A legitimação do ministério público para a propositura da ação civil de indignidade

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Resumo: O Direito, enquanto fato cultural, é criado pelo homem como um meio para a realização de valores como a moralidade e a justiça, fundamentais a uma sociedade. Objetivando o atendimento a esses princípios, o legislador estabeleceu no Código Civil o instituto da indignidade sucessória, visando à privação do herdeiro ou legatário do seu direito a suceder, caso pratiquem atos ofensivos contra a pessoa, a honra e os interesses do autor da herança ou de membros da sua família. Tal privação não é automática, pois há a necessidade do pronuniciamento da indignidade por sentença judicial que a declare. E, conforme o entendimento doutrinário, somente aqueles que têm interesse econômico na sucessão (herdeiro, legatário, credor) possuem legitimidade para ajuizar a ação civil de exclusão de indigno. O problema é que se alguém matar seus próprios pais, por exemplo, e inexista interessado na sucessão dos de cujus, ou mesmo existindo, ele permaneça inerte, o filho homicida aproveitar-se-á da herança ou legado deixado pelas vítimas, fato este que faz surgir o seguinte questionamento: é justo e moral que alguém se beneficie da própria torpeza? As linhas que se seguem têm por escopo expor as razões que tornam o Ministério Público, na sua condição de guardião da ordem jurídica, legitimado para intentar a referida ação.

Palavras-chaves: Direito das Sucessões. Indignidade. Legitimação. Ministério Público.

Abstract: The right (while cultural fact) is created by man as a means to the achievement of values like morality and justice, fundamental to society. In order to attend to these principles, the legislature established in the Civil Code the institute of unworthiness to inherit, to deprivation of the heir or legatee of his right to succeed, if they practice offensive acts against the person, honour and the interests of the author of inheritance or of members of his family. Such deprivation is not automatic, because there is the need of the pronouncement of the Court judgment which declares the unworthiness. And, as the understanding of the doctrine, only those who have economic interests in succession (the heir, legatee, creditor) have legitimacy to judge the civil action and declaring unworthy. The problem is that if someone kill their own parents, for example, and absence of interested in the succession of the deceased, or even exist, it remains inert, the homicidal son will take advantage of inheritance or legacy by victims, which gives rise to the following question: is it fair and moral that someone benefits from their own turpitude? The lines that follow expose the reasons that make the Public Ministry, in its condition of guardian of legal order, legitimized to bring this action.

Keywords: Law of Succession. Unworthiness. Legitimation. Public Ministry.

Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre o direito das sucessões. 1.1. Transmissão da herança. 1.2. Legitimação sucessória. 1.2.1. Convocação para suceder por força da lei ou do testamento. 1.2.2. Existência de herdeiro ou legatário à época da abertura da sucessão. 2. Exclusão do herdeiro por indignidade. 2.1. Causas de exclusão por indignidade. 2.2. Declaração jurídica da indignidade. 2.3. Efeitos da indignidade. 2.4. Reabilitação do indigno. 3. Ministério Público: noções gerais. 3.1. Breve relato histórico. 3.2. O Parquet ante a carta de 1988. 3.3. Formas de atuação. 4. Das razões que legitimam o MP a propor a ação de indignidade. 4.1. Da missão de guardião da ordem jurídica. 4.2. Da supremacia do interesse público sobre o privado. Conclusão.

INTRODUÇÃO

Sabe-se que o direito à herança é tutelado pela Constituição Federal Brasileira, art. 5º, XXX, mas isto desde que ocorra de forma natural e não por ocasião de um crime que tem como escopo a apropriação dos bens do de cujus.

Se o ato de tirar a vida de alguém já é uma conduta reprovável, praticá-lo contra um ente familiar é ainda mais repugnante, principalmente quando motivado pela herança da vítima.

Neste sentido, cumpre mencionar o célebre caso Suzane Louise Von Richthofen, que planejou e participou do homicídio dos seus próprios pais, Manfred e Marísia Von Richthofen, em outubro do ano de 2002.

Muito embora tenha ela perdido o direito à herança de seus pais, haja vista seu irmão Andreas Von Richthofen ter proposto a pertinente ação de exclusão, o mesmo, quando menor de idade, chegou a fazer um pedido de desistência do pleito, o qual foi negado, em virtude da intervenção do Ministério Público, que se manifestou contra sob a argumentação de que cabia ao tutor do menor Andreas zelar pelos interesses deste, os quais são indisponíveis.

Desse modo, facilmente conclui-se que caso o irmão de Suzane fosse, à época da dita ação, civilmente capaz, seu pedido poderia ter sido deferido pelo juiz competente, o que favoreceria a homicida com um patrimônio de milhões de reais. Isso seria justo?

Daí, prezado leitor, a relevância do tema escolhido, pois a incerteza da existência ou não de um interessado que exclua o herdeiro ou legatário desnaturado de seu direito de suceder, não pode continuar pairando sobre a nossa sociedade. Por isso, a defesa da legitimação do Parquet para intentar a ação de indignidade.

Assim, para a melhor compreensão dos argumentos que sustentam e justificam o objeto em estudo, buscar-se-á, inicialmente, a explanação, em linhas gerais, acerca do Direito das Sucessões, discorrendo sobre como ocorre a transmissão da herança e a respeito dos legitimados a suceder ao de cujus.

No mais, o presente trabalho discorrerá sobre a exclusão do sucessor por indignidade, com enfoque para as causas que a ensejam, bem como para os efeitos do seu reconhecimento judicial.

Por conseguinte, falar-se-á sobre o Ministério Público, de modo a expor suas funções e campos de atuação, bem como da sua posição ante a Constituição de 1988.

Finalmente, através de comparativos e interpretações, além de fundamentos doutrinários e Projeto de Lei, serão expostas as razões que sustentam o título deste trabalho.

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DAS SUCESSÕES

Sucessão, na acepção da palavra, em sentido amplo indica a transferência de um direito de uma pessoa, seja ela física ou jurídica, para outra. A relação jurídica inicialmente formada por determinados titulares passa, pela sucessão, a outros, de modo que subsiste o objeto original, mas substitui-se o sujeito na relação, inserindo-se um no lugar do outro.

Essa transferência pode verificar-se em vida (successio inter vivrros) ou em consequência da morte de um dos sujeitos da relação jurídica (successio causa mortis).

No presente trabalho, o vocábulo sucessão é empregado em sentido restrito aos casos de morte, a qual, além de extinguir a personalidade civil, ocasiona o desaparecimento de prerrogativas como a titularidade dos bens, fazendo surgir, assim, a necessidade de que outras pessoas venham e assumam o domínio deles, de modo a se recompor a ordem ou a estabilidade no patrimônio.

Nesse contexto, o Direito das Sucessões, também conhecido por Direito Hereditário, consiste, objetivamente, no conjunto das normas reguladoras da transmissão do acervo patrimonial de alguém que deixa de existir a seus sucessores.

E este patrimônio, com o nome de herança, representa os bens materiais, a universalidade de direitos, e o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico (excetuando as que tratem de direitos personalíssimos).

É, portanto, um somatório, em que se incluem os bens e as dívidas, os créditos e os débitos, os direitos e as obrigações, as pretensões e ações de que era titular o falecido, e as que contra ele foram propostas, desde que transmissíveis. Enfim, compreende o ativo e o passivo.

Convém, ademais, fazer a distinção entre herança e legado. Enquanto esta, como supramencionado, significa o patrimônio do finado, o legado, por sua vez, refere-se a um bem determinado.

Por isso que se considera o herdeiro como um sucessor a título universal (sucede na herança), e o legatário como o que recebe a título singular ou particular (recebe em testamento).

Deste modo, uma pessoa pode ser, ao mesmo tempo, herdeira e legatária, como por exemplo, um filho que recebe de seu pai uma fazenda por meio do testamento deste.

Frise-se que o herdeiro responde pelas dívidas e encargos da herança na proporção de sua quota hereditária. Ao passo que o legatário está isento dessa responsabilidade.

1.1 TRANSMISSÃO DA HERANÇA

O óbito de uma pessoa sinaliza o momento cronológico determinante da abertura da sucessão, oportunidade em que se opera a imediata e automática transmissão da herança do de cujus aos seus sucessores.

E mencionada transferência faz-se ipso jure, ou seja, por efeito direto da lei, sem qualquer outra formalidade, ainda que, no plano fático, os herdeiros ignorem o falecimento. Eis, portanto, o princípio da saisine, consagrado no art. 1.784 do Código Civil pátrio.

Ressalte-se que a abertura da sucessão não deve ser confundida com a abertura do inventário, o qual representa a formalização da sucessão, instaurado mediante a provocação do Poder Judiciário para legalizar a disponibilidade da herança e proceder à partilha desta entre os herdeiros; ou, nas hipóteses de admissibilidade de inventário extrajudicial, para a lavratura da escritura pública correspondente.

Conveniente discorrer, ainda, sobre a incidência da lei vigente quando da abertura da sucessão, pois é a legislação em vigor, na ocasião da morte, que deve ser aplicada, e não a vigente quando do inventário. É como determina o art. 1.787 do mencionado diploma legal.

1.2 LEGITIMAÇÃO SUCESSÓRIA

Para que um herdeiro possa habilitar-se a suceder ao de cujus, necessária é a constatação de sua legitimação sucessória, que consiste na aptidão específica do sucessor para receber a herança, devendo ser verificada no momento da abertura da sucessão (art. 1.787, CC), em conformidade com a legislação vigente.

Nesse sentido, para apurar tal legitimação, cumpre observar a ocorrência de 02 (dois) requisitos, a seguir elencados, que devem existir concomitantemente.

1.2.1 Convocação para suceder por força da lei ou do testamento

O direito a suceder deve decorrer da sucessão legítima (ab intestato), ou seja, da vontade exclusiva da legislação civil pátria; ou resultar da sucessão testamentária, isto é, quando alguém, independentemente da classificação de herdeiro ou não, é contemplado com bens mediante as disposições de última vontade feitas pelo autor da herança. Daí a distinção dos que herdeiros em legítimos ou testamentários.

O Código Civil promove a distribuição dos bens do de cujus consoante à seguinte ordem de vocação hereditária (art. 1.829): o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no de separação obrigatória de bens ou, ainda, se no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. Caso inexistam descendentes, a concorrência ocorre entre o cônjuge e os ascendentes do falecido. Não havendo ascendentes, o consorte supérstite herda sozinho. Inexistindo cônjuge sobrevivo, herdam os colaterais até o 4º (quarto) grau, o mais próximo em grau, excluindo o mais remoto.

No dizer de Pereira (2008), a validade da sucessão testamentária está subordinada às exigências legais quanto à forma prescrita e à observação dos requisitos subjetivos e objetivos, sem os quais é ineficaz. Assim, por exemplo, as pessoas que escrevem o testamento, bem como os respectivos cônjuges ou companheiros, ou seus descendentes e irmãos não podem ser contemplados (CC, art. 1.801, I).

Saliente-se que o nosso ordenamento jurídico permite que a sucessão seja, ao mesmo tempo, legítima e testamentária, como no caso do testamento não compreender todos os bens do testador (art. 1.788, CC), ou do testador só dispor da metade da herança, por ter herdeiros necessários (ascendentes, descendentes e cônjuge), arts. 1.789 e 1.845, CC. Desse modo, a sucessão legítima regulará a situação dos bens que não forem compreendidos no ato de última vontade, bem como resolverá sobre o que vai caber aos hedeiros necessários.

1.2.2 Existência de herdeiro ou legatário à época da abertura da sucessão

O chamado a suceder deve ter personalidade[1] ou ao menos estar concebido (nascituro) no momento da abertura da sucessão (art. 1.798, CC), visto que não se transmite a herança para pessoa inexistente, tampouco a já falecida[2], e sequer àquelas criadas ou imaginadas ficticiamente.

No mais, o sucessor precisa pertencer à espécie humana, dado que só o homem e as pessoas jurídicas (por causa dos homens) podem adquirir por mortis causa. Animais e coisas inanimadas, portanto, não têm legitimidade para suceder.

 À exceção da primeira regra, frise-se que é válida a disposição testamentária que contempla prole eventual de pessoas designadas e vivas ao tempo da morte do de cujus, bem como as pesoas jurídicas que se determinar a organização na forma de fundações. Em tais casos, a transmissão hereditária é condicional, de modo que a aquisição da herança subordina-se a evento futuro e incerto.

Por conseguinte, cumpre salientar que o ingresso do nascituro na relação dos sucessíveis está condicionado ao seu nascimento com vida, haja vista que não há personalidade civil a partir da concepção.

Com maestria explica (DINIZ, 2011, p. 62):

“A capacidade sucessória do nascituro (CC, art. 1.798) é excepcional, já que só sucederá se nascer com vida, havendo um estado de pendência da transmissão hereditária, recolhendo seu representante legal a herança sob condição resolutiva. O já concebido no momento da abertura da sucessão é chamado a suceder; adquire, em estado potencial, desde logo, o domínio e a posse da herança, como já se fosse nascido; porém, como lhe falta personalidade jurídica material (CC, art. 2º), nomeia-se-lhe um curador ao ventre. (…) Se nascer vivo, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir do falecimento do autor da herança (CC, art. 1.800, § 3º). Se nascer morto, será tido como se nunca tivesse existido, logo a sucessão será ineficaz. Se nascer com vida, ainda que sua mãe tenha falecido no trabalho de parto ou em acidente ou colapso, terá capacidade para suceder, embora não tenha com ela coexistido.”

Opurtuno discorrer que tal regra deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, segundo elucida o Enunciado n. 267 do Conselho Nacional de Justiça, aprovado na III Jornada de Direito Civil, haja vista a regra constitucional da absoluta igualdade de direitos entre filhos.

Desta maneira, ainda consoante as palavras de Diniz (2011), se, ao tempo da abertura da sucessão do de cujus já existia embrião crioconservado, gerado com material germinativo do falecido, terá capacidade para suceder, se, implantado num útero, vier a nascer com vida e, através de ação de petição de herança, poderá pleitear sua parte no acervo hereditário.

2 EXCLUSÃO DO HERDEIRO POR INDIGNIDADE

De uma forma mais específica, o Código Civil restringe a legitimação sucessória em determinadas situações, identificando os que não podem suceder através das regras relacionadas à exclusão da herança, prevendo, a indignidade.

Mas cumpre ressaltar, inicialmente, que a indignidade não pode ser confundida com a ilegitimidade sucessória e tampouco com a deserdação. Como já discorrido, se carece ao interessado personalidade e convocação legal ou testamentária, faltar-lhe-á legitimidade para suceder e, consequentemente, ele jamais sucederá ao de cujus. Ao passo que a indignidade impede a conservação do direito à sucessão, pois o indigno já recebe a posse e o domínio da herança no instante da abertura da sucessão, vindo a perder os bens hereditários apenas com o trânsito em julgado da sentença declaratória de sua indignidade.

Percebe-se, pois, que o ilegítimo nunca adquiriu a herança ou o legado. O indigno, ao contrário, foi herdeiro ou legatário, mas deixou de receber o quinhão ou legado que lhe era reservado, por ter incorrido em uma das condutas que determinam a exclusão.

Já a deserdação, por sua vez, conforme Diniz, apud Rizzardo (2008, p. 528), “vem a ser o ato pelo qual o de cujus exclui da sucessão, mediante testamento, com expressa declaração da causa, herdeiro necessário, privando-o de sua legítima, por ter praticado quaisquer atos taxativamente enumerados no Código Civil”. Tais atos estão dispostos nos art. 1.814, 1.963 e 1.963.

Posto isso, passemos ao estudo das causas que ensejam a indignidade.

2.1 CAUSAS DE EXCLUSÃO POR INDIGNIDADE

As condutas que ensejam a exclusão da sucessão estão arroladas no art. 1.814, incisos I a III, do Código Civil.

Antes de expô-las, urge dizer que a privação do direito hereditário trata-se de uma autêntica pena de natureza civil, impondo a interpretação restrita daquele dispositivo, não comportanto, portanto, interpretação extensiva ou aplicação analógica, haja vista o princípio nulla poena sine lege.

O inciso I trata da hipótese em que o herdeiro ou legatário praticou crime de homicídio doloso, ou tentativa de homicídio, contra a pessoa de cuja sucessão se trata, ou contra pessoas da família do hereditando (cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente).  Assim, é essencial à conduta do agente o elemento dolo, ou animus necandi, sem o qual não poderá ser excluído.

Neste sentido, os casos de delito que envolvam a culpa (CP, art. 13, § 2º), o error in persona, a aberractio ictus[3] (CP, arts. 20, § 3º e 73, respectivamente), as excludentes de ilicitude, como o estado de necessidade e a legítima defesa (CP, arts. 24 e 25) , bem como a inimputabilidade do ofensor (CP, arts. 26, 27 e 28, § 1º) não terão cabimento para excluir herdeiro ou legatário.

Cumpre ressaltar que o nosso Código Civil, assim como o italiano, não estabele como pressuposto da pena civil a prévia condenação criminal, sendo plenamente possível no juízo cível, desde que seja verificada a situação e declarada por sentença a exclusão do indigno.

Contudo, se no juízo criminal ocorrer uma absolvição do acusado pelo reconhecimento de uma excludente de criminalidade, percute no juízo cível, impedindo quaisquer questionamentos do fato, como assim preceitua o art. 935, CC: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

O mesmo não ocorrerá se, por exemplo, o crime de homicídio prescrever, fato este que não afastará a exclusão do sucessor. Neste contexto, adverte Pereira (2008, p. 40), “outro tanto se não dirá da extinção apenas da pena (prescrição ou indulto), que não ilide a exclusão do herdeiro”.

Por conseguinte, o inciso II prevê a possibilidade de exclusão do sucessor que houver acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrer em crime contra a sua honra (CP, arts. 138, 139 e 140), ou de seu cônjuge ou companheiro. Lembrando que, in casu, será indigno quem fizer denunciação caluniosa tanto no juízo criminal como em inquérito civil ou em investigação administrativa.

Finalmente, consideram-se também indignos de suceder os que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. Desse modo, ao prescrever tal causa de indignidade, o legislador civil quis proteger um dos princípios do Direito das Sucessões, o da liberdade testamentária.

Com clareza, ilustra tal idéia o eminente Fiuza (2002, p. 1.631):

“Quem usa de violência, física ou moral, pressão, fraude, artifícios maliciosos, impedindo, prejudicando ou obstando o autor da herança de fazer, modificar, revogar o testamento ou codicilo (art. 1.881), deve ser excluído da sucessão.”

Pelo exposto, vê-se inequivocamente o quanto o art. 1.814 é insatisfatório e defasado, tendo em vista que não contempla em seu rol todas as possíveis condutas reprováveis pelo nosso ordenamento jurídico, como o estupro e a extorsão mediante sequestro, crimes estes hediondos, que inegavelmente atentam contra atributos fundamentais ao ser humano, como a dignidade sexual e a liberdade, respectivamente.

Desta maneira e, considerando a qualidade numerus clausus da norma civil sob apreço, um filho que sequestre a própria mãe e exija dinheiro como condição do resgate, não poderá ser demandado em ação de indignidade quando esta ascendente vier a falecer, o que faz com que o herdeiro desnaturado aproveite-se da herança deixada pela ofendida.

2.2 DECLARAÇÃO JURÍDICA DA INDIGNIDADE

Embora tenha praticado algum dos atos supracitados, a exclusão do herdeiro ofensor não se opera ipso jure, não se dá de pleno direito, não ocorre por força exclusiva da lei. Impende a declaração da indignidade por sentença transitada em julgado, em ação ordinária, por se tratar de matéria de alta indagação.

Assim, invocando uma das causas do art. 1.814 e instruindo a inicial com os elementos de prova existentes, o legitimado a intentar a ação requererá a exclusão do ofensor, o qual será citado, assegurando-lhe o direito à defesa.

O Código Civil atual, ao contrário da revogada lei de 1.916, foi omisso quanto aos quem têm legitimidade ativa para pleitear a exclusão de indigno.

Diante disso, conforme uma interpretação dos arts. 3º e 6º do CPC, a doutrina majoritária[4] apresenta o entendimento de que apenas os herdeiros, os legatários, os credores, os donatários, o Fisco – isto é, aqueles que, pelo resultado do inventário, serão contemplados com alguma parcela da herança, têm o legítimo interesse para pleitear a declaração de indignidade. Logo, segundo tais doutrinadores, ao Ministério Público não é conferida legitimação, assunto este que será estudado em capítulo à parte.

Com relação ao prazo para a propositura da ação em comento, este é de 04 (quatro) anos, a contar da abertura da sucessão, sob pena de decadência (CC, art. 1.815. Portanto, o pleito de exclusão não pode ser ajuizado em vida do ofendido, o qual terá apenas o direito de deserdar o ofensor (descedente e ascendente, apenas).

2.3 EFEITOS DA INDIGNIDADE

Como pena civil que é, os efeitos da indignidade são personalíssimos, não impedem a que se transponha a quem é inocente, ou seja, os descendentes do excluído o sucedem por direito de representação. Eis aí o princípio da responsabilidade pessoal, consagrado, aliás, na Carta Magna de 1.988, art. 5º, XLV.

Ressalte-se que o excluído não terá direito ao usufruto e à administração dos bens herdados por seus descendentes, caso sejam eles civilmente incapazes, como assim o art. 1.689 do CC.

Outrossim, ele também não fará jus à eventual sucessão de tais bens, isto é, caso o excluído seja herdeiro, por exemplo, do filho que venha a falecer, não terá direito aos bens que este descendente adquiriu na herança da qual o pai havia sido afastado.

No mais, declarado por sentença o afastamento, o indigno é tido como se já fosse falecido na data da abertura da sucessão, como se nunca tivesse herdado, cumprindo-lhe, pois, restituir os frutos e rendimentos percebidos, equiparando-se ao possuidor de má-fé (CC, art. 1.817, parágrafo único).

2.4 REABILITAÇÃO DO INDIGNO

Por fim, cabe ainda relatar acerca da reabilitação do excluído, tendo em vista que a nossa legislação civil previu em seu art. 1.818 a possibilidade de revogação dos efeitos da indignidade e a consequente admissão do indigno ao direito de suceder.

Tal hipótese está condicionada à expressa declaração do ofendido, mediante testamento ou outro ato autêntico, como a escritura pública, de que, não obstante a ofensa sofrida, o ofensor deve ser chamado a gozar os benefícios da sucessão. E uma vez concedido o perdão, este será irretratável, não mais se reconhecendo aos coerdeiros legitimação para intentar a ação de exclusão.

Contudo, ao comentar sobre o parágrafo único do dito artigo, Gomes, apud Diniz (2011, p. 75), esclarece que, “não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária”.

3 MINISTÉRIO PÚBLICO: NOÇÕES GERAIS

Não obstante o cinema, a televisão e os jornais venham divulgando de forma razoável as medidas tomadas pelos membros do Ministério Público nacional, a profissão do promotor de justiça é ainda mal conhecida e incompreendida, tendo em vista que quando se fala em promotor, não é raro que surjam pensamentos que o associem apenas como aquele que processa os criminosos, esquecendo-se do promotor cível, o qual tem papel igualmente relevante, cujas atribuições são a defesa de interesses ligados, por exemplo, ao meio ambiente, ao consumidor, aos civilmente incapazes, ao patrimônio público.

Neste contexto, depreende-se que o Ministério Público, em linhas gerais, pode ser definido como o órgão instituído para promover a fiel observância das leis de ordem pública.

Já era a lição de Chiovenda, apud Machado (2011, p. 362):

“O MP vela pela observância das leis, pela pronta e regular administração da justiça, pela tutela dos direitos do Estado, dos corpos morais e das pessoas destituídas de plena capacidade jurídica […] tem, da mesma forma, ação direta para fazer executar e observar as leis de ordem pública e que interessem aos direitos do Estado, sempre qre tal ação não se atribui a outros agentes públicos.”

3.1 BREVE RELATO HISTÓRICO

O Ministério Público não surgiu repentinamente, num só lugar, por força de algum ato legislativo. Suas funções manifestaram-se, lenta e progressivamente, em momentos históricos diversos e em diferentes formações culturais.

Comumente, a sua origem é invocada nos procuradores do rei do antigo Direito françês (Ordenança de 25 de março de 1.302, de Felipe IV). Por conseguinte, a Revolução Francesa estruturou mais adequadamente o Ministério Público, enquanto instituição, ao conferir garantias a seus integrantes. Mas, de fato, foram os textos de Napoleão Bonaparte que instituíram o referido órgão ministerial que a França veio a conhecer na atualidade.

Diante disso, é inegável a influência da doutrina francesa na história do Ministério Público. Tão quanto que ainda hoje a expressão parquet[5] é frequentemente usada no nosso ordenamento jurídico para referir-se a tal instituição.

No Brasil, os avanços do Ministério Público foram obtidos nos períodos de plena democracia, principalmente com o advento da Constituição de 1988, que reconheceu a real importância da Instituição, visto que o Parquet passou a ocupar posição autônoma frente aos três Poderes Estatais.

Neste sentido, oportuna são as palavras de Paes (2003, p.139):

“Ao contrário, durante os regimes autoritários ou ditatoriais, de hipertrofia do Poder Executivo, o Ministério Público é a primeira Instituição que fenece. Ou porque é amordaçada, manietada, sufocada, ou, o que é pior, porque é cooptada e utilizada para perseguir os “inimigos do regime” e os “desafetos do governo”, com base em leis injustas, iníquas, arbitrárias.”

3.2 O PARQUET ANTE A CARTA DE 1988

Dada a enorme relevância do papel social desempenhado pelo Ministério Público, de defensor da sociedade perante o Poder Judiciário, cada vez mais avultava a necessidade de se lhe outorgar disciplina constitucional robusta, a única compatível coma as altas funções que desempenha.

Assim, em atendimento a sua alta vocação, a Carta de 1988 declarou-o como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais.

No mais, a Constituição estabelece como princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

O primeiro princípio significa que seus membros não devem ser considerados em sua individualidade, pois integram um só órgão sob a direção de uma única chefia.

Indivisibilidade, por sua vez, traduz-se na possibilidade de substituição recíproca entre os membros de um mesmo ramo do Ministério Público, desde que respeitadas as normas legais.

Finalmente, o princípio da independência funcional trata-se da liberdade conferida aos membros do Parquet para o exercício de suas funções, vedada qualquer subordinação que não seja à Constituição, às leis ou à sua própria consciênciano exercício das funções, de modo a não haver subordinação hierárquica entre si ou ao procurador-geral. Frise-se que a submissão a uma única chefia implica hierarquia administrativa, o que não configura subordinação funcional.

3.3 FORMAS DE ATUAÇÃO

O ofício do Parquet é assaz diversificado. Na área criminal, é titular privativo da ação penal pública, podendo instaurar inquérito policial e requisitar diligências investigatórias, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. Cabe-lhe ainda o controle externo sobre a atividade policial, na forma da lei complementar.

Na esfera cível, além da tradicional promoção das ações de controle de constitucionalidade (art. 103, CF), a Constituição também conferiu ao referido órgão ministerial, em seu art. 129 e respectivos incisos, a defesa em juízo de direitos e interesses das populações indígenas, cometeu-lhe a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos, além de importar-lhe o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública nela assegurados, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

Outrossim, o Ministério Público pode agir também na qualidade de órgão interveniente, isto é, como fiscal da lei (custus legis), seja porque, diante da qualidade de uma parte, deva zelar pela indisponibilidade de seus interesses ou suprir alguma forma de inferioridade, como por exemplo, os civilmente incapazes, ou seja ainda por causa da natureza da ação, na qual exista um interesse público a zelar, v. g., questões concernete ao estado da pessoa, à família, ao testamento.

4 DAS RAZÕES QUE LEGITIMAM O MP A PROPOR A AÇÃO DE INDIGNIDADE

Embora o Código Civil de 2002 tenha atualizado e reformado toda a estrutura legislativa da lei de 1916, ainda assim é possível constatar que o tema da indignidade encontra-se demasiadamente defasado, haja vista que a nova legislação basicamente reproduziu as disposições previstas no diploma revogado e, quando assim não o fez, foi omissa, particularmente quanto ao arrolamento dos legitimados a intentar a exclusão de sucessor indigno.

Contudo, essa omissão não pode ser interpretada como um impedimento à legitimação do Ministério Público para pleitear a referida ação. Pelo contrário, ela deve ser compreendida como um permissivo para a atuação do Parquet, principalmente quando o ato do indigno tratar-se de um homicídio (CC, art. 1814, I), crime este que afronta o bem jurídico mais tutelado pelo Direito, a vida.

Dito isso, passemos ao estudo minucioso dos argumentos que sustentam e justificam o objeto em estudo.

4.1 DA MISSÃO DE GUARDIÃO DA ORDEM JURÍDICA

Recorrentemente, aqueles que desafiam a legitimação do Ministério Público para ajuizar a ação de exclusão de herdeiro indigno esgrimem o argumento de que tal possibilidade não se encontra expressa na Constituição, locus político-normativo de onde surgem suas funções institucionais.

Trata-se, em verdade, de uma armadilha argumentativa. Esconde-se, por detrás dessas linhas de argumento, aquilo que se revela manifesta e constitucionalmente insustentável, isto é, de que as atribuições conferidas ao Parquet pelo art. 129 da Carta Magna são taxativas, esgotando-se em sua literalidade. Equívoco, data venia, grave.

Atente-se, a tanto, que o próprio artigo sob apreço, ao cabo de especificar um rol de funções acometidas à Instituição, dispôs expressamente, em seu inciso IX, que:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:(…)

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.”(Destaquei).

Ademais, nessa mesma linha de pensamento, observe-se que a LC n. 75/93[6], ao concretizar a mencionada disposição constitucional, preceitua que em seu art. 5º, VI, que são funções institucionais do Ministério Público da União “exercer outras funções previstas na Constitição Federal e na lei”.

Veja-se, pois, que tal norma constitucional qualifica-se como uma “cláusula de abertura” ao exercício, pelo Ministério Público, de “outras funções”, condicionado à vedação de qualquer função que implique a representação judicial ou a consultoria jurídica de entidades públicas, bem como a uma procedência legal.

Portanto, ao analisarmos o teor do caput do art. 127 da CF[7], o qual estabelece ao Ministério Público a incumbência da defesa da ordem jurídica, vemos o fiel cumprimento à exigência de que o exercício de uma função ministerial decorra de uma previsão legal.

Neste diapasão e, entendendo-se que a locução “defesa da ordem jurídica” consiste na tutela da própria Constituição e das leis, não se pode negar que a prática de atos impuros contra quem lhe transmitirá um patrimônio não seja uma afronta às normas jurídicas contidas na nossa Magna Carta. Ao começar com o disposto no art. 3º, I, segundo o qual é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Daí, permitir que um indigno se aproveite, por ausência de quem possa promover a sua exclusão judicial da herança ou legado deixado pelo ofendido, vai completamente de encontro à justiça, valor supremo de uma sociedade.

Em segundo lugar, um ato de indignidade contra aqueles que deveria amar, cuidar e proteger, acarreta uma violação na relação familiar, ferindo valores morais e destruindo os laços afetivos que faziam do ofensor digno da sucessão. Desse modo, vê-se claramente um atentado contra um dos princípios gerais implícitos na Constituição: o da afetividade.

No mais, atos como o de matar alguém e de fazer uso de violência, pressão ou fraude para obstar o autor de herança de dispor em testamento, ambos impelidos por uma busca pela herança da vítima, afrontam os direitos à vida e à liberdade, respectivamente, garantias estas consagradas no caput do art. 5º, da CF.

Sem olvidar que as condutas descritas no art. 1814, II (acusar caluniosamente ou incorrer contra a honra), também infringe um direito e garantia fundamental, a honra.

Por tais razões, depreende-se que um ato de indignidade afronta tanto regras como princípios instituídos na Constituição Federal. E, uma vez violada a Lei Maior, resta prejudicada a ordem jurídica, cabendo, pois, a intervenção do Ministério público em defesa desta ordem.

Eis aí o primeiro argumento que legitima o Parquet à propositura da ação civil de indignidade.

4.2 DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO

O conceito clássico de interesse público resume-se no necessário atendimento aos interesses da sociedade como um todo, perseguindo-se o bem-estar e a satisfação de seus indivíduos, cabendo ao Ministério Público, na sua condição de órgão do Estado, a tutela de tal interesse.

Não obstante tal relevância, há o entendimento segundo o qual o interese público não goza de aplicação imediata e irrestrista no nosso ordenamento jurídico, principalmente quando em conflito com algum interesse privado decorrente de um direito ou garantia  fundamental.

Logo, alguns juristas utilizam-se desse argumento para excluir a atuação do Ministério Público no pleito de exclusão de indigno, alegando não ser de bom tom a interferência do Parquet na vida íntima e privada do núcleo familiar. Além disso, argumentam que o fato de ser o direito de herança uma garantia constitucional (CF, art. 5º, XXX), fica evidente o interesse privado em detrimento do público.

Em que pese referida compreensão, urge, no caso em apreço, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, haja vista a imprescindibilidade de se manter o mínimo de estabilidade e ordem necessárias à vida em sociedade. Se assim não o for, o caos.

Exemplo disso é o que ocorre com a ação para declaração de nulidade de casamento. Ora, se o nosso ordenamento jurídico não tivesse outorgado ao Ministério Público legitimação para propor dita ação, nos moldes dos arts. 1.548 e 1.549 do Código Civil, correríamos um sério risco de termos que viver em uma sociedade repleta de bígamos, ou de casamentos entre sogro e nora, e até mesmo entre ascendentes e descendentes. Daí a necessária e conveniente atuação do Parquet “na vida íntima e privada do núcleo familiar”.

No mais, se utilizarmos o Princípio da Proporcionalidade para ponderar os interesses público e privado aqui envolvidos, ainda assim, este será soprepujado por aquele. Senão, vejamos.

É cediço que não há hierarquia entre princípios e garantias fundamentais, o que acarreta a relativização dos mesmos conforme o caso concreto.

Neste sentido, consideremos a primeira causa de indignidade prevista no art. 1.814 (prática de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra o hereditando), e tomemos como exemplo o polêmico e recente caso de Elize Matsunaga, a qual matou e esquartejou seu próprio marido[8], Marcos Kitano Matsunaga, ex-diretor executivo da empresa de alimentos Yoki, em maio deste ano.

Se fizermos um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental à herança (CF, art. 5º, XXX) e a importância da realização do princípio fundamental da convivência social justa (CF, art. 3º, I), veremos que razoável é o atendimento ao clamor e às aspirações da coletividade pela exclusão da herdeira desnaturada, do que acolher a um interesse individual.

Eminentes doutrinadores consubstanciam as razões aqui expostas. Ao começar com Diniz (2011, p. 69):

(…) “Há quem ache, como nós, que, como o novo Código Civil foi omisso a respeito, o Ministério Público poderia também propô-la, por ser o guardião da ordem jurídica (CF, art. 127) e pelo fato de haver interesse social e público de evitar que o herdeiro ou legatário desnaturado receba vantagem, beneficiando-se da fortuna desizada pela vítima”.(Destaquei).

Igualmente, Fiuza (2002, p.1.632), preceitua:

“O Código Civil de 1916, art. 1596, menciona que a ação só pode ser movida por quem tenha interesse na sucessão – o coerdeiro, o legatário, por exemplo. O Código de 2002 não faz a ressalva. Terá havido mero esquecimento, simples omissão ou mudança de entendimento do legislador? Verdadeira a última hipótese, se o ato praticado é criminoso, estaria legitimado o Ministério Público. Observe-se que o Senador Fernando Henrique Cardoso, quando o projeto tramitava no Senado Federal, através da Emenda n. 357, pretendeu acrescentar o § 2º a este artigo com a redação seguinte: “Não existindo herdeiro legítimo ou testamentário, legitimado para a prpositura da ação, a mesma competirá ao Ministério Público”. (…) A emenda do Senador Fernando Henrique foi rejeitada, lamentavelmente. Ficou o Código sem previsão expressa, o que não exclui, a meu ver, com base nos princípios gerais, a atuação do MP, até por ser este o guardião da ordem jurídica (CF, art. 127) e há, sem dúvida, interesse público e social de evitar que um filho desnaturado que assassinou seu próprio pai, venha a se beneficiar da fortuna que este deixou, por falta de algum herdeiro ou interessado em mover a ação para excluir da sucessão o parricida”.(Destaquei).

Ademais, o disposto no enunciado n. 116 do CJF, aprovado na III Jornada de Direito Civil de 2002, estabelece que “O Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover a ação visando à declaração da indignidade de herdeiro ou legatário”.

Por fim, cumpre mencionar o Projeto de Lei n. 118/10, de autoria da Senadora Maria do Carmo Alves, aprovado, em 16/03/2011, pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, que propõe, de maneira louvável, a reforma e atualização do instituto da indignidade sucessória, defendendo, assim como nós, a legitimação do Parquet para intentar a exclusão de sucessor indigno.

Para a melhor compreensão deste Projeto, remeto o leitor aos anexos deste artigo.

CONCLUSÃO

É preciso ter em conta que o papel do Direito em sociedades como a nossa, marcadas pelo traço da desigualdade, deve ser de transformação, e não de manutenção. Por isso a necessidade do jurista de hoje desafiar o seu próprio tempo, sob pena de permanecer preso à época antiquada da reprodução de situações que insistem em desdizer os valores albergados na Constituição.

Neste enfoque, muito embora exista uma lacuna na vigente Lei Civil quanto aos legitimados à propositura da ação civil de indignidade, isto pode ser plenamente convalidado se houver a incorporação dos verdeiros fins e valores teleológicos reclamados pelo art. 1814, os quais revelam claramente a repulsa do legislador em contemplar com direito sucessório quem atenta contra a vida do hereditando.

Daí o razão que consubstancia a legitimação do Ministério Público para buscar a privação do indigno de seu direito de suceder: a construção da ordem social justa e a promoção dos interesses e reclames da coletividade.

Eis, portanto, o objetivo deste trabalho. Espero ter alcançado nestas breves linhas o desiderato noticiado no intróito.

 

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Notas:
[1] Para o ser humano, a personalidade começa com o nascimento com vida. Para as pessoas jurídicas, a partir da inscrição de seu ato constitutivo no registro respectivo.

[2] Se, quando do falecimento do autor da herança, o herdeiro estiver morto, passa-se o acervo       hereditário aos outros de sua classe ou aos da classe imediata, se for ele o único.

[3] Nas palavras de Bitencourt (2012), o error in persona ou erro quanto à pessoa consiste na representação equivocada da realidade, pois o agente acredita tratar-se da pessoa que pretendia           ofender. Já na aberratio ictus ou erro na execução, o agente dirige a conduta contra a vítima visada, o          gesto criminoso é dirigido de forma correta, contudo, a execução sai errada, e a vontade criminosa concretiza-se em pessoa diferente.

[4] Verbi gratia, Arnaldo Rizzardo, Carlos Roberto Gonçalves e Washington de Barros Monteiro, que não reconhecem ao Ministério Público a legitimação para propor a exclusão de sucessor que praticou ato insidioso contra o hereditando, a menos que o herdeiro ou legatário sejam incapazes.

[5] A menção a parquet, que significa assoalho, provém da tradição francesa segundo a qual os procuradores do rei tinham assento sobre o assoalho da sala de audiências, diferentemente do que acontece nos dias atuais, onde o represente do Ministério Público senta-se ao lado do magistrado.

[6] A Lei Complementar n. 75, de 1993, representa a edificação normativa do Ministério Público, através da qual foram estabelecidas a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União.

[7] Art. 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

[8] O célebre crime é mais um exemplo de homicídio movido por interesse patrimonial, já que com a morte do marido, Elize teria direito a um seguro de R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais), além do direito à herança e à meação dos bens conquistados durante o casamento com Matsunaga, pois se casaram em regime de comunhão parcial de bens.


Informações Sobre o Autor

Railma Marrone Pereira Silva

Advogada. Pós-graduanda em Direito e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus


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