A razão da idade. Mitos e verdades. Da flagrante inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Resumo: O presente artigo busca demonstrar que a idade mínima de imputabilidade penal fixada em 18 anos, estabelecida no artigo 228 da Constituição Federal é regra que não pode ser alterada, pois matéria integrante do núcleo essencial do texto constitucional. O Estado Democrático de Direito tem a sua estrutura fundada em princípios que o orientam para a promoção da dignidade humana, não sendo admissível a existência de alterações constitucionais que impliquem retrocesso social e a mitigação de direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos. Descortina-se que a regra da idade penal mínima é disposição de caráter duplo, pois sendo garantia asseguradora de direito individual, apresenta-se como condição de possibilidade do pleno desenvolvimento social da infância e juventude.

Palavras-chave: Imputabilidade, Fundamental, Paradigma.

Abstract: The present article tried to demonstrate that the minimum age of penal imputability, fixed in eighteen years old, established in the article 228 of the Federal Constitution, is a rule that cannot be modified because matter componente of the nucleus essential of the text constitutional.The Democratic State of Right has its structure grounded in standards which lead it to the human dignity promotion, in a way that the existence of constitutional changes which imply social backward motion is not allowed and injury the rights fundamentals The historical process evolution, which had the Constitution of 1988 as a result, leads to its legitimacy as an original power. It becomes evident that the rule regarding the minimum penal age is a disposition of double aspect and, as it is the guarantee which assures the individual right, it is also presented as being a condition of possibility of the childhood and youth’s integral social development.

keywords: Imputability, Fundamental, Paradigm.

Sumário: Introdução. 1. A menoridade na legislação penal pátria. Direito Penal Indígena. 1.1. As Ordenações Filipinas. 1.2. O Código Penal do Império 1830. 1.3. A reforma de 1984 – a Lei 7.209/84. 2. A redução da idade e os Princípios como conformadores do Estado Democrático de Direito. 2.1. Breves notas sobre princípios e regras. 2.2. As funções dos princípios na Constituição. 2.3. Limites materiais explícitos e implícitos.2.4. O caráter aberto dos direitos fundamentais. 2.5. A impossibilidade de alteração da idade penal mínima enquanto direito de cidadania. A adoção do critério: uma opção política. 2.6. A incidência do Princípio do Não-retrocesso Social na questão da idade penal mínima. 3. Conclusão.4. Referências bibliográficas.

1- A menoridade na legislação penal pátria.  Direito Penal Indígena.

Quando do descobrimento do Brasil, os silvícolas que aqui habitavam já eram divididos em diversas tribos, as quais tinham suas regras penais consuetudinárias. Segundo registros históricos, tais nativos possuíam seus regramentos sociais. As suas crianças eram castigadas, desde a tenra idade, para que aprendessem a comportar-se, tendo como exemplo a conduta dos mais velhos. Elucidante a anotação de Pierangelli: O Direito selvagem estava na consciência do indígena. Residia nas tradições e nos costumes das tabas e das tribos. Aí os princípios jurídicos se encontravam e eram religiosamente respeitados” (PIERANGELLI, 1980, p. 21).

Descoberto o autor de pequenos ilícitos, basicamente os furtos, aplicavam-se lhe não grandes punições, mas castigos brandos, tais como ferimentos nos braços ou coxas, que ditados pelos superiores, consistiam em reprovação aos infratores.

1.1. – As Ordenações Filipinas.

O Direito Penal no Brasil Colônia tinha por fonte o famoso Livro V das Ordenações do Reino. Não se tratava de um Código, no sentido moderno, mas de uma consolidação de direito real. Caracterizava-se por ser um estatuto híbrido, no qual se misturavam coisas de Estado e da Religião, neste procurava-se conter “…os maus pelo terror…”.Na graduação da pena considerava-se, somente a utilidade desta. Fazia-se da pena capital uma práxis, seu uso era excessivamente abusivo, desmedido. Abundavam as penas infamantes, tais como açoites, galés e as marcas de fogo.

As penas caracterizavam-se pela exorbitância e ferocidade punitiva. Confundia-se, Direito e Moral com a Religião. A pena de morte era prodigalizada. Aplicaram-se penas corporais, mutilações e mesmo pena capital até para crianças com menos de 10 (dez) anos.

Consoante o magistério do ilustre José Frederico Marques:“…menores podendo ser condenados até mesmo à pena de morte, conforme o arbítrio do julgador (MARQUES,1991,p.47).

1.2 – O Código Penal do Império – 1830.

No Código Imperial, abre-se uma parte geral sobre os crimes e as penas. O Título define de forma abstrata os “crimes justificáveis”, o criminoso, as circunstâncias agravantes e atenuantes. A satisfação, que atualmente corresponde à indenização da vítima também era objeto do Codex. As penas definidas no Título II incluem-se penas de morte, galés, prisão com trabalhos, prisão simples, banimento, degredo, desterro, privação de direitos políticos, perda de emprego público e multas. Muitas foram as novidades, mas a  novidade foi a previsão da circunstância atenuante da menoridade desconhecida até então nas legislações francesa  e  napolitana. Todavia o legislador ordinário, inseriu no Código Criminal de 1830 a menoridade penal aos 14 (quatorze) anos. Dí-lo o artigo 10 § 1º: “Também não se julgarão criminosos: os menores de quatorze annos”.

Na vislumbrada legislação havia quatro espécies de menores:Menores de 14 (quatorze) anos – tidos como inimputáveis, salvo se obrassem com discernimento;Menores de 14 (quatorze) anos – que tivessem agido com discernimento, seriam recolhidos em casa de correção por tempo determinado pelo juiz, mas não podendo superar, recolhido, a  idade de 17 (dezessete) anos;Menores com mais de 14 (quatorze) e menos de 17 (dezessete) anos de idade, conforme o entendimento do juiz receberiam a pena de cumplicidade;Os maiores de 17 (dezessete) e menores de 21 (vinte e um) – caberia aplicar-lhes a atenuante genérica de menoridade.

1.3 – A reforma de 1984 – a Lei 7.209/84.

O Código Penal de 1984 revelou-se bastante eclético, pois tentou conciliar sob o seu texto o pensamento neoclássico e o positivista, como bem salienta a Exposição de Motivos.

No tocante aos menores, a reforma em tela manteve a idade da imputabilidade penal em 18 anos. Tal previsão passou a ser tipificada no artigo 27 da parte geral reformada.

A posição adotada, à revelia da grita quase que geral, no sentido do rebaixamento da maioridade (já existente à época), justifica-se já no artigo 23 da sua Exposição de Motivos, denotando tal preocupação com o efeito nefasto, que a miscelânea do infante com o delinquente adulto poderia acarretar, declarando que com a legislação de menores vislumbrada, disporia o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinquente, menor de 18 anos do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinquente adulto, expondo-o à contaminação carcerária. Deste modo manteve-se o critério biológico ou etilológico, corroborando o sistema francês.

Clara e precisa a lição de Cézar Bittencourt, para quem: “A legislação brasileira seguiu o critério biológico, ignorando o desenvolvimento mental do menor de 18 anos, considerando-o inimputável, independentemente de possuir plena capacidade de entender a ilicitude do fato de determinar-se segundo esse entendimento” (BITTENCOURT, 2003, p.308).

Sempre muito lúcido, ministrou Nélson Hungria a respeito do critério adotado para a fixação da idade penal: “este preceito resulta menos de um postulado de psicologia científica do que de um critério de Política Criminal” (HUNGRIA, 1949, p.40).

2.-  A redução da idade e os Princípios como conformadores do  Estado Democrático de Direito.

A compreensão da possibilidade de mudança da Constituição, sem que isso implique a desnaturação de sua essência, passa necessariamente, pelo exame do papel fundamental que os princípios exercem no Estado Democrático de Direito. Assim, impõe-se de modo prévio, tecer algumas breves considerações sobre a questão principiológica e a (im)possibilidade da redução da idade à luz da principiologia adotada pela ordem jurídica vigente.

É da própria essência constitucional, a apresentação de uma instrumentalização para viabilizar que o vir-a-ser de uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria existência do Estado, torne-se uma realidade.

Sem que no ponto de partida do ordenamento jurídico – no caso a Constituição – encontre-se uma base de princípios – explícitos ou implícitos – que oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de sentido, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu ordenamento transformar-se-á numa junção de preceitos, desprovido de qualquer capaciade de coordenação do todo.

A evolução do Direito, com a superação do positivismo dogmático, permitiu que os princípios deixassem de ser fonte subsidiária – aliás, de último recurso, só quando todas as possibilidades estivessem esgotadas – para assumir um papel de centralidade interpretativa e aplicativa no ordenamento jurídico. E como o Estado Democrático de Direito não pode ser pensado sem ser um Estado principialista, importante a compreensão do que seja e como é a sua atuação, isto é, como os princípios revelam e efetivam a Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito.

2.1 Breves Notas Sobre Princípios e Regras.

São os princípios que assumem a proeminência no sistema jurídico.E, no Direito Constitucional, tornam-se ferramentas essenciais para a interpretação e aplicação da normativa constitucional.

As normas jurídicas que formam o ordenamento apresentam duas configurações basilares: princípios e regras. As duas com força normativa, pois superada a questão da obrigatoriedade em relação aos princípios e as regras, que, de um modo geral, são as concretizações dos princípios, particularizando-os, nunca tiveram maior problema em relação a isso, uma vez que enquadráveis no esquema de subsunção do fato ao padrão legal previamente estabelecido.

A distinção entre um princípio e uma regra nem sempre se apresenta de forma cristalina, pois vários são os critérios para uma diferenciação. Joaquim Canotilho, após ressaltar a complexidade da matéria, enumera critérios que podem ser utilizados para a distinção:

a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida.

b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? Do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta.

c) Caráter de fundamentabilidade no sistema de fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).

d) ‘Proximidade da ideia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ ou na ‘ideia de direito’; as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

f) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”(CANOTILHO,1994, 1086).

Fixado o critério qualitativo para a diferenciação entre princípios e regras, passa-se a analisar a função dos princípios como definidores do núcleo essencial da Constituição.

2.2 –  As funções dos princípios na Constituição.

Uma ordem constitucional instituidora do Estado Democrático de Direito, necessariamente é um sistema normativo aberto, composto de regras e princípios. Tem que ser um sistema aberto, pois, face à “intenção” de perenidade de toda Constituição, tal desiderato jamais seria atingido se não houvesse a possibilidade de atualização dos conteúdos das normas constitucionais. A principiologia garante que a Constituição ganhe vida e força para continuar a ser a conformadora do Estado e da vida social.

Definição clássica acerca dos princípios faz Celso Antônio  Bandeira de Mello: “É o principio juridico mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental  que  se  irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de criério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (MELLO,1982,p.107).

Os princípios também dão a unidade sistêmica da Constituição, fazendo a integração de suas diversas normas, interligando-as em conexões de sentido, pois somente perante uma estrutura normativa referenciada entre si é que será possível uma perfeita interpretação, que necessariamente tem de ser sistêmica.Para além dessas funções, os princípios funcionam como identificadores do núcleo político essencial da Constituição.

A Constituição Fedral consigna os princípios fundamentais nos artigos 1º a 4º, no seu Título I – Dos Princípios Fundamentais. A partir daí, mais o que contém o seu preâmbulo, é permitido verificar quais são os princípios explícitos – isto é, expressos na Lei Magna – que são tidos como fundamentais para a caracterização do núcleo essencial (imodificável, pode-se dizer) da Constituição.

Além dos princípios fundamentais referidos nos artigos do Título I, outros princípios – ou princípios decorrentes daqueles, que funcionam como explicitação dos indicados como fundamentais – emergem de distintos locais da Constituição e também integram o núcleo essencial.

Sem a menor dúvida, pode-se afirmar que a proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do princípio da dignidade humana. Mas o Constituinte acrescentou um plus, tornou a consecução plena de tal princípio prioritária em relação à criança e ao adolescente. E esse acréscimo – mesmo tendo ocorrido fora das disposições do Título I – erige a total preferência estabelecida como um princípio fundamental, integrativo do núcleo essencial da Constituição.

2.3- Limites materiais explícitos e implícitos.

Limitações materiais explícitas, expressas, cláusulas pétreas, cláusulas de intangibilidade, cláusulas de irreformabilidade ou garantias de eternidade, são enunciações constitucionais das matérias que não podem ser objeto de alteração ou pelo menos, não podem ser modificadas em determinado sentido.       Em outras palavras, são as impossibilidades reformatórias indicadas, modo expresso, no texto da Constituição. Ou Conforme assevera José Gomes Canotilho: “Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas matérias às disponibilidades do poder de revisão (CANOTILHO, 1987,p.211).

Numa retrospectiva das Constituições brasileiras, verifica-se que nunca houve texto constitucional com elencação tão expressiva de limites expressos para a reforma constitucional como o da vigente Carta Magna. O rol de limites expressos encontra-se no artigo 60§ 4º, em que é vedada qualquer deliberação sobre a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

Pode-se dizer que as limitações expressas ao poder de reforma, insculpidas nos textos constitucionais, visam à proteção dos princípios básicos e essenciais da Constituição, bem como as “implicações e desdobramentos” –em relação às vedações expressas, inviável ao poder reformador, qualquer possibilidade de alteração reducionista.

Por sua vez, as limitações implícitas ao poder de reforma existem para preservar a estrutura fundante e a relação entre os princípios que balizam uma Constituição, evitando-se a desnaturação de seu texto. Seria impossível tentar delimitar quais são os limites tácitos de reforma da Constituição de uma maneira abstrata, pois sempre serão variáveis, já que devem estar de acordo com os princípios fundamentais que cada normativa constitucional consagrar. Identificadas as vedações implícitas perante uma Constituição, ficam essas erigidas no mesmo patamar dos limites materiais expressos, uma vez que também preservam a ordem constitucional de um desvirtuamento que implique ruptura.

Os princípios fundamentais que estão protegidos pelas limitações implícitas são aqueles – que juntamente com os que são objeto de cláusula de intangibilidade expressa – funcionam como fio condutor do sistema constitucional, estruturando a Constituição no seu todo. Vale dizer, representam o núcleo político da Carta Magna, consubstanciando as diretrizes de efetivação plena do Estado Democrático de Direito.

2.4 – O caráter aberto dos direitos fundamentais.

A Constituição Federal conforme se vê do § 2º do artigo 5º, abriga o caráter materialmente aberto dos direitos fundamentais, pois permite localizar tais direitos em todo o seu texto e não só aqueles que estão elencados no catálogo que apresenta o Título II. Além disso, autoriza o reconhecimento de outros direitos fundamentais que não se encontram no texto constitucional (direitos materialmente fundamentais), desde que decorram do regime e princípios por ela adotados, bem como de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. Vale dizer, o rol de direitos fundamentais elencados na Constituição não é exaustivo, permitindo a localização de outros.

Com efeito, os direitos fundamentais são históricos e resultam de um processo de conquista dos seres humanos e correlacionam-se com as necessidades concretas de cada sociedade em um determinado momento de sua existência. As necessidades surgem – especialmente num mundo cambiante como o atual – implicando a valoração deste ou daquele bem jurídico, que passa a ter relevância e acaba sendo considerado fundamental. Dentro desse contexto, por óbvio, a pretensão de reconhecer-se um direito não incluído na Constituição como fundamental somente através de uma interpretação restritiva implicaria o afastamento do sistema jurídico da realidade, mormente por tais direitos não se afigurarem topologicamente entre o específico título na Carta Constitucional, o que em nada contribuiria para a valoração da dignidade humana, que é um princípio fundamental e norteador do Estado Democrático de Direito, além de retirar ou, pelo menos, minimizar a função transformadora do Direito. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade e apreciar a questão do alcance das cláusulas pétreas na Ação Direta nº. 939, quando reconheceu ao princípio de anterioridade, previsto no artigo 150, III, b, da Constituição Federal, a característica de direito individual do contribuinte e em consequência estendeu-lhe a proteção do artigo 60§ 4, inciso IV da Constituição Federal. Logo, para o reconhecimento de um direito fundamental fora do catálogo, essencial o estabelecimento de critério para sua identificação e isso se faz possível pelo exame do conteúdo de cada direito, para verificação de sua fundamentabilidade.

Tal entendimento é anunciado por Jorge Miranda: “A fundamentabilidade material de um direito decorre de sua imbricação direta com a pessoa humana, valorizando a sua dignidade; e resulta, também, da concepção de Constituição dominante, da ideia de Direito, do sentimento jurídico coletivo”. É importante observar que se uma Constituição – nem formal e nem materialmente – valoriza os direitos fundamentais, por não procurar a concreção da dignidade humana, o problema não são os direitos fundamentais, mas a Constituição que é deficiente, a denotar que o Estado padece de essencial falta de centralidade antropológica, que provavelmente, tem origem na ausência de um regime político democrático a presidi-lo (MIRANDA, 1998,136).

Pode-se concluir, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana é valor-referência da Constituição, podendo ser visualizado como o catalisador, dando o tom de fundamentabilidade a uma posição jurídica de todos os direitos fundamentais materiais.

Feitas essas anotações sobre os direitos fundamentais, pode-se afirmar que a doutrina da proteção integral acolhida pela Constituição – artigo 227 e parágrafos – apresenta caráter de fundamentabilidade, pois tem por escopo valorizar a dignidade humana da infância e adolescência, fazendo isso de forma reforçada, já que reconhece a essa categoria de pessoas (crianças e adolescentes, rectius menores de dezoito anos) absoluta prioridade no atendimento de suas necessidades. A intenção específica de valorizar e proteger o indivíduo conferido-lhe tratamento compatível com suas características de pessoa em desenvolvimento aponta para o caráter fundamental do direito à inimputabilidade penal. E a regulação é essencialmente reconhecedora de direitos a prestações específicas, tanto em sentido amplo como em sentido restrito.

 A idade penal mínima é autêntico direito fundamental localizado fora do catálogo elencado pela Constituição no Título II, pois inequivocamente vinculado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

2.5- A impossibilidade de alteração da idade penal mínima enquanto Direito de Cidadania. A adoção do critério: uma opção política.

Os defensores da diminuição da idade da imputabilidade penal cometem um grande equívoco, não reconhecendo que a sua fixação foi uma opção política do Constituinte de 1988. Logo, toda e qualquer discussão com base na teoria do discernimento, como vem sendo travada, é desfocada. O critério para estabelecer a idade penal mínima foi político, não tendo relação com a capacidade ou incapacidade de entendimento.

Aceitar-se que a fixação constitucional da imputabilidade penal baseia-se na falta de compreensão do caráter ilícito ou antissocial de uma conduta criminosa implica em equiparar adolescentes a insanos mentais e isso à evidência, é algo que padece de um mínimo de coerência. Ninguém tem dúvida de que o jovem e mesmo a criança têm plena capacidade de entender que é reprovável furtar, danificar, matar. A condição e o comportamento próprio de  crianças e adolescentes é algo absolutamente normal no comportameno humano: por ela passam necessariamente todos os seres, estão estes em fase desenvolvimentista que evidencia o processo biopsíquico e socioantropológico, que claramente não guarda nenhuma similitude com a  insanidade mental.

A decisão foi no sentido de valorização da dignidade humana de todas as pessoas menores de dezoito anos, de acordo com a tendência internacional de reconhecimento jurídico da doutrina da proteção integral, que acabou consubstanciada na Convenção Internacional sobre Direitos da Criança. Em outras palavras, sendo o Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a fixação da imputabilidade penal aos dezoito anos representa o seu compromisso com a valorização da adolescência, por reconhecer tratar-se de uma fase especial do desenvolvimento do ser humano.

Aliás, o discurso para redução da idade de responsabilidade penal é essencialmente político. Trabalha-se com o mito de que aumentando o número de clientes potenciais do sistema penitenciário haverá uma diminuição dos delitos cometidos por adolescentes, por força de um pretenso efeito intimidador e fim da impunidade.

Os argumentos utilizados são carreados de falácia e na verdade, encobertam uma opção ideológica por um Estado mínimo. Não existe nenhuma base séria para a afirmação de que o aumento de apenação diminui a criminalidade. Se assim fosse, onde é adotada a pena de morte ter-se-ia a redução da prática de crimes e não há notícia de que isso esteja acontecendo. A idéia da impunidade é um outro mito que precisa ser desmascarado.

Com o devido realismo, o atendimento ao clamor coletivo para a diminuição da idade de imputabilidade, na prática, certamente alcançaria maciçamente aos marginalizados, pois como desassistidos em suas necessidades essencias pelo Estado, representam a maioria dos adolescentes que entra em conflito com a lei.Trata-se de uma postura típica do movimento neoliberal, que apregoa e prenuncia a figura do Estado mínimo, leia-se Estado distante, omisso.

A ótica dentro do novo modelo implantado pela Constituição, é a de exigir que o Estado cumpra com sua obrigação de garantir um desenvolvimento sadio à infância e adolescência, pois com certeza, havendo o devido atendimento, ocorrerá uma sensível diminuição da criminalidade juvenil.

A intenção de modificação da idade penal mínima enquadra-se, certamente, no contexto da crise pela qual passam a sociedade, a democracia e a cidadania, em decorrência da globalização econômica mundial.

2.6 – A incidência do Princípio do Não-retrocesso Social na questão da idade penal mínima.

O princípio do não-retrocesso social passou a ter aplicação no campo dos direitos sociais, mais diretamente em relação aos direitos a prestações em sentido estrito, ainda que não exclusivamente, visando a impossibilitar que direitos fundamentais implementados, ou delineados no tocante a sua  efetivação, viessem a ser suprimidos ou diminuídos.

Isso porque, representando os direitos fundamentais implementados, uma conquista, não se faz possível um retrocesso prejudicial ao pleno exercício – ou exercício parcial – de uma posição jurídica fundamental alcançada para fruição. Funciona a proibição de retrocesso como uma eficácia impediente de retrogradação do desenvolvimento atingido, sendo passível – a supressão ou diminuição do direito fundamental – de ter a sua inconstitucionalidade reconhecida.

Em que pese consagrado o princípio do não-retrocesso social quando do tratamento de questões atinentes a direitos e prestações positivas, inexiste qualquer óbice de aplicá-lo em relação a todo e qualquer direito fundamental. Vale dizer, a proibição de retrocesso incide sempre que, no âmbito do Estado Democrático de Direito, proceda-se de modo a suprimir ou diminuir uma posição jurídica materialmente fundamental.

3- Conclusão.

A criminalidade no país é crescente, a violência urbana e a sensação de insegurança angustiam e assolam a sociedade, produzindo uma gama enorme de proposições visando o seu enfrentameno e mais uma vez, o Direito Penal é invocado como solução para a diminuição da violência. Este é então visto como uma espécie de  “panacéia  universal”, ou seja, um remédio para curar e sanar todos os males causados pela elevação dos índices da criminalidade.

E sob tal raciocínio simplista e reducionista, cristalizou-se o pseudo entendimento de que a violência somente diminuirá se houver maior rigor na aplicação de leis penais, com adoção de regras mais severas, encarceramento maciço da população, com a respectiva mitigação de direitos e garantias individuais. Essa vertente de pensamento que prega o recrudescimento legal, vem ganhando espaços expressivos no cenário político e social, pois aproveitando-se do sentimento de insegurança da população, aliado ao desconhecimento da realidade fática, é possivel ver o oceano de distorções produzidos pela desinformação.

A fundamentabilidade material de um direito decorre da sua imbricação direta com a pessoa humana, reconhecendo e valorizando a sua dignidade, caracterizando-se por ter a função de proteger e garantir determinados bens jurídicos do homem, destacando a idéia de dignidade humana universalmente aceita, sendo portanto tais direitos resguardados sob o manto da intangibilidade constitucional.

A natureza de direito fundamental materializado na idade de imputação penal é revelada através da interpretação vinculada dos artigos 227 e 228 da Constituição. Demonstra-se como autêntico direito fundamental, protetivo e valorizador do individuo, ao conferi-lhe tratamento compatível com suas características de pessoa em desenvolvimento. A idade penal mínima é legítimo direito fundamental fora do catalógo elencado pela Constituição no Título ll, pois inegavelmente vinculado ao princípio da dignidade da pessoa  humana.

Por outra dimensão, o critério adotado pelo legislador ordinário, ao declarar no artigo 27 do Código Penal a imputabilidade penal aos 18 anos Penal, é apoiado em critérios de política criminal, conforme leitura da Exposição de Motivos, no artigo 23, que já nos idos da década de 80 previu os efeitos nefastos como a degenerescência e o sacrifício dos menores, que poderiam ocorrer em virtude da contaminação destes em meio carcerário com indivíduos adultos.

A redução da maioridade penal perverte e subjuga a racionalidade da principiologia constitucional na medida em qua abole o tratamento constitucionalmente conferido ao adolescente e inspirada no tratamento exclusivamente repressivo, esvazia de sentido a ótica de responsabilização menorista consubstanciada nas medidas socioeducativas e na própria responsabilidade do Estado perante a finalidade ressocializante do adolescente em conflito com a Lei.

O artigo 228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade humana, pois preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição jurídica outorgada ao adolescente, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, tal dispositivo normativo é insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer possibilidade de que sofra alteração.

A proposta de Emenda à Constituição 171/93, atualmente em curso no Congresso Nacional, a qual visa a redução da maioridade penal vê-se corroída de inconstitucionalidade, porque além de inóqua e ineficaz sob o ponto de vista redutor da criminalidade, aludida redução fulmina de morte uma conquista do adolescente, indivíduo ainda em formação e que sob o prisma da igualdade substancial é um ser diferente, portanto merecedor de tratamento distinto daquele deferido aos adultos, sendo forçoso reconhecer a intangibilidade de ser possuidor de um bem maior e indevassável: a Dignidade Humana.

 

Referências
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimp. Coimbra: Coimbra, 1994.
______. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, [1999].
LIMA, José Grimaldo de. O Direito na História. São Paulo, Max Limonad, 2001.
MACHADO, Marta Toledo de. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos. São Paulo, Manole, 2003.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Ed. RT, 1982, pág. 107 e ss.
PASCUIM, Luiz Eduardo Pascuim. Menoridade Penal. 1ª ed.,Curitiba. Juruá, 2006.

Informações Sobre o Autor

Tâmara Santos da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB/BA, Especialista em Direito Processual Lato Sensu pela Universidade Anhanguera – Uniderp, Servidora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia


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