A religação dos saberes na formação jurídica

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Resumo: A partir do referencial teórico de Edgar Morin, esta pesquisa identifica como a disjunção do conhecimento, por meio da hiperespecialização e do tecnicismo, manifesta-se na formação jurídica − o que figura como algo prejudicial porque os juristas terão uma visão mais restrita sobre as suas funções sociais. Tambem problematiza possíveis alternativas pedagógicas que podem ser implementadas pelos docentes atuantes no curso de graduação em Direito, visando a percepção mais ampla da complexidade do fenômeno jurídico − o que pode ser feito mediante a religação das disciplinas. Não são apresentadas respostas acabadas, mas um possível caminho na forma de reflexões que podem ser complementares as outras alternativas, tendo como horizonte a melhoria da qualidade dos cursos de graduação em Direito.


Palavras-chave: Edgar Morin, complexidade, ensino jurídico, disjunção e práticas pedagógicas.


Abstract: From the theoretical framework of Edgar Morin, this research identifies how the disjunction of knowledge, through the hyperspecialization and the technicism manifests itself in legal education − which appear as something harmful because the jurists will have a narrower perception about their social function. Also discusses pedagogical alternatives that can be implemented by teachers who work in undergraduate of law, aiming to wider perspective of the complexity of the legal phenomenon − what can be done by rewiring of disciplines. There are not given finished answers, but one possible way in the form of reflections that can be complementary to other alternatives at the horizon to improve the quality of law school.


Keywords: Edgar Morin, complexity, legal education, disjunction and pedagogical practices.


Sumário: 1. Introdução. 2. A disjunção do conhecimento no ensino jurídico. 2.1 A limitação da eficácia da Resolução n°9 CNE/CES. 2.2 A manifestação da disjunção 3. A alternativa da complexidade para o ensino jurídico. 3.1 Apresentação da Complexidade. 3.2. A reforma das práticas pedagógicas. 4. Considerações Finais. Referências Bibliográficas


1. Introdução


O Direito não é um objeto isolado. Por mais que hajam respeitados pesquisadores que isolam o Direito para fins científicos, é verificável que o Direito relaciona-se com uma pluralidade de elementos. A natureza destas relações demanda discussão, existindo inúmeras teorias que as abordam a partir de diferentes ópticas − mas a constatação permanece: o Direito não é um objeto isolado.


Sob outro enfoque, de verificação mais evidente, todo fenômeno social possui uma feição jurídica. Quer seja uma questão econômica, cultural ou social, ela possuirá uma vinculação com o Direito. O sistema jurídico, por sua própria natureza, possui conexões imanentes com as outras dimensões sociais.


A partir desta premissa, é coerente que o ensino jurídico objetive na formação acadêmica construir uma visão mais ampla acerca do fenômeno jurídico − tanto que esta perspectiva é prevista normativamente. Mas nem sempre as práticas pedagógicas utilizadas nos cursos de graduação em Direito são eficazes para cumprir este objetivo. Para explicar isto, esta pesquisa parte da hipótese de que a disjunção do conhecimento, manifestada na forma do tecnicismo e da hiperespecialização − presentes na formação jurídica e reforçada pelas práticas do campo profissional −, são prejudiciais à formação jurídica.


Desta problemática, este artigo questiona como ensinar aos acadêmicos de Direito uma visão complexa da realidade jurídica? Inicialmente, esclarece-se que não há teoria universalmente aceita que explique a integralidade do fenômeno jurídico em toda sua complexidade. Mesmo tomando este horizonte como um ideal a ser perseguido, é coerente direcionar esforços para uma visão mais apurada e consciente acerca do Direito.


Para enfrentar esta questão, em um primeiro momento desta pesquisa, o problema será apresentado, indicando como a disjunção surge na formação jurídica e as implicações da adoção (por vezes inconsciente) deste paradigma; e no que isto contraria as normas pertinentes ao ensino jurídico.


Já na segunda parte serão indicadas pistas e perspectivas possíveis para a superação do diagnóstico apresentado. Estas serão desenvolvidas tendo por fundamento as reflexões epistemológicas e pedagógicas de Edgar Morin[1], devidamente mediadas com o Direito[2], e buscando tratar o mais diretamente possível a questão em relação ao ensino jurídico.


Problematizações sobre a formação superior em Direito são oportunas na medida em que realizam diagnósticos e oferecem perspectivas de melhoria. O aperfeiçoamento do ensino jurídico tem como consequência imediata a melhoria das atividades jurisdicionais, devido a melhor preparação dos profissionais. É neste intuito que a presente pesquisa desenvolve-se.


2. A Disjunção do Conhecimento no Ensino Jurídico


Morin coloca como um dos principais problemas da educação a limitação de conhecer os objetos apenas pela fragmentação deles. Para melhor compreender um objeto é comum dividi-lo e estudar suas partes separadamente − tal metodologia é disseminada entre as ciências. A esta prática Morin chama de “paradigma da disjunção”.


Mas com o advento de novas teorias epistemológicas no século XX a separação compulsiva dos objetos passou a ser questionada. Se por um lado o conhecimento específico é aprimorado, surgem efeitos negativos como a perda da percepção das implicações do objeto estudado com outros fenômenos.


Neste contexto, Hilton Japiassu realiza a seguinte constatação: “Chegamos a um ponto em que o especialista se reduz ao indivíduo que, à custa de saber cada vez mais sobre cada vez menos, termina por saber tudo (ou quase tudo) sobre o nada[3]”. A busca da verticalização do conhecimento implica na questão da educação em todos os seus níveis. Em áreas técnicas os efeitos da hiperespecialização devem ser considerados, mas não são tão preocupantes quanto nas ciências humanas aplicadas. Delimitando a questão na especificidade da área jurídica, no que concerne a educação, a disjunção do conhecimento revela-se problemática por inibir a formação acadêmica pretendida. Em termos mais específicos, figura como óbice para a eficácia da Resolução n°9 de 29 de setembro de 2004[4], do Conselho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Superior (CNE/CES) que estrutura o ensino jurídico – que será apresentada na próxima seção.


2.1 A Limitação da Eficácia da Resolução n°9 CNE/CES


A Resolução n°9 CNE/CES em seu artigo 3° elenca objetivos gerais para a graduação em Direito, dentre os quais está assegurar ao graduado “sólida formação geral, humanística e axiológica […] e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica” [5]. O perfil do graduando apresentado pelo texto da Resolução satisfaz os anseios sociais por desenhar um jurista habilitado para lidar com a complexidade do fenômeno jurídico. Porém, esta formação mais ampla e dotada de vastas competências possui a eficácia reduzida pela fragmentação do conhecimento.  


Se por um lado os pesquisadores de ciências naturais são questionados sobre a responsabilidade moral de suas pesquisas por ignorarem questões sociais e culturais, pois sua formação não inclui estas competências que são desnecessárias para o exercício profissional, o jurista possui uma função social inquestionável que não pode ser eclipsada pelo tecnicismo. Se físicos e engenheiros genéticos por vezes são censurados moralmente, a qualidade jurisdicional paga o preço pelos juristas de visão limitada. A lógica da disjunção construída a partir de uma visão determinista e simplificadora não pode ser transplantada para as ciências humanas aplicadas sem consequências.


Retomando o texto da Resolução CNE/CES n° 9, o artigo 5° traz três eixos interligados de formação, que reúnem as disciplinas do curso. Cada eixo é responsável por uma formação específica apresentando objetivos especiais do curso de graduação em Direito: Formação Fundamental, correspondendo às matérias de Filosofia, Sociologia, Teoria do Direito, Economia, e outras que enriquem o estudo do Direito; Formação Profissional, constituído pelas disciplinas dogmáticas que estudam diversos ramos do Direito; e Formação Prática, com disciplinas voltadas para a atuação profissional do jurista. Estes eixos não devem ser vistos como blocos temáticos isolados, mas sim a partir da imanente interligação entre eles e sob a égide do artigo 3°do referido diploma legal. Estes Eixos interligados, associados com os objetivos gerais, realizam uma interdisciplinaridade, que representa requisito indispensável e elemento estrutural do Projeto Pedagógico do curso de graduação em Direito, conforme o Artigo 2°, §1°, IV, da Resolução CNE/CES n° 9.


Apesar de existirem estas previsões legais, não há garantia de que tais normas sejam aplicadas. Relatos doutrinários a seguir transcritos comprovam isto. Não é possível realizar um levantamento estatístico sobre o nível em que isto ocorre, mas pressupondo que as opiniões doutrinárias não são desarrazoadas[6], justifica-se o problema.


Horácio Wanderlei Rodrigues fala sobre o currículo oculto, referente aquilo que se realiza em salas de aula – em contraponto ao currículo oficial previsto formalmente nos documentos: “Utiliza-se a expressão currículo oculto para fazer referencia ao que realmente ocorre nas salas de aula, mas que não consta dos documentos oficiais, tendo em vista que na prática os conteúdos e atividades formalmente listados o currículo pleno nem sempre são efetivamente ministrados, trabalhados ou orientados pelo corpo docente, que em nome da liberdade de ensinar, acabam modificando, no mundo real, o que foi projetado quando da sua discussão e elaboração[7].”


A reflexão de Elizete Lanzoni Alves esclarece como é a realidade da formação jurídica: “O discurso educacional tradicional tem como vertente a formação integral, todavia, na prática a realidade é invertida, voltada ao individualismo de cada disciplina, impedindo a formação do cidadão crítico, consciente de sua participação social e política, sem a base sólida da formação global voltada ao desenvolvimento de sua potencialidade, habilidades e competências[8].”


A seguir, serão apresentadas algumas formas de manifestação da disjunção no ensino jurídico que caminham em direção contrária as disposições normativas apresentadas.


2.2 A Manifestação da Disjunção


A disjunção do conhecimento não se manifesta mais no currículo do curso, pois as Instituições de Ensino Superior adequaram-se, ao menos formalmente, com o teor da Resolução apresentada. O problema maior reside no currículo oculto indicado por Rodrigues, na estrutura material do plano de ensino de cada disciplina e nas práticas pedagógicas dos docentes.


Para buscar a plena eficácia da Resolução CNE/CES n° 9 a reforma curricular é necessária, porém não suficiente. Um caminho complementar do qual podem surgir bons frutos é a reforma das práticas pedagógicas em sala de aula. No caso do Direito, as aulas expositivas são predominantes e consistem essencialmente na transmissão de conhecimentos, voltados por vezes apenas a exames de proficiência profissional – como o Exame de Ordem e concursos públicos. Neste cenário, adota-se o modelo de educação bancária da qual nos fala Paulo Freire, na qual “a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador é o depositante[9].” Esta forma de educação, pautada na transmissão do saber, implica na inibição do senso crítico e da postura reflexiva, qualidades essenciais para o jurista.


Lembra-se que a Instituição de Ensino Superior para receber o selo “OAB Recomenda”, que lhe garante um diferencial, são considerados seus índices de aprovação no Exame de Ordem e a nota no ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, que avalia o ensino superior). Em nível de pós-graduação lato sensu, é frequente a oferta de cursos de especialização junto com cursinho preparatório para concursos públicos. Neste quadro é natural, e não seria exagero afirmar que é necessário, a transmissão de conhecimentos exigidos no Exame de Ordem e concursos públicos. A formação jurídica passa necessariamente por esta base tecnicista que prioriza a acumulação do conhecimento. Mas como vimos, a formação jurídica vai além disso, havendo elementos do Projeto Pedagógico que objetivam a ampla formação do jurista.


Tambem é comum os acadêmicos, ao longo da graduação, focarem os estudos em apenas um ramo do Direito, dedicando maior tempo ao estudo de apenas uma matéria em detrimento de outras competências necessárias ao jurista. Na vida profissional, a especialização em apenas uma área de atuação é comum e praticamente uma necessidade. Em ambos os casos, a crítica não reside na verticalização do conhecimento, mas a limitação que isto acarreta. Pelo paradigma dominante é na hiperespecialização onde reside o conhecimento, pela proposta da complexidade o conhecimento reside na comunicação dos saberes.


Ademais, o conhecimento científico necessário para o jurista não se forma pela acumulação de informações, mas pela organização delas. Morin ao interpretar Thomas Kuhn diz que “o desenvolvimento da ciência não se efetua por acumulação dos conhecimentos, mas por transformação dos princípios que organizam o conhecimento[10]” A superação da disjunção, pela integração entre as disciplinas, portanto, ajudará a atingir a eficácia das normas concernentes ao ensino jurídico.


A partir do diagnóstico geral realizado nesta primeira parte, a seguir será demonstrado como que a partir da complexidade de Morin surgem caminhos possíveis para a melhoria da qualidade do ensino jurídico por meio da superação da disjunção do conhecimento.


3. A Alternativa da Complexidade para o Ensino Jurídico


O Direito não deve ser ensinado e aprendido como uma técnica. Há elementos técnicos cujo conhecimento é imprescindível para o exercício profissional, mas isto corresponde a uma pequena parcela das competências que o acadêmico de Direito deve adquirir ao longo da sua formação. Nesta parte, visando à integração da técnica com outros saberes, a complexidade será apresentada e na sequência serão tratadas as práticas pedagógicas condizentes com o ensino jurídico e com as reflexões de Morin.


3.1 Apresentação da Complexidade.


Ainda na esteira de Morin é possível identificar alternativa à disjunção do conhecimento. Para além da interdisciplinaridade, identificar a complexidade dos objetos estudados pode auxiliar na efetivação da Resolução n°9 do CNE/CES. Trata-se do paradigma da complexidade proposto por Morin, que concebe os objetos considerando o contexto, o global e o multidimensional.


O contexto é o ambiente no qual se situa o objeto, dando sentido a este. Há uma interação recíproca entre objeto e ambiente. Assim, uma mesma norma jurídica terá interpretações diferentes conforme o sistema jurídico em que esteja ambientalizada, bem como variações relativas ao tempo e espaço. Conhecer o objeto descontextualizado implica em simplificações que excluem características e detalhes do objeto. Conforme Morin: “O conhecimento das informações ou dos dados isolados é insuficiente. É preciso situar as informações e os dados em seu contexto para que adquiram sentido. Para ter sentido, a palavra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto o qual se enuncia. Desse modo, a palavra ‘amor’ muda de sentido no contexto religioso e no contexto profano, e uma declaração de amor não tem o mesmo sentido de verdade se é enunciada por um sedutor o por um seduzido[11].”


O global é mais amplo que o contexto, e trata da relação entre a parte e o todo. Para conhecer as partes é necessário conhecer o todo que elas formam, da mesma forma que é necessário conhecer o todo para compreender as partes − a partir de uma dialética que procura a complementaridade cognitiva entre as partes e o todo. No Direito, por exemplo, a relação norma e ordenamento jurídico é adequada para ilustrar isto.


Por fim, o multidimensional compreende a relação das partes de um sistema com outras partes. Em vez de tratar de como uma parte interage com o todo, verifica-se como elas se inter-relacionam. Esclarecendo esta questão, Morin realiza a seguinte explicação: “Unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade, são multidimensionais: dessa forma, o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa… O conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional e nele inserir estes dados: não apenas não se poderia isolar uma parte do todo, mas as partes umas das outras; a dimensão econômica, por exemplo, está em inter-retroação permanente com todas as outras dimensões humanas[12].” Trazendo a questão para o Direito, a sociedade é formada por uma pluralidade de dimensões vinculadas− econômica, cultural, política etc. −, e dentre elas a dimensão jurídica. Considerar o multidimensional é considerar tais interações.


O complexo é a interação dos elementos citados acima. Uma leitura complexa de dado fenômeno implica em considerar o contexto, o global e o multidimensional. Este modelo permite a especialização, mas necessita da abertura e ampliação da compreensão. Desenvolver práticas pedagógicas na esteira da complexidade permite superar a disjunção que prejudica a adequada formação acadêmica.


3.2 A Reforma das Práticas Pedagógicas


Uma vez justificado porque a disjunção figura como um problema para o ensino jurídico, cumpre questionar como ensinar aos acadêmicos de Direito uma visão mais complexa do sistema jurídico.


As indicações realizadas a seguir possuem correlação com o paradigma da complexidade – por mais que sejam tambem adequados com outras teorias.


No problema específico levantado por esta pesquisa, existem sugestões que podem ser implementadas no plano de ensino das disciplinas e incorporadas nas práticas pedagógicas permitindo a compreensão mais ampla do Direito. Para outros objetivos do ensino jurídico, como a reflexão crítica e autonomia, existem alternativas pedagógicas próprias, mas que não serão abordadas.


Sem inovar em soluções, buscando apenas a eficácia da própria Resolução n° 9 CES/CNE apresenta as seguintes práticas pedagógicas:


a) Analisar empiricamente as questões jurídicas. Conhecer os institutos jurídicos teoricamente é indispensável, tanto para a formação acadêmica, bem como para a aprovação em concursos e para trabalhar com o Direito. Porém, um olhar crítico para a eficácia dos mesmos institutos é importante. A sociologia do direito oferece métodos adequados para avaliar a eficácia das normas, permitindo que o estudo de cada instituto jurídico seja acompanhado de contribuições sociológicas que analisariam a funcionalidade da questão; o caminho inverso tambem é possível: partir das disciplinas fundamentais, considerando reflexões próprias da dogmática jurídica sobre como organizar e ordenar a sociedade.


b) Buscar uma concepção complexa do Direito. A complexidade de Morin remete a análise do global, do multidimensional e do contexto. Discussões desta amplitude são desenvolvidas no âmbito profissional dos juristas, mas foge do cotidiano da maioria dos profissionais. Por exemplo, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal realizam audiências publicas quando analisam questões complexas. Sem entrar no mérito das discussões, ocorreram audiências públicas sobre o Projeto de Lei do Senado n°186/1996, que visa extinguir o Exame de Ordem, ou as discussões em torno da impugnação de constitucionalidade das cotas nas universidades. Essas discussões tiveram, comparado com as práticas profissionais cotidianas, elevada complexidade por considerarem uma pluralidade de fatores. Quando um docente abordar um instituto jurídico poderá tecer considerações complexas. Apesar de haverem doutrinadores que ignoram tais considerações ao redigirem suas obras, é possível questionar a mens legis[13] das normas que regulamentam o instituto jurídico. Isto permitiria aos acadêmicos de Direito além de saber como certo instituto jurídico funciona, conhecer o porque funciona de dada maneira. O acadêmico tendo conhecimento dos componentes normativos do instituto jurídico estudado poderá organizar melhor o conhecimento adquirido ao longo da graduação, pois ao inquirir a intenção e o objetivo da norma, será remetido ao contexto histórico de sua criação, permitindo considerar elementos econômicos, sociais, políticos etc., concretizando desta forma a religação e a comunicação entre diversas disciplinas do curso de graduação em Direito.


Em caráter complementar, encontra-se uma diretriz importante no pensamento de Haidê Maria Hupffer, pesquisadora que realiza uma aplicação das reflexões de Morin e de Basarab Nicolescu ao ensino jurídico: “A problemática da realidade social desafia a educação jurídica a (re)pensar a complexidade do Direito frente aos conflitos sociais contemporâneos. Nas últimas décadas, assistiu-se a um verdadeiro processo de transformação nas relações jurídicas, motivado pelo crescimento dos ‘direitos sociais’ e ‘direitos transindividuais’, com a complexidade social que eles envolvem; pelas demandas coletivas; pelas sociedades corporativas transnacionais; pela modificação dos sistemas de produção, distribuição e consumo; pela mundialização da economia e pelas relações de consumo em escala planetária; pela complexidade e infinidade de leis nacionais e internacionais etc.[14]


c) Interdisciplinaridade e interligação dos Eixos de Formação. Além da contextualização dos conteúdos é possível a interação deles com temáticas de outras disciplinas. Desta complementação emerge uma organização mais ampla dos conhecimentos jurídicos, pois possibilita uma sistematização dos conhecimentos adquiridos no curso de graduação em Direito. Destarte, o docente ao tratar em sala de aula de certo tema, pode realizar considerações interdisciplinares, realizando pontes com matérias e com outros Eixos complementares de formação. Esta prática é comum entre as disciplinas do Eixo de Formação Profissional com o Eixo de Formação Prática, mas por força da Resolução n°9 CES/CNE, os temas próprios do Eixo de Formação Fundamental devem ser incluídos.


No mesmo sentido, é esclarecedora a reflexão de Alves “Neste contexto a interdisciplinaridade exerce papel fundamental por proporcionar o diálogo entre várias áreas do conhecimento, quebrando as barreiras do individualismo sem deixar de respeitar as peculiaridades de cada uma, mas buscando pontos de conexão enriquecedores para a interpretação, seja do fato, da norma ou da doutrina jurídica[15].”


Por outro lado, de imediato é possível indicar aspectos desfavoráveis na adoção das recomendações indicadas: seria necessária uma melhor preparação dos professores, e este é um obstáculo considerável, vez que, como o docente de hoje não teve uma formação acadêmica nos moldes propostos, ele não encontrará parâmetro adequado para a prática pedagógica proposta; haveria a diminuição do foco tecnicista que é importante para a Instituição pontuar no Exame de Ordem. Se o docente tiver que dedicar parcela da aula para analisar a eficácia, contextualizar e mediar a interdisciplinaridade, necessariamente o tempo dedicado para a explanação de aspectos técnicos seria minorado; por fim, não existe uma concepção complexa do Direito, ou os estudos que realizam este tipo de análise são raros. A escassez da produção científica com uma perspectiva mais ampla do fenômeno jurídico é um obstáculo considerável.


Apesar de haver uma natural resistência do discurso dominante existente no campo profissional do Direito, este quadro tem perspectivas concretas de mudança. A exigência de formação humanística do magistrado exigida pelo Conselho Nacional de Justiça[16] e a frequência crescentes de pesquisas interdisciplinares são exemplos disto. Tentativas ainda tímidas e de eficácia não comprovada, mas sem dúvida revelam novas perspectivas a serem consideradas.


4. Considerações Finais


Após a constatação da existência de fragmentação do saber jurídico, que se manifesta em várias instâncias e graus, a alternativa proposta a partir da complexidade visando uma reforma nas práticas pedagógicas assumem o tom de um desafio a ser lançado aos profissionais da educação jurídica. É evidente que existem outros elementos a serem considerados para a adequada melhoria do ensino jurídico, mas a superação gradativa da disjunção das disciplinas do curso de graduação em Direito é necessária.


Ponderadas vantagens e desvantagens de religar os saberes jurídicos, direcionar o Projeto Pedagógico do curso e o plano de ensino das disciplinas para promover ostensivamente a interdisciplinaridade, permite a adequação formal com as diretrizes da Resolução n° 9 do CNE/CES – o que é feito em muitas Instituições de Ensino Superior. Mas, a realidade das práticas pedagógicas em sala de aula nem sempre correspondem a tais objetivos e metodologias previstas normativamente, prevalecendo o currículo oculto do curso. Por esta razão, não é fácil a tarefa de concretizar, no que for cabível, os objetivos da Resolução n° 9 do CNE/CES.


Mas apesar dos obstáculos e resistências, as conexões que o Direito possui com outros objetos é evidente, mas estudá-las é uma tarefa árdua, por isso são comumente deixadas de lado. Entretanto, é possível superar a disjunção. E além de possível, é necessária para a plena formação do jurista a adoção de práticas pedagógicas que trabalhem a complexidade do Direito.


 


Referências Bibliográficas

ALVES, Elizete Lanzoni (Org.). O ensino jurídico interdisciplinar: um novo horizonte para o direito. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2005.

BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Resolução n° 75, de 12 de maio de 2009. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7506:resolucao-no-75-de-12-de-maio-de-2009&catid=57:resolucoes&Itemid=512>. Acesso em: 01 de jul. de 2009.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução n°9, de 29 de setembro de 2004 Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces092004direito.pdf>. Acesso em: 01 mar. 2010.

FALCI, Nurimar. VALLIAS, André. Biografia. SESCSP. Disponível em: <http://edgarmorin.sescsp.org.br/bio/default.asp>. Acesso em: 1 jul. 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

JAPIASSU, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

HUPFFER, Haidê Maria. Ensino jurídico: um novo caminho a partir da hermenêutica filosófica. Viamão: Entremeios, 2008.

MARTINELLI, Líliam Maria Born. As Contribuições do Pensamento Complexo de Edgar Morin para a Formação do Professor. 2003. 146f f. Dissertação (Mestrado em Educação). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2003.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do direito no século XXI: diretrizes curriculares projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.

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SILVA, de Plácido e. Vocabulário jurídico. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

Notas:



[1] Para uma breve biografia, contendo a importância de Morin e sua cronologia com as principais obras,  ver FALCI e VALLIAS.

[2] A possibilidade de pensar o Direito a partir da perspectiva da complexidade encontra-se justificada em SEINO.

[3] JAPIASSU, 2006. p.28.

[4] BRASIL, 2004.

[5] BRASIL, 2004.

[6] Os doutrinadores citados possuem experiência com docência, de forma que suas conclusões são frutos de observações realizadas que podem ser validadas pela intersubjetividade.

[7] RODRIGUES, 2005. p. 200.

[8] ALVES, 2005. p. 18-19.

[9] FREIRE, 2007. p. 66.

[10] MORIN, 2005. p. 137.

[11] MORIN, 2002. p. 36.

[12] MORIN, 2002. p. 38.

[13] “Intenção, objetivo, ou finalidade da lei. Indica o fim social proposto pela lei, constituindo elemento essencial de sua interpretação.” SILVA, 2004. p. 911.

[14] HUPFFER, 2008. p. 219.

[15] ALVES, 2005. p. 19.

[16] BRASIL, 2009.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Seino Wiviurka

Advogado militante regularmente inscrito na OAB/PR e integrante do escritório Gomez e Seino Advogados. Pós-graduando em Formação Pedagógica do Professor Universitário pela PUCPR. Bacharel em Direito pela UNICURITIBA


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