A ação do STF no caso Battisti: e a lei, como fica?

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Resumo: o presente artigo versará sobre o caso de extradição do ex-militante de esquerda Cesare Battisti, tendo como foco primordial as ações do Supremo Tribunal Federal, no tocante à aplicação da Constituição brasileira, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) e do Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália em 1989. Para que tal análise seja feita com sucesso, será invocado o positivismo jurídico do austríaco Hans Kelsen, abordado aqui de forma justa, evitando a excessiva dogmatização das idéias desse autor. Ao final, será vista qual a principal dificuldade, na opinião dos autores do artigo, que enfrenta o STF quando do julgamento de casos jurídico-políticos, como é a situação em tela. Este trabalho foi orientado pela Professora Doutora Maria Sueli Rodrigues de Sousa.


Palavras-chave: Extradição, Battisti, STF, Kelsen, Constitucionalidade.


Abstract: this article will talk about the Italian ex-militant Cesare Battisti’s extradition, having as main focus the actions of the Brazilian Supreme Court (in Portuguese: Supremo Tribunal Federal – STF), regarding the application of the Brazilian Constitution, the Law 6.815/80 (Brazilian Foreign Statute) and the Extradition Treaty signed up between Brazil and Italy in 1989. Looking forward the success of the analysis, Hans Kelsen’s legal positivism will be invoked and treated in a fair way, avoiding any dogmatic interpretation of this author. In the end, the authors of the article will present their own opinion about which is the greatest difficulty that the STF faces when it judges cases that are both legal and political, as the present case is.


Keywords: Extradition, Battisti, STF, Kelsen, Constitutionality.


Sumário: 1. Introdução. 2. Extradição no ordenamento brasileiro. 3. Entendendo o caso Cesare Battisti. 4. Os julgamentos da Extradição 1.085. 4.1. O primeiro julgamento do STF. 4.2. A decisão do Presidente Lula. 4.3. O segundo julgamento do STF e a soltura de Battisti. 5. Considerações finais. Referências bibliográficas.


1. Introdução


Extradição significa entregar um criminoso a um governo que o reclama. É um instrumento eficaz para punir aqueles que cometeram delitos em um país e evadiram-se para outros territórios na tentativa de escapar de sua pena. Esse aparato encontra fundamento nas Constituições de muitos países e é reforçado por tratados firmados entre os Estados.


A Constituição brasileira discorre acerca desse assunto em seu art. 5º, LI e LII, que segue:


“Art. 5º. (…)


LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;


LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”


De forma mais específica, regula o Estatuto do Estrangeiro sobre as condições formais e motivacionais em que se dará a extradição, bem como aquelas em que tal feito não ocorrerá.


Recentemente, foi tema de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) o pedido de extradição do italiano Cesare Battisti, condenado em seu país natal à prisão perpétua por quatro assassinatos cometidos no final da década de 1970. A Corte Suprema, de forma acirrada, decidiu, em 2007, pela extradição; decisão esta não compartilhada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que optou por permitir a permanência de Battisti no Brasil. Inconformado com a situação, o governo da Itália recorreu da decisão presidencial, fato que originou um novo julgamento em 2011. Nesse segundo momento, o STF entendeu que o governo italiano não tinha legitimidade para agir dessa forma, visto que a decisão do Presidente nada mais era do que uma questão política, um ato de soberania, não cabendo judicialização. Na mesma oportunidade, também foi acolhido o pedido de soltura do italiano apresentado pela defesa deste. Hoje, Battisti está livre e, num processo que não durou mais do que treze dias, foi-lhe concedida autorização para viver e trabalhar no Brasil pelo tempo que quiser – para os estrangeiros em geral, esse processo dura, em média, 45 dias.


O presente artigo se propõe a fazer um estudo do caso Battisti, tentando esmiuçar as razões que motivaram os juízos feitos durante todo o processo, adotando como pano de fundo, principalmente, a ótica do positivismo de Hans Kelsen; fazendo referência, também, ao pensamento de Ronald Dworkin.


Este trabalho será divido em três partes principais: na primeira, discorreremos acerca do instrumento da extradição no Brasil, explicitando suas particularidades; posteriormente, será feita uma narrativa cronológica dos eventos da vida de Battisti que o trouxeram ao Brasil, culminando na ocorrência do caso em tela; por fim, serão discutidos os julgamentos do processo de Extradição 1.085 (número do processo de extradição aqui trabalhado), oportunidade na qual será feita a análise embasada nos pensadores anteriormente citados.


2. Extradição no ordenamento brasileiro


A extradição consiste em um instrumento de cooperação internacional, visando ao combate ao crime, diminuindo as possibilidades de que alguém que responde a processo criminal refugie-se em outro país. Além disso, consideramos que ela seja uma forma de respeito à soberania dos Estados, visto que é um instituto que regulariza a entrega de um criminoso a outro país, possibilitando que este puna aqueles que cometeram delitos em seu território.


O ex-ministro do STF, Francisco Rezek, ensina que:


“[a extradição consiste na] entrega, por um Estado a outro, e a pedido deste, de pessoa que em seu território deva responder a processo penal ou cumprir pena. Cuida-se de uma relação executiva, com envolvimento judiciário de ambos os lados: o governo requerente da extradição só toma essa iniciativa em razão da existência do processo penal – findo ou em curso – ante sua Justiça; e o governo do Estado requerido (…) não goza, em geral, de uma prerrogativa de decidir sobre o atendimento do pedido senão depois de um pronunciamento da Justiça local”. (REZEK, 2005, pg. 197)


Vê-se, portanto, que se trata de um instituto essencialmente político, mas que carece de tratamento judicial, porquanto requer a existência de um processo penal na Justiça do país requerente, bem como que haja uma deliberação no Judiciário do país requerido antes da participação do Executivo. Vale ressaltar que, para Rezek, o processo penal não precisa estar findo, ou seja, não é necessária a existência de sentença punitiva para que o extraditando seja enviado ao país requerente.


A legislação brasileira, entretanto, impõe algumas condições necessárias para que a extradição seja autorizada. É o que dispõe o art. 77 da Lei 6.815/80, também chamada Estatuto do Estrangeiro.


“Art. 77. São condições para concessão da extradição:


I – ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extraditando as leis penais desse Estado; e


II – existir sentença final de privação de liberdade, ou estar a prisão do extraditando autorizada por juiz, tribunal ou autoridade competente do Estado requerente (…).”


Ao contrário do que lecionou Rezek, a legislação brasileira afirma a necessidade de existência de sentença final ou estar a prisão decretada por autoridade competente a fim de que a extradição seja autorizada. A mesma lei também normatiza, em seu art. 75, os fundamentos do pedido de extradição, o qual só será deferido “quando o governo requerente se fundamentar em convenção, tratado ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade”.


Nesse mesmo sentido, Rezek (2007) doutrina que seria o tratado o fundamento jurídico de um pedido de extradição e que, na falta deste, a promessa de reciprocidade é válida, desde que o país requerido assim entenda.


Uma vez entendido do que se trata a extradição, passemos a analisar como esta se dá. O processo extradicional no Brasil é longo e, por conta de sua complexidade, divide-se em três fases: a primeira e terceira fases ocorrem no âmbito do Executivo, portando são fases administrativas; a segunda fase procede no STF, órgão do Judiciário competente para a análise de ações de extradição.


No primeiro momento, é feito o pedido de extradição pelo país requerente, que deve ser direcionado ao Ministério das Relações Exteriores para então ser remetido ao Ministro da Justiça. Este pedido deve estar fundamentado, como já foi visto, em um tratado previamente assinado entre ambos os países ou em uma promessa de reciprocidade. Sendo tal pedido acolhido pelo Ministro, o processo é encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, que avaliará as questões legais de que dispõem Constituição, tratados ou promessas de reciprocidade.


Na terceira fase, em que entra em cena o Presidente, há divergências de pensamento quanto a que tipo de ação este deve ter. Para alguns, caberia ao Presidente apenas executar o que foi estabelecido pelo STF; sendo assim, a ação presidencial se resumiria a efetivar a extradição quando assim determinasse a Corte Suprema ou, em decisão contrária desta Corte, comunicar ao país requerente a não extradição. A outra corrente afirma que o Presidente deve fazer uso de seu poder discricionário em caso de deferimento da extradição, sendo ele competente para escolher entre executar a extradição ou vetar a mesma. O estranho é que, caso o STF decida pela não extradição, o Presidente não estaria autorizado a usar sua discricionariedade e ir contra a decisão do Supremo. Todavia, esta corrente que versa sobre o poder discricionário do Presidente não encontra respaldo na legislação. Leiamos o art. 85 do Estatuto do Estrangeiro para maiores esclarecimentos:


“Art. 85. Concedida a extradição, será o fato comunicado através do Ministério das Relações Exteriores à Missão Diplomática do Estado requerente que, no prazo de sessenta dias da comunicação, deverá retirar o extraditando do território brasileiro”.


O artigo acima transcrito não considera nenhuma ação do Presidente após o julgamento do STF. Sendo assim, consideraremos a corrente da discricionariedade do Presidente inválida.


Caso a extradição seja autorizada pelo STF, o governo requerente deve obedecer a algumas exigências do governo brasileiro para que o processo seja efetivado. Tais requisições, que encontram lugar no art. 90 da Lei 8.615/80, são: a impossibilidade de ser o extraditando preso ou processado por fatos anteriores ao pedido; de computar o tempo de prisão preventiva imposta no Brasil, por ocasião do processo de extradição (art. 80 da referida lei); de comutar a pena privativa de liberdade com pena corporal ou de morte; de não ser o extraditando entregue a um terceiro Estado sem o consentimento prévio do Brasil; e, por último, de não considerar qualquer motivo de natureza política para agravar a pena. Pensamos, após essa explanação, que visa o governo brasileiro à proteção da pessoa humana.


Tendo em mente o tema do presente artigo, merece destaque a existência do Tratado de Extradição assinado entre Brasil e Itália em 1989. Esse tratado discorre sobre as condições em que se dará a extradição – e também quando esta será recusada –, seus limites, os documentos que fundamentam seu pedido, sobre quem vai arcar com as despesas do processo entre outros itens. Chama a atenção o seu art. 5º, que vem reforçar a idéia da proteção da dignidade humana, senão vejamos:


“Artigo 5º. Direitos Fundamentais


A Extradição tampouco será concedida:


a) se, pelo fato pelo qual for solicitada, a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a um procedimento que não assegure os direitos mínimos de defesa. A circunstância de que a condenação tenha ocorrido à revelia não constitui, por si só, motivo para recusa de extradição; ou


b) se houver fundado motivo para supor que a pessoa reclamada será submetida a pena ou tratamento que de qualquer forma configure uma violação dos seus direitos fundamentais”.


3. Entendendo o caso Cesare Battisti


Cesare Battisti cresceu em meio a uma efervescência anti-governista durante os chamados “anos de chumbo italianos”. Participou do Partido Comunista Italiano e uniu-se aos contestatários – grupo de jovens não-armados. Posteriormente, têm origem os squats, um grupo melhor organizado que se reunia em casas utilizadas como quartéis e que, para se manter, promovia pequenos roubos e furtos. Por conta destes, Battisti fora preso duas vezes e, na última delas, conheceu Arrigo Cavallina, o idealizador dos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC); organização na qual ingressa em 1977, logo após sair da prisão.


Entre os meses de junho de 1978 e abril de 1979, o grupo foi responsável por quatro assassinatos[1], cometidos por motivo torpe e por vingança. No mesmo ano de 1979, Battisti foi condenado a 12 anos de prisão; os motivos: participação em grupo armado, roubo e receptação de armas. Dois anos mais tarde, ele fugiu do presídio e refugiou-se em Paris, onde morou por um ano, tendo fugido para o México logo após.


Em 1982, é preso Pietro Mutti, um ex-integrante do PAC, que acusa Battisti de ser o comandante das operações que culminaram nos assassinatos entre 1978 e 1979. À revelia, este é condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana em 1988.


Em 1985, o então Presidente da França, François Mitterrand, instaura a “doutrina Mitterrand”, que oferecia asilo político a todos os envolvidos em atividades terroristas na Itália até 1981 e que haviam deixado a luta armada. Acreditando na proteção dessa doutrina, Battisti retorna à França em 1990 e, um ano mais tarde, a Itália requer a extradição do mesmo, sendo esta não aceita em virtude da “doutrina Mitterrand”.


Quase dez anos após o trânsito em julgado, é reaberto na Itália o processo contra Battisti, tendo como principal elemento o depoimento de seu ex-companheiro Pietro Mutti, o qual trocava informações por negociação na sua pena. Nessa ocasião, já em 2004, a França decide reconsiderar sua decisão e autoriza a extradição de Battisti. Na iminência de ser extraditado, Battisti foge novamente, dessa vez para o Brasil.


Aqui, Battisti viveu clandestinamente no Rio de Janeiro, onde foi preso em 2007 em uma operação conjunta da Interpol e das polícias brasileira, italiana e francesa. Ficou preso até 2009, quando o então Ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, concedeu-lhe o status de refugiado político: tal feito se deu por vislumbrar o Ministro um cunho político nas ações atribuídas a Battisti. A mesma interpretação teve o Presidente brasileiro da época, Luiz Inácio Lula da Silva, que fundamentou sua opinião no art. 4º, X, da Constituição brasileira, que dispõe sobre a concessão de refúgio político, e por enxergar essa questão como um assunto de soberania nacional. Resta saber os verdadeiros motivos que guiaram o ex-presidente para classificar Battisti como refugiado político, tendo em vista que o processo contra o italiano gira em torno de crimes comuns, quais sejam quatro assassinatos.


4. Os julgamentos da Extradição 1.085


4.1. O primeiro julgamento do STF


Tudo exposto até esse ponto serve para permitir um maior entendimento do verdadeiro mister deste artigo. Julgamos necessário discorrer sobre o instituto da extradição e fazer uma breve análise dos acontecimentos que trouxeram Cesare Battisti ao Brasil para que possamos compreendê-los, formando um juízo adequado sobre o caso analisado.


Em 2007, teve início o processo de extradição nº. 1.085, a tratar do pedido de extradição do italiano Cesare Battisti. O governo italiano fundamentou seu pedido, o qual teve aceitação na primeira fase administrativa, no Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália em 1989, o qual assim regula em seu art. 1º:


“Art. 1º. Cada uma das partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciais da parte requerente, para serem submetidas a processo penal ou para a execução de uma pena restritiva de liberdade pessoal.” (grifo).


O problema que complexifica o caso é o fato de que os crimes pelos quais responde Battisti foram cometidos quando de sua participação no grupo de extrema esquerda PAC, que lutava contra o governo vigente na Itália durante a década de 1970 – fato que poderia configurar tais crimes como de natureza política. Nesse ponto, firmaram Brasil e Itália no artigo III do Tratado que a extradição será recusada “se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político”. Além disso, o mesmo artigo explica que “se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de (…) opinião política”, o pedido também será respondido com uma negativa.


Cumpre salientar a exceção da prerrogativa dos artigos acima referidos disposta no art. 76 da Lei 8.615/80:


“Art. 76. Não se concederá a extradição quando:


VII – o fato constituir crime político


§ 1º A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal.”(grifo).


Ora, é conveniente considerarmos a disposição acima transcrita para, numa análise kelseniana, declarar que o pedido de extradição de Battisti deveria ser deferido – como de fato o foi no primeiro julgamento realizado pelo STF. Os fatos principais julgados não são senão quatro assassinatos cometidos no fim da década de 1970, ou seja, infrações da lei penal comum. Mesmo que estivessem conectados a um fim político, o art. 76, §1º é taxativo ao ajuizar que uma situação dessa natureza extrapola o crime político. Sendo assim, seguindo a letra da lei, não há que se considerar Battisti como refugiado.


Pensamos que, por seguir essa linha de raciocínio, tenha o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) negado provimento ao pedido de refúgio formulado por Cesare Battisti após sua prisão no Rio de Janeiro em 2007. Entretanto, numa manobra um tanto quanto arbitrária, o Ministro da Justiça Tarso Genro revogou a decisão do CONARE e concedeu tal condição a Battisti em 2009. Coube, então, ao STF determinar a não legitimidade da ação do Ministro Tarso Genro, uma vez que esse procedimento não era da competência deste. Assim foi o entendimento da Ministra Ellen Gracie, que votou com fulcro no art. 76, § 2º, o qual normatiza que cabe, exclusivamente, ao Supremo Tribunal a apreciação do caráter da infração em processos extradicionais.


Propomos-nos a considerar o STF como um órgão coeso, embora seja patente sua individualidade: cada ministro já vai a pleito com seu voto pronto, não havendo um debate do qual emanem soluções para o problema em pauta. No caso em tela, vemos o Ministro Tarso Genro como um seguidor dos princípios e de uma moralidade histórica. Talvez, o ex-ministro da Justiça objetivava ser coerente com a história brasileira de perseguições políticas dos tempos de ditadura: seria, assim, o autor de mais um capítulo de um romance que vem sendo escrito desde o golpe de 64. Esqueceu-se, contudo, de agir como o Juiz Hércules de Dworkin (1986). Deveria ele, caso objetivasse agir de modo conveniente, fazer um estudo preciso do caso, analisando todas as possibilidades de resolução, ou seja, o Ministro tinha que ter se trajado de Hércules. Não conseguimos identificar nas ações do Ministro em questão, a apreciação devida que deve ter o juiz hercúleo sobre todo o histórico de casos precedentes – sem se esquecer, todavia, dos efeitos futuros que sua decisão ocasionará jurisprudencialmente. Talvez, simplesmente, pelo fato de não ser juiz, Tarso Genro tenha se escusado de agir segundo Dworkin (1986) nos ensina. Estar de acordo com o passado não é suficiente para um romance em cadeia bem escrito: cada capítulo deve dar a melhor narrativa para o nascimento de futuras laudas.


 Por outro lado, seria o Supremo um defensor da lei, que tenta não se influenciar pelo passado revolucionário de muitos governantes do Brasil. Acreditamos que agiu a Suprema Corte nos justos moldes de Kelsen, vendo este autor como ele é de fato, não como o carrasco dogmático do Direito como muitos pensam.


Depois de resolvido esse primeiro impasse, os ministros do Supremo voltaram-se para a decisão do mérito em si. Eles deliberaram acerca da natureza dos crimes pelos quais Battisti estava sendo julgado, tendo por objetivo classificá-los como políticos ou comuns. Essa classificação seria decisiva para determinar o futuro do italiano, visto que, sendo seus crimes tidos como de natureza comum, sua extradição seria iminente. 


O Pretório Excelso foi categórico ao considerar os quatro assassinatos cometidos pelo PAC em operações cujo comando foi atribuído a Battisti como crimes comuns. Ora, em concordância com a legislação brasileira, não poderiam ser considerados tais crimes como de cunho político. Para ilustrar esse posicionamento, votou o Ministro Ricardo Lewandowsky com sensatez, afirmando que no caso em pauta, mais do que comuns, constituem crimes hediondos, tendo em vista o modo como foram realizados, ou seja, mediante premeditação e por vingança. Sendo assim, não poderiam esses homicídios ser enquadrados como políticos, ainda que se pudesse imaginá-los como meios de subversão às instituições italianas.


Chamou-nos atenção, também, o nome da organização à qual pertencia Battisti: Proletários Armados pelo Comunismo. Já está clara, em sua própria nomeação, a essência violenta do grupo. O Ministro Ayres Britto destacou esse fato em seu deferimento da Extradição 1.085, buscando fundamentação no texto constitucional, que promove o repúdio da República do Brasil ao terrorismo. O Min. Ayres Britto assim afirmou em seu voto:


“Parece-me que, no PAC – Proletários Armados para o Comunismo -, o adjetivo “armados” já desnatura o objetivo ideológico, o objetivo político da instituição, porque uma organização que se auto-intitula de armada já se predispõe ao cometimento de crimes comuns, de crimes de sangue com resultado morte. E, no limite, até mesmo ao terrorismo. Esse terrorismo que a nossa Constituição rechaça, repudia às expressas e cuja prática é inconciliável, seja com a concessão de asilo político, seja com a concessão de refúgio. (STEIN, Leandro Konzen. Caso Battisti: afinal, o que decidiu o STF?. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2779, 9 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18455>. Acesso em: 4 jul. 2011.)


Pelo exposto, vê-se que o STF entendeu que a extradição de Cesare Battisti seria devida, por esta estar de acordo com os preceitos constitucionais e com o Tratado de Extradição de 1989 entre Brasil e Itália. Decidiu-se, na forma da lei, pelo deferimento do pedido extradicional.


4.2. A decisão do Presidente Lula


Finda a votação sobre a natureza dos crimes imputados a Battisti, uma polêmica ainda maior nascia: estaria o Presidente da República vinculado à decisão do Pretório Excelso ou poderia ele fazer uso de sua discricionariedade? Anteriormente, lançamos mão da Lei 6.815/80, art. 85, para fundamentar nossa interpretação que invalida a segunda alternativa. A lei é clara, não cabendo uma interpretação diversa.  O que ocorreu, entretanto, foi o contrário: o STF, por julgar que a questão carece de tratamento político, colocou a decisão final nas mãos do ex-presidente Lula, com a ressalva de que este observasse o Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália. A Ministra Carmen Lúcia, em outra oportunidade, já havia se manifestado, acerca desse mesmo ponto, a favor da discricionariedade do Presidente. Ela assim afirmou, quando Relatora da Extradição 1.114:


“O Supremo Tribunal Federal limita-se a analisar a legalidade e a procedência do pedido de extradição (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 207; Constituição da República, art. 102, inciso I, alínea g; e Lei n. 6.815/80, art. 83): indeferido o pedido, deixa-se de constituir o título jurídico sem o qual o Presidente da República não pode efetivar a extradição; se deferida, a entrega do súdito ao Estado requerente fica a critério discricionário do Presidente da República.” (Extradição: o caso Cesare Battisti. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2895, 5 jun. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/19261>. Acesso em: 26 jun. 2011).


Interpretamos o entendimento do Supremo de considerar a discricionariedade do Presidente como o maior momento de fraqueza – e por que não dizer omissão, por não dar o devido amparo à legislação pátria – durante o caso Battisti: até então, havia agido a Corte nos moldes justos da lei. Ao deixar a Jurisprudência falar mais alto do que a norma, saiu prejudicada sobremaneira a instituição da segurança jurídica, a qual emana, acreditamos, do texto da lei. A ressalva do STF de que o Presidente teria que agir em conformidade com o Tratado poderia acalmar os ânimos kelsenianos caso o Presidente em questão não fosse Luiz Inácio Lula da Silva, o qual já havia se manifestado abertamente a favor da concessão de refúgio político a Battisti – mesmo estando comprovada, através da resolução do STF, a total discordância dessa posição com a legislação brasileira. Como será visto mais adiante, Kelsen (1928) propõe um controle da ação do chefe do Executivo quando este ameaça o devido seguimento da Constituição.


Lula, embora tivesse uma opinião pessoal formada, encontrava-se em um impasse político: optando por acatar a decisão do STF, gerava um mal-estar com seu Ministro da Justiça Tarso Genro; além de desagradar toda uma ala de velhos companheiros de esquerda que identificam na situação de Cesare Battisti as perseguições que sofreram durante a ditadura no Brasil. Por outro lado, caso decidisse pela não-extradição, estaria contrariando o órgão judiciário máximo do país e provocaria uma indisposição com a Itália. Talvez pensando nos efeitos que sua decisão poderia ter para seu governo, o ex-presidente só deu seu parecer oficial no último dia de sua gestão, escolhendo não extraditar o italiano.


Uma vez que a determinação do Pretório Excelso fosse de que o Presidente deveria seguir o que estava disposto no Tratado, Lula procurou um fundamento legal, por mais forçado que este seja, para corroborar sua resolução. Buscou fulcro no artigo III, § 1º, alínea f, que segue:


“Artigo 3º. Casos de Recusa da Extradição


1. A Extradição não será concedida:


f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados.”


Parece-nos que a recusa do Presidente é preenchida de posicionamento ideológico. Esqueceu-se Lula de levar em consideração a negativa do STF, em exercício pleno de sua competência conferida pelo já referido § 2º do art. 76 da Lei 6.815/80, em classificar os crimes de Battisti como políticos. Na ocasião, o ex-presidente preferiu continuar numa luta já sem causa, uma vez que os governos de ambos os países envolvidos no caso em tela são democráticos. Não estamos tentando diminuir aqueles que combateram a ditadura brasileira – esse não é, de modo algum, o foco deste artigo – mas apenas buscamos enxergar o que guiou as atitudes presidenciais. Seria hipocrisia afirmar que o verdadeiro motivo para querer Battisti no Brasil não passa de uma identidade de ideologias. O fato é que


“o STF decidiu o caso, num acórdão de 686 páginas, deixando evidenciados todos os pontos de dúvida sobre (a) natureza do crime e validade do processo italiano; (b) ilegalidade do ato de concessão de refúgio outorgado pelo Ministro da Justiça e (c) parâmetros para a decisão que deveria tomar o Presidente da República.” (Caso Battisti: afinal, o que decidiu o STF?. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2779, 9 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18455>. Acesso em: 4 jul. 2011)


Sendo assim, não cabia ao Presidente fazer análise sobre a natureza dos crimes pelos quais Battisti fora condenado, bastaria se prender ao Tratado, ler este como Kelsen faria. Caso não se deixasse levar por juízos de valores subjetivos e por uma moralidade histórica ultrapassada, Lula fosse mais fiel às leis brasileiras; promoveria a verdadeira segurança jurídica – pautada na obediência à norma, à luz da doutrina kelseniana – e não fizesse o Brasil se indispor na comunidade internacional, ao se utilizar de uma interpretação corrompida do art. 3º, § 1º, alínea f para não obedecer a um tratado firmado democraticamente entre dois Estados soberanos.


4.3. O segundo julgamento do STF e soltura de Battisti


Inconformado com o resultado final do processo, o governo italiano interpôs recurso, a fim de reformar a decisão do Presidente da República. Nesse novo julgamento, ocorrido em junho de 2011, o entendimento da Suprema Corte brasileira é de que o ato do presidente não é senão um ato de soberania, não tendo o Estado italiano competência legal para questionar uma decisão do chefe do Executivo brasileiro. Na oportunidade, também foi deferida a soltura imediata do ex-ativista.


As ações do STF podem, à primeira vista, parecer contraditórias: no primeiro julgamento, decidiu-se pela extradição do italiano; no segundo, mantém-se o entendimento do presidente de não extraditar. Contudo, em ambas as situações, o órgão judiciário máximo do Brasil agiu em conformidade com a lei. O certo é que a resolução do presidente, embora não seja leal ao tratado de extradição, constitui um ato puro de soberania (ato político), não sendo passível de judicialização. Além disso, a soltura de Battisti era completamente devida; pois, uma vez findo o processo de extradição, não havia que se manter o italiano preso, posto que seu encarceramento se dava na forma dos artigos 80 e 83 da Lei 6.815/80. Estes versam sobre o instituto da prisão preventiva do extraditando, que deve perdurar durante todo o processo extradicional, se extinguindo com o final dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.


Aceitar recurso italiano seria uma afronta à soberania brasileira e ao princípio da não interferência em assuntos internos. O processo extradicional não se trata de litígio entre dois países, mas sim de uma relação internacional, na qual ambos os países devem agir de forma soberana. Portanto, o STF decidiu, embasando-se em fundamentos jurídicos (e não em ideologias e doutrinas), pela manutenção da decisão monocrática.


Mais uma vez, afirmamos que o grande erro cometido durante a Extradição 1.085 foi delegar ao presidente a palavra final. O STF não poderia ter cometido esse deslize, pela conservação da segurança jurídica.


5. Considerações finais


O pano de fundo utilizado neste artigo foi o controle de constitucionalidade desenvolvido pelo STF durante o processo de extradição de Battisti. Para tanto, fez-se mister olhar para o caso através da lente kelseniana, uma vez que é patente a influência que o trabalho do jurista austríaco teve na construção do modelo brasileiro de controle constitucional.


Kelsen (1928) lançou as bases para a criação de uma Corte Constitucional, um órgão judicial interpretado pelo autor como único competente para controlar os poderes Executivo e Legislativo. Para ele,


“a criação de uma instituição controladora da conformidade à Constituição de certos atos do Estado não deveria ser confiada a um dos órgãos cujos atos devam ser controlados. Kelsen entendia que o soberano do Estado não poderia ser o guardião da Constituição, porque os atos do próprio presidente, enquanto membro do executivo, também deveriam ser controlados. Kelsen defendia que o guardião da Constituição deveria ser um tribunal independente dos poderes executivo e legislativo.” (Hans Kelsen: breve incursão biográfica e literária. Âmbito Jurídico. Disponível em < http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/8639.pdf> Acesso em: 4 jul. 2011.) (grifo)


O que se percebe é que o Tribunal Constitucional kelseniano extrapola o âmbito jurídico, pois não se prende ao caso concreto. Ele serve como um poder “legislativo negativo” que, ao analisar a validade das leis ordinárias em face da Constituição sem vincular-se a um caso concreto, faz uma produção de normas às avessas.


No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, embora seja estritamente judicial, seria o órgão a exercer as funções do Tribunal Constitucional. Talvez nesse ponto resida a maior dificuldade que encontrou o Pretório Excelso durante o julgamento do caso Battisti: como um órgão jurídico pode julgar uma questão essencialmente política? Foi essa a questão que gerou tanta controvérsia durante a Extradição 1.085, e que deve incitar dúvidas também nos outros casos extradicionais. Provavelmente, foi a partir dela que surgiu o impasse dentro do STF sobre que tipo de ação deveria ter o presidente ao fim do caso.


Para o caso em tela, foi visto que se optou por delegar a palavra final ao presidente, que fez uma valoração subjetiva do caso, provocando um choque direto com a letra da Lei 6.815/80 e com o Tratado de Extradição; ou seja, interferências ideológicas foram obstáculo para se alcançar o devido entendimento da norma.


Em virtude disso, atualmente, Cesare Battisti está livre, ganhou permissão do governo para trabalhar e viver no Brasil pelo tempo que quiser e tem todos os direitos dos cidadãos brasileiros, fazendo jus a programas assistenciais (em caso de precariedade financeira) e podendo aposentar-se aos 65 anos. A lei não explica.


 


Referências bibliográficas

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Acórdão sobre Battisti será publicado nesta sexta. Consultor Jurídico. 15/04/2010. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2010-abr-15>. Acesso em: 5 jul. 2011.


Notas:

[1] Em seu livro “Minha fuga sem fim” (2007), Cesare Battisti afirma que saiu do grupo após o primeiro assassinato, sendo este o fato motivador de sua saída. Battisti relata que os assassinatos geraram uma divisão do grupo, levando também outros integrantes a deixá-lo no momento em que esse passou para a luta armada. (Extradição: o caso Cesare Battisti. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2895, 5 jun. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/19261>. Acesso em: 26 jun. 2011).


Informações Sobre os Autores

Luan de Araújo Brito

Sávio Ribeiro


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