Da cominação das astreintes em face do poder público em ação civil pública ambiental


Sumário


1. Introdução. 2. Considerações sobre o tema. 3. Dos princípios constitucionais. 3.1. Do devido processo legal. 3.2. Do acesso à Justiça. 3.3. Da isonomia. 4. Da efetividade processual frente aos princípios constitucionais.  5. Conclusão.  6. Bibliografia.


1. Introdução.


O implemento e o incremento da industrialização conjugados com o surgimento de inúmeras e novas necessidades sociais, forjaram a evolução da tecnologia, a fim de atender a pujante demanda consumerista, signo da sociedade hodierna.


Os avanços tecnológicos acabaram por agredir o meio ambiente, seja pela ocupação indiscriminada do solo urbano, seja em razão do uso indiscriminado dos recursos naturais, como, v.g., o desmatamento para instalação de indústrias e atividades agrícolas, a emissão de efluentes em rios e mananciais.


Várias atividades econômicas desenvolvidas pelo particular e até mesmo a atuação do Estado, para atender as necessidades da coletividade, causam a degradação e a poluição do meio ambiente e, por conseguinte, da qualidade de vida, pondo em risco, e, em alguns casos, até extinguindo, espécies animais e vegetais.


A simples expansão de uma cidade ou o desenvolvimento de uma atividade econômica sem prévio planejamento induz à degradação e poluição ambiental. Basta recordar os efeitos nocivos produzidos pelo complexo industrial da Cidade de Cubatão, no litoral paulista.


Da constatação de que a evolução tecnológica desordenada causa conflitos e prejuízos, diretos e indiretos, à própria sociedade, inferiu-se pela necessidade de se engendrar um sistema normativo que conferisse efetiva proteção a um bem de tal magnitude, como o meio ambiente. Para tanto, promulgou-se, em 1981, a lei 6938.


Esse diploma traça a linha principiológica de proteção do meio ambiente, conceituando o que se deva entender por poluição e degradação, estabelecendo, como um dos objetivos dessa política protetiva, a compatibilização entre o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente, subordinando o implemento e desenvolvimento de atividades potencialmente poluidoras ao prévio licenciamento ambiental. Enfim, o arcabouço legislativo prescreve um conjunto de medidas direcionadas à precaução e prevenção de dano ambiental.


Para instrumentalizar a proteção ao bem ambiental, categorizado como transindividual, aí entendido como um interesse titularizados pela coletividade, promulga-se a lei 7347/85, apelidada de lei da ação civil pública.  Contudo, os mecanismos incorporados por esse diploma não tinham aplicação prática, pois a lei 7347/85 foi idealizada para a defesa de direitos cujos titulares não eram delineados pelo sistema jurídico pátrio, do que sucedia a impossibilidade de se conhecer, por exemplo, a abrangência subjetiva da coisa julgada, dentre outros aspectos processuais.


Só com a edição da Lei 8078/90, em que são conceituados os interesses transindividuais, explicitados os respectivos titulares e disciplinado o alcance subjetivo da eficácia da sentença, dentre outras matérias correlatas, é que a Lei 7347/85 ganha eficácia e, principalmente, amplitude, porquanto, interagindo com as disposições do Código de Defesa do Consumidor, forma um único sistema normativo repressivo e preventivo de danos a direitos metaindividuais.


Dentre os vários instrumentos processuais enunciados pela lei 7347/85 para a tutela do meio ambiente, analisaremos a multa coercitiva, denominada astreinte, sob o ponto de vista de sua incidência na hipótese de o Estado figurar como réu. Para tanto, analisaremos alguns princípios constitucionais como o devido processo legal, o acesso à justiça e a isonomia.


2. Considerações sobre o tema.


Selecionamos esse tema em razão de a Constituição Federal de 1988 ter adotado, em seu artigo 2º, a forma descentralizada do exercício do poder, distribuindo as funções estatais estruturais a órgãos independentes entre si, o que quer significar que, em linha de princípio, não poderia um órgão – o Judiciário – impor a outro – o Executivo – a obrigação de fazer isto ou aquilo, nem cominar multa para a hipótese de inadimplemento ou retardo.


Dissemos “em linha de princípio” porquanto, como se verá a seguir, nem sempre a imposição desta ou daquela conduta fere o pacto federativo, máxime se atentarmos para a circunstância de que a própria Carta Política estabelece, em seu artigo 1º, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado de Direito, erigindo, em seu artigo 37, o princípio da legalidade como um dos vetores a que está sujeita a Administração.


Para desenvolvermos o tema proposto, pensemos na hipótese de o ente público pretender realizar uma obra em via pública. Como é cediço, toda obra causa um impacto ambiental negativo e o RIMA – Relatório de Impacto Ambiental – tem por objetivo explicitar medidas que minimizem esse impacto.


Na hipótese de o administrador não cumprir as exigências do RIMA, entendemos ser perfeitamente possível ao Judiciário impor a obrigação de fazer e cominar, inclusive, a multa coercitiva prevista no artigo 11, in fine, da lei 7347/85, para a hipótese de descumprimento do comando judicial.


Nosso entendimento tem por arrimo os princípios constitucionais do devido processo legal, do acesso à justiça e o da isonomia.


3. Dos princípios constitucionais do devido processo legal, do acesso à justiça e da isonomia.


3.1. Do devido processo legal.


A Constituição Federal de 1988 sufragou um rol de direitos, erigidos como fundamentais. Para assegurá-los, e por que a jurisdição é atividade monopolizada pelo Estado, consagrou o direito de provocar a atividade jurisdicional para tutelar um direito ameaçado ou lesado. Destinatários do comando constitucional são o particular e o Poder Público, porque sendo a República Federativa do Brasil um Estado de Direito, deve o Estado submeter-se aos ditames da lei. Portanto, se lesar um direito, sujeitar-se-á à respectiva reparação, na forma da lei.


O direito à jurisdição, tratado no inciso LVI, do artigo 5º, da Magna Carta, é informado por um outro princípio constitucional, o do devido processo legal, segundo qual o exercício do direito de ação deve atender aos regramentos prefixados em lei, in verbis:


LVI – Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”


Como todo princípio constitucional, o do devido processo legal vincula o legislador e o aplicador do direito, na medida em que nosso sistema é hierarquizado, daí que “(…) a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-la. O poder legislativo, com os outros poderes, lhes são subalternos, tendo as suas fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas normas.” [1]


Destarte, o princípio do devido processo legal vincula o julgador, pois (…) a justa composição da lide só pode ser alcançada quando prestada a tutela jurisdicional dentro das normas processuais traçadas pelo Direito Processual Civil, das quais não é dado ao juiz declinar perante nenhuma causa. (…) É no conjunto dessas normas do Direito Processual que se consagram os princípios informativos que inspiram o processo moderno e que propiciam às partes a plena defesa de seus interesses e ao juiz os instrumentos necessários para a busca da verdade real, sem lesão aos direitos individuais dos litigantes”. [2]


Extrai-se das lições doutrinárias, que mens legis é garantir ao indivíduo que o Estado-juiz, ao compor o conflito, profira uma decisão fundada nas normas de direito material e procedimental aplicáveis à fattispecie. Com isso, coibi-se a prática de atos abusivos, julgamentos calcados no subjetivismo judicial, ajuizamento de demandas temerárias ou fraudulentas, enfim, previne-se a lesão a outros direitos constitucionalmente assegurados.


Em suma, podemos afirmar que o conteúdo substancial do princípio constitucional do devido processo legal é garantir a liberdade, a vida e a propriedade. Dessa forma, ninguém será privado de qualquer direito sem a observância de regras legais produzidas anteriormente ao conflito, e, ainda que a decisão judicial seja pela perda ou restrição de direitos, fica o Estado-juiz obrigado a oportunizar o contraditório e o exercício da ampla defesa com os meios e os instrumentos previstos nas legislações processuais aplicáveis à fattispecie.


3.2. Do acesso à justiça.


Reza o inciso XXXV, do artigo 5º da Carta Política, in:


XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos.


Como dissemos, todo e qualquer princípio constitucional vincula o legislador infraconstitucional, o intérprete e o aplicador do direito, como resultado direto da constitucionalização de um direito ou de um princípio.


O Prof. Gomes Canotilho[3] preleciona que a incorporação de direitos no ordenamento jurídico por meio do texto constitucional, relaciona-se, em última instância, ao próprio substrato e manutenção do Estado de Direito. Por tal razão o direito de ação, ou do acesso à justiça, é de sublime relevância para o Estado de Direito, por garantir a postulação, perante os tribunais, da proteção jurídica contra atos ilegais ou abusivos praticados pelo próprio Poder Público ou por outro particular.


Numa palavra, ao garantir o direito de acesso à justiça, a Constituição Federal impõe ao julgador, desde que presentes os requisitos legais, o dever de dirimir o conflito balizado pelo comando abstrato da lei. Isso se faz por meio de um instrumento apto ao desenvolvimento da atividade estatal de pacificar os conflitos intersubjetivos, qual seja, o processo.


O desiderato da Carta Política, ao garantir o direito de ação, é o de assegurar à pessoa o direito subjetivo de obter dos tribunais a apreciação de uma postulação, mesmo que o resultado seja desfavorável.  Ou seja, o direito de ação outra coisa não é senão o direito de obter uma resposta do Estado quanto a uma pretensão.


O sufrágio do princípio do acesso à justiça resulta da vedação à autotutela dos conflitos. Com efeito, quando um fato social resultar em confronto entre as prerrogativas de dois indivíduos, dando origem a um conflito intersubjetivo de interesses, devem os contentores buscar a tutela estatal para dirimir o conflito, sendo-lhes vedada a autotutela. Em contrapartida a essa vedação, ascende para o Estado-juiz, quando instado, o dever de solucionar a lide, gizando a atividade jurisdicional ao princípio do acesso à justiça, o qual deve ser interpretado segundo a doutrina do Estado social.


Essa doutrina se contrapõe ao dogma liberal. Com efeito, sob o influxo do liberalismo, o Estado desempenhava sua atividade de maneira a prestigiar o individualismo, ou seja, com a menor ingerência possível, deixando que partes conduzissem o desenvolvimento processual de acordo com seus próprios interesses. Isto significava que o juiz só agia quando provocado.


O sistema positivista não outorgava ao julgador a possibilidade de cominar sanções senão as expressamente requeridas pelos litigantes. Nesse contexto, o princípio do acesso à justiça tinha uma conotação formal, como bem elucida o Prof. Mauro Cappelletti o ‘Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. (..) O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática. [4]


Todavia, ao contrário do que pregava o credo liberal do quanto menos política mais liberdade, as necessidades mais elementares da pessoa não eram atendidas por conta do expansionismo econômico advindo da Revolução Industrial, o que exigiu, por conseqüência, maior intervenção do Estado para garantir as condições mínimas de sobrevivência dos hipossuficientes.  Advém daí, especialmente após o término da 1º Guerra Mundial, a mudança das velhas estruturas do Estado Liberal passando ao Estado Social.


A alteração de filosofia, como não poderia deixar de ser, repercutiu na atuação jurisdicional, atribuindo-se ao instrumento da jurisdição – o processo – a tarefa de ser um meio efetivo e não apenas formal para a solução dos conflitos.


Essa nova ordem carreou ao Estado a tarefa de conceber instrumentos aptos a garantir, de modo efetivo, os direitos fundamentais contra abusos oriundos de outros grupos sociais ou dos próprios agentes do poder estatal. Radicou-se a idéia de que o processo deve ser efetivo, ou seja, insta perquirir sobre o resultado pragmático da atividade jurisdicional, pois de nada adianta a atuação do órgão judicante para dizer o direito se não for possível ao vencedor da demanda gozar, no mundo fático, o bem da vida que lhe foi reconhecido pela ordem jurídica.


Daí o entrelaçamento entre a efetividade e o princípio constitucional do acesso à justiça, notadamente porque a participação do julgador na dinâmica processual atuará para melhor desempenho a função política, pois, embora a função do juiz seja proeminentemente jurisdicional, também resvala para o aspecto político, na medida em que ao interpretar e dar corpo à vontade abstrato da lei estará, em última análise, fazendo valer a vontade popular, fruto de democracia. Portanto, parece razoável sustentar que o juiz assuma um papel mais ativo, no sentido de impor as medidas que se fizerem necessárias para a efetiva e eficaz solução da lide, sem, evidentemente, olvidar os princípios da imparcialidade e da preservação dos direitos fundamentais.  


Calmon de Passos, examinando a função do julgador, preleciona que “(…) Seu dever, por conseguinte, é dever funcional e dever político, o de cumprir com exação o seu ofício e o de realizar o direito que o Estado-legislador editou, com vistas a obter o que se tem como o desejável em termos de convivência social..” [5] Portanto, conquanto seja elementar o dever de observar as regras processuais, deve o Estado-juiz desempenhar um papel mais ativo, face a atual exigência conceptual da função processual, que é a busca da verdade para efetividade na solução da lide. 


3.3. Da isonomia.


O princípio da isonomia comporta vários enfoques: filosófico, político, jurídico, social.


No campo filosófico, a noção de igualdade nem sempre é inerente a de Justiça.


Bernard Shaw, por exemplo, diz que o justo é a distribuição igualitária das riquezas entre todos os cidadãos sem nenhuma distinção. Ele entende como justo o tratamento de igualdade dispensado a todo ser humano. O justo seria distribuir na mesma quantidade os direitos. Na visão aristotélica, a igualdade reflete justiça quando há isonomia de tratamento sob o aspecto substancial – tratar os desiguais desigualmente. John Rawls, em sua teoria da justiça, diz que a liberdade, a riqueza, as oportunidades, devem ser distribuídas igualmente entre todos, exceto se houver justificativa para um tratamento desigual. Chaim Perelmam, estudando o tema, concluiu que todos os seres essencialmente semelhantes devem ser tratados da mesma forma, entretanto, na aferição da similitude essencial dos seres e das situações, há que se verificar quais as diferenças que devem ser consideradas e quais podem ser desconsideradas. Assim na fórmula por ele criada: a cada qual segundo o que a lei lhe atribui – quer dizer, que a lei deve fornecer os critérios que convêm ser considerados, pois insta tratar igualmente todos aqueles entre os quais a lei não faz distinção.


As posições filosóficas colacionadas induzem à conclusão de que existem situações justificadoras de um tratamento desigual, portanto, a igualdade não é um valor que se impõe em todos os casos.


O entendimento do que seja tratamento igual vem sofrendo mutações ao longo da historia. Ao tempo da Revolução Francesa, o sentido de igualdade de todos perante a lei traduzia o desejo de abolir os privilégios decorrentes da origem social. No séc. XIX, a igualdade dos direitos era garantida apenas aos proprietários e a igualdade política só era garantida aos cidadãos adultos e varões, contanto que pagassem um mínimo de impostos. Então, como forma adversativa dessa discriminação, surge a doutrina da IGUALDADE DE TODOS PERANTE A LEI.


Contudo, no decorrer dos tempos, aquela visão do que seria igualdade acabou por gerar situações injustas, porque a política liberal privilegiava a autonomia da vontade, o que acabava por conduzir o mais fraco à opressão do mais forte, já que este impunha suas regras. Exemplo disso eram os contratos trabalhistas, em que os salários e condições eram impostos pelo empregador sem qualquer possibilidade de discussão.


Tudo isso levou a uma releitura do princípio da igualdade, na medida em que sua aplicação levada às últimas conseqüências traduzia em injustiça e opressão.


Hodiernamente, o princípio da igualdade tem por premissa minimizar a desigualdade entre os membros de uma mesma sociedade. Na nova ideologia, afere-se a justiça de uma discriminação legal examinando-se os motivos que levaram o legislador a desigualar. Com essa metodologia é possível garantir a imparcialidade dos agentes do poder e prevenir a produção de leis injustas e arbitrárias que possam adotar discriminações injustificadas.


Sob a perspectiva constitucional, o Prof. Gomes Canotilho destaca que o princípio da igualdade é um dos princípios que estruturam os direitos fundamentais. Para ele a expressão todos são iguais perante a lei significa igualdade na aplicação do direito, ou seja, a aplicação da lei deve ser igual a todos, porquanto a própria lei deve tratar por igual todos os cidadãos.


Destarte, a função legiferante está adstrita a produzir normas que tratem de modo igual todos os que estejam na mesma situação ou que tenham as mesmas características. E verificará essa similitude examinando os contornos do princípio da igualdade em sentido substancial, pois, caso contrário, a lei servirá como veículo de situações iníquas. Daí o aforismo “tratar por igual o que é igual e desigual o que é desigual”.


O princípio da isonomia norteia o legislador a fim de que não estabeleça distinção entre as pessoas sem qualquer critério justificável. Embora o legislador possa distinguir, deve fazê-lo com critério, pois isso traduz a própria essência do princípio igualizador. Em razão de as situações serem naturalmente diferentes, cabendo à lei corrigir esses desequilíbrios. Numa palavra, a função do princípio da isonomia não é criar desigualdades, mas corrigir as existentes, criando meios de proteção aos mais vulneráveis.


Em suma, a isonomia, como um princípio constitucional, é limite negativo dirigido ao próprio poder púbico, e uma garantia de que a pessoa não seja injustificadamente discriminada.


4. Da efetividade processual frente aos princípios constitucionais.


Tem-se falado muito da efetividade das decisões judiciais, entrelaçando-a com o princípio do acesso à justiça. Esse princípio constitucional não contém apenas a garantia de acesso aos tribunais para proteção jurídica a um direito, mas um dever de o Estado criar condições e instrumentos aptos a conferir efetividade à tutela, sob pena de restar negada a garantia constitucional de acesso à justiça, pois o direito ao acesso também significa direito a prestação jurisdicional adequada e eficiente.


De nada adianta a atuação do órgão judicante para dizer o direito, se não for possível ao vencedor gozar na esfera do mundo fático o bem da vida que lhe foi reconhecido pela ordem jurídica.


Nesse contexto, o processo nada mais é do que um instrumento que deva ser apto à realização da tutela jurisdicional não apenas no mundo formal, abstrato. Deve, isto sim, ser veículo concretizador da finalidade última da jurisdição, qual seja, a de tutelar efetivamente um direito. Não basta a proteção formal. O direito sob ameaça ou já lesado demanda pronta tutela, seja para obstar a iminente lesão, seja para impedir seu total perecimento.


É certo que a solução do conflito deve ser pautada no direito positivado com a observância dos direitos fundamentais constitucionalizados, mas isso não significa aplicar a norma de modo rígido e absoluto, sob pena de desfigurar o próprio direito. Por isso e para contornar o binômio efetividade/morosidade, o legislador defere ao julgador a possibilidade de conceder medidas que mantenham a incolumidade do direito sem, noutro passo, descurar do devido processo legal.


Nesse diapasão e entendida a instrumentalidade do processo, engendrou-se um subsistema processual adaptado para tutelar certa categoria de direitos, como o ambiental, cujas especificidades não se compatibilizam com a ideologia individualista designada na lei adjetiva civil de 1973. Um dos mecanismos incorporados no novel sistema jurídico processual é a multa coercitiva, preconizada no artigo 11 e §2º, do artigo 12, da Lei 7347/85 e no § 4º, do artigo 84, da Lei 8078/90.


Duas características desse mecanismo denotam o rompimento com a tradição jurídica.


A primeira, é que a multa poderá ser cominada independentemente de pedido da parte, incidindo até que a obrigação seja cumprida na forma determinada no comando emergente da sentença. A atuação judicial ex officio denota uma visão não-privatística e não-formalista do processo, o que consubstancia o rompimento.


É não-privatística, porquanto, ao alargar as hipóteses de atuação judicial de ofício, a lei partiu da premissa de que o interesse na solução da lide não se adstringe apenas aos litigantes, ou seja, a tutela jurisdicional efetiva interessa a coletividade, como elemento garantidor da manutenção da paz social, matéria de primeira plana para a subsistência do próprio Estado. É não-formalista, pois outorgar ao Estado-juiz a faculdade de cominar de ofício a multa coercitiva, encerra uma nova perspectiva quanto à instrumentalidade do processo para a efetiva solução da lide, e quanto ao papel integrado e ativo do julgador na relação processual.


A segunda característica do mecanismo em comento, e que também reflete o rompimento com a tradição, é a de assegurar ao vencedor a possibilidade de receber o direito in natura. Com efeito, a teoria das obrigações no sistema privado de 1916, influenciado pelo liberalismo patrimonialista, está assentada na premissa de que o devedor deve arcar com as perdas e danos decorrentes do inadimplemento. Partia-se da premissa de que a pecúnia atendia satisfatoriamente à parte inocente.


Contudo, esse veio patrimonialista, ainda vigente na Lei Substantiva em vigor, mesmo que com temperamentos, não se coaduna com o papel instrumental que o processo civil deve desempenhar, notadamente quando a tutela tiver por objeto direitos transindividuais ambientais.  Isto porque, a tutela desses bens não se compatibiliza com a indenização. A preservação da vida humana, entendida de modo holístico, não se compraz com a pecúnia, daí se mister manter o equilíbrio da natureza, pois é dela que o homem extrai os meios necessários para sua preservação.


Nessa linha, o legislador criou mecanismos que garantam concretude ao comando constitucional de preservação do meio ambiente. Um desses mecanismos é a multa, egressa do direito francês, como medida de coerção, ou seja, com o fito de constranger o devedor a cumprir a obrigação.


A multa coercitiva desempenha papel preventivo e repressivo de dano. Preventivo, por incidir apenas na hipótese de o devedor não cumprir espontaneamente o comando emergente da sentença. Repressivo, por influir na esfera psicológica do devedor, pois terá de arcar com o pagamento da multa e cumprir a obrigação.


Oportuno destacar que a cominação de ofício não fere o princípio da adstrição, em razão de a multa ter caráter coercitivo e não ressarcitório, ou seja, sua finalidade não é indenizar a parte inocente em razão do inadimplemento, mas conferir efetividade à decisão judicial. Daí que a exigência da multa coercitiva não exime o devedor de cumprir a obrigação, tampouco prejudica a possibilidade de o autor requer ao juiz a condenação do devedor ao pagamento da multa cominatória.


Por derradeiro, cabe destacar que pela dicção do artigo 84, da Lei 8078/90 e do artigo 11, da Lei 7347/85, deflui-se que o legislador não adotou o critério subjetivo para a incidência da multa, de maneira que toda pessoa, natural ou jurídica, de direito privado ou público, sujeitar-se-á ao comando da lei nas hipóteses por ela elencadas.


5 –  Conclusão


Examinados os princípios constitucionais do devido processo legal, do acesso à justiça e da isonomia, concluímos ser perfeitamente possível impor a multa coercitiva ao Estado, como maneira de não vulnerar o substrato do Estado de Direito e dos princípios constitucionais enfocados neste trabalho.


A cominação da multa coercitiva ao devedor recalcitrante não é uma faculdade judicial, mas um dever. A posição do julgador na dinâmica processual não é meramente de um aplicador da lei, retrata também uma função política. Portanto, se a lei prevê a cominação da multa coercitiva como mecanismo garantidor da efetividade na tutela de um direito, e, se o julgador entender que a aplicação da multa é compatível com a obrigação e apta a evitar o perecimento do bem, deve cominá-la, ainda que o devedor seja o próprio Estado.


Se a lei 7347/85 não faz qualquer restrição subjetiva, não cabe ao julgador fazê-lo, relembrando-se que a apenas o legislador pode restringir direitos. Destarte, o fato de o devedor ser o ente público, em nada obsta a aplicação da lei.


A jurisprudência segue pela legalidade e constitucionalidade da cominação das astreintes em face do Poder Público, trazendo como fundamento o princípio da isonomia, in:


 “A imposição de multa cominatória tem supedâneo no art. 461, § 4º do CPC, o qual não exclui as Fazendas Públicas. Como vivemos num Estado de Direito, justo que ela se submeta às normas que cria, pelo que deve se sujeitar à multa cominatória. Os privilégios de que goza o estado e que às vezes, realmente, se reconhece necessário, não se alojam no capítulo das execuções das obrigações de fazer, mas no das execuções por quantia certa. Ademais, os privilégios da fazenda hão de estar expressos em lei, para serem deferidos, o que não ocorre na espécie.”


(TJSP, 9ª Câm. de Direito Público, no AI 56.937-5/3, relator Des. Rui Cascaldi)


Nota-se que a posição jurisprudencial cristaliza fielmente a vontade do legislador, mormente no que tange à isonomia, direito fundamental retratado no caput, e inciso I, do artigo 5º, da Carta Federal.


Se a aplicação da lei deve ser igual para todos e se o princípio isonômico garante igualdade de tratamento a dois entes que estejam em paridade de condições, à evidência que a multa coercitiva deve alcançar o poder público. Quem poderia isentá-lo seria a lei, desde que o fizesse de modo expresso e apresentasse justificativa para tanto. Esta é a própria essência do princípio igualizador.


Por tais razões, entendemos que a imposição pelo Judiciário da obrigação de fazer ao Executivo, não viola o princípio da separação dos poderes.


Se é certo dizer que a discricionariedade consubstancia a possibilidade de o administrador eleger uma dentre várias possibilidades que melhor atenda ao interesse púbico, não menos certo é afirmar que essa atuação só será discricionária se for facultada pela lei. Portanto, não se pode confundir discricionariedade com legalidade. O Judiciário não pode ingressar no mérito dos atos administrativos, ou seja, valorar a escolha feita pelo administrador, mas deve examinar se a prática desse ou daquele ato administrativo observou os ditames da lei. É por isso que no tema proposto, é legal e constitucional a cominação da multa coercitiva, a fim de obrigar o Executivo a cumprir a lei.


Nesse diapasão, deixar de cominar a multa apenas em razão de o devedor ser a Fazenda, vulnera não apenas a lei infraconstitucional, mas o princípio constitucional da isonomia e, notadamente, o da legalidade, porquanto cumprir a lei é tarefa primária e vinculada do administrador, de maneira que a determinação judicial não está violando a discricionariedade. 


Sumariando, se o princípio do devido processo legal não admite exceção, se o acesso à justiça deve ser entendido como a tutela efetiva com a aplicação da lei igual para todos, resulta que a multa coercitiva deve alcançar a Fazenda sempre que se fizer mister, inexistindo qualquer justificativa jurídica para isentá-la.  Eximir o Estado da multa apenas em razão de sua condição jurídica, seria o mesmo que fazer distinção que a lei não fez, ofendendo a própria essência do princípio igualizador, e, por via reflexa, o Estado de Direito.


6 – Bibliografia


BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. 22ª ed., Editora Saraiva.


BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. A TEORIA DAS CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS.  Ed. José Bushatsky.


BobbiO, Norberto.  A Era dos Direitos.  São Paulo: Campus, 15ª tiragem.


Calmon de Passos José Joaquim. Digesto de Processo, Vol. I, Ed. Forense.


Cappelletti, Mauro. Acesso à Justiça. Sergio Antonio Fabris Editor.


Elias Rosa, Márcio Fernando. Direito Administrativo. 4ª ed., São Paulo: Saraiva.


FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 3ª ed. Editora Saraiva.


Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina.


Nery Junior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6ª ed., Editora RT.


MANCUSO, Rodolfo de Camargo – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Em defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores 8ª ed. Editora RT.


Nigro Mazzilli, Hugo. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13ª ed., Saraiva.


Perelman, Chaim. Ética e Direito. Editora Martins Fontes, 2000.


RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Editora Martins Fontes, 2000.


Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., Editora Malheiros.


THEODORO JUNIOR, Humberto. Sentença – Direito Processual Ao Vivo – A Sentença E Seus Efeitos – Evolução Legislativa E Jurisprudencial. Vol. I.



Notas:


[1] Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. A TEORIA DAS CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS p. 63




[2] Humberto Theodoro JuniorSENTENÇA – DIREITO PROCESSUAL AO VIVO – A SENTENÇA E SEUS EFEITOS – EVOLUÇÃO LEGISLATIVA E JURISPRUDENCIAL, Vol. I. pg.11

[3] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição’ p. 376




[4] Mauro Cappelletti, e Garth, Bryan, Acesso à Justiça, Trad. Ellen Gracie Northfleet,  p. 9




[5] José Joaquim Calmon de Passos. Digesto de Processo, Vol. I, Ed. Forense. p. 5.




Informações Sobre o Autor

Viviane Mandato Teixeira Ribeiro da Silva

Advogada, Mestre em Direito pela UNIMES, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP, Pós-graduanda em Direito Contratual pela PUC/SP


logo Âmbito Jurídico