O MST e sua estratégia de luta emancipatória face ao modelo de globalização hegemônica: quem tem medo do cosmopolitismo subalterno?

Resumo: Sob o contexto sócio-econômico-político-cultural contemporâneo, os movimentos sociais têm papel relevante e essencial, na medida em que se destacam como forma substantiva de resistência às opressões e, paralelamente, como possibilidade de resposta transformadora ao status quo vigente. Neste sentido, o MST possui em suas ações políticas de ocupação de terra um viés do que Boaventura Sousa Santos denomina de Cosmopolitismo subalterno, que aqui se demonstrará.

Palavras-chave: Globalização – hegemonia – contra-hegemonia – poder.

Sumário: I – Introdução; II- A globalização e suas estratégias hegemônicas; 1. Os campos de atuação da globalização; 2. Os parceiros e promotores dos ideiais hegemônicos: Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial; III- A resposta contra-hegemônica à globalização; 1. A Via Campesina e a Coordenação Latino Americana das Organizações Camponesas; 2. O Fórum Social Mundial: De Davos dominante a Porto Alegre contra-hegemônico; IV –O Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST; 1. O surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra; 2. O movimento dos trabalhadores rurais sem-terra enquanto novo movimento social; A evolução estratégica do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra: a globalização da luta pela terra; V- Considerações finais; Referências bibliográficas.

I – Introdução.

Sob o contexto sócio-econômico-político-cultural contemporâneo, os movimentos sociais têm papel relevante e essencial, na medida em que se destacam como forma substantiva de resistência às opressões e, paralelamente, como possibilidade de resposta transformadora ao status quo vigente.

Santos (2001:62) menciona que “o discurso sobre a globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios”. Neste sentido, apropriando-me da idéia marxista de que ideologia não tem história, mas fabrica histórias imaginárias que nada mais são do que uma forma de legitimar a dominação da classe dominante, compreende-se por que a história ideológica seja sempre uma história narrada do ponto de vista do vencedor ou dos poderosos. Não possuímos a história dos escravos, nem dos servos, nem dos trabalhadores vencidos. Suas ações não são registradas pelo historiador comprometido com os interesses dos opressores, além de criarem estratégias para esconder ou silenciar os vestígios da história e da memória dos vencidos. Daí a importância de penetrar fundo nestas histórias e reminiscências a partir deste olhar, para melhor  compreender a forma unilateral com que a complexidade da história se faz, ou seja, a parcialidade com que se expressam ao público os fatos e dados da história.  

O vencedor foi transformado no único sujeito da história, não só porque impediu que fosse difundida a história dos vencidos, mas porque sua ação histórica consistia em eliminá-los fisicamente ou, se precisavam do trabalho deles, eliminavam sua memória, desqualificavam seus saberes e culturas, fazendo com que se lembrem apenas dos feitos dos vencedores. Por exemplo, a luta dos escravos pouco se tem registro. Tudo que sabemos vem de registros dos senhores. Não há direito à memória para o negro, indígena, camponês etc. Graças a esse tipo de história (dos “grandes homens”, “grandes feitos” em detrimento dos “pequenos”), a ideologia burguesa pode manter sua hegemonia mesmo sobre os vencidos, pois estes interiorizam a suposição de que não são sujeitos da história, mas apenas seus pacientes.

A estratégia neoliberal hegemônica e universalizante é de imposição de medidas dominantes, legitimando-as como as únicas adequadas ao desenvolvimento. O Consenso de Washington[4], que é um conjunto de providências, compostas de dez regras, formuladas em novembro de 1989 por um grupo de economistas que pertenciam ao Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Departamento do Tesouro dos Estados Unidos é uma destas medidas impostas. A partir de 1990, o FMI passou a utilizar este receituário nos países periféricos e semiperiféricos, de modo a homogeneizar o mundo, fenômeno que encontra bastante êxito no processo globalizatório hegemônico. Atualmente, o mesmo encontra-se relativizado pelos movimentos contra-hegemônicos e fala-se, até, em pós-consenso de Washington.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra utiliza como estratégia de luta as ocupações coletivas, praticadas em prédios públicos e glebas que não cumprem sua função social[5], com a finalidade de chamar atenção do Poder Público e da própria sociedade para a questão da reforma agrária, financiamento, avanços tecnológicos etc., tudo que garanta, além do acesso, também a permanência do trabalhador rural na terra, mas também, visando a reforma social, a mudança do paradigma estrutural que vivemos.

É neste sentido que o MST é um movimento que tem em sua prática uma resposta contra-hegemônica, constituindo o objeto de investigação do presente Ensaio, já que intento demonstrar que o MST, com sua estratégia política, responde à demanda de resistência à globalização de cima para baixo, na medida que as ocupações coletivas encontraram bastante ressonância e conseguiram colocar a reforma agrária na agenda política, promovendo, de início, o debate público sobre a questão agrária, além de buscar aliança internacional com outros movimentos sociais com semelhante temática.

Seguindo na esteira do pensamento de Boaventura Sousa Santos, sem olvidar-me do apoio teórico de outros autores, como Bauman, Giddens e Bourdieu, inicio analisando os processos de globalização, em suas quatro vertentes, nomeadamente a econômica, política, social e cultural, fazendo uma breve inserção em dois grandes agentes da globalização dominante, quais sejam o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para após debruçar-me sobre o seu próprio contraponto, principalmente o potencial contra-hegemônico do processo globalizatório.

Neste viés, trato, brevemente, de duas organizações sociais agrárias, de âmbito internacional, com as quais o MST mantém relações e articulações. São elas: a Via Campesina e a Coordenação Latino Americana das Organizações Camponesas. Num segundo momento, cuido do Fórum Social Mundial, espaço de encontro e de discussões, de partilha e de organização contra-hegemônica de movimentos sociais e ONGs que se deslocam dos quatro cantos do mundo.

Na última seção, cuido especificamente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), apresentando-o e classificando-o como pertecente ao rol dos novos movimentos sociais. Por fim, trato da evolução da luta do Movimento ao longo dos anos e o reconhecimento da necessidade das ocupações coletivas como forma de pressão política, bem como a premência na articulação internacional com outros movimentos sociais.

Para tanto, utilizei-me de revisão bibliográfica autorizada e capaz de embasar tais argumentos, enfatizando as teses colocadas por Boaventura Sousa Santos, principalmente com seu ideal de uma luta globalizatória contra-hegemônica, fundado na idéia do cosmopolitismo subalterno.

II- A globalização e suas estratégias hegemônicas.

Vivemos hoje um intenso, galopante e excludente processo de globalização, verificando-se um total e crescente desrespeito à cidadania e aos direitos humanos, assolado pelo desemprego estrutural e pelas várias formas de violência, em todos os níveis: civis, políticos, econômicos e sociais.

Tal fenômeno não é novo[6], mas seu impacto o é, até mesmo pelas redes e meios tecnológicos atuais. Atualmente, faz-se necessário o enfraquecimento dos Estados, para própria manutenção do sistema, notando-se, ainda, uma maior assimetria de poder entre os países do Norte e do Sul, aumentando-se o fosso existente entre eles, onde um modelo de desenvolvimento voltado para o mercado é o único compatível com o regime global de acumulação de riquezas, sendo premente a política imposta de ajuste estrutural, a nível mundial (Santos, 2001:43).

Santos (2007:06) define o processo de globalização como um fenômeno múltiplo, com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas, que se entrelaçam de modo bastante complexo. Afirma mais. Determina globalização como sendo um processo através do qual uma determinada condição ou entidade local amplia seu âmbito a todo o globo e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar como locais as condições ou entidades rivais (2007:16). Enfim, para Santos, sempre haverá, em qualquer circustância global, um forte componente local e de cunho cultural. Compartilho deste pensamento.

Inscrevendo seu pensamento, nesta perspectiva, Gómez (2000:09) define globalização como sendo a “transformação da organização espacial das relações sociais e privilegiamento das relações e exercício de poder à distância, entre, dentro e para além dos estados nacionais, numa complexa e contraditória desterritorialização e reterritorialização do poder econômico, político e social”.

Laïdi (apud Gómez, 2000:22) conceitua o mesmo processo como sendo “o momento de compressão do espaço, no qual os homens vivem, se movem e trocam, com todas as conseqüências que esse processo tem sobre suas consciências de pertencimento ao mundo”.

Assim pensando, o termo globalização muda nossa relação com o espaço e com o tempo. A ação à distância, que se relaciona com o advento de meios de comunicação global e instantâneos, favorecidos pelas inovações tecnológicas, é um efeito do processo de globalização, que trata da efetiva transformação do espaço e do tempo. Santos (2007:17) afirma que a compressão espaço-tempo consiste no processo social mediante o qual os acontecimentos se aceleram e se estendem ao redor do mundo[7].

Na esteira do pensamento de Bauman (1999:08), o processo globalizatório no qual nos encontramos, é contraditório, pois tanto divide quanto une, abrindo, assim, um fosso cada vez maior entre os que têm e os que não tem. Demonstra, ainda, que um mundo em constante movimento gera efeitos desiguais, no sentido de que uns indivíduos são plena e verdadeiramente globais enquanto outros são locais e a localização, enquanto ausência de possibilidade de movimentação nos espaços, é sinal de privação e degradação social.

Santos (2001:77) conceitua localização como sendo “o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas”.

A anulação das distâncias temporais e espaciais, em razão dos avanços tecnológicos, tende a polarizar a condição humana. Para uns, garante uma liberdade, uma mobilidade sem precedentes; enquanto para outras, gera uma impossibilidade de desterritorializar-se e, ao mesmo tempo de apropriar-se da localidade da qual tem pouca chance de sair. Face à fluidez das informações, a elite pode exercer seu poder à distância, tornando-se extraterritoriais.

Se por um lado, num mundo onde o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão além do controle dos governos nacionais, a compressão de tempo/espaço trazida pelo processo globalizatório, possibilita que, alguns objetos, como a economia, movam-se mais rápido do que outros sendo possível inferir, como Bauman (1999:10), que o significado mais profundo transmitido pela idéia de globalização é o caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais, isto é, há uma ausência de centro (controle). A globalização é, pois, segundo Jouitt, uma “nova desordem mundial”. Desta forma, mantém-se os habitantes locais como locais e permite aos globais viajarem, se locomoverem de consciência limpa.

Em um mundo globalizado, a mobilidade tornou-se o fator de estratificação mais poderoso, formando novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais. A mobilidade adquirida pelos investidores garante uma nova desconexão do poder face às obrigações (com os trabalhadores, com os jovens, gerações futuras etc.), ficando livres do dever de contribuir para a vida cotidiana e perpetuação da comunidade. Livrar-se da responsabilidade pelas conseqüências é o maior ganho que a mobilidade advinda do processo de globalização pode auferir.

Uma parte integrante da globalização é a progressiva separação e exclusão, evidenciando-se uma gradual ruptura de comunicação entre as elites territoriais cada vez mais globais e o restante da população, que se vê privada desta mobilidade. Bauman analisa, ainda, dentro desta perspectiva, “a tendência atual de se criminalizar casos que não se adequam à norma idealizada” (1999:11).

Dentro desta idéia, o espaço-tempo global torna-se mais um espaço de luta política, pois há os dois grupos de globalização, que se encontram no espaço político global. De um lado, a globalização hegemônica, de cima para baixo. De outro, temos a globalização contra-hegemônica, de baixo para cima.

Santos (2001, 2007) define quatro formas de globalização, quais sejam o localismo globalizado[8], o globalismo localizado[9], o cosmopolitismo e a herança comum da humanidade. O localismo globalizado refere-se a um fenômeno que é local e que se globaliza com sucesso. Este modo de globalização, faz com que se passe a determinar as condições gerais de integração, da inclusão. Já o globalismo localizado consiste no impacto das necessidades, ações e interesses transnacionais no âmbito local, que são desestruturados e reestruturados para atender à estas condições globais.

As duas outras formas de globalização correspondem mesmo as resistências às duas formas anteriores supra tratadas. Assim, deixarei para mencioná-las na seção seguinte, denominada A Resposta Contra-Hegemônica À Globalização.

Santos (2001:63) afirma que o sistema mundial atualmente encontra-se em transição, sendo formado por três constelações de práticas coletivas, nomeadamente as práticas interestatais, as práticas capitalistas globais e as práticas sociais e culturais transnacionais[10], afirmando, ainda, que o processo de globalização surge como resultado da interação entre estas constelações e “as tensões e contradições, no interior de cada uma das constelações e nas relações entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na distribuição do poder” (Santos, 2001:65), onde a forma de poder corresponde à desigualdade na troca, que se dá de modo diferente em cada uma delas.

O sistema mundial em transição, no dizer de Santos (2001, 2007), é imbuído tanto por globalismos localizados como por localismos globalizados, mas é a partir das outras duas formas, o cosmopolitismo e a herança comum da humanidade que se vem construindo uma globalização contra-hegemônica. Assim como o global se realiza localmente, o reverso também deve ocorrer, no sentido contra-hegemônico.

1. Os campos de atuação da globalização.

Como já afirmado, a globalização possui tentáculos em diversos setores, seja na economia, no social, na política e na cultura.

Neste período em que vivemos, as empresas transnacionais marcam uma nova era, impondo e liderando uma nova economia mundial, que se pode chamar de globalização da produção.

A globalização exige a implementação de um conjunto de reformas econômicas de ajuste estrutural[11], que se refere à abertura das economias nacionais, desregulação dos mercados, flexibilização dos direitos trabalhistas, privatização de empresas estatais etc. As conseqüências sociais advindas do processo desigual de globalização são inúmeras, citando, a título de exemplificação, aumento da desigualdade social, achatamento do salário, aumento do desemprego, aumento da exclusão social e espacial, concentração maior de renda, flexibilização dos direitos sociais, degradação ambiental, e outras demais implicações.

A integração financeira global, segundo Gómez (2000:33) é uma teia de conexões e interdependências crescentes, na qual se tecem entre as forças econômicas privadas transnacionais e os Estados nacionais, em busca de lucros extraordinários e imediatos, além de simultaneidade decisória e processamento de informações. Em conseqüência, desta integração, houve um aumento da vulnerabilidade dos sistemas financeiros nacionais e as probabilidades de riscos sistêmicos. Desta forma, o mercado financeiro global passou a se portar como disciplinador das políticas governamentais, ditando o “critério de confiabilidade” para os investidores. Conforme menciona Cox, o “capital global ganhou um grande poder de veto sobre as políticas públicas” (apud Gómez, 2000:33). Fenômeno este que só faz incrementar a exclusão da cidadania.

A mcdonaldização do consumo, fenômeno denominado por Gómez (2000:29), constata uma crescente semelhança ou homogeneidade nas estruturas de demanda e de oferta nos diversos países do mundo, possibilitando às empresas uma alta lucratividade, uniformização de técnicas produtivas e administrativas, redução do ciclo do produto e competitividade tecnológica, num quadro de competição cada vez mais acirrado, da liberalização dos intercâmbios de bens e serviços e da mobilidade praticamente ilimitada do capital.

Percebe-se, quanto às implicações diretas da globalização no campo econômico, a separação progressiva entre o espaço econômico e o político. Segundo Polanyi (1980), esta separação liberal entre economia e política, visa proteger a primeira contra as possíveis interferências da segunda. A globalização pode ser vista como resultado de profundas e aceleradas mutações nos campos tecnológico, político, geopolítico, microeconômico, macroeconômico e ideológico (hegemonia liberal).

Polanyi (1980) identifica um duplo movimento no processo histórico do livre mercado. De um lado, há uma liberação das forças do mercado de todo controle social, o que ocasiona uma ruptura na coesão social, e de outro, e em contrapartida, a sociedade, aos poucos e por intermédio da política, vai tentando atenuar os efeitos nocivos do mercado e introduzir, na economia, um certo controle social.

Já no campo social, verifica-se a emergência da classe capitalista transnacional, que anda de braços dados com as empresas multinacionais. Assim, enquanto estas impõem aos diversos países ajustes estruturais na área econômica, na social produzem desajustes estruturais, traduzido em um aumento das desigualdades sociais, com uma intensificação da concentração de riquezas.

A produção globalizada produz uma incrível concentração de poder econômico no plano mundial, razão pela qual as firmas multinacionais vêm se transnacionalizando, entretanto, tal fato ocasiona profundas mudanças na estrutura social do mundo[12].

Dentro da crença neoliberal, só há crescimento econômico se houver redução nos custos salariais. Santos (2001:40) menciona exemplos desta redução, como liberalização do mercado de trabalho, redução dos direitos laborais e eliminação gradual da legislação sobre o salário mínimo. Afirma que o poder de compra interno, em razão desta política adotada, diminui e a solução encontrada é a busca de mercados externos. Entretanto, se o processo é global, o que de fato se irá buscar no mercado externo, se o poder de compra reduz no mundo? Busca dos grupos privilegiados do mundo? A resposta encontra-se não só nestes grupos, mas também àqueles que não são, com estímulo ao crédito, o que garante a ilusão de aumento do poder de compra.

Dentre deste contexto, Santos afirma ainda que a economia se dissocializa e o consumidor substitui o cidadão e a solvência para a ser o verdadeiro critério de inclusão social. Para aqueles que nada tem, restam medidas compensatórias, mas que não eliminem de todo a exclusão, visto ser efeito inevitável do desenvolvimento assente no crescimento económico e na competitividade a nível global. (Santos, 2001:40). Assim, lava-se as mãos quanto ao que se pode fazer pelos trabalhadores sem-terra, pois não possuem nem mesmo credencial de cidadão e muito menos de consumidor, pois não possuem recursos financeiros para adquirir esta escalada, continuando, assim, excluídos.

Dentro deste cenário globalizatório, os Estados tenderam a se unir em blocos, por meio de acordos políticos internacionais, mas, parecem ter perdido a centralidade no que diz respeito aos aspectos econômico, social e político. Cada vez mais os Estados vão regulando sua própria desregulação (Santos, 2001:45).

Conforme Santos (2001:47), três elementos do Consenso de Washington são evidenciados na globalização política, sendo eles o consenso do Estado fraco; da democracia liberal; e do primado do direito e do sistema judicial[13].

Pierre Bourdieu (2001) afirma que os Estados assumem uma dupla face, um duplo comportamento, dependendo do grupo social a que se refere, asseverando que

“o Estado beneficente, fundado no conceito moralizante de pobreza, tende a bifurcar-se num Estado Social que provê garantias mínimas de segurança para as classes médias e num Estado cada vez mais repressivo, que contra-ataca os efeitos violentos da condição cada vez mais precária da grande massa da população” (2001:84).

Com a globalização, as nações passam a atuar com enorme competitividade internacional, agindo mesmo como empresas. Há aqueles, ainda, que afirmam que a globalização leva ao fim do Estado-Nação, como organização territorial eficaz em matéria de governabilidade das atividades econômicas nacionais e à decomposição dos Estados nacionais[14].

O accoutability é o pressuposto básico da teoria da democracia liberal, mas que, em decorrência do atual processo globalizatório, fica prejudicado, pois os arranjos e práticas democráticas territorializados hoje não mais coincidem com os locais de poder onde as decisões são efetivamente tomadas. As drásticas mudanças que ocorrem na organização espacial dos processos econômico, político, cultural e ambiental, provocam profundas mudanças na natureza e na forma da comunidade política democrática, como resultado da crescente disjunção entre o locus e os sujeitos do poder efetivo e o locus dos destinatários das decisões e dos mecanismos de accountability democrático.

Dentro deste processo de globalização, os exploradores sentem-se mais livres para explorar, pois não há medo de qualquer tipo de responsabilização pelos danos causados, pois, havendo dificuldades, ameaças, obstáculos, basta o capital se deslocar para outro lugar que imponha menos condições. Conforme sinaliza Bauman (1999:43), os capitalistas e corretores da era atual, graças à mobilidade dos recursos, não enfrentam limitações reais, salvo os impostos administrativamente sobre o livre movimento do capital.

Sabendo-se que a distância é um produto social e sua extensão depende da velocidade com que pode ser vencida, todos os outros fatores socialmente produzidos de constituição, separação e manutenção de identidades coletivas parecem ser cada vez menos efeitos secundários dessa velocidade. Por esta razão, o autor acima mencionado assinala que a “realidade das fronteiras” é um fenômeno estratificado de classe o que permite às elites se identificarem mais com elas mesmas para além-fronteiras do que com o resto da população a que pertencem, criando, assim, uma cultura toda própria e singular. Há hoje a imposição de uma cultura geral[15], ocidentalizada. Entretanto, vem sendo objeto também de resistência na corrente contrária à homogeneização[16].

2. Os parceiros e promotores dos ideiais hegemônicos: Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial.

De 1º a 22 de julho de 1944, 730 delegados de 44 países reuniram-se em Bretton Woods, New Hamphire, nos EUA, tendo por objetivo fundar novas bases financeiras, sendo acertado, pelo que ficou conhecido por Acordo de Bretton Woods[17], que o mundo passaria a ter um fundo destinado a dar estabilidade financeira internacional e um banco, que seria encarregado pelo financiamento da reconstrução dos países atingidos pela Segunda Guerra Mundial. Surgiram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), devendo-se ressaltar que o discurso da estabilidade financeira mundial não abarca todos os países do sistema mundo. Essa nunca foi a pretensão real, pois esta estabilidade é sempre a do mercado e não do povo. Conforme Santos (2003:19), “a estabilidade dos mercados e dos investimentos só é possível à custa da instabilidade das expectativas das pessoas”.

O Fundo Monetário Internacional é uma organização que pretende assegurar o funcionamento do sistema financeiro mundial pelo monitoramento das taxas de câmbio e balança de pagamentos, através de assistência técnica e financeira. Sua sede é em Washington, Estados Unidos e atualmente congrega 185 países. Constitui uma forte fonte de regulação do sistema financeiro mundial.

O Banco Mundial tem por objetivo inicial financiar a reconstrução dos países devastados durante a Segunda Grande Guerra. É composto por 185 países membros. O BIRD – Banco Internacional para a Recontrução e o Desenvolvimento – e a AID – Associação Internacional de Desenvolvimento, juntos, formam o Banco Mundial, que compõem, ainda, o quadro do Grupo do Banco Mundial.

O Grupo do Banco Mundial é constituído por cinco instituições estreitamente relacionadas e sob uma única presidência, sendo elas:

a) BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento

b) AID – A Associação Internacional de Desenvolvimento

c) IFC- Corporação Financeira Internacional

d) AMGI – Agência Multilateral de Garantia de Investimentos

e) CIADI – Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos

No sítio[18] do Banco Mundial é possível observar a gama de contrapartidas que a instituição exige em troca de empréstimo. Aparentemente inofensiva e até benéfica, esconde por trás as próprias intenções e artimanhas da estratégia neoliberal de globalização. Afirmam que pedem aos países que atendam a estas “necessidades”, in verbis:

Investir nas pessoas, especialmente por meio da saúde e da educação básicas;

Proteger o meio ambiente;

– Apoiar e estimular o desenvolvimento dos negócios das empresas privadas;

– Aumentar a capacidade dos governos para prestar serviços de qualidade com eficiência e transparência;

– Promover reformas para criar um ambiente macroeconômico estável conducente a investimentos e a planejamento de longo prazo;

– Dedicar-se ao desenvolvimento social, inclusão, boa governança e fortalecimento institucional como elementos essenciais para a redução da pobreza.

Confrontando com os argumentos já colacionados aqui neste Ensaio, percebe-se facilmente o ajuste estrutural exigido em troca da ajuda internacional por conta destas duas instituições, que sob pretexto de retirar o mundo da pobreza, é justamente esta situação que impõem, agravando sobremaneira a desigualdade social em todo o sistema mundo.

Como é na área rural que se concentram os recursos naturais, é para lá que se voltou a atenção do Banco Mundial, promovendo a criação de programas de compra e venda de terras por camponeses pobres e trabalhadores rurais sem terra em alguns países, como África do Sul, Colômbia, Brasil e Guatemala. Com sua política regulatória e opressora, forçou os camponeses a buscar um padrão semelhante ao do agronegócio. Esta política[19] ficou conhecida como Reforma agrária de mercado.

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1997-2002), a política do Banco Mundial foi bem aceita na tradução de três programas que favoreceram em muito o latifúndio improdutivo, com aquisição de terras devolutas e que, na verdade poderiam ter sido objeto de desapropriação para reforma agrária: Cédula da Terra[20], Banco da Terra[21] e o Projeto São José (ou “Reforma Agrária Solidária”).

A adesão dos trabalhadores rurais a estes programas acirrou a dramática situação dos mesmos, pois as condições impostas, na realidade, inviabilizava o pagamento dos empréstimos contraídos, prejudicando até mesmo a produção agrícola das famílias, até para a própria subsistência.

Nos dois primeiros anos, tal política foi amplamente combatida por todas as organizações sindicais e movimentos sociais do campo, confluindo no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Entretanto, no ano 2000, a principal entidade sindical rural do país, a CONTAG, em conjunto com o Banco Mundial e o Governo FHC, firmou um programa denominado  Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (CFCP). Assim, a luta se esvaziou.

Com a introdução do conceito de agronegócio, o MST percebeu que sua luta agora já não era mais contra o latifundiário, enquanto pessoa física, mas sim contra empresas transnacionais. Mudou a personificação daquele contra quem se luta, que ganhou status de sociedade anônima.

Nos últimos dois anos do governo de Fernando Henrique, operavam ao mesmo tempo no Brasil três programas de acesso à terra via compra e venda, mas o número de famílias assentadas pelo programa de reforma agrária decrescia fortemente, quando comparado aos anos de 1995 a 1998.

A partir de 1997, o MST passou a ocupar prédios públicos para exigir reforma agrária e liberação de créditos, entre outras reivindicações, aumentando, assim, a pressão sobre o governo. Contudo, em 2001, mesmo ano em que agricultores ocuparam a fazenda do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo mandato, em Buritis (MG), o governo reagiu editando a Medida Provisória 2183-56/2001, proibindo a vistoria de terras ocupadas, impossibilitando, assim, sua desapropriação. A medida provisória foi incorporada pela Lei n.º 8.629, de 25/02/93, estando esta determinação inserta no parágrafo 6º, do artigo 2º: 

Art.2º (…)

§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.

§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.

§ 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos." (grifos meus)

As ocupações de terra e prédios públicos são atos políticos que intencionam pressionar o Poder Público a agir, isto é, realizar, em sentido estrito, a reforma agrária, bem como garantir subsídios agrícolas. Assim, verifica-se que o objetivo da referida Lei, com as alterações introduzidas pela Medida Provisória citada tem o objetivo único de desestruturar e inviabilizar a luta dos movimentos sociais que lutam pelo acesso e permanência na terra, como é o caso do MST.

O Governo do ex-presidente Fernando Henrique, continuando a postura da criminalização das ocupações, foi para além da judicialização da luta e tendo sido, durante seu governo, o período da maior violência contra o Movimento, e ainda do uso da máquina legislativa, com a promulgação de leis engessadoras das estratégias utilizadas, como a já referida Lei nº 8.629, de 25/02/93, com a redação acrescida pela Medida Provisória 2183-56/2001. Com a criminalização das ocupações, pela sua relação direta, diminuíram, por conseqüência, os assentamentos, o que apaziguou os ânimos dos latifundiários e gerou maior repressão aos Movimentos.

Cabe lembrar que Lula, durante todo seu primeiro Governo, e já no decurso do seu segundo mandato, não fez e também provavelmente não promoverá a revogação da Lei n.º 8.629/93, que impede a vistoria de terras ocupadas pelo prazo de dois anos.

O primeiro Governo Lula não mudou muito esta situação, andando mesmo ao lado da política neoliberal. Em novembro de 2003, o Ministério de Desenvolvimento Agrário anunciou o "Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural". Segundo Marcelo Resende e Maria Luísa Mendonça (2004:10) afirmam que uma das principais metas do plano, com a previsão de atingir 130.000 famílias, era a continuidade do programa de Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural. “Esse projeto enfraquece o Estado nas suas atribuições, concorre com os instrumentos e recursos públicos da reforma agrária baseada na função social da terra e legitima as oligarquias rurais”.

Outra meta do referido Plano era o cadastramento e o georeferenciamento do território nacional, promovendo a venda das terras possuídas, o que beneficiaria os grilheiros e latifundiários do agronegócio. O agronegócio é a atividade rural que virou a grande menina dos olhos da política neoliberal. Segundo dados do IBGE, referentes ao ano de 2004, verificou-se que o agrobusiness respondeu por 34% do PIB nacional. Dentro do saldo total do comércio exterior brasileiro (de R$ 36,6 bilhões), o saldo do agronegócio corresponde a 93% (ou seja R$ 34 bilhões). O restante da economia nacional responde por apenas 7% (R$ 2,6 bilhões).

Para todo este “sucesso”, é necessária a manutenção da estrutura fundiária concentrada e desigual. O agronegócio tende à monocultura, devastadora para a biodiversidade, e ao aumento da sensação do chamado “deserto verde”; à substituição das culturas agrícolas locais e à expulsão de boa parte dos pequenos produtores do campo, pois, apesar de os adeptos deste modelo alardearem a promoção de empregos, o que causa é justamente o oposto, principalmente em razão da tecnificação da produção rural.

III- A resposta contra-hegemônica à globalização.

O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial são os promotores da pobreza do mundo globalizado. Entretanto, não se pode, apesar de tudo, pensar que o potencial democrático das sociedades contemporâneas se esgotou e que os projetos do processo de globalização reinam de forma absoluta. É neste sentido que se torna de extrema importância a atuação dos movimentos contra-hegemônicos.

Como dito anteriormente, seguindo o pensamento de Santos, há quatro formas de globalização, sendo duas que constituem a globalização de cima para baixo e, portanto, hegemônica (localismo globalizado e globalismo localizado), já acima tratadas, e duas outras que propositalmente deixei para este momento, e que compõem as formas de globalização de resistência ao modelo dominante. São formas de globalização contra-hegemônica, sendo elas o cosmopolitismo e a herança comum da humanidade.

O cosmopolitismo nada mais é do que a capacidade dos Estados-nação, grupos ou classes sociais contraporem-se a esta onda hegemônica, de se organizarem e lutarem por interesses comuns, aproveitando-se da mesma rede criada no sistema mundo para sua dominação. Esta luta se desenvolve a partir de uma consciência de novas oportunidades de criatividade e solidariedade transnacional (Santos, 2007:18), intencionando substituir trocas desiguais por trocas de autoridade partilhada (Santos, 2001:73). É, ainda, “o cruzamento de lutas progressistas locais com o objetivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais” (Santos, 2001:74). Santos ainda ressalta o risco de as atividades cosmopolitas, inicialmente, contra-hegemônicas, virem a ser hegemônicas, necessitando de uma análise auto-reflexiva permanente. É o risco da cooptação.

A herança comum da humanidade corresponde às “lutas transnacionais pela protecção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária” (Santos, 2001:75). Liga-se a questões coletivas difusas, como o meio-ambiente, pois sua destruição afeta a toda humanidade.

São formas contra-hegemônicas não só porque se opõem e resistem à globalização dominante, mas porque também demonstram que o interesse geral apresentado por este processo hegemônico é na verdade o grande fazedor de desigualdade e de humilhação social. “É a morte do respeito e da dignidade da pessoa”. Afirma ainda, Santos (2003:28-29), que a luta contra-hegemônica assenta no combate à exclusão social e ao fascismo social, com a criação de alternativas. As lutas cosmopolitas anseiam a emancipação das classes dominadas (Santos, 2001: 74).

Neste sentido, para Gómez (2000), é por meio da sociedade civil global[22] que surgem iniciativas de responsabilização dos Estados e do sistema internacional, bem como a mobilização de solidariedades políticas, que desafiam a estrutura do poder nacional, internacional e global, além de configurar o que se denomina globalização por baixo, que redefine e amplia os limites do espaço político democrático e, com isso, as ações de resistência tomam consistência e se tornam cada vez mais visíveis. Gómez (2000) salienta que a cidadania global, combinada com uma política de multiculturalismo, torna menos possível a exclusão, a hierarquização da vida e a violência institucionalizada, que permeia as relações internacionais.

Segundo Evans (apud Santos, 2001:39) alguns fatores podem ter contribuído para que o modelo de desenvolvimento no Leste Asiático tenha produzido menos desigualdades do que na América Latina, entre eles, a maior autonomia do Estado, a eficiência da burocracia estatal, a reforma agrária e a existência de um período inicial de protecção em relação ao capitalismos dos países centrais.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, por meio de sua luta, busca diminuir a troca desigual que lhe assalta. Lutam pela reforma agrária, mas também, parafraseando o slogan do Fórum Social Mundial, pela possibilidade de um outro mundo.

A reforma agrária é essencial para diminuição das desigualdades sociais e as ocupações de terras que não cumprem sua função social e de prédios públicos e privados são as estratégias emancipatórias encontradas. As ocupações coletivas são os atos políticos que dão visibilidade ao Movimento, sendo forte e contundente instrumento de pressão para consecução dos objetivos do Movimento. É neste sentido que afirmo estarem suas lutas dentro do campo do cosmopolitismo subalterno.

Tratarei, agora, ainda que brevemente, de alguns movimentos onde a realização e a visibilidade do cosmopolitismo subalterno se realiza, na medida em que se congrega e ganha força. Situarei duas organizações transnacionais com bastante força e poder de persuasão e mobilização, nomeadamente a Via Campesina e a Coordenação Latino Americana das Organizações Camponesas. Em seguida, falarei do Fórum Social Mundial.

O MST possui relações cada vez mais estreitas com ambas organizações transnacionais e ampla participação no Fórum, o que aumenta o poder cosmopolita subalterno de suas ações, e, assim, sua capacidade de resistência e de modificação do status quo, pois resistência sem modificação significa estagnação, pois não se avança. Não se recua, mas também não se avança.

1. A Via Campesina e a Coordenação Latino Americana das Organizações Camponesas.

A Via Campesina[23] é um movimento internacional, autônomo e independente, pluralista e multicultural, que congrega organizações de pequenos e médios produtores rurais, trabalhadores rurais sem-terra, mulheres camponesas e comunidades indígenas da Ásia, América e Europa e está organizada em sete regiões: Europa, Nordeste e Sudeste, Sul da Ásia, América do Norte, Caribe, América Central e América do Sul. Há também colaboração na África. É a entidade de maior participação no Fórum Social Mundial.

Sua origem remota data de Abril de 1992, quando diversos líderes camponeses da América Central, América do Norte e Europa se uniram em Manágua, Nicarágua, no Congresso da União Nacional de Agricultores e Pecuaristas (UNAG). O primeiro Congresso da Via Campesina ocorreu em Maio de 1993, na Bélgica, passando a ser concebida como Organização Mundial, momento no qual suas linhas estratégicas também foram definidas.

O Segundo Congresso ocorreu no México, em Abril de 1996, que contou com 37 países e 69 organizações, tendo por pauta as principais preocupações dos pequenos e médios produtores, nomeadamente a soberania alimentar, a reforma agrária, créditos e dívida externa, tecnologia, participação das mulheres e desenvolvimento rural, entre outras temáticas.

A Via Campesina se esmera na articulação, comunicação e coordenação dos interesses destes grupos organizados. É o esforço de integração da luta que, apesar de possuir diferenças em razão da cultura própria de cada região, é, ainda sim, muito semelhante, tendo todos consciência de que só a união transnacional fará frente ao processo globalizatório hegemônico. “A Via Campesina luta pela defesa dos interesses profissionais, políticos, econômicos, de comunicação, de gênero, aperfeiçoamento técnico e tecnológico[24].

Segundo informação do próprio sítio da entidade, seu principal objetivo consiste no desenvolvimento de uma rede de solidariedade e unidade entre as organizações sociais de trabalhadores e produtores rurais, com objetivo de promover relações econômicas de eqüidade e justiça social; a preservação da terra; a soberania alimentar, a produção agrícola sustentável; e a igualdade baseada no pequeno e médio produtor rural.

Segundo a própria Via Campesina, para a consecução de suas finalidades, os seus objetivos foram assim definidos:

1. Articulação e estreitamento entre os membros das organizações;

2. Poder de influência e centros de tomada de decisões no interior dos Governos e Organizações multilaterais no sentido de redirecionar as políticas económicas e agrícolas que afeta o pequeno e médio produtor;

3. A força das mulheres na participação nas questões sociais, econômicas, políticas e culturais;

4. Formulações de propostas em relação às questões mais importantes como: reforma agrária, soberania alimentar, produção, comércio, pesquisa, recursos genéticos, biodiversidade, meio-ambiente e gênero.

A Via Campesina Internacional cunhou o dia 17 de abril como sendo o dia internacional da luta camponesa, por conta do massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás (Pará), naquela mesma data, no ano de 1996. No Brasil, esta mesma data foi estabelecida como sendo o dia internacional da luta pela reforma agrária.

A Coordenação Latino-Americana das Organizações Camponesas – CLOC[25] foi criada em 1992 e é formada por 31 movimentos sociais de 15 países da América Latina, conforme melhor se compreende a partir da tabela organizada abaixo:

Brasil:
1.Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST);
2.Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB);
3.Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); 
4.Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR);
5.Comissão Pastoral da Terra (CPT);
6.Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA);

Bolívia 
7.Confederación Sindical de Colonizadores de Bolivia (CSCB/FTC);
8.Federación Nacional de Mujeres Campesinas de Bolivia "Bartolina Sisa" (FNMCB-BS);
9.Confederación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB); 

Chile
10.Asociación Nacional de Mujeres Indigenas (ANAMURI);
11.El Surco;
12.Confederación Nacional Sindical Campesina e Indígena de Chile (NEHUEN); 

Nicarágua 
13.Asociacion de Trabajadores del Campo;  

Argentina 
14.Movimiento Campesino de Santiago del Estero (MOCASE); 
15.APENOC;

Belize
16.Belize Association of Producers Organization (BAPO);

Colômbia
17.Asociación Nacional de Usuarios Campesinos Unid. y Rec (ANUC-UR);
18.Federación Nacional Sindical Unitária Agropecuaria (FENSUAGRO);

Costa Rica
19.Mesa Nacional Campesina

Cuba
20.Asociación Nac. de Agricultores Pequeños (ANAP)

Equador
21. Federación Nacional de Organizaciones Campesinas Indígenas y Negras del Ecuador (FENOCIN);
22.Confederación Unica Nacional de Afiliados al Seguro Campesino (CONFEUNASSC);

Guatemala
23.Coordinadora Nacional Indígena y Campesina (CONIC)  

Honduras
24.Consejo Coordinador de Organizaciones Campesinas de Honduras (COCOCH) 

México
25.Central Campesina Cardenista
26.Coordinadora Nacional Plan de Ayala (CNPA)
27.Unión Nacional de Organizaciones Regionales Campesinas Autónomas (UNORCA)
28.Central Independiente de Obreros Agrícolas y Campesinos (CIOAC)

Paraguay:
29.Movimiento Campesino Paraguayo (MCP)

Perú:
30.Confederación Campesina del Perú (CCP); 

República  Dominicana
31.Confederación Nacional de Mujeres del Campo (CONAMUCA)  

Logo na página principal do sítio da CLOC[26], nota-se uma campanha contra o deserto verde e pela biodiversidade, com umcartaz que se retratou os dizeres no quasro abaixo. A campanha refere-se a uma empresa transnacional, Aracruz Celulose, e demonstra a diferença entre esta e a agricultura camponesa:

Aracruz Celulose
01 emprego para cada 185 hectares
01 empresa com 56,2 mil hectares
97% da produção de 2004 foi destinada à exportação

Agricultura Camponesa
05 empregos para cada 1 hectare
2810 propriedades para cada 20 hectares
100% da produção na mesa do trabalhador brasileiro

A Aracruz Celulose iniciou sua atividade de extração de eucalipto no sul do Espírito Santo, Brasil, onde possui extensa área de terra, na qual da qual 11 mil hectares são reivindicados pelos índios tupiniquins e guaranis. A mesma multinacional agora está entrando no Norte do Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul. Assim, diversas entidades, entre trabalhadores urbanos e rurais, estão se mobilizando para impedir o que se chama “implantação do deserto verde”.

É assim que se verifica que as questões não são divididas e setorizadas. O caso da Aracruz Celulose é contundente, pois atinge a vários grupos que lutam pela acesso e permanência na terra, como os trabalhadores rurais, os indígenas e os quilombolas.

O MST luta pela terra e pela reforma agrária, mas também por outras questões inerentes à pessoa humana, como soberania alimentar, moradia, trabalho, enfim, cidadania e dignidade. Assim, a luta é realmente de todos. Internamente, tanto é dos trabalhadores(as) rurais, dos indígenas e dos quilombolas, como também é dos trabalhadores(as) urbanos(as), e externamente, englobando os diversos movimentos sociais que lutam contra a hegemonia da submissão e dominação, que lutam por melhores condições de vida e de cidadania.

Internacionalizar a luta é perceber que não só a luta encontra eco em vários outros países, com diferenças locais, obviamente, mas que possuem muitos pontos em comum, como a ânsia e a voracidade do capital estrangeiro, que, com suas empresas transnacionais, compram milhares de hectares, levando o campesinato ao desemprego em larga escala, além da fome e miséria generalizada. E desta voracidade, há também, em comum, a vontade de resistir e de mostrar a possibilidade de um novo mundo, de um novo quadro social, onde as trocas sejam menos desiguais. Tal afirmação se faz por não crer ser possível a eliminação da desigualdade de forma total, mas andar em seu caminho já é a grande revolução.

O que se consegue perceber é que a luta local reflete o cosmopolitismo subalterno, como, por exemplo, quando o MST ocupa um latifúndio para pressionar a reforma agrária e apoio financeiro, para assim diminuir a desigualdade e abrir oportunidade para mais famílias, oportunidade de trabalho, de moradia, de alimentação, de vida. Sua luta, apesar de local, é também global, pois atualmente o maior vilão da desigual estrutura fundiária é o agronegócio. Quando a luta se transnacionaliza, como, por exemplo, a Via Campesina atua, no âmbito de uma congregação de movimentos sociais agrários e luta pela biodiversidade, pela biosegurança, ou quando os vários movimentos sociais agrários da América Latina, que compõem a CLOC se reunem pela soberania alimentar do povo latino americano, ela é global, mas também não deixa de ser local, pois os problemas estão especificamente localizados (geograficamente).

2. O Fórum Social Mundial: de Davos Dominante a Porto Alegre contra-hegemônico.

O Fórum Social Mundial foi idealizado e organizado por um comitê de entidades brasileiras[27], tendo sido realizado, o primeiro encontro mundial em Porto Alegre, entre 25 e 30 de janeiro de 2001, sendo sua carta de princípios[28] o seu principal documento. Surgiu a idéia deste espaço transnacional contra-hegemônico em oposição ao Fórum Econômico Mundial, que reúne os donos do capital, anualmente, em Davos.

Segundo o sítio[29] do próprio FSM, trata-se de um espaço de debate e de convergência de reflexões, experiências e articulações entre movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que lutam contra o neoliberalismo e a imposição ao mundo do capital e imperialismo.

É um espaço plural, de caráter não confessional, não governamental e não partidário, pretendendo “facilitar a articulação, de forma descentralizada e em rede, de entidades e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo, mas não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil mundial”, pois é mesmo mais um espaço de articulação e colaboração internacional para ação na busca por outro mundo, não constituindo, em si, uma entidade.

As alternativas surgidas no FSM buscam lutar contra o processo de globalização dominante e hegemônico, fundado pelas empresas transnacionais, visando mesmo fundar uma globalização sodirária, contra-hegemônica, e que respeite os direitos humanos e o meio-ambiente. Dentre os princípios fundantes do FSM, propugnados em sua Carta, transcrevo os de número 13 e 14, nos quais se reforça a necessidade de resistência à globalização de cima para baixo e o estímulo às ações do nível local ao nacional, passando pela união transnacional:

“13. O Fórum Social Mundial, como espaço de articulação, procura fortalecer e criar novas articulações nacionais e internacionais entre entidades e movimentos da sociedade, que aumentem, tanto na esfera da vida pública como da vida privada a capacidade de resistência social não violenta ao processo de desumanização que o mundo está vivendo e à violência usada pelo Estado, e reforcem as iniciativas humanizadoras em curso pela ação desses movimentos e entidades;” (g.n.)

14. O Fórum Social Mundial é um processo que estimula as entidades e movimentos que dele participam a situar suas ações do nível local ao nacional e buscando uma participação ativa nas instâncias internacionais, como questões de cidadania planetária, introduzindo na agenda global as práticas transformadoras que estejam experimentando na construção de um mundo novo solidário.” (g.n.)

O Fórum Social Mundial, realizado pela primeira vez em 2002, em Porto Alegre, Brasil, é o grande aglutinador de todas as ações contra-hegemônicas; é um espaço de troca e de articulação dos movimentos sociais e o MST tem participação ativa. Entretanto, concordo com Emir Sader, em artigo publicado na Carta Maior, em 19 de Janeiro de 2006, que afirma que os movimentos sociais precisam dar mais um passo na luta contra o modelo neoliberal imposto, sendo mesmo importante lutar por um outro poder político, deixado de lado o papel de testemunho da resistência.

No último FSM (Janeiro de 2007), realizado em Nairobi, Quénia, a Via Campesina lançou seus braços na luta pela reforma agrária na região africana, afirmando haver, só na África do Sul, cerca de 15 (quinze) milhões de sem-terra, chamando atenção para o fato de ser a região mais pobre de todo mundo, sendo premente a recuperação dos recursos naturais, como água, terra, sementes, minas etc., como estratégia de combate à fome.

IV –O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST.

1. O Surgimento do Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.

O General Emílio Garrastazu Médici assumiu a Presidência do Brasil, eleito de forma indireta, em 30 de outubro de 1969 e governou até 15 de março de 1974. Este período ficou conhecido como os anos negros da ditadura militar, restando ao movimento estudantil e sindical nada mais do que o silêncio, sob pena de forte repressão policial. Foi neste momento histórico que ocorreu a maior parte dos desaparecimentos políticos, tornando-se a tortura prática comum dos DOI-CODIs, órgãos governamentais de repressão vinculado ao Exército. O total fechamento dos canais de participação política da sociedade civil levou a esquerda brasileira à luta armada, respondendo o governo com mais repressão contra os movimentos, além de uma forte propaganda negativa.

O mencionado endurecimento político foi mascarado pelo chamado milagre econômico, que se fazia representar pelo estrondoso crescimento do PIB (cerca de 10% ao ano), diversificação das atividades produtivas e o surgimento de uma nova classe média com alto poder aquisitivo, não obstante gerasse uma maior e injusta concentração de renda. O “crescimento” do país teve origem no Plano Nacional de Desenvolvimento, cujo mentor era o então ministro Delfim Neto. Cabe ressaltar, entretanto, que de milagroso nada teve este crescimento, pois se derivou de um processo galopante de endividamento (dívida em 1964=1,5 bi; 1970=14 bi; 1985=90 bi)[30], sem, ainda, mencionar a especulação no Open Market com títulos do governo, fato que acarretou sérios prejuízos à produção, agravando sobremaneira a concentração de renda no setor agrário.

Médici foi sucedido pelo General Ernesto Geisel, assumindo a presidência em 15 de março de 1974. A situação do país não estava nada favorável, em razão da falácia que era o dito milagre econômico (ou seria melhor dizer desastre econômico??), chegando a inflação ao pico de 34,5%, o que dificultava a correção dos salários. O então Presidente, ao invés de tentar conter esta situação, apostou no dito milagre, permanecendo o Brasil imerso em um enorme endividamento externo.

Geisel investiu no setor industrial, incentivando projetos que visassem a substituição do modelo de importações e para fazer frente à crise do petróleo iniciada no governo anterior, investiu, também, no setor energético, surgindo o Proálcool (Programa Nacional do Álcool), objetivando a implantação de um combustível alternativo, além do Procarvão (Programa Nacional de Carvão), visando a substituição do óleo combustível.

A crise internacional do petróleo desencadeada em 1973 afetou o desenvolvimento industrial e aumentou o desemprego, propondo, assim, Geisel um projeto de abertura política "lenta, gradual e segura", sendo atribuída a autoria deste plano ministro-chefe do Gabinete Civil, general Golbery do Couto e Silva. Apesar deste plano de abertura, permaneciam cassando mandatos e direitos políticos.

Por se vislumbrar a possibilidade de a oposição vencer as eleições de 1978, Geisel fechou o Congresso por duas semanas e decretou, em abril de 1977, o denominado Pacote de Abril, que alterava as regras eleitorais, passando a dispor que as bancadas estaduais da Câmara não podiam ter mais do que cinqüenta e cinco deputados nem menos que seis. Desta forma, os Estados do Norte e do Nordeste, controlados pela Arena, garantiram uma boa representação no Congresso, contrabalançando as bancadas do Sul e Sudeste, regiões em que a oposição era mais expressiva. O pacote manteve as eleições indiretas para governadores e criou a figura do senador biônico[31].

Em 15 de outubro de 1978, o MDB apresentou seu candidato ao Colégio Eleitoral, o general Euler Bentes, que recebeu 266 votos contra 355 votos do candidato do governo, o General Figueiredo. Com essas medidas, Geisel conseguiu eleger Figueiredo, mas não impediu o avanço inconteste da oposição.

No final dos anos 70, a inflação chegava a 94,7% ao ano. Em 1980 bateu 110% e, em 1983, 200%. O Brasil entrou em um período de recessão, cuja principal conseqüência foi o desemprego. Em agosto de 1981, havia 900 mil desempregados somente nas regiões metropolitanas. No início dos anos 80, segundo dados do IBGE, 80 milhões de pessoas (67% dos brasileiros) viviam nas cidades, enquanto a população rural atingia a marca de 39 milhões de pessoas. Entre 1970 e 1980, o crescimento foi de 27,8% enquanto no período anterior, de 60 a 70, foi de 32,9% e, entre 1980 e 1991, conforme o penúltimo censo, chegou a 23,5%. Para completar o quadro de falências sociais, em 1980, o analfabetismo ainda atingia 25% dos habitantes[32]. A busca por soluções a estes problemas constituía algumas das reivindicações dos movimentos sociais urbanos da época.

É neste cenário que nasce embrião do Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, contando com grande apoio de militantes da Igreja Católica, principalmente da Comissão Pastoral da Terra[33], pretendendo-se unificar varias mobilizações esparsas no campo. A intensa mecanização da agricultura introduzida durante a ditadura militar expulsou assalariados, arrendatários e parceiros do campo, mas alguns trabalhadores rurais acreditavam que podiam se organizar e resistir obrando na terra. Assim, em 07 de outubro de 1979, agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul ocuparam a gleba Macali, em Ronda Alta. As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da década de sessenta, quando o MASTER[34] organizara os acampamentos na região. Simultaneamente, surgiram ocupações de trabalhadores rurais nos demais estados do Sul, Mato Grosso e em São Paulo[35].

O MST surge oficialmente em 1984 durante o 1º Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), sendo, no ano seguinte, organizado nacionalmente, momento em que se realizou o 1º Congresso Nacional dos Sem Terra, realizado de 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, com 1500 delegados representando 23 estados brasileiros, com o lema: “Ocupar é a única solução”.

Em julho de 1985, o MST organizou um acampamento, no Rio Grande do Sul, que reuniu mais de 10 mil agricultores sem terra durante três dias, pleiteando, entre outras coisas, a implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Depois, em outubro daquele ano, ainda no mesmo Estado, cerca de 6500 pessoas ocuparam a Fazenda Annoni, com 10 mil hectares, estância já desapropriada desde 1974 para assentamento de agricultores que tinham sido desalojados por força da construção da barragem de Passo Real, mas ainda estava sendo ocupada pelo antigo proprietário (Garcia, 2000).

Ao amadurecer, o Movimento percebeu que a luta, única e exclusivamente, pelo acesso e permanência na terra era insuficiente. Percebeu-se que era necessário também lutar por crédito, moradia, assistência técnica, escolas, atendimento à saúde e outras necessidades da família sem-terra que, assim como para todos os brasileiros, precisam ser supridas. Enfim, descobriu-se que a luta não é apenas contra o latifúndio e sua nova roupagem, o agronegócio, mas também contra o modelo econômico neoliberal vigente nos dias atuais. A luta do MST é pela Reforma Agrária e pela transformação social, representando uma nova forma de articulação social compreendendo aquilo que se convencionou chamar de novos movimentos sociais.

2. O Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra enquanto novo movimento social.

O MST é constantemente identificado, tanto pelo governo quanto por parte da imprensa, como um grupo de baderneiros, agitadores da ordem dispostos a findar com a democracia. O discurso reinante, tanto governamental quanto por parte da imprensa, acerca dos movimentos sociais, principalmente em relação ao MST, lançam a identificação com a baderna, a desordem, a tirania e o crime. O ex-Presidente da República, sr. Fernando Henrique Cardoso, em declaração publicada no Jornal do Brasil de 28 de maio de 1998, afirma que “quando o MST ocupa um banco ele é igualzinho a alguém que entrou num banco como assaltante”.

A conduta política adotada pelo MST é combatida porque ele não reivindica somente a reforma agrária e seus corolários, mas intentam a reforma de toda a sociedade. Segundo dados do IBGE, 1,4% de proprietários rurais detém 50% das terras, sendo que a maior parte delas não atendem à sua função social. De acordo com o convênio PACS/Cenpla-Mirad, a partir do cadastro Incra/1987, dentre os maiores latifúndios improdutivos do Brasil encontra-se grandes empresas dos mais diversos ramos, como Votorantim, Klabin, Belgo Mineira, Bradesco, Safra, Itaú, Credireal, Bozano-Simonsen etc.

Retomando a idéia de que o MST pertence ao rol do que se convencionou chamar de novos movimentos sociais, oportuno agora trazer o conceito que Pinto (2003) estabelece. Entende o autor que o termo designa espaços de organização social onde se estabelecem relações que possibilitam uma revalorização cultural e pessoal, se constitui uma nova cultura e práxis política, orientadas por um projeto de sociedade libertário, que os torna sujeitos coletivos que criam bases de autonomia numa sociedade em construção (p.41). Alain Touraine apud Herkenhoff (2003) identifica os novos movimentos sociais como sendo ações coletivas tendentes a obter mudanças na esfera social e cultural (p.998).

Salton e Kuecler (1990:227) apud Santos (1995) trazem uma definição genérica do que sejam esses novos movimentos sociais, os conceituando como sendo “um sector significativo da população que desenvolve e define interesses incompatíveis com a ordem política e social existente e que os prossegue por vias institucionalizadas, invocando potencialmente o uso da força física ou da coerção”.

Santos (1995) afirma que a maior novidade trazida pelos novos movimentos sociais é que os mesmos constituem-se tanto em uma crítica à regulação social capitalista quanto à emancipação social socialista, tal como definida pelo marxismo.

Esclarece Pinto (2003) que o surgimento dos novos movimentos sociais liga-se à reação social ao crescente processo de alienação e reificação presente na atual fase do sistema capitalista. Nesta reação, o homem intenta resgatar-se como sujeito de sua história, e não como objeto. Neste sentido Garcia (2000:69) afirma que

“a conscientização experimentada pelos participantes de tais movimentos seria, portanto, não apenas uma forma de romper com esta alienação, mas também com  a heteronomia (a determinação da norma pelo outro) e conquistar a autonomia (a determinação das normas por si mesmo).”

Pinto (2003:33) aponta quais são os elementos caracterizadores dos novos movimentos sociais:

a) revalorização cultural e pessoal à devendo ser entendida como possibilidades de criação de novas identidades sociais, tanto coletivas quanto individuais;

b) constituição de uma nova cultura política de base à Para o autor (1992:36), este elemento relaciona-se com reações às fontes autoritárias e de repressão política, às formas centralizadoras de poder e ao caráter excludente do modelo econômico adotado no País, encaminhando novas formas de vida mais comunitária;

c) ação política libertária à por meio da qual o sujeito faz-se titular de sua própria autonomia;

d) projeto de sociedade socialista e democrática à este projeto está inserido no contexto geral de uma nova cultura política de base.

Eliane Botelho Junqueira (2001), assim como Santos, diferencia os novos movimentos sociais do Brasil e os existentes nos países centrais, afirmando que, no Brasil, estes movimentos se formaram

depois de mais de vinte anos de um regime militar que desarticulou a organização popular do início da década de sessenta, principalmente o forte movimento camponês do Nordeste.(…)”

“Ainda que cronologicamente recentes – e, portanto, novos – estes movimentos não compartilham as perspectivas dos movimentos dos países centrais e estão voltados não para as questões feministas ou ecológicas, mas sim para uma melhor distribuição das propriedades rurais e urbanas, problemas cujo encaminhamento foi interrompido durante o período autoritário.”

Conforme Garcia (2000), o MST encontra-se incluído no rol dos novos movimentos sociais, asseverando, para tanto, que

“Aqueles elementos fundamentais que caracterizariam os novos movimentos sociais, – e aos quais me referi anteriormente -, são facilmente encontráveis no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Pela simples leitura de seus documentos básicos, percebe-se a importância central da revalorização cultural e pessoal em sua organização, a qual se manifesta, dentre outros fatores, pela absoluta centralidade conferida pelo MST às práticas educacionais em seu movimento, envolvendo todos os seus militantes, tanto para a educação elementar formal de sua base em acampamentos e assentamentos quanto para a formação política de seus quadros intermediários e/ou seus dirigentes. (…)

Seus compromissos com a constituição de uma nova cultura política de base e de um projeto socialista e democrático também são evidentes em trechos como os arts. 8 a 12 de suas Normas Gerais, comumente apresentados pela imprensa ora como elementos caracterizadores do anacronismo do MST, ora de sua incompatibilidade com a democracia. (…)

Há nítida e assumidamente o objetivo de estimular a capacidade crítica, a participação ativa e a mobilização social permanente de seus integrantes, elementos típicos de uma ação política libertária”. (p.71)

Enfim, é o Movimento classificado como pertencente ao rol dos novos movimentos sociais, na medida em que transcendem à idéia de classe e com isso a dialética marxista. Vai além, não sendo apenas trabalhadores rurais, mas também homens, mulheres, crianças, que anseiam não só pelo acesso e permanência na terra, apesar desta ser a sua  bandeira, mas que se interessam também por questões outras que os envolve indiretamente enquanto cidadãos.

3. A evolução estratégica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra: a globalização da luta pela terra.

De acordo com o próprio Movimento (1996), pode-se dividir a sua história em três fases:

1. Período de 1979 a 1988: Trazia por lema “terra para quem nela trabalha” e coincidia a luta pela terra com a luta pela reforma agrária;

Bernardo Mançano Fernandes, em texto publicado na Revista de Cultura Vozes, denominado Brasil: 500 anos de luta pela terra, afirma ser de primeira necessidade distinguir a luta pela terra da luta pela reforma agrária: “primeiro, porque a luta pela terra sempre aconteceu, com ou sem projetos de reforma agrária. Segundo, porque a luta pela terra é feita pelos trabalhadores e na luta pela reforma agrária participam diferentes instituições” (p. 07). Afirma, ainda, que a luta pela terra antecede à luta pela reforma agrária, mas ambas perfilam lado a lado, são interativas. “A luta pela reforma agrária contém a luta pela terra. A luta pela terra promove a luta pela reforma agrária”.

A história da luta pela terra tem origem remota nos quilombos, conforme Baldez, pois, a luta dos negros significou não só o fim de um cruel sistema, mas também a procura de um espaço de organização, produção e preservação da identidade sócio-cultural do negro (1997:105). Concordo com o autor, em parte, pois entendo que esta luta seja mais anterior ainda, pois abarca a dos indígenas, não só pelo seu direito à terra, que lhe foi expoliado, mas também pela sua identidade étnica, na esfera de sua auto-determinação, no sentido de Santos (2007).

A reforma agrária sempre se mostrou gênero de primeira grandeza, mas somente tomou corpo como proposta a partir da década de 50 do século passado, com as Ligas Camponesas no Nordeste, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964, com o Golpe de Estado.

2. Período de 1988 a 1995: Neste momento, a reforma agrária passou a ser vista de forma mais ampla, para além da conquista da terra, referindo-se a um processo de política pública capaz de alterar e modificar a estrutura fundiária existente. Identifica-se com a luta pelo socialismo e definiu-se, a partir deste momento, a disposição de resistir às ordens de desocupação da terra. Trazia o lema “ocupar, resistir, produzir”, sendo justificadas as ocupações pelo Movimento da seguinte forma: “Ocupar era a reafirmação da forma de luta, resistir era devido à repressão, e produzir era a contestação à UDR[36]; que chamava os sem-terras de ‘preguiçosos e vagabundos’ ” (MST, 1996:12).

3. Período de 1995 até os diais atuais: Trouxe o lema “reforma agrária, uma luta de todos”, elaborado no III Congresso Nacional do MST, que tinha por eixo central a união dos trabalhadores rurais e urbanos, bem como a redefinição do perfil da política de reforma agrária de distribuição de terra e financiamentos, baseada na implantação da agroindústria, por meio de cooperativas.

Introduzo neste estágio, a luta contra o modelo neoliberal de mcdonaldização, para usar um termo utilizado por Gómez, da área rural, com a introdução do agronegócio.

O MST criou o fenômeno das ocupações coletivas[37], por meio das quais o Movimento consegue maior visibilidade, além de materializar, corporificar a sua luta, conseguindo, assim, pressionar o poder público no caminho pretendido.

Cabe à União Federal[38] a realização da reforma agrária, mas a mesma não é de forma alguma implementada, em sua plenitude, pois alteraria profundamente a estrutura agrária latifundiária e voltada à atenção ao grande capital. Assim, graças à estratégia de luta dos movimentos sociais agrários, por meio das ocupações, os assentamentos rurais ingressaram no cenário político.

A forte repressão contra o Movimento traz dentro de si sua própria emancipação, por meio da resistência de seus membros. Bernardo Mançano (2001) identifica mesmo as ocupações como forma de acesso à terra, visto que há uma relação direta entre as ocupações realizadas pelo MST e os assentamentos das famílias por parte do Governo.

Verifica-se, também, uma mudança de paradigma, pois o Movimento não só ocupa latifúndios, como forma de pressão política, mas também contribui com a luta de outras categorias, como operários, petroleiros, professores etc. Esta mudança deveu-se ao desenvolvimento tecnológico ocorrido na contemporaneidade não alcançar os trabalhadores rurais, trazendo por conseqüência o êxodo no campo[39], gerando também um agravamento nos problemas sociais das cidades.

“Haverá, porém, que se acrescentar como parte da reforma agrária, todas as condições de desenvolvimento social, cultural e humano, para que os assentados e trabalhadores agrícolas possam ser beneficiados pelas descobertas científicas em todas as áreas. Com isso, deverá haver melhorias na educação, na cultura, na arte, no lazer etc.

Estes elementos complementares à distribuição de terra e de créditos é que motivarão os trabalhadores em grande parte a retornarem e permanecerem na agricultura.

O caminho mais seguro para se resolver os problemas sociais do país é realizando a reforma agrária, implantando indústrias no campo, para que se possa integrar a mão-de-obra excedente na transformação da matéria-prima em produtos industrializados”.

(MST, 1996:22).

O êxodo rural sempre foi apontado como um dos grandes responsáveis pelo crescimento desorganizado dos grandes centros, pelo incremento das favelas, pelos índices crescentes de desemprego e pelo aumento da violência urbana. É neste contexto que a reforma agrária passa a ser, como diz o próprio Movimento, um problema de todos!  Passa o Movimento a lutar não só pelos aspectos que diretamente ligam à questão do acesso e permanência na terra (reforma agrária, máquinas, financiamentos etc.), mas também para pontos gerais da cidadania, como educação, cultura, lazer, acesso aos avanços tecnológicos e científicos etc.

Os principais documentos do MST ressaltam a importância da associação com outros movimentos sociais, inclusive da cidade, bem como a identificação de que a reforma agrária não se limita à distribuição de terra. No Caderno de Formação, n.º12, de maio de 1987, editado pelo MST, pode-se verificar prioridades, como o fortalecimento da organização de base, educação e formação educacional e política de seus membros, bem como a articulação com os demais trabalhadores e modo de organização dos assentamentos.

Essa associação com outros movimentos sociais não é limitada ao nível nacional, encontrando eco, também, na ordem internacional, transnacionalizando-se, assim, as ações, contatos, interesses e lutas. Essa transnacionalização é de extrema importância para a globalização de baixo para cima, a globalização contra-hegemônica, principalmente porque transnacional também é a globalização hegemônica.

Desde o 4º Congresso Nacional do MST, realizado no ano de 2000, sob o lema Reforma Agrária: por um Brasil sem latifúndio, o Movimento reafirmou a necessidade de transnacionalizar a luta e ratificou a ligação com a Via Campensina e a Coordenação Latino Americana das Organizações Camponesas (CLOC).

Conforme o MST (2007), nos últimos anos, a Via Campesina começou a atuar mais fortemente junto às organizações camponesas dos cinco continentes. Por força da Via Campesina, “os camponeses acumularam forças para desenvolver o conceito de soberania alimentar e das sementes como patrimônio da humanidade; de promover a luta contra os produtos transgênicos e contra os monoculturas e da preservação ambiental e da luta contra os produtos transgênicos e em defesa da preservação ambiental”.

Como já mencionado, a luta agora, com a introdução do agronegócio, é contra empresas transnacionais, que são proprietárias dos latifúndios. Assim, o MST define seus objetivos atuais como sendo:

a apresentação de um novo programa para agricultura brasileira, que atenda às necessidades dos camponeses e da população brasileira e combata o modelo das elites, representado na atual política econômica, na atuação das transnacionais e do agronegócio, no latifúndio atrasado que persiste em todo o território nacional e na expansão da monocultura”. (MST, 2007)

Em razão desta nova situação e enfretamento, é que o 5º Congresso Nacional do MST, que se realizou entre os dias 11 e 15 de junho de 2007, em Brasília, Brasil, teve como tema “Reforma Agrária: por Justiça Social e Soberania Popular”. É, atualmente, o maior Congresso já realizado pelo Movimento, onde se obteve a presença de mais de 17 mil delegados de assentamentos e acampamentos de 24 estados da federação, onde estiveram também presentes membros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Associação Brasileira de Ongs (Abong), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e das centrais sindicais Conlutas e Intersindical, além de representantes de alguns partidos de esquerda, como o PDT, PSOL, PT, PC do B e PCB, além de 181 convidados internacionais representando 21 organizações camponesas de 31 países e amigos e amigas de diversos movimentos e entidades.

Alguns pontos foram pensados quanto aos problemas vivenciados e foram apontadas alternativas para a luta por direitos e justiça social. Para isso, compromissos[40] foram assumidos, ao final do V Congresso:

1. Articular com todos os setores sociais e suas formas de organização para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro;

2. Defender os nossos direitos contra qualquer política que tente retirar direitos já conquistados;

3. Lutar contra as privatizações do patrimônio público, a transposição do Rio São Francisco e pela reestatização das empresas públicas que foram privatizadas;

4. Lutar para que todos os latifúndios sejam desapropriados e prioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos;

5. Lutar contra as derrubadas e queimadas de florestas nativas para expansão do latifúndio. Exigir dos governos ações contundentes para coibir essas práticas criminosas ao meio ambiente. Combater o uso dos agrotóxicos e o monocultura em larga escala da soja, cana-de-açúcar, eucalipto etc.;

6. Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país;

7. Exigir o fim imediato do trabalho escravo, a super-exploração do trabalho e a punição dos seus responsáveis. Todos os latifúndios que utilizam qualquer forma de trabalho escravo devem ser expropriados, sem nenhuma indenização, como prevê o Projeto da Lei já aprovado no Senado;

8. Lutar contra toda forma de violência no campo, bem como a criminalização dos Movimentos Sociais. Exigir punição dos assassinos – mandantes e executores – dos lutadores e lutadoras pela Reforma Agrária, que permanecem impunes e com processos parados no Poder Judiciário;

9. Lutar por um limite máximo do tamanho da propriedade da terra. Pela demarcação de todas as terras indígenas e dos remanescentes quilombolas. A terra é um bem da natureza e deve estar condicionada aos interesses do povo;

10. Lutar para que a produção dos agrocombustíveis esteja sob o controle dos camponeses e trabalhadores rurais, como parte da policultura, com preservação do meio ambiente e buscando a soberania energética de cada região;

11. Defender as sementes nativas e crioulas. Lutar contra as sementes transgênicas. Difundir as práticas de agroecologia e técnicas agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente. Os assentamentos e comunidades rurais devem produzir prioritariamente alimentos sem agrotóxicos para o mercado interno;

12. Defender todas as nascentes, fontes e reservatórios de água doce. A água é um bem da Natureza e pertence à humanidade. Não pode ser propriedade privada de nenhuma empresa;

13. Preservar as matas e promover o plantio de árvores nativas e frutíferas em todas as áreas dos assentamentos e comunidades rurais, contribuindo para preservação ambiental e na luta contra o aquecimento global;

14. Lutar para que a classe trabalhadora tenha acesso ao ensino fundamental, escola de nível médio e a universidade pública, gratuita e de qualidade;

15. Desenvolver diferentes formas de campanhas e programas para eliminar o analfabetismo no meio rural e na cidade, com uma orientação pedagógica transformadora;

16. Lutar para que cada assentamento ou comunidade do interior tenha seus próprios meios de comunicação popular, como por exemplo, rádios comunitárias e livres. Lutar pela democratização de todos os meios de comunicação da sociedade contribuindo para a formação da consciência política e a valorização da cultura do povo;

17. Fortalecer a articulação dos movimentos sociais do campo na Via Campesina Brasil, em todos os Estados e regiões. Construir, com todos os Movimentos Sociais a Assembléia Popular nos municípios, regiões e estados;

18. Contribuir na construção de todos os mecanismos possíveis de integração popular Latino-Americana, através da ALBA – Alternativa Bolivariana dos Povos das Américas. Exercer a solidariedade internacional com os Povos que sofrem as agressões do império, especialmente agora, com o povo de Cuba, Haiti, Iraque E Palestina.

As ocupações coletivas realizadas pelo MST são, como já afirmado, mais um dos elementos e estratégias de pressão utilizada para se obter o acesso e permanência na terra, traduzindo-se mesmo na idéia de cosmopolitismo subalterno, sendo forte elemento caracterizador da luta globalizatória de baixo para cima.

V- Considerações finais:

O processo globalizatório hegemônico impõem suas medidas de homogeneização do mundo, sufocando culturas e modos e qualidades de vidas de vários grupos sociais, impondo outras, implicando em mais exclusão da esfera de cidadãos. Por meio das empresas multinacionais, o poder hegemônico determina e domina aqueles que não pertencem à classe transnacional.

Aliados às grandes empresas, dois institutos são de grande valia e importância, pois ditam para o mundo a forma como o sistema financeiro deve caminhar e onde o capital deve ser aplicado, que obviamente nunca é destinado para questões sociais, relevantes para aqueles que nada ou pouco tem.

As empresas transnacionais entraram no campo e deram nova aparência aos latifúndios. São outros os coronéis; mais fortes e mais poderosos. O latifúndio agora não mais pertence a uma pessoa física. O coronel agora é uma sociedade anônima com multi bandeiras e é contra esta nova forma de opressão que se deve lutar. O agribusiness promove maior desigualdade no campo, expondo populações inteiras à falta de emprego, à falta de moradia, à falta de cidadania.

Todo este fenômeno de globalização de cima para baixo gera também uma reação que consiste na resistência a todo este processo. É a globalização contra-hegemônica, que ocorre tanto em nível local, nacional e também global, havendo interação entre estes espaços, que não são estanques.

Tratanto especificamente do MST, percebeu-se que o caminho da luta é mesmo no sentido da transposição de fronteiras do Brasil e alcançar outros movimentos sociais igualmente atentos e preocupados com a questão agrária, em nível internacional, mas ainda, a nível local/nacional, apoiar movimentos que lutem por quaisquer questões que interesse diretamente ao povo, para além da área rural, como por exemplo a questão da moradia urbana, do trabalho, da água, da energia elétrica, enfim, todos os assuntos que digam respeito à diminuição da desigualdade das trocas.

Minha afirmação não resvala naquele dito popular de quem quer tudo não tem nada, pois trata-se de ter atenção e dar apoio à outras questões sociais. O MST luta pelo acesso e permanência na terra, como ponto prioritário, mas outras questões se unem à esta e não podem ser esquecidas, principalmente no que tange à permanência do trabalhador na terra, pois implementar a reforma agrária em área infértil ou longe do mercado ou ainda sem o apoio financeiro para cultivo e comercialização é o memso que não implementar a reforma agrária.

Assim, devemos compreender a postura política do MST, tanto na prática das ocupações coletivas realizadas em imóveis particulares e públicos, como também na direção cada vez mais marcada na transnacionalização da luta, incidindo na concepção de cosmopolitismo subalterno, se fazendo inserir no rol dos novos movimentos sociais.

Encerrei o título do presente ensaio: Quem tem medo do cosmopolitismo subalterno? para afirmar que é realmente necessária a luta do MST, enquanto ação contra-hegemônica, para se transpor as barreiras da plena desigualdade e se diminuir assim as trocas desiguais impostas pela globalização hegemônica e neoliberal; são vitais para a inclusão de parcela da sociedade civil incivil, apropriando-me de termo utilizado por Boaventura Sousa Santos, no rol da cidadania, ao menos galgando um degrau na escalada social, passando-se de não cidadão para “meio-cidadão”, ao menos. É por esta razão que o MST, assim como outros movimentos sociais contra-hegemônicos são tão combatidos e mesmo criminalizados.

Em seminário intitulado Juntos contra a Tortura, promovido pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, no dia 26 de junho de 2002, Gilmar Mauro, coordenador nacional do MST, afirma, em relação à radicalidade atribuída ao Movimento pelo senso comum, que eles são é uma tropa de frouxos, mais não radicais. Afirma que:

se se analisar que somos radicais por entendermos que alterar a situação do país, muito bem, concordo. Agora, que as nossas ações são radicais… acho que elas são é leves demais, pacatos nós somos, quando, neste país, seres humanos estão morrendo por não terem o que comer e ver a terra que não está produzindo… Não é um direito, é  um dever que nós temos de garantir pelo menos a sobrevivência de nosso povo”.

 

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Notas:
[4] Este termo foi apropriado por estas agências, tendo sido utilizado, pela primeira vez, pelo economista John Williamson, membro do Instituto Internacional de Economia. O referido economista utilizou este para significar “o mínimo denominador comum de recomendações de políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelas instituições finaceiras, baseadas em Washington, e que deveriam ser aplicadas nos países da América Latina”. Fonte: Washington Consensus, Center for International Development at Harvard University.
[5] Quanto à propriedade, a Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, em seu artigo 5º, XXIII, determinou que a mesma deverá cumprir sua função social (“a propriedade atenderá a sua função social”), sendo considerado, também princípio da ordem econômica (artigo 170, III).  
[6] Tilly (apud Santos, 2001) menciona quatro momentos em que o processo globalizatório se fez presente, nomeadamente nos séculos XIII, XVI, XIX e final do século XX (1995).
[7] Afirma Santos que neste processo de compressão espaço-tempo, temos de um lado a classe capitalista transnacional, onde as empresas transnacionais é sua mairo representante, e de outro temos a classe ou grupo subordinado, que não tem a menor possibilidade de controlar a mencionada compressão.
[8] O autor cita como exemplo as empresas transnacionais e a língua inglesa, ou ainda o chamado fast-food.
[9] Cita como exemplo, o livre comércio, o desmatamento e a destruição dos recursos naturais para pagamento da dívida externa, o uso turístico dos tesouros históricos, o dumping ecológico, a conversão da agricultura familiar em agricultura voltada para a exportação, como parte do ajuste estrutural (Santos, 2001:72; 2007:17-18). Aqui, encontra-se também a prática do agronegócio, que é a mais nova versão globalizada dos latifúndios.
[10] Para saber mais sobre as constelações de práticas coletivas e suas componentes, quais sejam conjunto de instituições, forma de poder, forma de direito, conflito estrutural, critério de hierarquização e os modos de produção de globalização, ver Santos (2001:63)
[11] Reafirma Santos (2001) que este processo atinge a todos os países, mas com intensidade diferente, dependendo de qual posição o país se encontra no sistema mundo, sendo os países periféricos e semiperiféricos os mais atingidos, pois as agências financeiras transnacionais impõem o ajuste estrutural como condição de renegociação da dívida externa. 
[12] Nesta perspectiva, Santos (2003: 20-24) nos informa haver atualmente quatro formas de fascismo social, que o autor denomina de fascismo do apartheid social; fascismo para-estatal (possui duas vertentes: fascismo contratual e fascismo territorial); fascismo da insegurança; fascismo financeiro . Para saber mais ver Santos (2001). Com base nesta identificação de fascismo social, e tendo em conta a relação entre Estado e sociedade civil, Santos (2003) traz-nos ainda importante distinção entre três tipos de sociedade civil, característica das sociedades modernas ao longo dos tempos, sendo elas: sociedade civil íntima ; sociedade civil estranha ; e sociedade civil incivil. É nesta última forma que se encontram os trabalhadores rurais sem-terra, indígenas e, na área urbana, os moradores de comunidades, isto é, os favelados.
[13] O autor afirma que as duas primeiras idéias se traduzem por resgate da teoria política liberal. A primeira resgatando o conceito de que para uma sociedade civil forte seria necessário um Estado fraco. Entretanto, como bem lembra, só um Estado forte para conseguir sua própria desregulação. Já o segundo consenso tem enfrentado dificuldades, visto apresentar-se de forma única a diferentes contextos sociais. O terceiro consenso é aquele que melhor une a globalização política à econômica, pois para seu desenvolvimento pleno, necessita de suporte legal adequado. A proeminência da propriedade individual e dos contratos reforça ainda mais o primado do direito (Santos, 2001:49). Para o próprio estímulo ao crédito a que Santos menciona, necessário se faz ter um sistema judicial eficaz. (Santos, 2000).
[14] A discussão acerca do fim ou não dos Estados e, conseqüentemente, da soberania, é de extrema importância, mas creio não caber no breve espaço deste trabalho de pesquisa, por exceder seu tema. 
[15] Aqui, identifica Santos (2001: 54), que os Estados-nação possuem papel duplo, pois externamente promovem a diversidade cultural, o reconhecimento da cultura nacional, mas, internamente, é o responsável pelo abafamento das culturas locais, utilizando-se dos mais variados meios para isso, através  do poder de polícia, do direito, do sistema educacional ou dos meios de comunicação social.
[16] Na contra-mão da onda homogênica, criou-se, em 2006, no Rio de Janeiro, Brasil, o Fórum Cultural Mundial (FCM), à semelhança do Fórum Social Mundial (FSM), com objetivo de refletir e discutir a  cultura, com foco central na manutenção da diversidade cultural. O FCM é composto por organizações não-governamentais e governamentais, instituições nacionais e internacionais, além de gestores, artistas, intelectuais e agentes culturais de todo o mundo e se reunirá a cada dois anos.
[17] Duas figuras foram importantes neste contexto: Harry Dexter White, Secretário-Assistente do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e Lord Keynes, o mais famoso dos economistas, representando os interesses da Grã-Bretanha.
[19] Implementado pelo governo do Ceará, que aportou pouco mais de R$ 4 milhões, complementados por mais R$ 6 milhões de um empréstimo do BM. Financiou-se a compra de 44 imóveis por 694 famílias, totalizando 23.622 hectares.
[20] Alcançou os Estados de Pernambuco, Bahia, Ceará, Maranhão e norte de Minas Gerais. Com um gasto total de US$ 121,3 milhões, financiou a compra de 398.732 ha por 15.267 famílias. Foi concluído em dezembro de 2002.
[21] Foi criado para nacionalizar e radicalizar o modelo de mercado e financiou, entre 1999 e 2002, a compra de terras por 29.715 famílias, com um gasto total de R$636.567.464,00, em 17 estados da federação. Não é um programa de reforma agrária, mas um fundo de terras criado pelo Congresso Nacional, de caráter permanente.
[22] Gómez (2000) afirma que a sociedade civil global, apropriando-se de termo utilizado por Falk (1994), se traduz pelos movimentos sociais transnacionais. Afirma Gómez (2000:72) que “já há um início de materialização de uma cidadania ativa global na emergência e na expansão de redes de atividades transnacionais, concebidas como projetos e realidades preliminares, abrangendo uma diversidade de movimentos sociais transnacionais, associações ou grupos de cidadãos, organizações não governamentais etc. (por exemplo, Anistia Internacional, Greenpeace, Médecins sans Frontières, movimentos de mulheres, ambientalistas, de defesa dos direitos humanos). Tal ativismo transnacional, ao construir espaços institucionais rudimentares de ação e lealdade desenvolvidos em e através dos Estados, produz novas orientações com relação à identidade e à comunidade política que estão na base de uma ‘sociedade civil global’ em gestação. É dessa sociedade civil global que, de fato, surgem iniciativas que buscam tornar responsáveis os Estados e o sistema internacional de Estados por suas ações e omissões”.
[23] Os dados foram coletados do sítio http://viacampesina.org/main_en/index.php, em 02 de Junho de 2007.
[24] Objetivos retirados do sítio http://viacampesina.org/main_en/index.php, em 02 de Junho de 2007.
[25] Informações coletadas do sítio: http://movimientos.org/cloc/, em 04 de junho de 2007.
[26] Acessada no dia 04 de junho de 2007.
[27] As três primeiras edições do Fórum Social Mundial, realizadas em 2001, 2002 e 2003, em Porto Alegre (Brasil), foram organizadas por um comitê organizador (CO) formado por oito entidades brasileiras: Abong, Attac, CBJP, Cives, CUT, Ibase, MST e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
[28] A Carta de Princípios foi aprovada e adotada em São Paulo, em 9 de abril de 2001, pelas entidades que constituem o Comitê de Organização do Fórum Social Mundial, e após, aprovada com modificações pelo Conselho Internacional do Fórum Social Mundial no dia 10 de junho de 2001.
[30] Informação numérica extraída do site http://elogica.br.inter.net/crdubeux/hmedici.html, em 30 de setembro de 2003.
[31] A cada três senadores, um era eleito indiretamente pelas Assembléias Legislativas de seus Estados.
[32] Todos os dados numéricos foram retirados do site http://www.mst.org.br/mstonline.html. Acesso em 04 de outubro de 2003.
[33] Em 1975, tem-se a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
[34] O MASTER (Movimentos dos Agricultores Sem Terra) surge, no final da década de cinqüenta do século passado, no Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil, tendo sido composto por assalariados, parceiros e também por pequenos proprietários e os filhos destes. Em 1962, os sem-terra começaram a organização de acampamentos e territorializaram a luta por todo o Estado do Rio Grande do Sul, mas a este ficaram circunscritos. Receberam o apoio do então governador Leonel Brizola, à época pertencente ao Partido Trabalhista Brasileiro, que cuidou de promover a reforma agrária naquela região, “subordinada ao espírito de que não se tornará realidade sem a pressão e a presença, nos estudos e debates, das populações rurais devidamente organizadas” (IGRA, 1962:12).
[35] Em 1980, no Estado de Santa Catarina, 300 famílias conquistam a Fazenda Burro – Branco e em São Paulo, na região de Andradina, 400 famílias ocupam a Fazenda Primavera; em 1981 no Rio Grande do Sul 700 famílias acampam em Encruzilhada Natalina, município de Ronda Alta.
[36] UDR: União Democrática Ruralista.
[37] Baldez (2003) traz três características básicas acercadas ocupações coletivas. Afirma que tem como primeira característica tratar-se de ato necessariamente coletivo, no sentido de que os trabalhadores compreendem não fazerem diferença sozinhos, mas somente de forma coletiva; a segunda característica é a ruptura que provoca no contratualismo, essência do regime burguês da venda e compra; e a última característica é a quebra do conceito de propriedade privada, aqui em perfeita consonância com a conquista institucional da função social da propriedade, que pressupõe a função social da posse.
[38] Artigo 184 da Constituição Federal do Brasil, de 1988. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. 
[39] Garcia (2000) afirma ter ocorrido o fenômeno de lumpenização, socorrendo-se de Bottomore, esclarecendo que, “em condições extremas de crise e de desintegração social em uma sociedade capitalista, grande número de pessoas podem separar-se de sua classe e vir a formar uma massa ‘desgovernada’, particularmente vulnerável às ideologias e aos movimentos reacionários”. (p.54)
[40] Informações retiradas do sítio http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3713, acesso em 21 de Junho de 2007.

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Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)


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