Sociologia da administração judiciária

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Resumo: O Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução 75/2009, uniformizou o procedimento e os critérios relacionados ao concurso de ingresso na carreira da magistratura. Ao tratar dos conteúdos das provas, a citada Resolução inova ao estabelecer, sob a denominação de Noções Gerais de Direito e Formação Humanística, algumas disciplinas, dentre elas, a sociologia do direito. Um dos temas que se destacam na disciplina supracitada, é a sociologia da administração judiciária. Diante disso, alguns editais esclarecem que este tema terá como referência os estudos do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, motivo pelo qual esse texto se dedica mais à exposição da obra desse autor. Enfim, o presente texto tem a finalidade de prestar duas pequenas contribuições: auxiliar os advogados e bacharéis em direito nos seus estudos preparatórios para ingresso na carreira da magistratura; e contribuir na tarefa de divulgar as propostas que visem democratizar o acesso à justiça.


Palavras-chave: Direito; Sociologia; Administração Judiciária


Abstract: The National Council of Justice, through its Resolution 75/2009, standardized the procedure and criteria related to the concourse for entry into the career of the magistracy. When dealing with the contents of the tests, the aforementioned resolution innovates by providing, under the name General Knowledge of Law and Humanistic Formation, some disciplines, among them, the sociology of law. One of the themes highlighted in the mentioned discipline, is the sociology of judiciary administration. Consequently, some announcements state that the subject will use as reference studies of the portuguese sociologist Boaventura de Sousa Santos, which is why this text is more dedicated to the exhibition of this author’s work. Finally, this text aims to provide two small contributions: help lawyers and law graduates in their preparatory studies for admission into the career of the judiciary; and contribute to the task of promoting the proposals aimed at democratizing access to justice.


Keywords: Law; Sociology; Judiciary Administration.


1. SOCIOLOGIA JURÍDICA


Boaventura de Sousa Santos (1995: 141) anota que os precursores da sociologia jurídica privilegiaram uma visão normativista do direito em detrimento de uma visão institucional e organizacional e, dentro daquela, privilegiaram o direito substantivo em detrimento do direito processual. Essa forma de proceder prevaleceu ao longo da primeira metade do século XX, embora algumas mudanças já pudessem ser percebidas nesse período. Dentre essas mudanças destaca a orientação teórica da escola do direito livre (Ehrlich, Kantorowich) ou da jurisprudência sociológica (Pound) que, ao deslocar a abordagem do direito dos enunciados abstratos da lei para as decisões particulares do juiz, criou as pré-condições teóricas da transição para uma nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito.


Nessa transição também se situa Max Weber, principalmente sua análise a respeito da burocracia estatal (pessoal especializado, profissões jurídicas) encarregada da aplicação das normas jurídicas. Para Weber, o direito das sociedades capitalistas se caracteriza pelo monopólio estatal da justiça, administrado por funcionários especializados segundo critérios dotados de racionalidade formal, assente em normas gerais e abstratas aplicadas a casos concretos por via de processos lógicos controláveis, uma administração em tudo integrável no tipo ideal de burocracia por ele elaborado.


Antes de expor as teses de Boaventura de Sousa Santos, convém fazer uma breve referência aos estudos dos sociólogos mencionados: Eugen Ehrlich, Roscoe Pound e Max Weber.


2. EUGEN EHRLICH (1862-1922)


Eugen Ehrlich (1862-1922) é considerado pelos historiadores do direito como um dos primeiros juristas a se dedicar ao estudo de temas específicos da sociologia jurídica. Também é considerado o criador da expressão escola do direito livre, que utilizou para designar um grupo de juristas que se dedicaram a investigar o direito sob o prisma do fenômeno social.


Em 1913 publica os Fundamentos da Sociologia do Direito, obra que obteve grande repercussão entre os profissionais do direito. Os seus estudos concentraram-se em dois grandes temas: a) o direito vivo que emerge das relações sociais: esse tema destaca a contraposição entre o direito oficialmente estatuído e formalmente vigente e o direito emergente das relações sociais pelo qual se regem os comportamentos e se previne e resolve a maioria dos conflitos; b) a criação judiciária do direito: esse tema estabelece a distinção entre a norma abstrata da lei e a norma concreta que conforma a decisão do juiz.


Para Ehrlich o direito constitui a essência da vida social, motivo pelo qual considera a sociologia jurídica a verdadeira ciência do direito. Essa afirmação se sustenta na constatação de que é sociologia jurídica que investiga os fatos sociais dos quais advém o direito. Para ele, o direito se manifesta como realidade social, de modo que a sua criação e aplicação só podem ser explicadas pela análise das forças sociais. A sociologia jurídica teria a função de pesquisar os “fatos do direito”, espécie de “fatos sociais”, cuja manifestação não depende da lei escrita, mas da sociedade que produz esses fatos e cria relações jurídicas. Nessa trilha alguns autores passaram a entender que a principal tarefa da sociologia jurídica seria a pesquisa dos fatos jurídicos. Vale dizer, caberia à sociologia jurídica estudar as condições de criação do direito e seus efeitos na vida social, como forma de auxiliar o legislador e o aplicador a adaptar as leis à realidade social.


Segundo Ehrlich, as normas jurídicas gravadas nos textos legislativos, codificadas e emanadas do Estado constituem uma categoria subalterna. O direito se desenvolve a partir das relações sociais, portanto, além das normas da legislação, há também as normas de direito da sociedade extra-estatal. Para ele o direito não se reduz à lei emanada do Estado, posto que as normas que compõem a ordem jurídica estatal não podem prever todos os fatos presentes, e muito menos os supervenientes, de maneira que a tese da completude do sistema é apenas uma ficção. Novas formas de relações sociais não estão previstas na legislação, resultam de um direito vivo, dinâmico, que nasce e se desenvolve em conformidade com o desenvolvimento da vida social.


Hans Kelsen acusou Ehrlich de confundir ciência do direito, que seria de natureza normativa, com a sociologia do direito, que seria de natureza explicativa.


2.1. Hermann Kantorowicz (1877-1940)


Hermann Kantorowicz e Eugen Ehrlich são tidos como os principais expoentes do grupo denominado escola do direito livre. Alguns historiadores do direito apontam Kantorowicz como o principal teórico do direito livre. Sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius escreveu o manifesto da escola do direito livre: A Luta pela Ciência do Direito, publicado em 1906.


Segundo Kantorowicz, além do direito estatal, existe também o direito que emana da opinião pública, das decisões dos tribunais e da produção dos cientistas do direito. Para ele, direito livre é aquele que emana espontaneamente dos grupos sociais, cujas normas resultam das convicções predominantes que regulam o comportamento desses grupos, portanto, não se confunde com o direito estatal. Nesse sentido, defende a tese segundo a qual o direito livre – espontâneo e flexível porque brota das representações e das necessidades da sociedade – deve prevalecer sobre o direito estatal. Vale dizer, o dinamismo da vida social deve prevalecer sobre o formalismo e inflexibilidade da regra da legislação. O Juiz deve, portanto, ater-se ao sentimento da comunidade, evitando decidir, exclusivamente, com fundamento no direito estatal ou com base na legislação.


Miguel Reale (1999: 438) anota que a escola do direito livre procura estabelecer métodos mais concretos, e também mais humanos, de interpretação do direito. Nesse sentido, parte do pressuposto de que o fato social é elemento predominante e essencial e que nele já está inerente a regra suscetível de revelação ou explicitação graças ao processo de pesquisa de caráter científico: em lugar de se tornar explícita a lei, procura a explicitação do fato, no qual já estariam implícitas as normas suscetíveis de serem cientificamente reveladas, dispensando progressivamente o arbítrio do legislador.


Para Miguel Reale, esse modelo de interpretação dirigiu a escola do direito livre para a conclusão extremada segundo a qual o juiz deve ser sempre o criador da norma jurídica, tendo em vista o fato que lhe cumpre examinar, desde que senhor das verdades e da técnica proporcionadas pelo estudo das ciências sociais. Segundo ele, de acordo com o método proposto pela escola do direito livre, o jurista deveria ser aplicador de conhecimentos sociológicos, usando as leis positivas apenas como simples padrões de referência.


3. ROSCOE POUND (1870-1964)


Roscoe Pound é considerado por vários autores o principal teórico da sociologia jurídica norte-americana. Para ele, as diferentes tendências às quais se filiam os juristas costumam analisar apenas elementos distintos de um agregado mais complexo que é o direito. Assim, os adeptos da tendência ou escola analítica cuidaram exclusivamente do corpo de preceitos e regras estabelecidos, em virtude dos quais um resultado definido é ligado a uma definida situação de fato. Os juristas da tendência ou escola historicista preocuparam-se mais com as idéias e técnicas tradicionais e os costumes condicionadores de decisões conforme as exigências da vida social. Os juristas da tendência ou escola filosófica se ocuparam mais com os fins éticos e as exigências ideais do direito como padrão de aferição de lei positiva. Segundo Pound, essas três posições, longe de se excluírem, completam-se reciprocamente, daí o artifício das separações radicais (Reale, 1999: 537).


Para Pound, os juristas, de um modo geral, seguem a tendência ou escola analítica, motivo pelo qual costumam limitar o estudo do direito ao sistema de regras jurídicas, ocorre, porém, que o campo jurídico é bem mais vasto e diferenciado e nele também se inclui a organização das relações sociais e a prática do controle social. Segundo ele, Hans Kelsen seria o grande responsável por esse encolhimento indevido da dogmática jurídica, na medida em que não só postulou que apenas o Estado era a fonte das normas da pirâmide jurídica, mas também separou deliberadamente a metodologia jurídica da metodologia sociológica.


3.1. Direito e Controle Social


Segundo Goyard-Fabre (2002: 167), Georges Gurvitch (1894-1965) teve o mérito de mostrar que cada forma de sociabilidade possui sua estrutura, suas regras e seus valores jurídicos, entretanto, essa idéia foi aprofundada por Roscoe Pound ao insistir na natureza social do direito que, segundo ele, devido aos interesses dos indivíduos e dos grupos, só pode ser compreendido pela necessidade de um controle social composto de autoridade e regularidade. Utilizando exemplos extraídos do Direito dos Cheyennes, grupo indígena da América do Norte, estabeleceu que o direito deriva “dos esforços para combater a desordem e para aplanar os distúrbios e as dificuldades, e isso com um mínimo de atritos e de estragos”.


A sua teoria sociológica do direito considera em primeiro lugar a vocação funcional das regras jurídicas; insiste nas necessárias relações do direito com o conjunto dos meios de controle dos fenômenos sociais e mostra que o direito é um dos elementos desse controle social. Contra as concepções racionalistas que cuidam, sobretudo, da codificação, estabelece que é necessário compreender que o direito extrai sua autoridade, seu dinamismo e seu progresso exclusivamente das forças sociais que são sua estrutura e seu princípio vital.


Segundo Pound, a sociologia jurídica e a jurisprudência (ciência do direito) estão relacionadas com três coisas: a) a ordem legal, isto é, um regime de adaptar as relações e ordenar a conduta pela aplicação sistemática da força de uma sociedade politicamente organizada; b) os princípios e guias autorizados para a determinação das disputas numa sociedade, um código de preceitos baseado em ideais aceitos; c) o processo judicial e o processo administrativo. O alcance da sociologia do direito é, assim, muito amplo e se confunde com outros campos sociológicos.


Na trilha de Max Weber, Pound considera que o direito é controle social que se exerce através da aplicação sistemática da força da sociedade politicamente organizada. Vale dizer, “a norma social é legal se seu desprezo ou infração é regularmente punido, na ameaça ou na realidade, pela aplicação da força física por um indivíduo ou grupo que disponha do privilégio socialmente reconhecido de assim proceder” (in Bottomore, 1967: 204).


3.2. Interesses Sociais, Públicos e Privados


Pound distingue três espécies de interesses: a) interesses sociais: são os interesses que visam a convivência social, a existência social, a obtenção da paz, a ordem, a segurança, etc; b) interesses públicos: são interesses do Estado; e c) interesses privados: são os interesses associados à existência do indivíduo e tudo o que se relaciona com a sua sobrevivência. A tarefa do jurista, do juiz ou do legislador consiste em promover a harmonia e o equilíbrio dos diversos interesses, assegurando a satisfação dos interesses sociais. O jurista realiza, portanto, uma espécie de engenharia social, tendo em vista determinados fins, que são as aspirações sociais. Trata-se de uma tarefa que jamais se completa em definitivo porque a modificação das circunstâncias sociais implica que sempre haverá: a) novos interesses ainda não reconhecidos juridicamente e que pressionam para o serem; b) interesses reconhecidos apenas parcialmente; c) velhos interesses reconhecidos que se dissipam.


4. MAX WEBER (1864 – 1920)


Para Max Weber (1974) nada é mais eficiente e mais preciso do que o controle burocrático. Segundo ele, no Estado moderno a burocracia realmente governa porque o poder é exercido através da rotina da administração. A razão decisiva para o sucesso da burocrática como poder governante foi a superioridade técnica dessa organização sobre qualquer outra forma de organização.


Segundo Weber (1974c: 22), tal como o progresso em relação ao capitalismo tem sido o inequívoco critério para a modernização da economia, assim também o progresso em relação ao funcionalismo burocrático (caracterizado pelo formalismo do emprego, salário, promoção, pensão, treinamento especializado, divisão funcional do trabalho, áreas bem definidas de jurisdição, processos documentados e ordenação hierárquica) tem sido o padrão para a modernização do Estado. No Estado moderno são os funcionários que tomam as decisões sobre todos os problemas e necessidades diários dos cidadãos. A mesma tendência burocrática predomina nas empresas privadas, na razão direta de seu tamanho, portanto, quanto maior for a empresa maior será a burocracia que a envolve.


Para Weber o capitalismo moderno se desenvolve sob o princípio da racionalização, motivo pelo qual considera as instituições capitalistas como a materialização dessa racionalidade. Nesse sentido, a grande empresa expressa um tipo de burocracia só comparável à burocracia estatal: na promoção da eficiência racional, continuidade de operação, rapidez, precisão e cálculo dos resultados. Tudo isso se desenrola dentro de instituições administradas racionalmente e nas quais as funções combinadas e especializadas ocupam o centro das atenções. Toda essa estrutura obriga o homem moderno a tornar-se um perito especializado, um profissional preparado para uma carreira especial dentro da máquina burocrática do Estado ou da empresa.


Segundo Weber, uma das condições prévias para o desenvolvimento do capitalismo e das grandes empresas é a existência de um direito racional, direito calculável. Para que a exploração econômica capitalista proceda racionalmente precisa confiar que a justiça e a administração seguirão determinadas pautas. O direito racional estabelece, portanto, as pautas que possibilitam aos grandes empresários elaborar o cálculo econômico necessário ao crescimento das empresas em uma economia capitalista em expansão. Há, desse modo, uma identificação entre burocracia e racionalidade.


4.1. Burocracia e Racionalidade


Para Weber, o “progresso” em direção ao Estado burocrático julgando e administrando segundo o direito e preceitos racionalmente estabelecidos tem estreitas relações com o desenvolvimento capitalista moderno.


Weber (1974c: 23) entende que o Estado moderno é uma empresa. Assim, tanto no Estado como na empresa as relações de autoridade têm as mesmas raízes. A dependência hierárquica do trabalhador ou do funcionário público se deve ao fato de que, conforme o caso, os meios indispensáveis para a consecução da empresa e para o ganho da subsistência estão nas mãos do empresário ou do mandatário político. A separação do trabalhador do meio material de produção (de administração, de pesquisa e de finanças em geral) é a base comum do Estado moderno e da empresa capitalista privada. Em ambos os casos, a autoridade sobre estes meios acha-se nas mãos daquele poder a quem o aparato burocrático (de funcionários, juizes, oficiais, supervisores) obedece diretamente.


As formas de dominação da organização burocrática racional, funcional e especializada se estende a todos os órgãos da administração pública e da empresa. Para manter esse domínio, a burocracia necessita de profissionais especializados, motivo pelo qual as universidades agitaram-se com exigências urgentes movidas pela obsessão por diplomas. Sob o domínio da burocracia, o diploma passou a ser essencial para todas as pretensões de prestígio social e o exame profissional (concursos públicos) dos diplomados passou a ser pré-condição para todos os cargos bem remunerados e seguros nas burocracias pública e privada. O “salário”, socialmente adequado e garantido, sucedido por uma aposentadoria passou a ser a forma de remuneração. Tudo isso demonstra o triunfo da burocracia, e onde a burocracia triunfa, ela não desaparece, a não ser ao fim do colapso total da cultura dominante.


4.2. Características da Burocracia


Segundo Weber (1974: 229-231), a burocracia moderna funciona em conformidade com os seguintes princípios:


A. Princípio da Jurisdição: Esse princípio estabelece áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas por leis ou normas administrativas. Nesse sentido: a) as atividades regulares necessárias aos objetivos da estrutura governada burocraticamente são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais; b) o poder de dar as ordens necessárias à execução desses deveres oficiais se distribui de forma estável e rigorosamente delimitada pelas normas relacionadas com os meios de coerção, que possam ser colocados à disposição das autoridades burocráticas (funcionários especializados); c) são estabelecidas medidas metódicas que possibilitam a realização, regular e contínua, desses deveres oficiais e para a execução dos direitos correspondentes; d) somente as pessoas que têm qualificações previstas por um regulamento geral são empregadas.


B. Princípio da Hierarquia: A hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significa um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores. Esse sistema oferece aos governados a possibilidade de recorrer de uma decisão de uma autoridade inferior para a autoridade superior, de uma forma regulada com precisão. Com o pleno desenvolvimento do tipo burocrático, a hierarquia dos cargos é organizada de forma monocrática. Uma vez criado, o cargo tende a continuar existindo.


D. Princípio da Capacitação: A administração burocrática moderna pressupõe um treinamento especializado e completo. O desempenho do cargo segue regras gerais mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, e que podem ser aprendidas. O conhecimento dessas regras representa um aprendizado técnico especial ao qual os funcionários devem se submeter. Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena capacidade de trabalho do funcionário.


4.2.1. Posição do Funcionário


A ocupação de um cargo é uma “profissão” e isso se evidencia na exigência de treinamento rígido, que demanda toda a capacidade de trabalho durante um longo período de tempo e nos exames especiais que, em geral, são pré-requisitos para o emprego. Além disso, a posição do funcionário tem a natureza de um dever, que determina a estrutura interna de suas relações, da forma seguinte: jurídica e praticamente, a ocupação de um cargo não é considerada como uma fonte de renda a ser explorada nem uma troca habitual de serviços por equivalentes, como ocorre com os contratos de trabalho.


O ingresso em um cargo é considerado como a aceitação de uma obrigação específica de administração fiel, em troca de uma existência segura. É decisivo para a natureza específica da fidelidade moderna ao cargo que ele não estabeleça uma relação pessoal. A lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais.


4.2.2. Posição Pessoal do Funcionário


A posição pessoal do funcionário é determinada da forma seguinte:


A. Posição Social: O funcionário moderno pretende sempre e habitualmente desfrutar de uma estima social específica capaz de distingui-lo em comparação com os demais cidadãos. Sua posição social é assegurada pelas normas que se referem à hierarquia ocupada. A posição social do funcionário é, normalmente, mais elevada quando predominam as seguintes condições: a) uma forte procura da administração por especialistas; b) uma diferenciação social forte e estável, vindo o funcionário, predominantemente, das camadas sociais economicamente privilegiadas; c) exigência de diplomas educacionais que o qualifiquem para o cargo e que fortaleçam o “status” na posição social que ocupa.


B. Nomeação e Vitaliciedade: O funcionário burocrático é nomeado por uma autoridade superior e normalmente a sua posição é vitalícia nas burocracias públicas.


C. Remuneração: O funcionário recebe compensação pecuniária regular de um salário fixo e a segurança na velhice representada por uma pensão. O salário não é medido como uma remuneração em termos de trabalho feito, mas de acordo com a hierarquia, ou seja, segundo o tipo de função (grau hierárquico) e, além disso, possivelmente, segundo o tempo de serviço. A segurança relativamente grande da renda do funcionário e a consideração social fazem do cargo público uma posição muito ambicionada.


D. Carreira: O funcionário se prepara para uma “carreira” dentro da ordem hierárquica do serviço público. Passa dos cargos inferiores e de menor remuneração para os postos mais elevados.


4.3. Poder Burocrático


Weber (1974c: 32) anota que, uma vez estabelecida, a burocracia se torna uma das estruturas sociais mais difícil de se destruir. Segundo ele, a burocracia é o meio de transformar uma “ação comunitária” em “ação societária” racionalmente ordenada. Como instrumento de “socialização” das relações de poder, a burocracia foi e é um instrumento de poder de primeira ordem para quem controla o aparato burocrático. Devido ao fato do avanço irresistível da burocracia, Weber coloca a seguinte pergunta: Em vista da crescente indispensabilidade da burocracia estatal e sua correspondente ampliação do poder, como poderá haver qualquer garantia de que permanecerão em existência forças que possam conter e controlar eficazmente a tremenda influência desta camada burocrática? Weber visualiza no parlamento uma das formas de contenção do poder burocrático.


Segundo Weber (1974c: 46-47), os parlamentos modernos são primeiramente órgãos representativos dos indivíduos governados por meios burocráticos. Um mínimo de consentimento da parte dos governados, pelo menos das camadas socialmente importantes, é pré-condição da durabilidade de toda dominação, inclusive da mais bem organizada. Os parlamentos são o meio de manifestar este consentimento mínimo, motivo pelo qual, no âmbito das competências estabelecidas no estatuto legal, pode exercer um controle sobre a dominação burocrática através de três institutos: o orçamento, a supervisão e o inquérito.


A. Orçamento: O orçamento constitui um dos atos dos poderes públicos cuja sanção depende de deliberação prévia do parlamento. Para Weber, o controle sobre a arrecadação da receita é o instrumento de poder decisivo do parlamento, como sempre tem sido desde que os privilégios corporativos das classes políticas começaram a existir.


B. Supervisão: Weber anota que o poder de todos os burocratas reside em duas coisas que se manifestam conjuntamente: a) conhecimento tecnológico: o burocrata detém o know-how técnico no sentido mais amplo do termo, adquirido através de treinamento especializado, entretanto, a especialização por si só não explica o poder da burocracia; b) acesso privilegiado a informações: além do know-how, o burocrata tem informações oficiais que só são conseguidas através de canais administrativos e que fornecem os fatos nos quais ele pode fundamentar suas ações. A supervisão eficaz sobre o funcionalismo depende, portanto, de conhecimento tecnológico e acesso a informações. Somente aqueles que possuem conhecimento especializado e têm acesso às informações independentemente da boa vontade dos funcionários pode supervisionar eficazmente a administração. De acordo com as circunstâncias, os meios apropriados são a inspeção de documentos, inquérito no local e, em casos extremos, uma comissão parlamentar.


C. Comissão Parlamentar de Inquérito: Para Weber, o supremo instrumento do poder da burocracia é a transformação das informações oficiais em material sigiloso através de conceitos notórios de “serviço secreto”. Em última análise, isto nada mais é que um meio de proteger a administração contra a supervisão. Enquanto os níveis inferiores da hierarquia burocrática são supervisionados e criticados pelos escalões mais altos, todos os controles, técnicos ou políticos, sobre estes escalões produtores de diretrizes políticas fracassaram completamente. O direito parlamentar de inquérito deveria ser uma espécie de chicote, cuja mera existência serviria para coagir os chefes administrativos a se responsabilizarem por seus atos e de tal forma que não fosse necessário o uso do dito chicote. Mas, só as comissões de um parlamento poderoso podem ser o veículo para o exercício desta salutar influência pedagógica.


Para Weber, o melhor indicador de maturidade política de uma sociedade burocratizada está na maneira pela qual os trâmites das comissões são acompanhados pela imprensa. Uma imprensa livre e responsável, além de supervisionar continuamente a burocracia, mantém a nação informada sobre a conduta dos burocratas em relação aos negócios públicos. Enfim, em última análise, um parlamento forte e uma imprensa responsável beneficia a própria burocracia.


4.4. Direito e Burocracia


Max Weber (1974c: 24) aponta que o capitalismo avançado apareceu na região onde os juizes eram recrutados entre os advogados. Segundo ele, esse capitalismo somente poderia ter-se manifestado em primeiro lugar na Inglaterra e por dois motivos específicos: a) primeiro: porque o desenvolvimento da jurisprudência estava nas mãos dos advogados que, a serviço de seus clientes capitalistas, inventaram formas apropriadas para a transação de negócios, e de cujo meio eram recrutados os juizes, rigorosamente ligados a um precedente, isto é, a maquinações premeditadas; b) segundo: porque os juizes, como ocorre no Estado burocrático com suas leis racionais, funcionavam mais ou menos como um autômato cumpridor de parágrafos.


Para Weber (1974b: 162-163) o elemento mais importante do direito racional do Estado moderno é a burocracia profissional. Esses dois fenômenos (direito racional e burocracia profissional) teriam suas origens no direito romano e no direito canônico. Anota, porém, que o direito racional procede do direito romano e do direito canônico apenas no aspecto formal, portanto, com conteúdos diferentes. Segundo ele, a burocracia bizantina da época de Justiniano ordenou o direito romano de forma racional no interesse dos funcionários que desejavam possuir um direito sistematizado, perfeitamente estabelecido e, portanto, mais fácil de aprender. Já o direito canônico surge e se desenvolve de forma racional porque a grande organização administrativa da Igreja necessitava de formas fixas, com finalidades disciplinadoras, ante os seculares, e, também, para manter sua própria disciplina interna.


Assim, para Weber, sob a influência do direito romano e do direito canônico prevalece, no Estado moderno burocratizado, o direito racional e sua burocracia profissional, donde sobressai com mais evidência o aspecto formal, a racionalização do processo e a criação de um pensamento jurídico-formal. O Estado moderno exige, portanto, um direito formal e que seja calculável. Os funcionários da justiça devem ser formados segundo o espírito desse direito, como técnicos da administração burocrática. Enfim, Weber entende que a racionalização do direito vem acompanhada da racionalização geral da vida nas sociedades industriais como resultado da formação do Estado moderno e do crescimento da empresa econômica capitalista e suas respectivas burocracias.


Para Weber, o direito racional é, preponderantemente, o direito da empresa capitalista, motivo pelo qual não poderia ter absorvido os conteúdos do direito romano e do direito canônico. Segundo Weber, o progresso em direção ao Estado burocrático, julgando e administrando segundo o direito e preceitos racionalmente estabelecidos, tem estreitas relações com o desenvolvimento capitalista moderno. A moderna empresa capitalista baseia-se fundamentalmente no cálculo e pressupõe um sistema administrativo e legal cujo funcionamento pode ser racionalmente predito, em virtude de suas normas gerais fixas, exatamente como o desempenho de uma máquina. Weber entende que a moderna empresa capitalista não poderia e nem pode aceitar um julgamento segundo o senso de equidade do juiz numa determinada causa ou segundo outros meios irracionais que existiram no passado.


Weber anota que na burocracia judicial os documentos legais, juntamente com as custas e emolumentos, são colocados na entrada na esperança de que a decisão surja na saída juntamente com argumentos mais ou menos válidos, ou seja, a burocracia judicial consiste em uma máquina, cujo funcionamento, de modo geral, é calculável ou prognosticado.


Enfim, para Weber, a sociologia deve fixar uma distinção radical entre conhecer e valorar, entre o cumprimento do dever científico de ver a verdade dos fatos e o cumprimento do dever prático de defender os próprios ideais. Weber não acredita que a ciência possa guiar a ação social, motivo pelo qual a sociologia jurídica não estaria autorizada a proferir juízos de valor sobre as desigualdades e exclusões sociais que estão na raiz de diversos problemas relativos à administração judiciária. Também não caberia à sociologia jurídica emitir juízos de valor sobre o conteúdo das normas ou das decisões dos tribunais. A sociologia jurídica deve se ater a compreender as ações sociais (comportamento das autoridades, dos funcionários, dos cidadãos) que levam à elaboração de determinadas normas, sua aplicação e cumprimento.


Segundo Boaventura de Sousa Santos, a partir da década de 1960 a conjuntura intelectual se alterou e as questões processuais, institucionais e organizacionais do direito foram postas em evidência e em outros termos. Contribuíram para isso determinadas condições teóricas e sociais.


5. NOVAS CONDIÇÕES TEÓRICAS E SOCIAIS


Boaventura de Sousa Santos (1995: 143-157) destaca três condições teóricas e duas condições sociais que possibilitaram a orientação da sociologia jurídica para as dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito.


I. Condições Teóricas:


A. Desenvolvimento da sociologia das organizações: A sociologia das organizações se dedica ao estudo dos agrupamentos sociais criados de modo mais ou menos deliberado para a obtenção de fins específicos. Esse ramo da sociologia se interessou pelo estudo da organização judiciária (particularmente os tribunais) e seu impacto no comportamento dos indivíduos.


B. Desenvolvimento da ciência política: A ciência política revelou grande interesse pelos tribunais enquanto instância de decisão e de poder político. A partir da teoria dos sistemas encontrou no sistema judiciário um ponto de aplicação específico e as ações dos atores do sistema, particularmente a dos juizes, passaram a ser analisadas em função das suas orientações políticas.


C. Desenvolvimento da antropologia jurídica: Esse ramo da antropologia, ao se concentrar nos litígios e nos mecanismos da sua prevenção e da sua resolução, orientou suas investigações para os processos e as instituições.


II. Condições Sociais:


A. Lutas sociais: A partir da década de 1960 determinados grupos sociais (negros, estudantes, pequena burguesia), até então sem tradição histórica de ação coletiva de confrontação, envolveram-se em lutas por novos direitos sociais (segurança social, habitação, educação, transporte, meio ambiente, etc) e nesse contexto as desigualdades sociais passaram a constituir uma ameaça à legitimidade dos regimes políticos assente na igualdade de direitos. A igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos, uma confrontação que se transformou num vasto campo de análise sociológica centrado na questão do acesso diferencial ao direito e à justiça por parte das diferentes classes sociais.


B. Eclosão da crise de administração da justiça: O aumento significativo dos conflitos jurídicos fez com que a sociologia jurídica passasse a se interessar pelo processo judicial e pelos tribunais.


5.1. Crise e Sociologia


Santos observa que ao longo da década de 1960, as lutas sociais impulsionaram a transformação do Estado Liberal em Estado Providência. Essa transformação provocou a expansão dos direitos sociais e, através deles, a integração das classes trabalhadoras nos circuitos do consumo anteriormente fora do seu alcance. Essa integração resultou no aumento expressivo de conflitos jurídicos aos quais a administração da justiça não conseguiu responder satisfatoriamente. Santos anota que a explosão de litigiosidade agravou-se num período de crise do sistema capitalista (início da década de 1970). Essa crise provocou a redução progressiva dos recursos financeiros do Estado e a sua crescente incapacidade para dar cumprimento aos compromissos assistenciais e providenciais assumidos para com as classes populares na década anterior.


As sucessivas crises do sistema capitalista refletiram também na incapacidade do Estado para expandir os serviços de administração da justiça de modo a criar uma oferta de justiça compatível com a procura. A visibilidade social que foi dada pelos meios de comunicação ao emperramento da máquina burocrática judiciária despertou os estudos sociológicos sobre: a) a administração da justiça; b) a organização dos tribunais; c) a formação e o recrutamento dos magistrados; d) as motivações das sentenças; e) as ideologias políticas e profissionais dos vários setores da administração da justiça; f) o custo da justiça; g) o ritmo de andamento dos processos em suas diversas fases.


Santos destaca, dentre os estudos sociológicos, três grandes temas da sociologia da administração judiciária: a) o acesso à justiça; b) a administração da justiça enquanto instituição política e organização profissional; c) a litigiosidade social e os mecanismos da sua resolução existentes na sociedade.


6. ACESSO À JUSTIÇA


Para Santos, o primeiro tema, o do acesso à justiça, é o que mais diretamente equaciona as relações entre processo civil e justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica. O acesso à justiça é um problema antigo que se acentuou no período de pós-guerra, quando a consagração constitucional de novos direitos econômicos e sociais transformou o direito ao acesso efetivo à justiça num direito cuja denegação comprometeria todos os demais, ou seja, sem o acesso à justiça os novos direitos sociais e econômicos seriam simplesmente meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a organização da justiça e a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pelas teorias processualistas. Era necessário investigar as funções sociais desempenhadas pela organização da justiça e a tramitação do processo e em particular o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes: interesses de patrões ou de operários, de locadores ou de locatários, de fornecedores ou de consumidores, etc.


A sociologia jurídica passou assim a investigar os obstáculos ao acesso efetivo à justiça por parte das classes populares. Os resultados dessa investigação permitiram concluir que eram de três tipos esses obstáculos: econômicos, sociais e culturais.


6.1. Obstáculos Econômicos


Sobre os obstáculos econômicos de acesso à justiça, Santos anota que as pesquisas sociológicas demonstraram que nas sociedades capitalistas em geral os custos do processo eram muito elevados para as classes de baixa renda. Ao investigar a relação entre custo do processo e valor da causa, as pesquisas demonstraram que o custo do processo aumentava à medida que baixava o valor da causa. Assim os estudos revelaram que a justiça civil é cara para os cidadãos em geral, mas também revelaram que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os cidadãos de baixa renda. Vale dizer, as pesquisas demonstraram que os cidadãos de baixa renda são fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor e os estudos revelaram que justamente nessas ações a justiça é proporcionalmente mais cara.


Os estudos revelaram também que a lentidão dos processos (outro obstáculo) pode ser convertida num custo econômico adicional e este é proporcionalmente mais gravoso para os cidadãos de baixa renda. Segundo Santos, a análise de duração média dos processos e a conseqüente verificação do aumento da lentidão da justiça tem sido um dos temas mais intrigantes da investigação sociológica sobre os tribunais. Nesse sentido a sociologia tem submetido à análise alguns temas, tais como: a) reformas do processo como forma para fazer baixar os custos econômicos e diminuir o impacto da lentidão da justiça; b) análise da própria organização judiciária e a racionalidade ou irracionalidade dos critérios de distribuição territorial dos magistrados; c) análise dos setores da advocacia que organizam e rentabilizam a sua atividade justamente na expectativa da demora dos processos; d) criação de procedimentos alternativos para composição de conflitos.


6.2. Obstáculos Sociais e Culturais


A sociologia da administração da justiça tem demonstrado interesse sobre os obstáculos sociais e culturais ao efetivo acesso à justiça por parte das classes de baixa renda. Nesse sentido alguns estudos revelaram que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sócio-culturais, tais como: a) os cidadãos de baixa renda têm mais dificuldades em reconhecer os seus direitos: nesse sentido, quanto mais baixo é o extrato social do consumidor maior é a probabilidade que desconheça os seus direitos no caso da compra de um produto defeituoso; b) os cidadãos de baixa renda hesitam em interpor uma ação, mesmo quando reconhecem que seu direito foi violado: nesse sentido, quanto mais baixo é o status sócio-econômico de uma pessoa acidentada, menor é a probabilidade de interpor uma ação de indenização.


Santos anota que três fatores explicitam essa desconfiança ou resignação: a) primeiro: a desilusão diante de experiências anteriores teria provocado uma certa alienação em relação ao mundo jurídico, nesse sentido as pesquisas sociológicas revelam ser grande a diferença de qualidade entre os serviços advocatícios prestados às classes altas e os serviços prestados às classes baixas; b) segundo: a situação geral de dependência e insegurança que produz o temor de represálias quando se propõe uma ação judicial contra os detentores dos meios de produção (patrões); c) terceiro: a falta de motivação ou iniciativa para recorrer aos tribunais mesmo quando o problema é reconhecido como um problema jurídico, isso ocorre porque as pessoas de baixa renda geralmente não conhecem advogados, não sabem da existência de serviços advocatícios financiados pela administração pública e os serviços geralmente se situam em locais distantes de suas residências.


Os estudos sociológicos revelaram que a discriminação social no acesso à justiça é um fenômeno extremamente complexo porque se situa para além das condicionantes econômicas, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processo de socialização e de interiorização de valores dominantes inculcados nas classes populares e difíceis de se transformar. O resultado das pesquisas sociológicas no âmbito do acesso à justiça impulsionou a adoção de inovações institucionais e organizacionais que, um pouco por toda parte, foram sendo implementadas para minimizar as escandalosas discrepâncias verificadas entre justiça civil e justiça social.


6.2.1. Inovações


Para diminuir as escandalosas discrepâncias entre justiça civil e justiça social alguns países adotaram um sistema de assistência judiciária gratuita organizada pela ordem dos advogados. Os inconvenientes desse sistema eram muitos e foram denunciados, principalmente em relação à baixíssima qualidade dos serviços prestados resultante da ausência de motivação econômica. Geralmente apenas os advogados iniciantes ou inexperientes, certamente premidos pela necessidade de aprimorar a prática processual, interessavam-se pelo patrocínio da causa, mas sem qualquer dedicação à mesma. A assistência limitava-se aos atos em juízo, portanto, estava excluída a consulta jurídica ou informação sobre os direitos. A denúncia das carências deste sistema privado e caritativo fez com que, na maioria dos paises, ele fosse sendo substituído por um sistema público e assistencial organizado ou subsidiado pelo Estado.


Santos anota que a Inglaterra adotou um sistema (Judicare) em 1949 e que foi aperfeiçoado em 1974. De acordo com esse sistema, o cidadão com direitos ao patrocínio judiciário gratuito pode escolher o advogado dentre os inscritos para a prestação dos serviços e que constam de uma lista bastante numerosa em razão da atrativa remuneração paga pelo Estado. Esse sistema foi adotado por outros países. As pesquisas sociológicas, entretanto, revelaram algumas limitações nesse sistema, a saber: a) apesar do sistema incluir a consulta jurídica independentemente do litígio, na prática se concentrava na assistência judiciária; b) o sistema limitava-se a tentar vencer os obstáculos econômicos ao acesso à justiça, sem considerar os obstáculos sociais e culturais; c) o sistema nada previa sobre a educação jurídica dos cidadãos ou sobre os novos direitos sociais dos trabalhadores, consumidores, mulheres, minorias, etc; d) o sistema excluía a concepção dos problemas dos cidadãos de baixa renda como problemas coletivos inerentes a toda uma classe social.


Santos informa que as críticas dirigidas a essas limitações conduziram a algumas alterações no sistema de serviços públicos gratuitos. Nos EUA conduziram à criação de um sistema totalmente novo baseado em advogados contratados pelo Estado, com escritórios de advocacia localizados nos bairros mais pobres das cidades e seguindo uma estratégia advocatícia orientada para os problemas jurídicos dos pobres enquanto problemas de toda uma classe social. Além disso, foi desenvolvida uma estratégia privilegiando as ações coletivas, a criação de novas correntes jurisprudenciais sobre problemas recorrentes das classes populares e, finalmente, a transformação ou reforma do direito substantivo.


Por último, é importante frisar que esse movimento de inovação institucional trespassou as classes baixas e alcançou interesses jurídicos da classe média, sobretudo através dos direitos difusos, que representam interesses protagonizados por grupos sociais pouco organizados e protegidos por direitos sociais emergentes cuja titularidade individual é problemática. Nesse sentido os direitos das crianças contra determinados conteúdos de programas veiculados nos meios de comunicação, o direito das mulheres contra a discriminação sexual no emprego, os direitos dos cidadãos contra a poluição do meio ambiente, etc. A defesa pública desses direitos deu origem à instituição da advocacia de interesse público subsidiada pelo Estado, fundações e comunidades e provocou mudanças no processo civil, especificamente no que diz respeito ao alargamento do conceito de legitimidade processual e de interesse de agir.


7. ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA


O segundo tema da sociologia judiciária envolve a concepção da administração da justiça enquanto instituição política e organização profissional. Segundo Santos, a concepção da justiça como uma instância política foi inicialmente abordado pelos cientistas políticos que viram nos tribunais um subsistema do sistema político. Os cientistas políticos perceberam que os tribunais estavam sujeitos a estímulos externos (pressões políticas, exigências sociais) que contribuíram para decisões portadoras elas próprias de um impacto social e político nos demais subsistemas.


Santos anota que essa percepção dos cientistas políticos em relação aos tribunais provocou duas conseqüências importantes: a) primeira: colocou o comportamento dos juizes no centro da investigação analítica, ou seja, as motivações das decisões poderiam estar vinculadas com a origem de classe, formação profissional, idade, ideologia política, preferência religiosa, etc; b) segunda: procurou demonstrar que era totalmente falsa a idéia convencional da administração da justiça como uma função neutra protagonizada por juizes eqüidistantes dos interesses das partes, apenas preocupados em fazer justiça. Nessa trilha as pesquisas sociológicas distinguiram juizes liberais e juizes conservadores, estabeleceram correlações entre as ideologias políticas dos juizes com as suas posições assumidas em relatórios e declarações de voto. As pesquisas também mostraram em que medida as características sociais, políticas, familiares, religiosas e econômicas dos magistrados influenciavam as suas decisões.


7.1. Mito da Neutralidade Política do Magistrado


Segundo Santos, as pesquisas realizadas sob a orientação de Renato Treves apontam para uma revisão radical do mito da neutralidade política da função judicial na medida em que revelam a existência de grandes tendências ideológicas no solo da magistratura italiana, dentre as quais se destacam: a) tendência estrutural-funcionalista (Unione di Magistrati Italiani): essa tendência coloca ênfase nos valores da ordem, do equilíbrio, da segurança social e da certeza do direito, nela se agrupa juizes e magistrados conservadores tanto no plano sócio-econômico como no da organização judiciária; b) tendência do conflitivismo pluralista (Associazione di Magistrati Italiani): nessa tendência prevalecem idéias de mudança social, tanto no interior da organização judiciária como no da sociedade em geral, com vista ao aprofundamento da democracia dentro do marco jurídico-constitucional do Estado de direito; c) tendência do conflitivismo dicotômico de tipo marxista (Magistratura Democrática): essa tendência agrupa os juizes que apóiam um uso alternativo do direito, uma função mais criadora da magistratura enquanto contribuição do direito para a construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária.


Santos entende que as pesquisas sobre a administração da justiça lançaram luz sobre um ponto tradicionalmente negligenciado: a importância crucial dos sistemas de formação e recrutamento dos magistrados e a necessidade urgente de os dotar de conhecimentos culturais, sociológicos e econômicos que os esclareçam sobre as suas próprias opções pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício das suas funções numa sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.


8. CONFLITOS SOCIAIS E MECANISMOS DE RESOLUÇÃO


A terceira contribuição da sociologia jurídica para a administração da justiça trata do tema dos litígios sociais e mecanismos da sua resolução. Segundo Santos, as contribuições da antropologia social foram decisivas no esclarecimento desse tema. Os antropólogos, ao investigar as sociedades simples, mostraram formas de direito e padrões de vida jurídica totalmente diferentes dos existentes nas sociedades complexas, tais como: a) direitos com baixo grau de abstração e apenas discerníveis na solução concreta de litígios; b) direitos com pouca especialização em relação às restantes atividades sociais; c) mecanismos de resolução de litígios caracterizados pela informalidade, rapidez, participação da comunidade, conciliação ou mediação entre as partes através de discurso jurídico retórico e persuasivo, assente na linguagem comum; d) existência, numa mesma sociedade, de uma pluralidade de direitos convivendo e interagindo de diferentes formas.


Na trilha aberta pela antropologia seguiram-se diversas pesquisas sociológicas tendo por unidade de análise os litígios (e não a norma) e por orientação teórica o pluralismo jurídico. Essas pesquisas concentraram-se na análise de mecanismos de resolução jurídica informal de conflitos existentes nas sociedades contemporâneas e operando à margem do direito estatal e dos tribunais oficiais. Nesse sentido Santos cita o estudo pioneiro de S. Macauly (1966) sobre as práticas jurídicas, sobretudo os conflitos jurídicos entre os produtores e os comerciantes de automóveis nos EUA resolvidos de modo informal à margem das disposições do direito comercial e da intervenção dos tribunais, orientados por objetivos de não criar rupturas nas relações econômicas. Há, na mesma trilha, uma pesquisa de Santos (que será especificada adiante) nas favelas do Rio de Janeiro onde ele detecta e analisa a existência de um direito informal não oficial, não profissionalizado, centrado na associação de moradores que funcionava como instância de resolução de litígios entre vizinhos, sobretudo nos domínios da habitação e da propriedade da terra.


8.1. Estudos Sociológicos e Reformas


Segundo Santos, os estudos sociológicos sobre conflitos sociais e mecanismos de solução permitiram concluir: a) em primeiro lugar: o Estado moderno ou contemporâneo não tem o monopólio da produção e distribuição do direito, posto que o direito estatal coexiste com outros direitos que com ele se articulam de modos diversos; b) em segundo lugar: o relativo declínio da litigiosidade civil não significa a diminuição dos conflitos sociais e jurídicos, resulta do desvio desses conflitos para outros mecanismos de resolução, informais e mais baratos, existentes na sociedade.


As pesquisas sociológicas influenciaram algumas reformas de administração da justiça, dentre as quais se destacam dois tipos:


A. Reformas no interior da justiça civil tradicional: Essas reformas atuaram no seguinte sentido: a) reforço dos poderes do juiz na apreciação da prova e na condução do processo segundo os princípios da oralidade, da concentração e da imediação; b) criação de um novo tipo de relacionamento entre os participantes do processo, mais informal, mais horizontal, visando um processamento mais inteligível e uma participação mais ativa das partes e testemunhas; c) ampliação e incentivo do uso de conciliação entre as partes sob o controle do juiz.


B. Reformas para a criação de alternativas: Em paralelo à justiça convencional, estão sendo criados mecanismos informais de resolução de litígios mais baratos e mais céleres, com vista à obtenção de soluções mediadas e às vezes sem a presença de advogados. Nesse sentido: a) os centros de justiça de bairros nos EUA; b) os conciliadores na França; c) a arbitragem; e d) os mecanismos conhecidos como Alternative Dispute Resolution (ADR). Segundo Santos, esses mecanismos informais constituem manifestações concludentes das transformações em curso nos processos convencionais de resolução de conflitos.


9. NOVA POLÍTICA JUDICIÁRIA


Segundo Santos, uma nova política judiciária significa uma política comprometida com o processo de democratização do direito e da sociedade. Anota que a democratização da administração da justiça – que significa democratização da vida social, econômica e política – tem duas vertentes: uma se refere à constituição interna do processo e a outra à democratização do acesso à justiça.


A. Constituição interna do processo: Nessa vertente inclui as seguintes orientações: a) maior envolvimento e participação dos cidadãos na administração da justiça; b) simplificação dos atos processuais e o incentivo à conciliação das partes; c) aumento dos poderes do juiz; d) ampliação dos conceitos de legitimidade das partes e do interesse de agir;


B. Democratização do acesso à justiça: Nessa vertente inclui as seguintes orientações: a) criação de um sistema de serviços jurídico-sociais (Serviço Nacional e Justiça), gerido pelo Estado com a colaboração das organizações profissionais e sociais, que garanta a igualdade do acesso à justiça a todos os cidadãos; b) esse serviço deve eliminar não apenas os obstáculos econômicos, mas também os sociais e culturais, esclarecendo os cidadãos sobre os seus direitos, sobretudo os de recente aquisição, através de consultas individuais e coletivas e através das ações educativas nos meios de comunicação, nos locais de trabalho, nas escolas, etc.


9.1. Reformas no Direito Substantivo


Santos alerta que a existência de desigualdade na proteção dos interesses sociais dos diferentes grupos sociais implica que a democratização da administração da justiça, mesmo se plenamente realizada, não conseguirá ir além de equalização dos mecanismos de reprodução da desigualdade. Esse fenômeno, segundo ele, foi percebido pelos profissionais do direito, tanto que nos EUA os advogados que prestavam serviços jurídicos para os pobres resolveram propor reformas no direito substantivo. Reformas que dessem maior satisfação aos interesses dos seus clientes enquanto classe social.


Em alguns países (Santos cita o caso de Portugal, mas pode ser aplicado ao Brasil) a legislação de proteção dos interesses sociais das classes trabalhadoras parece se submeter à seguinte hipótese sociológica: quanto mais uma lei protege os interesses populares maior é a probabilidade dela não ser aplicada. Diante dessa situação, a luta democrática pelo direito deve ser uma luta pela aplicação do direito vigente e, ao mesmo tempo, uma luta por reformas no direito. Mesmo naqueles casos em que a ordem jurídica é mais sedimentada, é possível, mediante interpretações inovadoras da lei, obter novas proteções para os interesses sociais ainda não protegidos. Aliás, foi esta a proposta do movimento que na Itália ficou conhecido pelo uso alternativo do direito.


Nessa trilha Santos destaca as pesquisas que foram realizadas em Recife (Pernambuco, Brasil) sobre os conflitos urbanos, sobretudo conflitos de propriedade da terra nos bairros periféricos onde vive metade da população da cidade. Segundo ele, as pesquisas revelaram que os habitantes dos bairros periféricos conseguiram algumas vitórias nos tribunais, ainda que à partida os seus argumentos fossem relativamente frágeis em termos estritamente jurídicos. Essas vitórias configuraram um autêntico uso alternativo do direito, tornando possível pela argumentação tecnicamente sofisticada de advogados altamente competentes, postos, gratuitamente, à disposição das classes populares pela comissão de Justiça e Paz da diocese de Olinda por iniciativa do bispo Dom Hélder Câmara. Contudo, também nestes casos a interpretação inovadora do direito substantivo passa pelo aumento dos poderes dos juízes na condução do processo.


9.2. Formas Alternativas


Santos anota que a diminuição relativa do contencioso civil detectada em alguns países tem sido considerada disfuncional, ou seja, tem sido considerada negativa em relação ao processo de democratização da justiça. Ocorre que a análise sociológica da persistência desse fenômeno revela que ela pode ser funcional para certos interesses privilegiados a quem a visibilidade da justiça civil prejudicaria. Assim, enquanto as classes menos favorecidas tendem a não utilizar a justiça em razão dos problemas já apontados, as classes privilegiadas tendem a resolver seus litígios fora do campo judiciário. Nesse sentido os sistemas de arbitragem já citados, mas também os órgãos do Poder Executivo (INPI, CADE, TIT, Receita Federal, Conselho dos Contribuintes, etc), cuja composição e transparência podem ser questionadas.


Aliás, Santos aponta que a composição particularista e secreta de interesses econômicos que, pela envergadura destes, afeta significativamente os interesses sociais globais, é feita muitas vezes com a conveniência e a ratificação dos aparelhos políticos e administrativos do Estado, mas fora do escrutínio público a que a justiça civil os exporia. Segundo Santos, essa situação é um dos fatores de emergência de novas formas de pluralismo jurídico nas sociedades capitalistas avançadas e constituem a expressão sócio-jurídica de um novo corporativismo.


Para Santos, o Estado não teria condições de absorver em futuro próximo essas formas de justiça. O mais provável é que os grupos neocorporativistas mais organizados venham a ter poder político suficiente para impor tutelas jurisdicionais diferenciadas que atendam aos seus interesses particulares. Isso não significa, contudo, que os mecanismos de resolução de litígios à margem do controle do Estado sejam todos eles negativos ou atentatórios à democracia. Podem, pelo contrário, ser agentes da democratização da sociedade. Tudo depende do conteúdo dos interesses em jogo e do seu comércio privado no processo de desenvolvimento democrático da sociedade.


Para Santos, nos casos em que os litígios ocorrem entre cidadãos ou grupos com posição de poder sócio-econômico equivalente (litígios entre vizinhos, entre trabalhadores, etc) a informalidade da justiça pode ser um fator de democratização. Ao contrário, nos litígios entre cidadãos ou grupos com posições de poder estruturalmente desiguais (litígios entre patrões e operários, entre consumidores e fornecedores, entre inquilinos e senhorios), é bem possível que a informalidade provoque a deterioração da posição jurídica da parte mais fraca, decorrente da perda das garantias processuais, e contribua assim para a consolidação das desigualdades sociais. Entretanto, isto pode ser evitado desde que os amplos poderes do juiz (profissional ou leigo) possam ser utilizados para compensar a perda das garantias, o que será sempre difícil, uma vez que esses tribunais informais geralmente estão desprovidos de meios de sanção eficazes. Foi o que ocorreu em Nova Iorque quando, após a criação do tribunal da habitação (informal e desprofissionalizado), destinado a resolver litígios entre inquilinos e senhorios, o número de despejos aumentou.


Santos entende que no futuro a situação que melhor e mais perigosamente simbolizará a dissociação entre justiça célere e justiça democrática decorrerá das reformas hoje em curso com vista, não à informalidade, mas à informatização da justiça.


9.3. Contribuição da Sociologia


Para Santos, a contribuição maior da sociologia para a democratização da administração da justiça consiste em mostrar empiricamente que as reformas do processo ou mesmo do direito substantivo não terão muito significado se não forem complementadas com outros dois tipos de reformas: a) reforma da organização judiciária: desde que essa reforma seja internamente democrática e, neste caso, a democratização deve correr em paralelo com a racionalização da divisão do trabalho e com uma nova gestão de recursos de tempo e de capacidade técnica; b) reforma do processo de recrutamento dos magistrados: sem essa reforma a ampliação dos poderes do juiz carecerá de sentido e poderá, eventualmente, ser um entrave para a democratização da administração da justiça, portanto, as novas gerações de juizes e magistrados deverão ser equipadas com conhecimentos (econômicos, sociológicos, políticos) sobre a sociedade em geral e sobre a administração da justiça em particular.


Enfim, é necessário aceitar o risco de uma magistratura culturalmente esclarecida, que possa reivindicar aumento de poderes decisórios e que possa subordinar a coesão corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis na sociedade.


Santos realizou uma pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro onde ele detectou a existência de um direito informal não oficial e não profissionalizado. Na seqüência expomos um breve relato sobre esse estudo que coloca em evidência o pluralismo jurídico.


10. PLURALISMO JURÍDICO


Para Norbert Rouland (2003: 405), a antropologia jurídica demonstra sua utilidade quando permite descobrir (e entender) o direito que se encontra encoberto pelos códigos. Essa utilidade também se evidencia quando prepara e alerta a sociedade para aceitar as evoluções jurídicas que estão em curso e que apontam para um direito mais maleável, punições flexíveis, transações ou mediações em vez de julgamentos, regras que mais formam modelos do que prescrevem ordens. Tudo isso, segundo ele, pode ser aceito mais naturalmente quando as pessoas tomam conhecimento de que há muito tempo ou que em algumas sociedade, homens e mulheres, aos quais chamamos primitivos, já reconheceram esses procedimentos, ou os empregam ainda.


De um modo geral, a sociologia jurídica sempre se preocupou com o estudo do direito das sociedades complexas, sociedades metropolitanas e industriais, enquanto a antropologia jurídica investigava o direito das sociedades simples ou primitivas. Porém, conforme observações de Boaventura de Sousa Santos (1988), a partir da década de 1960 ocorre uma subversão dessa divisão de trabalho, de modo que a antropologia do direito também passou a se interessar pelo estudo das sociedades metropolitanas. Deu-se assim origem a um sincretismo teórico e metodológico, ainda hoje em processo de evolução.


Essa nova orientação da antropologia jurídica tem auxiliado a corrigir o desvirtuamento teórico que consistiu em suprimir dos estudos acadêmicos a produção jurídica não-estatal. Nessa trilha a sociologia e a antropologia jurídicas têm colocado em evidência o fenômeno conhecido como pluralismo jurídico.


10.1. Espaço do Pluralismo Jurídico


O pluralismo jurídico pressupõe a existência de mais de um direito ou ordem normativa no mesmo espaço geográfico. No início do século XX, com o avanço das teses do positivismo jurídico, o pluralismo jurídico perdeu força e ficou praticamente esquecido; na segunda metade do século XX, entretanto, retorna com todo vigor para se constituir em tema da sociologia jurídica, sendo hoje um dos problemas mais amplamente tratados por esta disciplina.


Conforme Boaventura de Sousa Santos (1988: 73), o pluralismo jurídico tem lugar sempre que as contradições se condensam na criação de espaços sociais, mais ou menos segregados, no seio dos quais se geram litígios ou disputas processados com base em recursos normativos e institucionais internos. Esses espaços sociais variam segundo o fator dominante na sua constituição (que pode ser sócio-econômico, político ou cultural) e segundo a composição da classe social. Santos cita o espaço jurídico consuetudinário criado pelos comerciantes americanos, à revelia das normas do direito oficial (civil e comercial), com o objetivo de facilitar as transações e diminuir os custos e também destaca os espaços onde se concentram as minorias e os imigrantes ilegais. Mas, sua investigação se concentra no exemplo de pluralismo jurídico dado pelas associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro.


10.2. Um Exemplo do Rio de Janeiro


No livro O Discurso e o Poder: Ensaio sobre sociologia da retórica jurídica, Santos retoma os dados de uma pesquisa empírica de sociologia jurídica que realizou nas favelas do Rio de Janeiro e estabelece um confronto entre direito estatal e direito não-estatal.


Santos constata inicialmente que no Rio de Janeiro as associações de moradores de favelas passaram a assumir funções nem sempre previstas diretamente nos seus estatutos, como, por exemplo, a de arbitrar conflitos entre vizinhos. A associação de moradores transformou-se, assim e gradualmente, num fórum jurídico, à volta do qual se foi desenvolvendo uma prática e um discurso jurídico, que possibilitou o surgimento de um direito novo: o direito da favela. Esse direito é um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interação jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal.


O modelo jurídico da favela representa um traço de um movimento que parece ser mais amplo. Esse movimento ou tendência é detectável por múltiplos sinais, sendo que os mais importantes são os que dizem respeito à criação, em certas áreas do controle social, de uma administração jurídica e judiciária paralela ou alternativa à administração estatal.


Segundo Santos, essa administração paralela recupera ou reativa, em novos moldes, estruturas administrativas de tipo popular ou participativo há muito abandonadas ou marginalizadas. Assim, em áreas como segurança, defesa do consumidor, relações entre vizinhos, questões de família, pequenos delitos, criam-se tribunais sociais, comunitários ou de bairros presididos por juizes leigos, eleitos ou designados pelas organizações sociais, e em que a representação das partes por advogados não é necessária. O processamento das questões é informal e oral e, por vezes, nem sequer a sentença é reduzida a escrito. Esse modelo “marginal” tem inspirado reformas no âmbito do direito estatal, principalmente com a instituição dos juizados de conciliação (tribunais de pequenas causas) e com a possibilidade de penas alternativas para delitos menos graves (furtos de objetos de pequeno valor).


Santos anota que, apesar de toda a sua precariedade, o direito da favela representa a prática de uma legalidade alternativa e, como tal, um exercício alternativo de poder político, ainda que embrionário. Não é um direito revolucionário, nem tem lugar numa fase revolucionária de luta de classes, visa decidir conflitos num espaço social “marginal”. Mas, de qualquer modo, representa uma tentativa para neutralizar os efeitos da aplicação do direito capitalista de propriedade no seio da favela e, portanto, no domínio habitacional da reprodução social. E porque se centra à volta de uma organização eleita pela comunidade, o direito da favela representa, também por esta razão, a alternativa de uma administração democrática da justiça.


11. JUSTIÇA ESTATAL X JUSTIÇA COMUNITÁRIA


No domínio da antropologia jurídica, os autores costumam utilizar o método comparativo. Assim, quando se compara o direito das sociedades simples com o direito das sociedades complexas, geralmente apontam que: a) as sociedades simples dispõem de um direito cujo processo é flexível, sem demarcação nítida da matéria relevante e a reconciliação das partes tem primazia sobre tudo o mais na resolução dos litígios; b) as sociedades complexas dispõem de um direito formalista, dotado de um processo inflexível e as decisões são baseadas na aplicação das leis sem qualquer preocupação com a reconciliação das partes.


Santos, ao comparar o direito da favela com o direito estatal, verifica que o direito estatal, por ser um direito mais institucionalizado, com maior poder coercitivo e com discurso jurídico de menor espaço retórico, é concomitantemente o direito mais profissionalizado, mais formalista e legalista, mais elitista e autoritário. Enfatiza que a práxis do direito estatal é revelada pela articulação de três componentes estruturais básicos: a retórica, a burocracia e a violência. Cada um desses componentes perfaz uma forma de comunicação e uma estratégia de decisão. A retórica baseia-se na produção de persuasão e de adesão voluntária através da mobilização do potencial argumentativo de seqüências e artefatos verbais e não verbais, socialmente aceitos. A burocracia baseia-se na imposição autoritária através da mobilização do potencial demonstrativo de conhecimento profissional das regras formais e dos procedimentos hierarquicamente organizados. A violência baseia-se no uso ou ameaça da força física. O funcionamento e a interação desses três componentes estruturais revelam o modelo jurídico estatal da sociedade capitalista. Ocorre, porém, que esse modelo, desde o século XIX, tem-se caracterizado pelo progressivo abandono da retórica e pela progressiva expansão da burocracia e da violência.


A configuração desse modelo teórico, segundo Santos, permite atingir formas de superar a crise do paradigma tradicional do direito, mediante reformas qualitativas que possam favorecer a emergência de um modelo jurídico dominado pela retórica. Paralelamente ao modelo tradicional de administração tecnocrática da justiça, Santos reconhece a possibilidade de modelos alternativos de administração da justiça, que a torne em geral, mais rápida, mais barata e mais acessível. Nesse sentido cita a justiça comunitária que pressupõe a mediação ou conciliação através de instâncias e instituições que sejam descentralizadas e informais e que possam substituir ou complementar o modelo tradicional. Essas reformas possibilitariam a construção de um direito novo, um modelo jurídico capaz de limitar e restringir o espaço da dominação da burocracia (domínio da hierarquia normativa) e da violência (ordenação da legitimidade sob coação) e de promover a expansão da retórica enquanto processo dialógico de negociação e de participação.


O direito da favela, como visto, favorece a emergência de um modelo jurídico dominado pela retórica, portanto, permite atingir formas de superar a crise do paradigma tradicional do direito. O direito da favela faz uso de um modelo decisório de mediação que, ao contrário do modelo de adjudicação, maximiza o potencial de persuasão para a adesão à decisão.


Segundo Santos (1988: 61), quanto mais elevado é o nível de institucionalização da função jurídica menor tende a ser o espaço retórico do discurso jurídico, e vice-versa; quanto mais poderosos são os instrumentos de coerção ao serviço da produção jurídica menor tende a ser o espaço retórico do discurso jurídico e vice-versa. Assim, nas sociedades em que o direito apresenta um baixo nível de institucionalização da função jurídica e instrumentos de coerção pouco poderosos, o discurso jurídico tende a caracterizar-se por um amplo espaço retórico.


Enfim, para desvendar os limites impostos pelo paradigma jurídico tradicional e caminhar em direção à sua superação é necessário investigar a estrutura e o funcionamento daqueles componentes (burocracia, violência e retórica) na práxis jurídica da sociedade moderna. Nesse sentido, é bastante esclarecedora a análise de Ferraz Jr. sobre a teoria da decisão jurídica que se expõe na seqüência.


12. TEORIA DA DECISÃO JURÍDICA


Para Ferraz Jr (1995, 309-322), a retórica vincula-se ao direito por intermédio da teoria da decisão jurídica. Essa teoria revela o fenômeno jurídico como um sistema de controle que utiliza não apenas o componente burocrático, mas também tem que lidar com o componente retórico e com aspectos que envolvem a violência.


A teoria de decisão jurídica entende o saber dogmático como um saber tecnológico que se concentra nas regras do sistema normativo que estabelecem as formas do procedimento e permitem a tomada de decisão. A doutrina dogmática, nesse sentido, preocupa-se primordialmente em sistematizar e esclarecer os requisitos técnicos normativos que constituem os instrumentos de que se serve a pessoa encarregada de decidir os conflitos. Esses instrumentos permitiriam encontrar a decisão não apenas em conformidade com a ordem jurídica, mas também capaz de se impor de maneira prevalecente. Essa forma de proceder revela que a doutrina dogmática, na perspectiva de um saber tecnológico, coloca em destaque o componente burocrático da decisão jurídica.


Ao colocar em evidência o componente burocrático, a doutrina dogmática oculta os demais componentes que também concorrem e atuam na construção da decisão. Assim, embora a produção de decisões (vinculantes e obrigatórias) seja um tema significativo, sua discussão dogmática ou acaba por se restringir ao problema da legitimidade do poder decisório ou se perde em indicações esparsas de técnicas decisórias extraídas do sistema normativo. Daí a necessidade de retomar o tema, com a finalidade de desvendar os caminhos do seu tratamento operacional e as suas conexões com a retórica e a violência.


12.1. Decisão e Conflito


De acordo com Ferraz Jr, decisão é algo que se liga aos processos deliberativos e aparece como termo correlato de conflito. Conflito pode ser entendido como o conjunto de alternativas que surge da diversidade de interesses. Conflito, portanto, exige decisão, uma resposta na qual uma alternativa é escolhida, abandonando-se as demais. Ocorre que a decisão ou resposta necessita de justificação como fundamento de sua legitimidade, motivo pelo qual os procedimentos para a tomada da decisão são institucionalizados mediante normas.


A institucionalização do conflito e do procedimento decisório confere aos conflitos jurídicos uma qualidade especial: eles terminam. Ou seja, a decisão jurídica é aquela capaz de por um fim aos conflitos, não no sentido de que os elimina, mas que impede a sua continuação. Ao contrário de outros conflitos sociais, como os religiosos e os políticos, os conflitos jurídicos são tratados dentro de uma situação em que eles encontram limites, não podendo ser mais retomados ou levados adiante indefinidamente.De acordo com esse quatro teórico, a doutrina dogmática revela-se como uma investigação prática das regras de configuração e decisão dos conflitos. O fenômeno jurídico é captado, nesse modelo, como um sistema de controle de comportamento. Controle é, portanto, poder de decisão de conflitos institucionalizados.


12.2. Decisão e Controle


O legislador, segundo Ferraz Jr, utiliza a expressão controle com significados distintos: a) no sentido forte de dominação; e b) no sentido atenuado de disciplina ou regulação. A doutrina, ao tratar do controle-dominação, enxerga o poder como um fenômeno bruto e irracional que aparece identificado com força. Essa acepção estabelece o poder como um fenômeno (extrajurídico) que contribui para a formação do Estado e do direito. Uma vez esgotada essa função originária, a força passa a ser vista como algo que se contrapõe ao direito em termos da dicotomia poder-força versus poder-jurídico, ou seja, o poder vinculado à força passa a ser visto como algo perigoso que pode por em risco o direito. Por isso, nas teorizações sobre o poder, a doutrina prefere falar em poder-jurídico como uma espécie de arbítrio esvaziado da brutalidade da força, um exercício de controle identificado com obediência e conformidade às leis. Nessa arquitetura aflora uma concepção limitada do próprio poder que oculta a noção de controle-disciplina ou controle-regulação.


A acepção do poder no sentido de dominação (controle-dominação) significa concebê-lo como algo (substância) que a pessoa detém, perde, limita ou aumenta. O poder, nesse sentido, implica capacidade de produzir obediência, atributo essencial da autoridade judiciária, administrativa ou policial. Isso significa que o poder como substância (dominação) mantém-se (dissimulado) no discurso da doutrina. Essa dissimulação é favorecida pela ambigüidade do termo Estado que, para o jurista, designa, de um lado, uma sociedade organizada juridicamente da qual todos são membros (poder como regulação), e, de outro lado, um aparelho burocrático que governa essa mesma sociedade (poder como dominação).


Em conformidade com esse horizonte teórico, Ferraz Jr entende que o problema dogmático do controle na correlação entre conflito e decisão envolve dois aspectos distintos: a) aspecto interno: enxerga a decisão jurídica como um controle a partir dos próprios instrumentos que o sistema normativo oferece (controle-disciplina); b) aspecto externo: refere-se a instrumentos que a retórica jurídica traz para o sistema (controle-dominação). De um lado, tem-se a teoria dogmática da aplicação do direito (aspecto interno) e, de outro, a teoria dogmática da argumentação jurídica (aspecto externo).


13. TEORIA DOGMÁTICA DA APLICAÇÃO DO DIREITO


A teoria dogmática da aplicação do direito visa esclarecer o controle da decisão a partir dos aspectos internos que emergem do sistema e repercute no meio circundante.


Na perspectiva dessa teoria, a decisão jurídica é vista como um problema de construção do juízo deliberativo pela pessoa que decide. A análise formal desse juízo aponta, inicialmente, para uma construção silogística, ou seja, sendo a decisão jurídica correlata de um conflito que a desencadeia e de uma norma que a institucionaliza, a primeira imagem que aparece é a de uma operação dedutiva em que: a) a norma geral abstrata funciona como premissa maior; b) a descrição do conflito (caso concreto) como premissa menor; c) o ato decisório como conclusão. Entretanto, reduzir o processo decisório a uma construção silogística o empobrece e não o revela na sua maior complexidade.


Karl Engisch (1965), com sua experiência de juiz, reconhece as dificuldades lógicas, não só de elaborar a premissa maior e a sistemática probatória para enquadrar um caso na premissa menor, mas também de desvendar a questão teoricamente complexa da derivação lógica de um imperativo concreto a partir de um imperativo abstrato. Na concepção desse jurista, a dinâmica interpretativa que torna possível a decisão de um caso em conformidade com a lei, do ponto de vista lógico, se concentra tanto na premissa maior quanto na menor. A premissa maior, com a qual se combina a menor, resulta de uma penetrante atividade interpretativa nada elementar, pressupõe a reunião de diversas normas espalhadas pelo sistema normativo. Mas aí não exaure toda a tarefa interpretativa, posto que a interpretação é também da premissa menor. Por esses motivos, Engisch entende que ao tratar da premissa menor, o intérprete é reconduzido do domínio da subsunção global para a subsunção particular.


Aristóteles, conforme Ferraz Jr., percebeu essa dificuldade ao visualizar que a aceitação geral do princípio ético a justiça deve ser respeitada (premissa maior), não leva, por si, à premissa de que a ação x é injusta (premissa menor) e, portanto, deve ser rejeitada (conclusão). É extremamente difícil justificar e aceitar que o conflito descrito na premissa menor (a ação x é injusta) constitui um caso particular contido na generalidade da premissa maior (a justiça deve ser respeitada). É preciso, sobretudo, definir o que é justiça e provar que a ação x é um caso de ação injusta. Esse é o problema da subsunção que envolve a aplicação do direito.


13.1. Subsunção e Burocracia


Na aplicação do direito, o juiz, além de demonstrar por via hermenêutica, o sentido e alcance das normas, precisa também comprovar que o caso a ser decidido nelas se enquadra. O processo de subsunção, portanto, não se reduz ao esquema lógico da dedução, exige maiores esforços já na elaboração da premissa maior. Além disso, é preciso identificar no caso concreto as hipóteses de incidência que nas palavras da lei aparecem expressas por conceitos indeterminados e valorativos. Conceitos indeterminados são aqueles que manifestam vaguidade, ou seja, não é possível determinar-lhes de imediato a extensão denotativa. Conceitos valorativos são aqueles que manifestam ambigüidade, ou seja, não é possível de imediato determinar-lhes a intenção conotativa. Existe, portanto, uma certa margem de arbitrariedade não apenas na construção doutrinária que procura estabelecer o conteúdo específico dos conceitos, mas também na própria decisão do juiz.


A decisão, entretanto, não fica submetida totalmente ao arbítrio de quem decide, existe um certo controle na medida em que ela emerge do próprio sistema normativo. O controle da decisão se exerce principalmente por intermédio de procedimentos institucionalizados que neutraliza a pressão dos fenômenos sociais sobre o sistema normativo. Os aspectos burocráticos e a linguagem técnica protocolar se encarregam de manter a distância entre o procedimento e a relação social, de modo que a decisão possa ser dada apenas com fundamento nas regras do ordenamento jurídico.


Essas considerações apontam para o tema da responsabilidade pela decisão, o qual esclarece o predomínio do componente burocrático sobre o componente retórico na práxis jurídica da sociedade capitalista.


13.1.1. Decisão Responsável


Decisões, conforme Ferraz Jr, podem ser programadas de forma procedimental de duas maneiras: a) mediante programação condicional: fixando-se previamente os meios a serem utilizados e deixando-se em aberto as conseqüências a serem atingidas; ou b) mediante programação finalística: fixando-se as conseqüências a serem atingidas e deixando-se em aberto os meios a serem utilizados.


Na programação condicional, a responsabilidade da pessoa que decide consiste no correto uso e aproveitamento dos meios (regras do ordenamento) sem se preocupar com a conseqüência atingida, ainda que estas provoquem perturbações sociais e violência em larga escala. Na programação finalística ocorre o contrário, a responsabilidade da pessoa que decide consiste em atingir uma certa conseqüência, por isso suporta toda a carga de uma correta busca dos meios, havendo entre meios e fins uma solidariedade inevitável.


Nos sistemas jurídicos burocratizados (tecnocráticos), há um forte predomínio de programações condicionais, posto que o sistema normativo aparece, primordialmente, como um conjunto de normas que estabelecem os procedimentos dentro dos quais as decisões são reconhecidas como obrigatórias e vinculantes. Não obstante, aspectos finalísticos não podem ser desprezados, afinal toda norma possui um telos (fim) que não pode ser ignorado totalmente mesmo quanto aponta para valores difusos como a justiça, o bem comum, o interesse coletivo. A prevalência da programação condicional, no entanto, faz da decisão jurídica um procedimento em que o cuidado com as práticas burocráticas adquire uma enorme relevância.


Existem, portanto, diferenças acentuadas entre as decisões prolatadas no âmbito da justiça tecnocrática (marcadamente condicionais: o juiz é responsável pelo correto emprego dos preceitos normativos) e as decisões que ocorrem no âmbito da justiça comunitária, em que os árbitros se sentem dominados pela finalidade e são responsáveis na medida em que os fins colimados sejam atingidos com o mínimo possível de perturbação social ou o máximo possível de acordo. Por esse motivo, a argumentação jurídica, no caso de decisão proferida na justiça tecnocrática, reforça as considerações formais, insiste no respeito às regras técnicas estabelecidas na legislação mesmo que isso ocorra em prejuízo das condicionantes de fato, enquanto na justiça comunitária prevalecem os argumentos teleológicos (ou valorativos), tendo em vista a justiça do caso concreto, mesmo que isto ocorra em detrimento de certas condições legais.


14. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO


Como visto, a teoria dogmática da aplicação do direito visa esclarecer o controle da decisão a partir dos aspectos internos que emergem do sistema e repercutem no meio circundante. Já a teoria dogmática da argumentação jurídica visa esclarecer o controle da decisão a partir dos aspectos externos que emergem do meio circundante e repercutem no sistema.


Para a teoria da argumentação jurídica a decisão jurídica é um discurso racional e por isso exige fundamentação. No curso do procedimento decisório sempre ocorre uma trama que exige das partes argumentações fundamentadas. A argumentação jurídica é, portanto, imprescindível para a obtenção das decisões. Os filósofos consideram a argumentação a parte mais importante da retórica porque se destina a produzir credibilidade dos pontos de vista arrolados. A argumentação, como diz Cícero, persuade o ouvinte pelo raciocínio, estabelece a verdade da causa e acha as provas que a fazem triunfar.


A teoria da argumentação tem por objeto os raciocínios persuasivos, como são os jurídicos. Nessa linha de pensamento, Viehweg (1979) entende a argumentação jurídica como uma forma típica de raciocínio, ou seja, raciocinar juridicamente é uma forma de argumentar. Argumentar significa fornecer motivos e razões, captando o pensamento jurídico na sua operacionalidade. A decisão jurídica aparece, nesse sentido, como uma discussão racional, um operador racional do discurso, cujo terreno imediato é um problema ou um conjunto deles. Por esse motivo, o pensamento jurídico de onde emerge a decisão deve ser entendido basicamente como discussão de problema.


A teoria da aplicação do direito mostra um quadro em que a decisão aparece como um sistema de procedimentos regulados, com predomínio das programações condicionais. O discurso dogmático sobre a decisão não é, entretanto, apenas um discurso informativo sobre como a decisão deve ocorrer, mas também um discurso persuasivo sobre como se faz para que a decisão seja acreditada pelos destinatários. Isto eleva a importância do aspecto finalístico que visa a despertar uma atitude de crença e a motivar condutas. Entende-se, nesse sentido, a abundância, na argumentação jurídica, de figuras (perífrase, suspensões, preterições) e argumentos (ab absurdo, ab auctoritate, contrario sensu, ad hominem, ad rem, entitema, etc) que pertencem ao patrimônio da retórica desde a Antiguidade.


14.1. Violência e Força


A utilização dos recursos retóricos revela que a dogmática da decisão preocupa-se não propriamente com a verdade, mas com a verossimilhança. Não exclui a verdade de suas preocupações, mas ressalta como fundamental a versão da verdade. Por essas razões, Ferraz Jr entende que a dogmática da decisão constrói um sistema conceptual que capta a decisão como um exercício controlado do poder, como se as relações sociais de poder estivessem domesticadas. Sublima-se a força e, com isso, diminui a carga emocional da presença da violência no direito. Nesse sentido, é possível falar da violência não como força física, concreta e atual, mas no sentido simbólico de ameaça.


Ocorre que a violência como instrumento do direito é um fato e não pode ser negado. A violência como fato cria, contudo, problemas para o direito. Violência gera violência e onde a violência está presente mais violência pode aparecer numa escalada sem limites. Com isso, a força física pode ganhar independência estrutural como base do poder, impondo-se sobre outros fatores (prestígio, conhecimento). Há, portanto, a possibilidade da força libertar-se do direito. A violência é, assim, ambígua: constrói e destrói a ordem.


A dogmática da decisão, no intuito de controlar a força, elabora as noções de abuso de violência e de violência razoável. A teoria da decisão jurídica aponta, assim, para uma procedimentalização do poder decisório, donde a idéia do monopólio da força pelo Estado, mas também da separação entre questio juris e questio facti. Essa separação entre as respectivas fontes de informação (normas e fatos), confere à busca da decisão um equilíbrio compensado: o direito não se determina apenas por normas, mas também não se determina apenas por fatos, e ninguém tem o monopólio de ambos.


Enfim, a dogmática de decisão não elimina o papel da força, mas enfraquece o papel da violência concreta. Nesse sentido, fala-se em uso legítimo da força, distinguindo-se entre abuso de violência e violência razoável. Por essas razões, é possível dizer que a dogmática jurídica, na medida em que se constitui num veículo para as ideologias da não-violência, pressupõe uma organização social fundada em valores democráticos que possam viabilizar o exercício da liberdade política e da liberdade da vontade.


 


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Informações Sobre os Autores

Olney Queiroz Assis

Advogado. Mestre e Doutor em Direito Pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e da Escola Paulista de Direito (EPD).

Vitor Frederico Kumpel

Magistrado. Doutor em Direito pela USP. Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e da Escola Paulista de Direito (EPD).

Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis

Pedagoga. Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas. Mestra em Educação pela PUC/Campinas. Doutoranda em Educação pela UNICAMP


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