O fenômeno da socialização dos contratos no Código Civil de 2002 e o princípio da boa-fé

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Resumo: O presente trabalho busca apontar os efeitos que a evolução socioeconômica mundial trouxe para o direito contratual. Assim, retrata o fenômeno da socialização suportado por esse instituto.

Sumário: I  Introdução, II  A moderna principiologia do direito contratual. II.1 Princípio da dignidade da pessoa humana, II.2 Princípio da boa-fé objetiva, Conclusão

I. Introdução

O instituto do Contrato, assunto que nos dedicaremos no presente estudo representa uma das figuras jurídicas mais importantes em todo o Direito Civil, quiçá a mais importante delas, pois trata da espécie socialmente difundida de Negócio Jurídico, consistindo, sem sombra de dúvida, na força motriz das engrenagens socioeconômicas do mundo[1].

Conforme leciona ARNOLD WALD[2] “poucos institutos sobreviveram por tanto tempo e se desenvolveram sob formas tão diversas quanto o contrato, que se adaptou à sociedade com estruturas e escalas de valores tão distintos quanto as que existiam na Antiguidade, na Idade Média, no mundo capitalista e no próprio regime comunista”.

Resulta impossível estabelecermos uma data específica para o seu surgimento, pois sua ocorrência se confunde com a própria evolução social e moral da humanidade. O que se pode afirmar é que sua sistematização jurídica é atribuída a Gaio que no Direito Romano a catalogou dentre as formas de obrigação.

O desenvolvimento socioeconômico mundial, alavancado, sobretudo, pelo capitalismo, fenômeno responsável pela organização da sociedade baseado na propriedade privada, nos meios de produção, na propriedade intelectual e na liberdade de contrato sobre bens, resultou em uma inversão drástica nos costumes da sociedade, com a predominância da vida urbana e a preocupação com o progresso e o acúmulo de capitais, conseqüentemente surgiu a necessidade de uma gradual adaptação legislativa.

Tal qual como estava regido no código civil de 1916, o contrato possuía um campo de incidência menos abrangente, pois na época, regulava as relações de consumo de uma sociedade rural, agrária, com a maior parte de sua população dependente do campo para sobreviver.

Com o advento do novo código civil, que em 10 de janeiro de 2003 entrou em vigor, uma nova realidade contratual surgiu.

Ao contrário das concepções individualistas que orientavam o Código Civil de 1916, no atual Código Civil a socialização representa uma de suas características mais marcantes, motivada pela velocidade de proliferação dos contratos de consumo, das variadas relações envolvendo produtos e serviços, celebrados diuturnamente por milhões e milhões de pessoas, consumidores em potencial.

Essa alteração trouxe um enfoque novo, atual, ou melhor, um aspecto CIVIL-CONSTITUCIONAL, objetivando atingir a FUNÇÃO SOCIAL do contrato, além da boa-fé e a eqüidade contratual, harmonizando, num só tempo, a autonomia privada e a solidariedade social.

Desta forma, o CC/2002 buscou apartar-se das concepções individualistas, premissas do diploma anterior (CC/1916), e trouxe uma visão moderna, compatível com a socialização do direito contemporâneo.

A propósito, com a evolução da sociedade através dos tempos, o direito de propriedade também suportou grandes transformações, partindo da idéia exposta no regime feudal, onde somente ao senhor cabia o direito de propriedade, para um conceito que consagrou a propriedade como um direito sagrado e inviolável.

Essa evolução se deu, sobretudo, com a Revolução Francesa 1789, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26/08/1789.

No que tange ao ordenamento jurídico brasileiro a previsão da função social da propriedade vem expressa nos arts. CF 5º caput, 5º, XXIII, 170, II e III, 182, 184 e 186. CC/2002 – art. 1228 parágrafo 1º e 2º.

A partir dessa concepção CIVIL-CONSTITUCIONALISTA, o contrato se transformou no veículo de circulação da riqueza, cerne da existência dos negócios e propulsor da expansão capitalista.

Com isso, foi possível redefinir contratos, que nas palavras de Pablo Stolze Gagliano conceitua contrato, genericamente, como sendo “um negócio jurídico bilateral, por meio do qual as partes, visando atingir determinados interesses patrimoniais, convergem suas vontades, criando um dever jurídico principal (de dar, fazer, ou não fazer), e, bem assim, deveres jurídicos anexos, decorrentes da boa-fé objetiva e do superior princípio da função social”.[3]

Aliás, de nada adianta, realmente, concebermos um contrato, com acentuado potencial econômico e financeiro, se em contrapartida, nos depararmos com um forte impacto negativo no campo social.

O dispositivo legal do CC que expressa esse processo de sociabilidade do contrato (art. 421 CC) dispõe: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Embora atual e bastante adequado ao momento, mencionado dispositivo mereceu propostas de reformas. A propósito, cumpre mencionar que com grande maestria foram propostas alterações pelos nobres doutrinadores Villaça Azevedo e Antonio Junqueira de Azevedo, por meio do projeto de lei 6960/2002, onde promovem um melhor entendimento e interpretação ao dispositivo, pois sugerem a retirada da partícula “de” na expressão “liberdade de contratar”, recomendando liberdade contratual que traduz na liberdade de estabelecer as cláusulas do contrato. Sugerem ainda, a supressão da expressão “em razão”, pelo fato de que a liberdade contratual está limitada pela função social do contrato, mas não é a sua razão de ser.

Assim, em conformidade com a legislação em vigor, a função social do contrato somente será atingida quando a distribuição de riquezas se der de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social.

II. A moderna principiologia do direito contratual

Devido às alterações efetuadas no CC/2002, o modelo clássico de contratos, atrelado a principiologia que vigorou no CC/1916 já não atendem mais aos reclamos e anseios de uma sociedade plural e despersonalizada.

Percebemos, portanto, que ao lado dos princípios clássicos, tais sejam:

– Principio da autonomia da vontade ou consentimento;

– Principio da força obrigatória do contrato;

– Principio da relatividade subjetiva dos efeitos do contrato

Outros tiveram que ser acrescentados, passando a reger a atual Teoria dos Contratos, em harmonia com o Texto Constitucional e, muito especialmente, guiado nos Princípios Fundamentais da Dignidade da Pessoa Humana e da Livre Iniciativa (art. 1º, III da CF e art. 170 caput CF). Tudo isso evidenciando o massivo fortalecimento do processo ou fenômeno identificado como Direito Civil Constitucional ou Constitucionalização do Direito Civil, que em suma significa a leitura do Direito Civil à luz da Constituição Federal.

Portanto, nesse contexto, antes de mencionarmos o Princípio da Boa-Fé, compete-nos trazer à baila um princípio fundamental da essência humana,  o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

II.1 PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 1º III CF)

Trata-se, pois, de uma cláusula geral de natureza principiológica e sua definição é tarefa árdua. A dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas patrimoniais e afetivas, indispensável à sua realização (do indivíduo) como pessoa e a busca da felicidade.[4] Representa algo além do direito de garantir a própria sobrevivência, nesse princípio se assegura o direito de viver plenamente, sem qualquer ingerência indevida e não autorizada, estatal ou particular, na vida do indivíduo.

Esse princípio alcança um instituto basilar do Direito Privado e por ser o primeiro fundamento constitucional ele assume característica de Direito Público. Chega alcançar status de Estado de Direito.

Podemos dizer que esse princípio resulta da aplicação direta do Principio da Proporcionalidade, desenvolvido na doutrina Alemã, onde o que se preza é a existência de um equilíbrio entre os direitos coletivos e difusos, respeitando os direitos individuais e fundamentais. Atualmente o princípio da Proporcionalidade vem sendo amplamente debatido, principalmente quanto às questões relativas aos avanços tecnológicos, a bioética e o biodireito, além, é claro, do Direto da Propriedade Intelectual e o Ciberdireito, refletindo diretamente no direito contratual.

II.2 PRINCIPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

Primeiramente resulta importante mencionar a grande diferença existente entre boa-fé subjetiva e objetiva.

A boa-fé subjetiva, também denominada boa-fé crença pode ser definida como um estado psicológico contraposto à má-fé, fundada em um erro de fato, ou melhor, em um estado de ignorância escusável.

Representa a intenção da pessoa de não prejudicar outrem na relação jurídica.

Já a boa-fé objetiva também denominada boa-fé leal, significa o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de retidão, lealdade, lisura e honestidade. Trata-se de uma regra de conduta pautada na retidão de caráter, principalmente na consideração para com os interesses legítimos do outro contratante.

No ordenamento jurídico pátrio, a primeira referencia à boa-fé subjetiva teve lugar no Código Comercial de 1850, em seu art. 132,I.

Com o advento do CC/1916, a noção de boa-fé subjetiva aparece em diversas ocasiões, de forma explícita, mas sempre sobre a ótica subjetiva, ou seja, fundada num erro de fato ou estado de ignorância desculpável[5]. A positivação da boa-fé objetiva em nosso ordenamento se deu a partir dos anos 30 do séc. XX, quando começou a proliferar uma sucessão de leis extravagantes e especiais, cujo escopo era disciplinar uma série de novos institutos (família, contratos, propriedade), surgidos com a evolução econômica e social.

Considerando a principiologia estampada na Constituição Federal de 1988, foi o Código de Defesa do Consumidor quem, pela primeira vez na legislação civil brasileira, de forma expressa, positivou a boa-fé objetiva[6].

Importando, assim, em uma conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento a ambos os contratantes.

Trata-se de um princípio, ou de uma cláusula segundo a qual faculta ao aplicador do Direito uma linha teleológica de interpretação, baseada na eqüidade ou nas decisões ex officio.

CONCLUSÃO

Evidentemente que a evolução socioeconômica mundial trouxe o progresso a sociedade. Desenvolvimento que se propagou em todos os âmbitos das relações pessoais, devendo, logicamente, ser acompanhado de um reconhecimento legal, cuja finalidade foi de regular os hábitos da convivência humana.

Devido ao fenômeno da intensificação das relações de consumo, diversos institutos tiveram que suportar o processo de socialização, para se afastarem das concepções individualistas que reinavam anteriormente, dentre eles, a propriedade e o contrato.

Desta forma, resulta inegável a íntima relação existente entre o direito de propriedade e o direito contratual, o que nos leva a afirmar que com a socialização da propriedade, o contrato também experimentou naturalmente o mesmo efeito. Porém, de forma implícita inicialmente, aguardando o reconhecimento legal deste fenômeno que posteriormente ocorreu. No direito contratual brasileiro, a legalização se deu, conforme já mencionado, com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor e foi seguido pelo Código Civil/2002.

No mundo globalizado em que vivemos atualmente, toda essa transformação representa uma fase importantíssima, momento de transição para um período interdisciplinar do Direito, onde prevalece a reforma das estruturas do pensamento, buscando a reconstruir uma sociedade com uma completa cognição social, para que o homem possa ser considerado, simultaneamente, como um ser biológico, cultural, psicológico e principalmente, social.

Portanto, contratos, sob a ótica do novo Código Civil, representam um ato que deve atingir a finalidade social, regulado pelos princípios da boa-fé, da moralidade, da lealdade, dos bons costumes e da ordem pública. Cabendo à magistratura nacional, com prudência e coragem, dar concretude a esses novos princípios contratuais, os quais, em suma, buscam alcançar a Justiça.

 

Referências
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, vol III: contratos e atos unilaterais, 3ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007.
PAMPLONA, Rodolfo Filho e STOLZE GAGLIANO, Pablo. Novo Curso de Direito Civil – vol. IV, São Paulo, Saraiva, 2005.
WALD, Arnoldo. O Contrato: Passado, Presente e Futuro, Revista Cidadania e Justiça, 1º semestre, 2000, Rio de Janeiro.
SILVA PEREIRA, Caio Mario da. Instituições de Direito Civil, vol. III – contratos, 12 ª edição, Ed. Forense, Rio de Janeiro.
Notas:
[1] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Filho Pamplona. Novo Curso de Direito Civil – vol. IV, Saraiva, SP, 2005, p.1
[2] Arnoldo Wald. O Contrato: Passado, Presente e Futuro, Revista Cidadania e Justiça, 1º semestre, 2000, Rio de Janeiro, p. 43.
[3] Pablo Stolze Gagliano. ob.cit., p.15
[4] Pablo Stolze Gagliano, ob.cit., p. 31
[5] Ex: efeitos civis do casamento putativo (art. 221 CC/1916); requisitos para a usucapião (arts. 550 e 581 CC/1916); proteção daqueles que alienam de boa-fé imóvel que recebeu indevidamente (art. 968 CC/1916); etc.
[6] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Patricia Borba Marchetto

 

Doutora em Direito Administrativo e Processual pela Universidade de Barcelona – Espanha.
Professora do curso de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP. Ministra aulas no Programa de Pós Graduação em Biotecnologia da UNESP, na disciplina de Bioética e os Avanços Tecnológicos

 


 

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