Uma controvérsia jurídica: o artigo 290 do Código Penal Militar brasileiro e o novo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas da Lei 11.343/06

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Resumo: O presente artigo refere-se ao tipo penal previsto no artigo 290 do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69), e a sua divergência, frente ao artigo 28 da nova Lei de Drogas, Lei nº 11.343/06, uma vez que estamos diante de duas normas que tratam do mesmo assunto, com algumas divergências que devem ser analisadas para a devida aplicação da norma diante do caso concreto.

Palavra chave: Inaplicabilidade – Art. 290 CPM – Conflito – Lei 11.343/06 – Usuário – Tráfico – Lei mais benéfica.

Abstract: This article refers to the criminal type referred to in Article 290 of the Military Penal Code (Decree-Law No. 1.001/69), and its divergence, opposite the new Article 28 of the Drug Law, Law No. 11.343/06, since we are facing two standards that address the same subject, with some differences that should be analyzed for proper application of the rule on the case.

Keyowords: Inapplicable – Article 290 CPM – Conflict – Law 11.343/06 – User – Trafficking – Law more beneficial

Sumário: 1 Introdução; 2 Revisão de literatura; 2.1 Conflito aparente de normas; 2.2 Principais problemas na aplicação do art. 290 do CPM; 2.3. Possível solução legal; Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende abordar os aspectos relevantes da Lei n. 11.343/06, intitulada Lei de drogas, cujo foco principal será o art. 28 da mencionada lei, o qual é alvo de maior controvérsia na doutrina e na jurisprudência. Buscar respostas para algumas questões referentes ao princípio da insignificância em relação ao uso e porte de drogas em local sujeito à administração militar, bem como se a lei 11.343/06 revogou o artigo 290 do código penal militar, temas que se encontram em constante debate no Superior Tribunal Militar e no Supremo Tribunal Federal e possuem entendimentos divergentes, tanto entre as Cortes, como dentro da caserna. Frente a nova Lei, que pela primeira vez previu penas que até então eram aplicadas substitutivamente como penas principais, abandonando o ineficaz modelo da pena privativa de liberdade para os crimes de menor lesividade aos bens jurídicos, passando a proteger a pessoa contra atuações arbitrárias do Estado. Concomitantemente, na sua dimensão objetiva, impõe ao Estado uma efetiva atuação no sentido de garantir o pleno exercício dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

O presente trabalho, não tem a pretensão de exaurir o tema exposto, mas tão somente despertar nos estudiosos do Direito e as autoridades ligadas ao assunto a necessidade de revisar o já tão ultrapassado Código Penal Militar, ou no mínimo dar-lhe nova roupagem interpretativa em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, apontando os pontos divergente da norma supracitada com outras legislações infraconstitucionais e descrevendo possível solução para o caso em tela.

2. Revisão de literatura

De seu advento até os dias atuais o Decreto-Lei Nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, Código Penal Militar (CPM), diploma legal que tipifica as condutas criminais no âmbito castrense sofreu pouquíssimas modificações, sendo estas irrelevantes quanto aos tipos penais. Em contraponto o Código Penal Comum, datado de 1940, sofreu profundas e marcantes alterações desde seu advento, inclusive com abolitio criminis e a revogação expressa de alguns artigos cuja matéria foi reservada à lei especial, como é o caso do ab-rogado art. 281 que trazia o tipo penal do tráfico de drogas, hoje essa matéria é integralmente tratado na lei 11.343/2006. (GORRILHAS, 2006)

A Constituição Federativa do Brasil pautada em fundamentos de cidadania e dignidade da pessoa humana, o art. 290 do CPM mostra-se antiquado e quiçá não recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, especialmente após a vigência da nova lei antidrogas, pois o aludido dispositivo legal do Código Penal Militar equipara o usuário ou dependente químico ao traficante, majorando a pena daquele e minorando a deste. Na contramão desse entendimento surge a lei 11.343/2006 que trata o usuário como doente, lhes minorando a pena e majorando-a para o traficante, separando completamente os tipos penais tanto no preceito primário como secundário. (FOUREAUX, 2012)

São princípios da hermenêutica legal trazida ao direito brasileiro pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro que lei posterior revoga lei anterior e lei especial revoga lei geral com ela incompatível. Mas como lidar com o conflito aparente de duas normas especiais, o Código Penal Militar, lei especial em relação à pessoa e ao lugar, e a Lei 11.343/06, lei antidrogas, especial concernente ao objeto. Percebe-se que a primeira tornou-se obsoleta em relação à segunda e urge em ser atualizada aos parâmetros constitucionais. (BRASIL, 1942)

Segundo Prado (2006) o princípio da insignificância é tratado pelas modernas teorias de imputação objetiva como critério para a determinação do injusto penal, sendo assim, atua como mecanismo de exclusão da imputação objetiva de resultados.

Neste princípio será analisado cada caso concreto com interpretação restritiva orientada ao bem jurídico protegido. O autor descreve que alguns autores chegam até mesmo a assimilarem o referido instituto com o da adequação social.

Para Prado (2006) o aperfeiçoamento da conduta típica não se encontra condicionado ao valor da coisa alheia móvel, de modo que se as hipóteses de furto de objeto de valor insignificante se amoldam perfeitamente ao tipo de injusto em questão.

O princípio da igualdade jurisdicional tem ligação direta com o princípio da igualdade perante a lei penal, sendo que este não deve ser entendido segundo Silva (2003) como aplicação da mesma pena para o mesmo delito, mais deve significar que a mesma lei penal e seus sistemas de sanções hão de se aplicar a todos quantos pratiquem o fato típico nela definido como crime. Explica que desde o Império as nossas constituições, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei. Este enunciado em sua literalidade se confunde com a mera isonomia formal, quando analisado no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos.

Também descrevendo sobre o princípio da igualdade, Moraes (2006) afirma que a Constituição Federal de 1988 adotou este princípio prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Para ele o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam.

Observando estes aspectos, pode-se vislumbrar a importância da problemática para os nossos entes sociais, integrantes da nossa sociedade; e, diante do aprofundamento deste estudo, busca-se contribuir de forma relevante com o mundo jurídico, que já não mais pode ficar alheio a tais questões, fazendo-se necessário que estudiosos e técnicos do Direito, participem de forma ativa na busca, conjunta com a sociedade, de soluções que venham satisfazer importantes questões, pelas quais se devem opinar. Afinal, os operadores do Direito poderão com maior precisão determinar até que ponto o interesse da Administração deve se sobrepor as garantias individuais consignados na CF/88.

O conteúdo que se apresenta neste trabalho não pretende esgotar tão importante assunto, mas, apontar as contribuições teóricas e metodológicas que as pesquisas vêem oferecendo ao debate e expor de forma clara e precisa os fundamentos, divergências e dúvidas que surgiram com o tema em questão. Serão utilizados na exposição deste trabalho, posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, resultante de uma pesquisa bibliográfica entre os diversos estudiosos, relacionados ao tema, fazendo-se uso para tanto do método hermenêutico, bem como da interdisciplinaridade necessária para explanação do assunto, podendo o leitor extrair suas próprias conclusões.

2.1 Conflito aparente de normas

Os crimes militares são definidos como pela maior parte da doutrina e subdivididos em crime propriamente militares, aqueles prejudiciais à ordem e disciplina inerentes às instituições militares, e os impropriamente militares que segundo, ensina o Excelentíssimo Juiz Corregedor da Justiça Militar Federal, Célio Lobão, citando Esmeraldino Bandeira, douto professor de direito criminal, “aquele que pela condição militar do culpado ou pela espécie militar do fato, ou pela natureza militar do local […] anormalidade do tempo em que é praticado acarreta dano à economia, ao serviço ou à disciplina das forças armadas.” Pode-se inferir então que o tipo penal previsto no art. 290 do CPM e seus onze verbos que caracterizam a conduta são crimes impropriamente militares, ou seja só são definidos como militares em razão do local em que é praticado, conforme traz o próprio corpo do dispositivo legal, in verbis: (LOBÃO, 2006)

“Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:” (grifo nosso) (BRASIL, 1969)

Verifica-se no caso em tela que o legislador equiparou no mesmo tipo penal as condutar do traficante, como por exemplo, nos verbos produzir, vender, fornecer, e do usuário, com a expressão ainda que para uso próprio, culminado para essas condutas a pena de reclusão de até 5 anos, mostrando-se muito aquém da pena prevista para o tráfico e muito além da especificada para o uso na legislação especial antidrogas. (GORRILHAS, 2006)

A lei nº 11.343/06, trata-se de mecanismo mais moderno de repreensão ao tráfico ilícito de entorpecentes e surgiu em consonância com a Convenção Internacional de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1971, concluída em Viena, a 20 de dezembro de 1988 e introduzida no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 154/91. A nova lei antidrogas ao contrário do CPM, separa as condutas do trafico e do uso ou posse para consumo próprio, tal diferenciação se dá no preceito primário, tipo penal e no preceito secundário, pena culminada, prevendo para o tráfico, art. 33, um mínimo de 5 e o máximo de 15 anos e abolindo a pena restritiva de liberdade para o usuário, art,28, que passa a ser apena com advertência, prestação de serviços e medida socioeducativa, reconhecendo o usuário como um doente que necessita de tratamento, conforme tendências globais. (OLIVEIRA, 2008)

Vejamos a letra da lei 11.343/06 no tocante ao tráfico e ao uso de drogas:

“Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: …” (grifo nosso) (BRASIL, 2006)

“Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:” (grifo nosso) (BRASIL, 2006)

Pode-se observar que dos onze verbos que tipificam a conduta no obsoleto Código Penal Militar, três deles na legislação comum, ou especial quanto à matéria são tipificadoras da conduta do usuário, prevista no art. 28 da lei antidrogas sob o título “Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”, já os outros 8 verbos tipificadores do art. 290 do CPM encontram-se também tipificando a conduta do art. 33 na lei especial de repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes sob o título “Da repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”, destarte comparando os dispositivos legais vê-se que a aplicação do art. 290 do CPM seria infrutífera concernente à função social da pena, pretendida que seria o tratamento do dependente químico e ressocialização, bem como as funções preventiva e retributiva ao traficante que também por lógico deve ser ressocializado. (OLIVEIRA, 2008)

2.2 Principais problemas na aplicação do art. 290 do CPM

Alguns problemas são vislumbrados ao se insistir em aplicar o art. 290 do Código Penal Militar nivelando as penas previstas nesse tipo penal, para as condutas típicas do tráfico e da posse de drogas para consumo próprio. Um dos principais problemas e que poderia haver uma corrupção dos órgãos policiais militares e das forças armadas federais com o incentivo para que traficantes ingressassem em carreiras públicas, ou mesmo como conscritos do serviço militar obrigatório, que além de terem à disposição deles para fins do tráfico ilícito de drogas todo um aparato estatal e prerrogativas inerentes ao militares, como por exemplo o livre porte de armas de fogo, e caso fossem flagrados na prática do tráfico de drogas ainda seriam beneficiados com uma pena máxima na legislação castrense que equipara-se à sanção mínima culminada na lei especial de combate ao tráfico.  (FOUREAUX, 2012)

Outro problema surge com esse conflito aparente de normas, seria o latente desrespeito ao princípio constitucional da Igualdade previsto no caput do art. 5º da Carta Magna Constitucional que prescreve “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, […]” ao se aplicar o art. 290 do CPM agravando a pena do usuário de drogas meramente pelo local em que se deu a posse ou pela característica de militar do infrator, ou pelos mesmos motivos minorar a pena do traficante, não estaria havendo discriminação em razão da pessoa militar ou haveria uma descaracterização da condição humana do militar, para que se possa a ele aplicar penas mais graves enquanto militar ou em lugar sujeito à administração militar e no mesmo caso se estivesse em trajes civis e fora dos aquartelamentos a pena seria mais branda ou menos severa. Tal discriminação seria o mesmo tipo de discriminação praticada contra, afrodescendentes, deficientes, físicos, homossexuais, portadores do vírus HIV ou qualquer outra discriminação que ocorra em função de uma condição especial da pessoa seja transitória ou permanente, em que haja a desfiguração da condição humana do ser para que a discriminação seja aceita. (PIOVESAN, 2011)

2.3 Possível solução legal

Abstraindo-se ainda de alguns outros problemas aparentes da aplicação concomitante desses dois dispositivos legais e sem entrarmos na seara da não criminalização da autolesão em se tratando o crime de uso de substância entorpecente de contra a saúde, segundo o Código Penal Militar, pode-se chegar ao uma solução para esse aparente conflito de normas com a aplicação de dispositivos da parte geral do próprio CPM, conforme observa-se pelo disposto no art. 2º e §§ do Decreto-Lei 1001/69. In verbis: (LOUREIRO NETO, 2010)

“Lei supressiva de incriminação (BRASIL, 1969)

Art. 2° Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando, em virtude dela, a própria vigência de sentença condenatória irrecorrível, salvo quanto aos efeitos de natureza civil. (BRASIL, 1969)

Retroatividade de lei mais benigna (BRASIL, 1969)

1º A lei posterior que, de qualquer outro modo, favorece o agente, aplica-se retroativamente, ainda quando já tenha sobrevindo sentença condenatória irrecorrível. (grifo nosso) (BRASIL, 1969)

Apuração da maior benignidade (BRASIL, 1969)

2° Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato.” (BRASIL, 1969)

Os dispositivos legais transcritos acima trazem de forma clara e inequívoca o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, mesmo para os casos de coisa julgada, o § 1º do art. 2º do CPM afirma de modo veemente, que “lei posterior que de qualquer modo favoreça o agente”, ou seja, retoma aos princípios de resolução de conflitos previsto na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, onde lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível. O Código Penal Militar é de 1969 e a Lei 11.343 é de 2006, logo é posterior, e se sombra de dúvidas é mais benéfica para o caso de posse para consumo próprio. As expressões, lei posterior e de qualquer modo deixa claro que não importa se a lei revoga expressamente o CPM ou se é de caráter essencialmente militar, bastando que seja mais benéfica. Desse modo há a permissibilidade expressa para que se aplique subsidiariamente ao Código Penal Militar legislação extravagante desde que essa seja mais benéfica ao militar infrator. (LOBÃO, 2006)

Encontra-se também respaldo legal para aplicação da lei 11.343/06 aos militares nos incisos II e III do art. 40 da citada lei antidrogas, ao dispor causa de aumento de pena de 1/6 a 2/3 se os crimes de tráfico ou outros que tenham por fim facilitar ou propiciar o tráfico for cometido por agente prevalecendo-se de função pública ou em unidades policiais ou militares. (BRASIL, 2006)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese não haver na Lei 11.343/06 a ab-rogação expressa do art. 290 do CPM, percebe-se portanto que com o advento da lei especial que trata sobre o tráfico e o uso indevido de drogas ocorreu a revogação tácita do referido artigo do dispositivo penal militar, por expressa autorização de aplicação de lei posterior mais benéfica ao caso concreto.

E apesar de não ser o entendimento majoritário do STM – Superior Tribunal Militar que insiste a não aplicar a lei 11.343/06 aos crimes militares, invocando o princípio da especialidade, entendemos que a aplicação desse princípio estaria melhor representado pela aplicação da lei antidrogas aos crimes de tráfico e posse de drogas por militares ou em estabelecimentos sobre a administração militar, face a especialidade da lei em relação à matéria drogas e em virtude do princípio constitucional da não discriminação, implícito ao princípio da igualdade.

A utilização concomitante, nos crimes referentes às drogas, da lei penal militar para os militares e da lei penal comum para os civis geraria aberrações jurídicas incompatíveis com o atual estado democrático de direito, regido por princípios de dignidade da pessoa humana, não discriminação, não tribunal de exceção dentre outros. Aberrações do tipo em que um civil preso, no território nacional, com um tablete de maconha prensada poderia ser apenado com penas de 5 a 15 anos e um militar preso com um cargueiro da força aérea brasileira, proveniente de outro país lotado de maconha, teria sua pena com previsão de até 5 anos.

Atualmente muito tem se discutido sobre uma reforma geral do Código Penal e Processual Penal onde haveria dentre outras propostas a descriminalização total do tipo penal de posse para consumo próprio, fato este que se vier a ocorrer gerará outra aberração, onde a mesmíssima conduta seria fato atípico no âmbito civil e punido com até 5 anos de reclusão no âmbito militar, haja vista que em ambos, as condutas são praticadas por seres humanos, que são considerados doentes, dependentes físicos ou químicos, segundo a grande maioria das correntes da medicina, fato observado desde a Convenção de Viena de 1971.

No Superior Tribunal Militar há entendimento, embora não predominante, que há perfeita possibilidade de aplicação da nova Lei de Tóxicos na Justiça Militar, sob o argumento de sendo uma quantidade ínfima de drogas terá que aplicar o princípio da insignificância e da proporcionalidade, conforme ficou demonstrado no julgamento da apelação nº 2006.01.050445-1 – Rio Grande do Sul.

Ainda neste sentido, no julgamento do Habeas Corpus nº 91767/SP pelo STF, percebe-se que a jurisprudência daquele tribunal é predominante neste caso, mas não é unânime.  

Coaduno com o posicionamento minoritário dos Tribunais, pois em uma análise do sistema jurídico como um todo fica evidente que a nova Lei de Tóxicos versa sobre um mesmo fato descrito no artigo 290 do CPM, porém é esta mais benéfica ao acusado do que a tipificação do CPM.

E se a legislação castrense tem que ser aplicada por ser considerada mais rigorosa, esse argumento não se sustenta quando analisado o caso do traficante de drogas, pois a pena prevista no CPM é correspondente a um terço da pena prevista na nova Lei de Drogas (11.343/06).

Neste sentido não percebo que o princípio constitucional da isonomia esta sendo observado, pois em conformidade com a doutrina, este suporta dois vieses, um considerado isonomia formal e outro material, tendo como objetivo principal não permitir que haja no ordenamento jurídico normas que estabeleçam diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social e, também possibilita ao julgador no caso de ocorrência desse tipo de norma que ele possa julgar utilizando os princípios constitucionais para eliminar tal situação. Permitindo neste sentido somente as normas desiguais para caso desiguais com a finalidade de igualá-los.

No caso do artigo 290 do CPM por várias razões ora demonstradas não percebemos que trata de uma norma diferente para uma situação diferente, pois a maioria dos argumentos utilizados seja pela doutrina seja pela jurisprudência dominante não se sustentam diante das políticas públicas atuais referentes ao uso e tráfico de drogas.

A crítica ao referido artigo dar-se pela forma que ele foi inserido no ordenamento jurídico, pois se encontra no bojo de um código que foi decretado no seio de um período ditatorial, onde as garantias e a proteção dos Direitos Humanos eram pouco ou quase nunca almexados, enquanto que o modelo de Estado que harmoniza o ordenamento jurídico atual é totalmente democrático, embora que ainda seja na forma representativa.

Também quanto ao que argumentam que o CPM pretende tutelar os princípios da hierarquia e da disciplina, porém se este é o objetivo do artigo 290 ele está inserido em local desapropriado para tal, conforme a própria estrutura do Código Penal Militar. E desta forma sustentamos que o artigo 290 do CPM não atende o princípio da isonomia, tanto no aspecto formal, quanto no material.

Conclui-se desse modo que o art. 209 do CPM encontra-se revogado pela lei 11.343 de 2006, sendo inaplicável tanto para os casos de posse de drogas para consumo próprio, devido a previsão da humanização da pena, dada a condição de doente e dependente do usuário, bem como para os casos de tráfico ilícito de entorpecentes praticados por militares, pois cuida-se de crime grave, que requer a necessidade de imposição de um regime mais gravoso para que o réu compreenda a conduta praticada e sua gravidade perante a sociedade como um todo previsto no artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06, onde quer que se encontrem, devendo ser desconsiderada a condição de militar para fins de aplicação da lei penal comum, embora a competência jurisdicional permaneça com a Justiça Militar.

 

Referências
ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar. São Paulo: Juruá, 2009.
BRASIL. Código Penal Militar: Código Processo Penal Militar. Ricardo Vergueiro Figueiredo, organização: coordenação Anne Joyce Angher. 5 ed. São Paulo: Rideel, 2007. (Coleção de leis Rideel. Série Compacta)
BRASIL. Constituição (1988) Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 144p.
BRASILIA-DF. Supremo Tribunal Federal. Informativo nº 484. Brasília/DF, 15 a 19/10/2007. Disponível em: http://www.stf.gov.br//arquivo/informativo/documento/informativo484.htm. Consultado em 17 de junho 2013
BRASIL. Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Política Públicas sobre Drogas Sisnad […]. Brasília, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Consultado em 17 de junho de 2013.
COSTA, Ilton Garcia. et all. Coordenadores. Direito Militar Doutrina e Aplicações. 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FOUREAUX, Rodrigo. O militar usuário de drogas, é doente ou criminoso? Disponível em: http://recantodasletras.com.br/textosjuridicos/3425132. Consultado em 21 de junho de 2013.
GORRILHAS, Luciano Moreira. O artigo 290 do Código Penal Militar (tráfico, posse ou uso de entorpecentes) e a Nova Lei Antidrogas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano X, nº 61, p. 11-14, set./out.2006.
LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.
LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
OLIVEIRA, Vitor Eduardo Tavares de. Justiça Militar da União: Estudo comparado entre o artigo 290 do Código Penal Militar e a lei 11.343/06, à luz da Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5190. Consultado em 21 de junho de 2013.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Informações Sobre o Autor

Rogério de Castro Ribeiro

Professor de Direito Processual Penal Militar da Academia de Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, Sub Tenente da reserva da Polícia Militar de Minas Gerais, Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal Militar pelo Instituto a Vez do Mestre – IVM. Brasília/DF 2013 – Pós-Graduado em Direitos Humanos pelo Centro de Pesquisa e Pós-graduação da Academia da Polícia Militar/MG 2012, Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito) pela Faculdade Pitágoras – BH/MG


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