A Possibilidade da Prole Eventual Adotiva na Sucessão Testamentária

Autor: João José Ribeiro Morais. Acadêmico do Curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA. E-mail: [email protected].

Autora: Mariana Ítala Alves Leal.  Acadêmica do Curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA. E-mail: [email protected].

Orientadora: Francisca Juliana Castello Branco Evaristo de Paiva. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA. Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. E-mail: [email protected].

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo o estudo do instituto da prole eventual no âmbito do direito sucessório brasileiro, analisando a possibilidade de a prole eventual adotiva ser herdeira beneficiária de testamento, tendo em vista a nova hermenêutica constitucional da igualdade entre os filhos. Bem como verificar a possibilidade de interpretar extensivamente o artigo 1.799, inciso I do Código Civil, diante das crescentes inovações neste ramo do direito e do seu impacto na sociedade em razão da aplicação dos princípios constitucionais nas relações privadas. O trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisas bibliográficas, com o vasto uso da doutrina e da legislação, abordando a temática da prole eventual na sucessão testamentária.

Palavras-chave: Prole eventual. Sucessão testamentária. Filiação

 

Abstract: The present work aims to study the institute of offspring possible within the scope of brazilian succession law, analyzing the possibility that the offspring possible adoptive will be beneficiaries of testament, in view of the new constitutional hermeneutics of equality between children. As well as checking the possibility of interpreting Article 1.799 extensively, item I of the Civil Code, in the face of growing innovations in this field of law and its impact on society due to the application of constitutional principles in private relations. The work was developed through bibliographic research, with the wide use of doctrine and legislation, addressing the theme of offspring possible in testamentary succession.

Keywords:  Offspring possible.  Testamentary succession. Affiliation

 

Sumário: Introdução. 1. Do direito sucessório. 1.1. Da sucessão em geral e o princípio da saisine. 1.2. Da sucessão testamentária. 2. Da filiação. 2.1. Da igualdade entre os filhos e da adoção. 2.2. O princípio da autonomia da vontade e a interferência constitucional. 3. A possibilidade da prole eventual adotiva na sucessão testamentária. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A sucessão é o ramo do Direito Civil que estuda a transmissão dos bens deixados pelo autor da herança aos seus herdeiros, os quais podem ser herdeiros legítimos ou herdeiros testamentários. O direito sucessório brasileiro permite que, por meio de testamento, alguém destine uma parte ou todo o seu patrimônio a uma pessoa.

Em razão do artigo 1.799, inciso I do Código Civil, é possível que o de cujus, antes da abertura da sucessão, possa dispor de seu patrimônio por meio de testamento, tendo como beneficiário alguém ainda não concebido, filho de pessoa indicada por ele, devendo esta pessoa está viva ao abrir-se a sucessão, observando-se o prazo decadencial constante no artigo 1.800, §4º do mesmo Codex.

Ao dispor sobre a possibilidade de testar a alguém ainda não concebido, o legislador previu uma exceção ao princípio da coexistência, princípio este que é aplicado tanto na sucessão universal quanto na sucessão testamentária e determina que apenas os herdeiros nascidos ou pelo menos concebidos no momento da abertura da sucessão são os legitimados a suceder os bens deixados pelo autor da herança.

Diante disso, tendo em vista o princípio da igualdade entre os filhos e o disposto no artigo 1.799, inciso I do Código Civil, o filho ainda não concebido da pessoa indicada pelo testador, também chamado de prole eventual ou concepturo, deve necessariamente ser concebido pela pessoa indicada no testamento? Ou é possível que haja uma interpretação extensiva do supracitado artigo do Codex de 2002 de forma a admitir a adoção do futuro beneficiário do testamento?

Tal indagação ocorre na doutrina civilista em razão da redação dada ao inciso I do artigo 1.799 do Código Civil, uma vez que este dispositivo faz menção expressa ao filho ainda não concebido, dando a entender que necessariamente, assim como era no Código Civil de 1916, o filho deveria ser descendente natural, excluindo-se as demais formas de filiação, inclusive a adotiva.

Assim, tendo em vista a relevância do direito sucessório, em razão da sua aplicação nas relações de família, bem como nas relações patrimoniais, o presente artigo aborda a discussão quanto à possibilidade de interpretação extensiva do art. 1.799, inciso I do Código Civil vigente, com o intuito de verificar o alcance do instituto da prole eventual na sucessão testamentária, utilizando-se da pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico.

 

  1. DO DIREITO SUCESSÓRIO

1.1. Da Sucessão em Geral e o Princípio da Saisine

O Código Civil, em seu Livro V, trata do Direito das Sucessões, o qual tem como objeto de estudo, em sentindo estrito, a regulamentação da transmissão dos bens do autor da herança para os seus herdeiros e, caso houver, aos seus legatários, conforme leciona Gonçalves (2017, p. 20) “O referido ramo do direito disciplina a transmissão do patrimônio, ou seja, do ativo e do passivo do de cujus ou autor da herança a seus sucessores”.

Ocorrendo a morte, todo o patrimônio do falecido transmite-se desde logo aos seus sucessores, isto ocorre em razão do princípio de Saisine ou Droit de Saisine que consiste no “reconhecimento, ainda que por ficção jurídica, da transmissão imediata e automática do domínio e posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários, no instante da abertura da sucessão.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 71-72).

Ademais, conforme estatui o art. 1.786 do Código Civil, a sucessão mortis causa poderá ocorrer pela lei ou por manifestação da última vontade do falecido (BRASIL, 2002), esta segunda hipótese ocorre por meio de testamento, instrumento por meio do qual é possível o falecido dispor de todo ou parte de seu patrimônio a alguém para depois de sua morte. Assim, segundo Gonçalves (2017, p. 42) “quando se dá em virtude de lei, denomina-se sucessão legítima; quando ocorre manifestação de última vontade, expressa em testamento ou codicilo chama-se sucessão testamentária.”

O autor da herança pode deixar herdeiros ou legatários. A herança nada mais é do que uma universalidade de direito, isto é, a lei a determina como uma coletividade de bens de forma unitária e indivisível. Dessa forma, “os herdeiros, não importando o número, recebem uma fração indivisa do patrimônio, até que sua quota-parte se materialize na partilha.” (VENOSA, 2014, p.10).

Já o legado é um bem determinado entre todos os bens que compõem o patrimônio deixado pelo falecido, assim, “o legatário sucede a título singular, em semelhança ao que ocorre na sucessão singular entre vivos. Só existe legado, e consequentemente a figura do legatário, no testamento.” (VENOSA, 2014, p.10).

Para tanto, é necessário que a pessoa tenha capacidade para suceder, que nada mais é do que a aptidão adquirida por alguém, por meio da qual ela se tornar herdeira ou legatária de alguma herança (VENOSA, 2017). Assim, possuem capacidade sucessória passiva aquelas pessoas previstas em lei, bem como as mencionadas em testamento deixado pelo de cujus.

Em regra, no Direito sucessório brasileiro, aplica-se o princípio da coexistência, o qual determina que apenas os nascidos ou, pelo menos, concebidos à época da abertura da sucessão, isto é, no momento da morte do autor da herança, são os legitimados a suceder o de cujus. No entanto, o próprio Código Civil traz exceção a esta regra ao admitir que o beneficiário de testamento seja filho ainda não concebido de pessoa indicada pelo testador, dando a ele capacidade sucessória por meio de testamento.

Dessa forma, admite-se, conforme determinado pelo art. 1.799, inciso I do supramencionado diploma legal, que alguém ainda não concebido seja herdeiro testamentário. A doutrina o denomina de prove eventual ou concepturo. O referido dispositivo sofre algumas restrições ao passo que a pessoa denominada pelo testador deve, obviamente, estar viva no momento da abertura da sucessão, caso contrário, ineficaz será o disposto no testamento.

Ademais, deve a prole eventual ser concebida dentro do prazo decadencial de dois anos, contados do momento da abertura da sucessão, conforme disposto no artigo 1.800, §4º do Código Civil, logo, caso não ocorresse dentro desse prazo, do mesmo modo anterior, estaria ineficaz a disposição testamentária.

 

1.2. Da Sucessão Testamentária

            A sucessão testamentária se dá por testamento, instrumento por meio do qual alguém pode dispor da totalidade de seus bens, desde que não possua herdeiros necessários, ou de parte deles para outrem, a ser transmitido após a morte do testador. Este instrumento é  utilizado para que seja efetivada a vontade de alguém, ora denominado de testador, após a sua morte. Quanto às suas características, ressalta-se que é um negócio jurídico unilateral, pois é realizado unicamente pelo testador, em que se deve obedecer a sua última vontade.

Para Tartuce; Simão (2012, p. 289) “o testamento é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte.” Assim, percebe-se que há a manifestação de vontade de uma pessoa, no entanto, só irá ser cumprida após o falecimento da pessoa que deixou o testamento.

Diante disso, verifica-se a aplicação do princípio da autonomia da vontade privada, pois, a partir do momento em que alguém deixa testamento subentende-se que a vontade daquela pessoa deve ser cumprida conforme disposto no referido documento. Todavia, deve está o testamento com todos os requisitos necessários que estão previstos em lei, sob pena de nulidade.

O testador somente poderá dispor de todo o seu patrimônio quando não possuir herdeiros necessários. Dessa forma, caso haja algum herdeiro necessário será preciso reservar a parte da legítima, pois, segundo Tartuce; Simão (2012, p. 289), “em havendo herdeiros necessários, não pode o disponente testar ou legar parte dos bens que invada a legítima (art. 1.857, §1.º, do CC).” Assim, como continua o supracitado doutrinador “caso o testador abarque a legítima, podemos estar diante de redução das disposições testamentárias ou de rompimento do testamento.” (TARTUCE; SIMÃO, 2012, p. 289).

A legítima corresponde à metade dos bens livres do testador, isto é, da totalidade de seus bens, assim, deve-se reservar a parte da meação, caso seja casado com regime de comunhão de bens, bem como  se devem retirar as dívidas e as despesas do funeral do de cujus, conforme determinado no art. 1.847 do Código Civil, in verbis: “art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação.” (BRASIL, 2002). Do restante, metade corresponde à legítima e a outra metade são os bens livres, os quais são passíveis de disposição de última vontade.

Pode o testador dispor de seus bens por qualquer um dos meios de testamento, seja pelas formas ordinárias, quais sejam: testamento público, cerrado ou particular, bem como pelas formas extraordinárias que são os testamentos marítimo, aeronáutico e militar. Para tanto, exige-se que sejam observados os requisitos legais de cada uma das formas de testamento.

Estando presentes todos os requisitos necessários de um testamento, poderá o testador deixar bens “aos filhos, ainda não nascidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão.” (BRASIL, 2002). Tal previsão está no art. 1.799, inciso I do Código Civil, possibilitando que o beneficiário do testamento seja alguém ainda nem concebida, abrindo, assim, uma exceção quanto ao princípio da coexistência.

Assim, predomina a vontade do testador, no entanto não será de forma absoluta, conforme leciona Tartuce; Simão (2012, p. 286):

 

É claro que a vontade do testador não será absoluta, mas sim explicitada dentro dos limites previstos pela lei, caso inobservadas, podem gerar vícios insanáveis e a nulidade do ato de última vontade. Como se sabe, o princípio da autonomia privada, que rege a vontade da pessoa humana, vem encontrando limites na legislação, principalmente em normas de ordem pública.

 

            Dessa forma, cabe salientar que nem sempre a disposição de última vontade irá predominar, pois, como se sabe, é imprescindível a observância dos pressupostos legais de validade deste negócio jurídico, uma vez que o testamento é considerado como um dos negócios jurídicos mais solenes do ordenamento jurídico brasileiro.

 

  1. DA FILIAÇÃO

2.1. Da Igualdade Entre os Filhos e da Adoção

Antes da Constituição Federal de 1988, havia uma distinção entre os filhos fruto do casamento com aqueles que fossem havidos de relações extraconjugais, classificando-os, respectivamente, como filhos legítimos e ilegítimos, o que acarretava em um tratamento diferenciado quanto aos direitos percebidos por cada um deles, principalmente quanto aos direitos sucessórios.

Segundo Venosa (2017), o Código Civil de 1916 fazia distinção na sucessão dos filhos legítimos, os quais sempre possuíam todos os direitos; os considerados naturais, que são aqueles que eram concebidos antes da constituição do matrimônio, portando só tinham direito à metade da quota-parte do filho legítimo, e os filhos adotivos. Havia também distinção entre os filhos adulterinos e os incestuosos, pois estes, em razão da expressa vedação quanto ao seu  reconhecimento (artigo 358, Código Civil de 1916), não eram detentores de nenhum direito sucessório.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto o princípio da igualdade entre os filhos, estabelecido em seu artigo 227, §6º,  in verbis:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[…]

  • 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (BRASIL, 1988).

 

Dessa forma, para Masson (2016, p. 1.360) o princípio constitucional da igualdade entre os filhos torna “proibida quaisquer designações discriminatórias relativas aos filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, estando também garantidos a eles os mesmos direitos e qualificações.”

Diante disso, o tal princípio reconhece que todos eles, independentemente da origem de sua filiação, devem receber tratamento isonômico, não podendo haver quaisquer distinções entre eles. Portanto, devem ser detentores dos mesmos direitos, inclusive dos direitos sucessórios.

Outrossim, a legislação infraconstitucional também trata sobre a matéria, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA previu, em seu artigo 20, a igualdade entre os filhos em consonância com o entendimento constante no texto constitucional, senão vejamos: “Art. 20. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 1990). Ademais, disciplina o instituto da adoção, por meio da qual se estabelece uma relação de filiação entre o adotante e o adotado, passando ambos a terem os mesmos direitos dos pais e filhos biológicos.

Neste sentindo, Diniz (2014, p. 571) dispõe que a adoção vem a ser ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco cosangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.

É por meio deste instituto que alguém que não tenha vínculo consanguíneo passa a ser filho de outra pessoa, após sentença judicial. Assim,  recai ao adotante os mesmos deveres dos pais biológicos e, da mesma forma, o adotado é detentor dos mesmos direitos dos filhos consanguíneos, incluindo, obviamente, os direitos sucessórios, por força do princípio constitucional da igualdade entre os filhos. Assim, não restam dúvidas quanto à igualdade de direitos que os filhos adotados possuem em relação aos filhos biológicos, tendo em vista a vedação de distinção desses direitos pelo atual ordenamento jurídico.

 

2.2 O Princípio da Autonomia da Vontade e a Interferência Constitucional

O princípio da autonomia da vontade é um dos principais do direito privado, o qual permite a livre disposição de vontade de alguém ao realizar um negócio jurídico no âmbito das relações privadas. Assim, tal princípio encontra-se presente na liberdade de testar, onde o autor da herança pode dispor livremente de seu patrimônio, desde que obedecido os requisitos supramencionados.

Diante disso, ao realizar um testamento, deve-se respeitar a disposição de última vontade do testador em razão do princípio da autonomia da vontade. Sendo, assim, deveria haver a interpretação literal do art. 1.799, I do Código Civil e, portanto, como dispõe esse artigo, o beneficiário do testamento deveria ser concebido pela pessoa indicada pelo autor da herança.

Isso ocorre pelo fato do testamento ser um negócio jurídico unilateral onde predomina a vontade do testador. Contudo, a vontade do autor da herança não pode ser absoluta visto que a lei traz determinadas limitações e que a sua inobservância pode acarretar na nulidade do testamento.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 houve a constitucionalização do Direito Civil, com incidência no âmbito das relações privadas, dessa forma “a manifestação de vontade, isoladamente, não tem valor jurídico; só o terá se estiver de acordo com a Constituição, as leis, a ordem pública, e, como sustenta a maior parte da doutrina, conforme à moral e os bons costumes”. (BORGES, 2005, p. 54).

Diante disso, há sempre a aplicação das regras e princípios constitucionais nas relações privadas, havendo, consequentemente, uma limitação do princípio da autonomia privada em razão dos interesses constantes no texto constitucional. Sendo assim, a vontade do testador pode sofrer determinadas alterações em razão dos princípios que regem a Carta Magna.

Portanto, ressalta-se que o princípio da igualdade entre os filhos, inserido no nosso ordenamento jurídico a partir da Constituição Federal de 1988, pode interferir nas relações privadas, sobretudo nas disposições de última vontade, o que pode possibilitar a interpretação extensiva do art. 1.799, I do Código Civil, trazendo divergências doutrinárias a respeito da adoção da prole eventual no direito sucessório.

 

  1. A POSSIBILIDADE DA PROLE EVENTUAL ADOTIVA NA SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA

O revogado Código Civil de 1916 impossibilitava a legitimidade passiva testamentária de quem ainda não era concebido ao tempo da abertura da sucessão, no entanto, previa uma exceção quanto à prole eventual, conforme dispõe o art. 1.718 do Código Civil de 1916, in verbis: “São absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir à prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão” (BRASIL, 1916).

Assim, desde o Codex anterior, o instituto da prole eventual já era disciplinado como beneficiária de testamento, bastando que o testador indique uma pessoa que esteja viva no momento da abertura da sucessão e que a prole eventual seja concebida pela mesma, dessa forma, o filho dessa pessoa indicada pelo autor da herança será seu herdeiro ou legatário.

Com o advento do Código Civil de 2002, manteve-se a previsão quanto à prole eventual ser herdeira ou legatária, assim estabelece seu artigo 1.799, inciso I: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;” (BRASIL, 2002).

O referido dispositivo confere capacidade testamentária passiva a alguém que ainda não foi concebido, pois, segundo Farias; Rosenvald (2017, p. 136):

 

A prole eventual é o filho que uma pessoa – que tem de estar viva no momento da abertura da sucessão do testador – virá a ter, no futuro. Não se trata de um nascituro (conceptus), que já está concebido no útero materno. Também não se restringe à figura do embrião criogenizado no laboratório. A prole eventual é expressão mais ampla, dizendo respeito ao filho ainda não concebido de uma pessoa. É chamado também de concepturo ou de nodum concepti.

 

Com isso, verifica-se que há uma exceção ao princípio da coexistência, o qual é adotado como regra no direito sucessório brasileiro, uma vez que o próprio Código Civil admite que alguém ainda não concebido no momento da abertura da sucessão possa configurar como parte beneficiária de testamento. Neste sentido, leciona Gonçalves (2017, p. 72) “O inciso I abre exceção à regra geral ao permitir que os filhos não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, e vivas ao abrir-se a sucessão, venham a receber a herança”.

Na hipótese do artigo supratranscrito, é necessário que o filho da pessoa mencionada pelo autor da herança em seu testamento seja concebido dentro do prazo decadencial de dois anos constante no artigo 1.800, §4º do Código Civil, pois “se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos” (TARTUCE, 2019, p. 1.335).

Neste caso, quanto à quota-parte que cabe à prole eventual, será necessária a nomeação de curador a fim de que este administre os bens que cabe ao herdeiro ainda não concebido, todavia, ultrapassando o prazo supracitado, sem que haja a concepção do beneficiário do testamento, os bens que foram reservados retornarão ao espólio para uma nova partilha entre os herdeiros legítimos.

Levando em consideração o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, indaga-se se a prole eventual deve ser necessariamente filha biológica da pessoa indicada pelo testador ou se é possível admitir uma interpretação extensiva do artigo 1.799, inciso I do Código Civil, a fim de aceitar a adoção da prole eventual como herdeira testamentária.

Nesse diapasão, a doutrina diverge quanto a esta possibilidade, por haver quem defenda a possibilidade da prole eventual ser fruto de adoção e, contudo, quem inadmite essa possibilidade. Conforme entendimento de Gonçalves (2017), o posicionamento constante no diploma de 1916 não pode ser acolhido, pois haveria uma violação a um princípio constitucional ao não admitir os filhos adotivos como prole eventual, uma vez que ocorreria uma discriminação vedada pela Constituição. E ainda complementa:

 

Diante da equiparação de todos os filhos, com a proibição expressa de qualquer discriminação, inclusive no campo do direito sucessório, é de concluir que a disposição testamentária há de prevalecer e o adotivo poderá receber a herança ou o legado a que tem direito. (GONÇALVES, 2017, p. 75).

 

Outrossim, leciona Farias; Roselvald (2017, p. 137) “à luz do princípio da igualdade entre os filhos, que proíbe discriminação quanto à origem da prole, não se pode excluir a possibilidade de adoção da prole eventual”. Sendo assim, embora o Código Civil não declare expressamente essa possibilidade, vem a doutrina entendendo que tal circunstância possa ocorrer.

Com entendimento semelhante, Venosa (2017) defende que há a possibilidade da prole eventual ser adotada, com amparo no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, desde que não haja determinação expressa em contrário constante na manifestação de última vontade do de cujus. Então, conforme entendimento do referido doutrinador, o testamento pode conter cláusula vedando a possibilidade de adoção do concepturo, caso contrário, não haverá óbice quanto à adoção do beneficiário do testamento.

Noutro giro, há quem possua entendimento contrário, defendendo que a prole eventual deve ter descendência natural, não podendo ser oriunda da adoção, conforme leciona Monteiro (2011, p. 57):

insiste a lei em referir-se ao filho concebido ou nascido com vida (arts. 1.799, I e 1.800, §§ 3º e 4º), de modo que a conclusão a que se chega é que realmente os filhos adotivos não estão compreendidos na previsão do art. 1.799, I, exceto se expressamente referido pelo testador.

Dessa forma, defende que não é possível interpretar extensivamente o supracitado dispositivo legal, de forma a não compreender o filho adotivo da pessoa indicada pelo testador como beneficiária de testamento. Monteiro (2011) ressalta, ainda, que a adoção da prole eventual seria uma maneira de burlar a vontade do testador, seria um ato arbitrário da pessoa indicada pelo testador, não prevalecendo, assim, a manifestação de última vontade do autor da herança.

Portanto, verifica-se que a doutrina possui entendimentos divergentes acerca da interpretação do art. 1.799 do Código Civil, tornando a prole eventual um instituto de grande relevância no âmbito do direito sucessório brasileiro, em especial, após o surgimento do princípio da igualdade entre os filhos.

Ressalta-se que, após a Constituição Federal de 1988, a qual traz em seu texto o princípio da igualdade entre os filhos, seria inconstitucional qualquer forma de discriminação entre os filhos, independentemente da origem da prole, seja ela biológica, fruto ou não do matrimônio, adotiva ou socioafetiva, pois todos os filhos serão igualmente possuidores de todos os direitos.

Sendo assim, concordamos com o entendimento de que é possível a adoção da prole eventual, vez que deve prevalecer uma igualdade entre os filhos, sejam eles biológicos ou adotivos. Pois bem, o principio da afetividade corrobora com este mesmo entendimento, visto que independe se a prole eventual será gerada ou adotada, pois o filho ao ser gerado ou adotado receberá da família o afeto, assim surgindo uma família que independente da sua constituição deverá prevalecer o mesmo direito entre os filhos.

Diante disso, com amparo nos princípios constitucionais, seria inadmissível não reconhecer a possibilidade da interpretação extensiva do art. 1.799, inciso I do Código Civil e não aceitar a prole eventual adotiva como herdeira testamentária, uma vez que a doutrina majoritária vem reconhecendo essa possibilidade.

 

CONCLUSÃO

Ocorrendo a morte do autor da herança, abre-se a sucessão, onde o patrimônio transmite-se desde logo aos herdeiros ou legatários. A sucessão poderá ser legitima ou testamentária. Ocorre que existe uma discussão acerca do artigo 1.799, inciso I do Código Civil, onde se indaga sobre a possibilidade da prole eventual adotiva ser herdeira testamentária de acordo com o referido artigo supracitado.

Pois bem, se o ordenamento jurídico determina que aos filhos devam ser dados os mesmos tratamentos, e todos possuem os mesmos direitos, vedando a distinção entre os filhos, sentido algum faria a proibição da prole eventual ser adotada, vez que deve ser conferido o mesmo tratamento tanto para os filhos biológicos como para os adotivos, conforme o princípio constitucional da igualdade entre os filhos.

Assim, todos os filhos, independente de sua origem, devem receber tratamentos isonômicos, de forma que o artigo 1.799, inciso I do Código Civil seja interpretado de maneira extensiva, aceitando que a prole eventual possa ser adotada e assim usufruir de todos os direitos inerentes ao testamento, como se concebida fosse.

 

 

REFERÊNCIAS

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______. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 05 fev. 2020.

 

______. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 17 jan. 2020.

 

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.

 

DINIZ, Maria Helena: Curso de direito civil brasileiro. 29. ed. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

FARIAS, Cristiano chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 3. ed. v. 7. Salvador: Juspodivm, 2017.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 6. ed. v. 7. São Paulo: Saraiva, 2019.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 11. ed. v. 7. São Paulo: Saraiva, 2017.

 

MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

 

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 38. ed. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

 

__________, SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: direito das  sucessões. 5. ed. v. 6. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: sucessões. 17. ed. v. 6. São Paulo: Atlas, 2017.

 

___________. Direito Civil: Direito das Sucessões. 14. ed. v. 7. São Paulo: Atlas, 2014.

 

 

 

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