidiário nunca se torne uma pessoa melhor. O descaso com o preso alcança também os trabalhadores penais, que são desvalorizados, subutilizados, desperdiçados e guardam mágoas e revoltas profundas deste degredo funcional, onde não são valorizados nem estimulados a trabalhar; muito pelo contrário, são estimulados a se tornarem cada vez piores. O que predomina é a intenção do Estado de dar uma satisfação à sociedade em relação ao combate a criminalidade.

Some-se a tudo isso a situação de exclusão a que se submete o ex-presidiário. Em todas as perspectivas, o ex-detento, mesmo depois de cumprida sua pena, é considerado um “marginal” e é alocado fora da sociedade de todas as formas: da perspectiva do mercado, é indesejado; na percepção moral, considera-se que o mesmo adotou uma prática marginal à lei e, portanto, tornou-se objeto de repressão ativa, devendo ser descartado.

Desta forma, depois de exposta a situação carcerária existente e os efeitos que esta causa na pessoa, é evidente que submeter o indivíduo que comete algum dos crimes contra a honra às penitenciárias do nosso país é conduta demasiadamente exagerada, que o submete a situações degradantes já expostas e causa sérias mazelas em sua vida. Tal fato é mais um motivo que não há sentido algum na existência dos crimes contra a honra e que comprova a desproporção que o nosso ordenamento jurídico traz em considerar tais condutas como ilícitos penais.

Ademais, como já dito na introdução, a pena privativa de liberdade só deveria ser imposta a indivíduos reincidentes ou que cometessem crimes graves, baseado no perigo que eles oferecem à sociedade e no seu grau de reprovabilidade social. Os delitos contra a honra ferem de forma contundente este pensamento, uma vez que o agente que o comete sofrerá uma pequena reprovação social e dificilmente trará algum perigo para a coletividade se permanecer solto.

5. A AUSÊNCIA DA RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL DOS CRIMES CONTRA A HONRA

A honra recebe tríplice proteção no ordenamento jurídico brasileiro: constitucional, penal e civil. A Constituição Federal, em seu art. 5º, V, faz a proteção maior, estabelecendo o direito de resposta e a indenização por dano moral; a proteção penal está no capítulo dos crimes contra a honra do Código Penal e em legislações especiais, como a eleitoral e a de imprensa; e a civil, no reconhecimento do dano moral e o conseqüente ressarcimento.

A proteção da honra data de épocas remotas, sendo que várias legislações da Antigüidade já previam punições severas àqueles que atentassem contra a honra alheia. Além disso, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de novembro de 1969, prescreve, em seu art. 11, que “toda pessoa tem o direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”. Tal determinação é reconhecidamente de índole constitucional por força do art. 5°, § 2° da Constituição Federal. Desta forma, é indubitável o fato de que o direito à honra é consagrado no nosso ordenamento jurídico, sendo considerado como um dos direitos que compõem a personalidade do ser humano e que, portanto, deve ser respeitado.

Ocorre que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, V, como já mencionado, definiu os limites de incidência do direito a honra. Ou seja, ao prescrever que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrentes da sua violação”, deixou claro que a honra é realmente inviolável e qualquer ofensa deve ser sancionada com o pagamento de indenização por danos morais ou materiais.

Ou seja, a Constituição Federal permitiu apenas uma sanção pecuniária de natureza civil. Em nenhum momento considerou que a ofensa à honra poderia ser sancionada penalmente. A omissão, nesse caso, deve ser interpretada negativamente, ou seja, a Constituição, ao deixar de referir-se às penas criminais, implicitamente, vedou-as.

Portanto, o abuso do direito à liberdade de expressão, como qualquer abuso de direito, deve ser sancionado, mas somente na seara civil. A sanção penal foi implicitamente proibida pela Constituição, pois afetaria o núcleo essencial do direito à liberdade de expressão.

A conseqüência inevitável é a revogação, por ausência de recepção constitucional, dos crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria e desacato) previstos no Código Penal e na Lei de Imprensa.

É evidente e desnecessário explicitar que as normas constitucionais devem prevalecer sob quaisquer normas infraconstitucionais, como é o caso do Código Penal, diante da supremacia constitucional que prepondera em nosso ordenamento jurídico.

O princípio da supremacia constitucional aduz que a Constituição é soberana dentro do ordenamento jurídico, ou seja, todas as outras normas jurídicas existentes no país devem se submeter a ela. Entende-se, desta maneira, a Constituição como a lei que ocupa o mais alto degrau do ordenamento jurídico e por isso não pode ser admitida qualquer ato contrário às suas idéias. Nesse sentido, preleciona Moares:

“[…] é pressuposto para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la.” (MORAES, 2005, p. 629)

Assim, dúvidas não há que a sanção penal foi implicitamente proibida pela Constituição, no que diz respeito aos crimes contra a honra, seja pela ausência de recepção constitucional, seja porque viola o princípio da supremacia constitucional, e a atitude mais acertada a ser tomada pelo legislador é a revogação de tais crimes.

6. A DISPONIBILIDADE DA HONRA

Antes de adentramos mais especificamente acerca da disponibilidade e retratação da honra, cumpre esclarecer as espécies de ação penal que existem no ordenamento jurídico pátrio, a fim de que se possa melhor demonstrar o caráter disponível da honra.

No processo penal, a divisão das ações penais é feita quanto ao sujeito que detém a sua titularidade. Assim, segundo esse critério, a ação penal será pública ou privada conforme seja promovida pelo Ministério Público ou pela vítima, respectivamente, com base no art. 100 do Código Penal.

Dentro dos casos de ação pública (exclusiva do Ministério), ainda há outra subdivisão, em ação penal pública incondicionada e condicionada. No primeiro caso, o Ministério Público promoverá a ação independentemente da vontade ou interferência de quem quer que seja, bastando, para tanto, que concorram às condições da ação e pressupostos processuais. No segundo, a sua atividade fica condicionada também à manifestação de vontade do ofendido ou de ser representante legal; é o que preleciona o art. 100, §1º do CP.

Essa divisão atende a razões de política criminal. Entende-se que há crimes que ofendem sobremaneira a estrutura social e, por conseguinte, o interesse é geral; assim, são puníveis mediante ação pública incondicionada. Outros que, afetando imediatamente a esfera íntima do particular e apenas mediatamente o interesse geral, continuam de iniciativa pública (do Ministério Público), mas condicionada à vontade do ofendido, em respeito à sua intimidade, ou do Ministro da Justiça, conforme for. São hipóteses de ação penal pública condicionada. Há outros que, por sua vez, atingem imediata e profundamente o interesse do sujeito passivo da infração. Nesses casos, o Estado lhe confere o próprio direito de ação, conquanto mantenha para si o direito de punir; são os casos de ação penal privada.

Os delitos contra a honra são movidos mediante ação penal privada. Assim, embora o jus puniendi pertença exclusivamente ao Estado, este transfere ao particular o direito de acusar (jus accusationis) nestas hipóteses. O direito de punir continua sendo do Estado, mas ao particular cabe o direito de agir. Justifica-se essa concessão à vítima quando seu interesse se sobrepõe ao interesse público, em que a repressão interessa bem de perto apenas ao ofendido.

Vale ressaltar, entretanto, três casos excepcionais nos delitos contra a honra, em que dois são movidos mediante ação pública condiciona e um mediante ação pública incondicionada. São eles: ofensa contra Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro e contra funcionário público em razão de sua função (ação penal pública condicionada); injúria real, resultando lesões corporais (ação penal pública incondicionada).

Assim, em não se tratando de um caso excepcional, evidencia-se que, nos crimes contra a honra, prepondera-se e sobreleva-se o interesse do ofendido, cabendo somente a ele decidir se interpõe ou não uma ação penal contra o agressor. Esta regra geral é um dos motivos que justifica a disponibilidade da honra na ótica penal, que será melhor explicitada a seguir nos próximos parágrafos.

A questão da indisponibilidade ou disponibilidade do bem jurídico apresenta-se um tanto quanto complexa em virtude da existência de especificações quanto aos próprios critérios diferenciadores de uma característica da outra. Existem algumas teorias que buscam justificar e trazer as características principais de um bem disponível. Em razão da grande amplitude acerca do assunto e não querendo desviar o tema aqui proposto, não vamos diferenciar as teorias existentes que tratam da disponibilidade do bem jurídico, mas vamos apenas citá-las: teoria da equivalência ou balanceamento de interesses e o da utilidade social do bem.

A conceituação de disponibilidade do bem se mostra complicada, mas há um ponto em comum quanto aos critérios para caracterizá-la como disponível: é que a disponibilidade do bem somente é concedida quando, provocada a lesão, o dano causado seja imperceptível para o corpo social ou o interesse visado não transcende o ofendido. Ou seja, quando os bens são de uma pessoa individualmente considerada, a disponibilidade é juridicamente eficaz, na medida em que não se refere a bens ou direitos cuja conservação está o interesse de modo direto ou indireto o próprio Estado, como o bem jurídico vida e integridade física. O titular não pode suprimir a vontade soberana do Estado, porém se os interesses deste ou da coletividade não são atingidos, abre-se, dessa maneira, o campo para disponibilidade da proteção penal dada ao bem jurídico. A disponibilidade, portanto, somente é admissível em se tratando de bens jurídicos individuais. Nesta orientação, a doutrina coloca como disponíveis a propriedade, a liberdade sexual, a liberdade de locomoção e a honra.

Os delitos movidos por meio de uma ação penal privada vigora-se o principio da oportunidade ou conveniência, pelo qual o ofendido pode ou não exercer o seu direito de queixa. Ou seja, o ofendido torna-se o árbitro sobre a conveniência pessoal de agir ou não contra o ofensor. Como conseqüência, encontramos, na ação penal privada, três formas de extinção da punibilidade, além das gerais e comuns: a renúncia, o perdão e a perempção. Tais institutos, mais uma vez, demonstram a disponibilidade da honra na ótica penal, já que, por meio deles, o ofendido pode dispor da ação penal. Nesse sentido, dispõe Pacelli:

“[…] pelas razões já expostas é que se afirma a existência de um poder discricionário do ofendido, ou dos demais legitimados, únicos árbitros da conveniência, e oportunidade de se instaurar a ação penal nos crimes cuja persecução seja de iniciativa privada. Ao contrário, pois, da ação penal pública (incondicionada ou condicionada), a ação privada encontra-se na esfera de disponibilidade de seu titular ou a tanto legitimado. Esta disponibilidade manifesta-se nas seguintes situações: renuncia perempção e desistência […]” (PACELLI, 2008, p. 131).

A renúncia é ato unilateral do ofendido, antes do oferecimento da queixa, e pelo qual este, tácita ou expressamente, manifesta seu desejo de não promover a ação penal. Renuncia-se ao direito de querela. Já o perdão é ato bilateral, surgido após o recebimento da queixa e pelo qual, pela manifestação do ofendido e com a aquiescência do ofensor, ocorre a extinção da punibilidade. Por fim, a perempção existe após o recebimento da queixa, causada pela inércia ou desídia ou querelante quanto à prática de um ato considerado necessário por lei. Ambos os institutos, como já mencionado, deixam evidente o caráter disponível da honra que somente será levado pelo ofendido ao Judiciário de acordo com sua conveniência e oportunidade.

 Cumpre trazer ao presente trabalho o instituto da retratação, causa que exclui a punibilidade dos delitos de calúnia e difamação.

Retratar-se significa voltar atrás, desdizer-se, desmentir-se. O agente reconhece que cometeu um erro e refaz as suas anteriores afirmações. Em vez de sustentar o fato desairoso, que deu margem à configuração da calúnia ou da difamação, reconhece que se equivocou e retifica o alegado. A retratação só se faz possível nos crimes que atentem contra a honra objetiva (social) dos indivíduos, em que há imputação de fatos, interessando ao ofendido que o ofensor os declare inverídicos (calúnia e difamação). Na injúria, a retratação não é possível, haja vista que a reconsideração do que foi dito pode implicar em prejuízos morais muito mais amplos dos que foram originariamente provocados.

Há ainda que se esclarecer que, com a edição da Lei nº 9.099/95 e a posterior consolidação do entendimento de que esta se aplica, também, aos crimes para os quais prevê a Lei procedimento especial, como o caso dos crimes contra a honra (art. 520 e ss. do CPP), desde que, obviamente considerado de menor potencial ofensivo, houve uma significativa redução no ajuizamento das ações penais privadas derivadas dos crimes contra a honra, já que há a possibilidade de, na audiência de conciliação se proceder à recomposição dos danos da vítima, implicando em renúncia ao direito de queixa (Lei 9.099/95, art. 74, parágrafo único), autorizando o juiz automaticamente a extinguir a punibilidade do agente, antes mesmo do decurso do prazo decadência.

Diante do quanto dito, pode-se perceber que a honra é um bem jurídico disponível, ou seja, pode ser dispensada a tutela penal sobre tal bem pelo ofendido através do seu consentimento válido. Além disso, o ofendido pode renunciar ao seu direito de queixa se procede-se a recomposição dos danos da vítima. Assim, é de se ver que as normas penais que censuram as condutas lesivas à honra tornam-se inócuas, pois o manejo delas é vinculado ao desiderato e vontade do titular desse bem.

Desta forma, afirmamos que as condutas puníveis com pena, elencadas nos arts. 138, 139 e 140, todos do Código Penal, deveriam ser extirpadas de tal estatuto. Inclina-se para a descriminalização dos crimes de calúnia, difamação e injúria, pois, pelo próprio consentimento do ofendido e também por meio dos institutos explicitados neste tópico, coloca-se uma barreira para a atuação do Direito Penal.

7. A INEFICÁCIA DA SANÇÃO PENAL DOS CRIMES CONTRA A HONRA SOB O PRISMA DA VÍTIMA

Um ponto que chama a atenção no sistema criminal brasileiro, de forma negativa, é o desamparo que as vítimas recebem da máquina estatal e da sociedade civil quando da ocorrência de fatos delituosos. Molina já bem destaca em sua obra:

“O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e do Direito civil material e processual”. (MOLINA, 2000, p. 73).

Ao contrário do racional, que seria o fim do sofrimento ou amenização da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em conseqüência reação formal e informal derivada do fato. Não são poucos os autores que afirmam que essa razão traz mais danos efetivos a vítima do que prejuízo derivado do crime praticado anteriormente.

Agravando essa situação, o nosso sistema penal não traz ainda nenhuma forma de amenizar o seu transtorno durante qualquer fase do processo punitivo. A situação desumana das vítimas é uma verdadeira "via crucis" criminal que a aflige.

Ela sofre com o crime, é destratada com o atendimento, muitas vezes em péssimas condições, nas Delegacias de Polícia. Submete-se ao constrangedor comparecimento ao Poder Judiciário na fase processual, na quase totalidade das vezes, desacompanhada de um advogado ou de qualquer pessoa. Encontra, ainda, pelos corredores do fórum o acusado, temerosa de uma atual ou futura represália que possa lhe acontecer, caso preste corretamente o seu depoimento.

Somamos a essa situação a aflição e as dúvidas por não ter conhecimento do curso do processo criminal em que está envolvida, se existe uma possibilidade efetiva ou não de ter seu dano reparado algum dia.

A melhor maneira de o Estado amparar a vítima de um delito – e aí entenda-se um delito que não atinja a sociedade e que o autor fato não cause riscos a mesma –  é propiciando à vítima uma indenização pecuniária, juntamente com tratamentos, terapias e acompanhamentos psicológicos durante o tempo necessário de acordo com o caso.

Percebemos, pela análise do Código Penal de 1940, que a referência à reparação do dano é mínima e o que ocorreu durante muito tempo foi o esquecimento da vítima pelo Direito Penal, preocupando-se exclusivamente com a imposição da pena. Esse “esquecimento” da vítima perdurou por muito tempo no direito brasileiro e somente em data recente a situação vem se revertendo. Algumas leis editadas nos últimos dez anos procuraram introduzir instrumentos e penas para garantir a reparação do dano, tais como: a Lei 9.099/95, que previu institutos que ensejam na indenização dos danos e prejuízo causados pelo delito em favor da vítima como a composição civil. Outra forma de valorizar a vítima prevista na lei 9.099/95 foi ampliar o número de crimes que dependem de representação. Ainda, a citada lei instituiu, no Brasil, a suspensão condicional do processo. Por este instituto, o processo fica suspenso pelo prazo de 02 a 04 anos e o autor do crime tem de cumprir algumas condições, entre elas a reparação do dano à vítima (art. 89, § 1º, I). Fica evidente, mais uma vez, a intenção do legislador de incentivar a reparação do dano e vincular alguns benefícios a sua ocorrência.

Mesmo diante dos últimos avanços da vitimologia no campo da reparação do dano, muito ainda precisa ser feito. Embora a Lei 9.099/95 tenha trazido importantes instrumentos para a busca da reparação, o certo é que a Ação Penal tem como foco o autor do fato e se preocupa com a vítima de uma forma secundária.

No concerne aos delitos contra honra, é evidente que o legislador não se preocupou com a vítima, no sentido em que colocou como sanção criminal pena privativa de liberdade. O que se defende no presente trabalho é a descriminalização de tais delitos. Devendo os mesmos gerarem apenas a possibilidade de uma indenização à vítima a ser obtida no Juízo Cível competente, para que esta possa obter, de uma forma muito maior e concreta, uma reparação. Defendemos que as penas privativas de liberdade devem ser empregadas para os delitos que, de uma forma geral, violam algum interesse relevante da sociedade.

É preciso modificar a estrutura do ordenamento juridico brasileiro, de maneira que venha a preservar os interesses daquele que sofre as conseqüências da prática criminosa, ou seja,  quem tem exposto ou lesado seu bem jurídico.  A vítima não pode ser abandonada pelo sistema criminal: deverá ter um atendimento especializado para que possa superar o trauma causado pelo delito – sobretudo naqueles de extrema gravidade – e, também, uma indenização de modo reparar de alguma forma o que sofreu.

Não é aceitável que a vítima se torne titular exclusiva do Processo Penal e a decisão judicial se oriente para a satisfação da vingança pessoal. Mas tem pleno sentido que se repare o dano moral da vítima e se dê resposta ao seu sofrimento. A reparação social ultrapassa o plano patrimonial, coberto pela indenização. Trata-se de reconstituir a imagem e a dignidade da vítima, afetadas pelo crime e pela própria reação social estigmatizante.

Este objetivo deve ser prosseguido por um Processo Penal público, em que o Estado assuma a reparação dos direitos afetados. 

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o quanto exposto, pode-se concluir que a função precípua do Direito Penal é tutelar os bens jurídicos, levando em consideração a danosidade social que a lesão a tal bem pode provocar.

Vale ressaltar que o princípio que rege a orientação do Estado, na esfera penal, é o princípio da Intervenção Mínima e este, por sua vez, apregoa a atuação do Direito Penal em última ratio. Esta expressão significa que o Direito Penal deve ser utilizado apenas quando nenhum outro ramo do Direito consiga solucionar a situação problema.

A honra está tutelada no Código Penal em seus artigos 138, 139 e 140. Trata-se de um bem jurídico disponível, podendo ser dispensada a tutela penal quando houver o consentimento válido do ofendido.

Afirmar que as condutas que atentam contra a honra (calúnia, injúria e difamação) sejam punidas pelo codex Penal é uma nítida afronta ao princípio norteador dessa esfera jurídica, qual seja, o da Intervenção Mínima. Logo, é necessária uma reestruturação do sistema penal, para que sejam extraídas do Código vigente figuras que claramente não se adaptam à necessidade jurídico-social de intervenção do Direito Penal.

Seguindo essa linha de raciocínio, é notório que a proteção dada a cada bem jurídico deva ser diretamente proporcional à sua natureza. Dessa forma, a proteção dada a bens disponíveis não pode ser equivalente à concedida aos bens indisponíveis, vez que as sua características se desigualam.

Ademais, somando-se a tudo isso, como já foi explicitado, não houve a recepção Constitucional dos delitos contra a honra, vez que, em nenhum momento, a CF/88 considerou que a ofensa à honra poderia ser sancionada penalmente. A omissão, nesse caso, deve ser interpretada negativamente, ou seja, a Constituição, ao deixar de referir-se às penas criminais, implicitamente, vedou-as.

Por todos os motivos ora expostos, propugna-se a descriminalização dos crimes contra a honra, permitindo-se, assim, a efetiva aplicação do princípio da Intervenção Mínima, passando tais condutas a compor o âmbito de competência do Direito Civil.

Esperamos que o legislador atente para a desnecessidade da manutenção da criminalização dos crimes contra a honra, revogando-os explicitamente. Mas, enquanto aquele não o faz, que, nós, operadores do Direito, possamos cada vez mais tirar proveito dos institutos despenalizadores previstos na legislação extravagante, orientando as partes a efetuarem a composição civil dos danos, para, assim, garantirmos a eficácia do princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

 

Referências
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. Uma análise comparativa 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
BRASIL. Constituição Federal (1988) in Vade Mecum Acadêmico de Direito. Anne Joyce Angher (Org.). 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995 (trad. da 2. ed. espanhola), apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 6. ed. Niterói: Impetus, 2006.
GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 6. ed. Niterói: Impetus, 2006, v. 1.
MOLINA, Antonio García-Pablos de.  Criminologia. 3 ed. RT, 2000.
________. Criminologia. Uma introdução a seus fundamentos teóricos. Trad. e notas por Luis Flávio Gomes. São Paulo: RT, 1992.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
QUEIROZ, Souza Paulo. Do Caráter subsidiário do Direito Penal – lineamentos para um direito penal mínimo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmática jurídico-penal. 2. ed. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1993.
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramirez e Sergio Yanes Peréz. Chile: Jurídica de Chile, 1987. 

Informações Sobre o Autor

Gabriella Rolemberg Alves

Graduada em Direito pela Faculdade Jorge Amado. UNIJORGE em janeiro de 2011. Advogada


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