Os dispositivos legais que permitem a contratação direta, sem licitação, de estatais que atuam em regime concorrencial são constitucionais?

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Autor: Francisco Eduardo Carrilho Chaves – advogado, consultor do Senado Federal e autor do livro Controle Externo da Gestão Pública – a fiscalização pelo Legislativo e pelos Tribunais de Contas (2ª ed., Niterói, Impetus, 2009) – email: [email protected].

Resumo: Inúmeras leis conferem à administração pública a possibilidade de, dispensada prévia licitação, contratar diretamente empresas estatais que atuam em mercados concorrenciais, nos quais travam disputas com suas congêneres da iniciativa privada. Este artigo questiona a prática e procura demonstrar a inconstitucionalidade desses comandos legais.

Palavras-chave: empresa estatal; empresa pública; sociedade de economia mista; exploração de atividade econômica; art. 173; art. 37; contratação direta sem licitação; dispensa de licitação; inconstitucional; impessoalidade; igualdade; livre concorrência.

 

Abstract: There are plenty of laws allowing public administration to, without prior bidding, directly contract state-owned companies that operate in competitive markets, in which they have disputes with their private sector counterparts. This article challenges the practice and seeks to demonstrate the unconstitutionality of these legal commands.

Keywords: state owned company; public company; mixed capital company; economic activity exploration; art. 173; art. 37; direct contracting without bidding; bidding waiver; unconstitutional; impersonality; equality; free competition.

 

Sumário: Introdução; 1. Exemplos de comandos legais que permitem a contratação de estatais pelo poder público sem licitação prévia; 2. A atuação das estatais em regime de mercado; 3. Análise crítica da prática estatal de permitir a contratação direta, sem licitação, de estatais que atuam em regime concorrencial; Conclusão; Referências.

 

Introdução

É comum, diríamos mais que usual, leis preverem que órgãos e entidades da administração pública possam contratar diretamente empresas estatais, sem necessidade de licitação, mesmo as que exercem atividades econômicas em regime concorrencial. Deparamo-nos com comandos dessa natureza com uma frequência altíssima.

Neste artigo verificaremos se essas previsões legais encontram eco no texto constitucional. Em outras palavras, se o constituinte deu permissão ao legislador ordinário para produzir tais normas, que concedem inegável vantagem competitiva às empresas estatais em relação às suas congêneres constituídas com capital unicamente privado.

 

  1. Exemplos de comandos legais que permitem a contratação de estatais pelo poder público sem licitação prévia

Trazemos alguns exemplos dessas prescrições legais nos parágrafos seguintes, em preâmbulo à exposição de nossas ideias sobre a matéria.

O art. 11-C da Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, incluído pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, autorizava a contratação direta da Caixa Econômica Federal (CEF) para fazer as avaliações para fins de alienação onerosa dos domínios pleno, útil ou direto de imóveis da União. A Medida Provisória (MPV) nº 915, de 27 de dezembro de 2019, ainda em apreciação pelo Congresso quando da conclusão deste artigo, alterou o referido artigo, para franquear a contratação sem licitação não apenas da CEF, mas de qualquer banco público federal ou empresa pública.

O art. 7º da Lei nº 12.404, de 4 de maio de 2011, com alterações feitas pela Lei nº 12.743, de 19 de dezembro de 2012, determina ser dispensada a licitação para a contratação da– Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL) por órgãos ou entidades da administração pública com vistas à realização de atividades pertinentes ao seu objeto.

A Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que criou o Bolsa Família, atribuiu à CEF, no seu art. 12, a função de Agente Operador do Programa Bolsa Família, mediante remuneração e condições a serem pactuadas com o governo federal.

Na Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010, que dispõe sobre a exploração das reservas do pré-sal e de áreas estratégicas sob o regime de partilha de produção, cria o Fundo Social (FS) e dá outras providências, alguns comandos autorizam a contratação da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) sem licitação.

O parágrafo único do art. 7º da Lei permite contratar diretamente a estatal petrolífera para promover a avaliação do potencial das áreas do pré-sal e das áreas estratégicas, tarefa que incumbe ao Ministério de Minas e Energia, diretamente ou por meio da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

O art. 8º da mesma Lei permite a celebração de contratos de partilha de produção diretamente com a Petrobras, dispensada a licitação (inciso I). A Lei do Pré-Sal beneficia a estatal, livrando-a de disputar atrativo mercado com suas concorrentes privadas, que, contudo, se quiserem celebrar contratos de igual jaez, precisam ganhar licitação (inciso II).

A sociedade de economia mista igualmente pode ser contratada diretamente pela ANP para realizar as atividades de avaliação das jazidas, localizadas ou não em área do pré-sal ou em áreas estratégicas, que se estendam por áreas não concedidas ou não partilhadas, conforme prevê o art. 38 da Lei nº 12.351, de 2010.

A Lei do Pré-Sal favorece a Petrobras, novamente, quando aquinhoa o poder público com a possibilidade de contratar a empresa sem licitação para ser o agente comercializador do petróleo, do gás natural e de outros hidrocarbonetos destinados à União no regime de partilha de produção (art. 45, p.u.).

Anotamos que a contratação será feita pela empresa pública de que trata o § 1º do art. 8º da Lei nº 12.351, de 2010, que se trata da Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. – Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), criada pela Lei nº 12.304, de 2 de agosto de 2010, e cujo objeto é a gestão dos contratos de partilha de produção celebrados pelo Ministério de Minas e Energia e a gestão dos contratos para a comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos da União.

Por fim, em relação à Lei nº 12.351, de 2010, citamos o art. 54, pelo qual a União poderá contratar – remuneradamente, portanto – instituições financeiras federais para atuarem como agentes operadores do Fundo Social.

O art. 5º da Lei nº 12.550, de 15 de dezembro de 2011, que autoriza a União a criar a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), dispensa a licitação para a administração pública contratar a empresa para realizar atividades relacionadas ao seu objeto social. Anotamos que, apesar de a finalidade da empresa ser a prestação de serviços gratuitos à comunidade, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como a prestação de serviços às instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres (art. 3º), a estatal será remunerada por esses serviços (art. 8º, II, a), seja pelo SUS, seja pelas instituições de ensino, seja por planos de saúde, quando atender a seus segurados ou conveniados.

A própria criação da EBSERH é um capítulo à parte, merecedor de um artigo exclusivamente dedicado a ela.

Há outras leis que nomeiam especificamente a estatal que poderá receber a benesse de ser contratada sem passar por procedimento licitatório.

A exemplo do art. 11-C da Lei nº 9.636, de 1998, e do art. 54 da Lei nº 12.351, de 2010, existem também previsões genéricas em outros normativos legais. A principal e mais conhecida é do inciso VIII do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que dispensa a licitação para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência daquela Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.

Por seu turno, a Lei das Estatais decreta ser dispensável licitar nas contratações entre empresas públicas ou sociedades de economia mista e suas respectivas subsidiárias, para aquisição ou alienação de bens e prestação ou obtenção de serviços, desde que os preços sejam compatíveis com os praticados no mercado e que o objeto do contrato tenha relação com a atividade da contratada prevista em seu estatuto social.

Concluímos a introdução pontuando que este trabalho tem caráter exclusivamente jurídico e a análise aqui empreendida baseia-se em argumentos técnicos, tendo sempre como pano de fundo a Constituição da República. Não defendemos posições ideológicas ou panfletárias.

 

  1. Atuação de estatais em regime de mercado

Com perplexidade, vemos, ao longo de tantos anos depois de promulgada a Carta Cidadã de 1988, notadamente em face do art. 37, caput e inciso XXI, e do § 2º do art. 173, o legislador infraconstitucional criar contratações diretas, sem licitação, de empresas estatais que atuam em regime concorrencial.

Temos que essas medidas são inconstitucionais, não obstante serem usadas com tamanha contumácia. A prática é de tal forma arraigada que passa por algo normal. Trata-se de típico caso que se amolda perfeitamente ao dito popular de que “o uso do cachimbo faz a boca torta”. Neste artigo, cartesiana e fundamentadamente, comprovaremos o desacerto jurídico dessa prática.

Impende consignar, de plano, que estar ou não em regime concorrencial não deriva de livre opção legislativa ou do ato de criação da empresa estatal, ainda que decorrente da escolha da atividade a ser desenvolvida pela pessoa jurídica. Portanto, ao definir o objeto social e as finalidades estatutárias da empresa, definir-se-á igualmente se ela atuará em seara onde há ou não concorrência com atores privados.

Vamos além, consideramos que pelo simples fato de uma atividade ser de cunho econômico, mesmo quando absolutamente nova, nunca tendo sido exercida nem por particular nem pelo Estado, ainda que seja gravada pelo regime de serviço público, por sua natureza, prima facie, ela pode ser exercida por particulares. Naturalmente, a artificialidade da legislação – uma escolha do legislador – pode afastar a iniciativa privada da atividade, mas esta é a exceção, não a regra, porquanto não existe uma peculiaridade ontológica que distinga a atividade econômica passível de desempenho por regime de direito privado e aquela submetida a regime de direito público próprio do serviço público.

Considerando que vivemos em um Estado democrático de direito, em que os valores sociais da livre iniciativa são uns de seus fundamentos (art. 1º, IV, da CF), onde ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF) e no qual é: livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, na forma da lei (art. 5º, XIII, da CF); plena a liberdade de associação para fins lícitos (art. 5º, XVII, da CF); e garantido o direito de propriedade, que deverá atender a sua função social (art. 5º, XXII e XXIII, da CF); bem como onde a livre iniciativa – ela de novo – é um dos fundamentos da ordem econômica (caput do art. 170 da CF), que deve observar, dentre outros princípios básicos, os da propriedade privada, da função social da propriedade e da livre concorrência (incisos II, III e IV do art. 170 da CF); e, por fim, em que, salvo nos casos previstos em lei, a todos é assegurado o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos (parágrafo único do art. 170 da CF), não nos resta dúvida de que, caso não seja vedado aos particulares empreenderem no campo de atuação eleito para a estatal, ela atuará em regime de livre mercado. Ou seja, concorrencialmente.

Se há agentes privados que, potencial ou efetivamente, podem fornecer os mesmos produtos e serviços oferecidos pela estatal, intuitivamente concluímos que a empresa possui competidores. Ainda que, em determinada situação, essa seja apenas uma possibilidade. Por exemplo, no exato momento em que se quebra o monopólio de uma estatal em relação a determinada atividade econômica, pode não haver no mercado concorrentes aptos a fazer frente a essa empresa, mas a possibilidade de surgirem contendores é real, sendo tanto maior quanto menor for a abrangência de medidas que, direta ou indiretamente, protejam a estatal da efetiva competição.

 

  1. Análise crítica da prática estatal de permitir a contratação direta, sem licitação, de estatais que atuam em regime concorrencial

Neste item apresentaremos as bases constitucionais que nos levam a Entendemos que, sob a ótica constitucional, há impedimentos claros à prática condenada neste artigo, não obstante haja um sem número de leis não declaradas inconstitucionais que concedem tais benesses.

Quando uma pessoa jurídica de natureza privada integrante da administração pública exerce atividade econômica – mesmo não se lhe dando o nomen iuris de sociedade de economia mista ou empresa pública – devem ser obedecidos os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. Contudo, não é demais trazer outros elementos no sentido de fundamentar a conclusão pela inconstitucionalidade dos comandos legais que propiciam contratações diretas, sem licitação, de estatais exercentes de atividade econômica em regime de concorrência.

Salvo melhor juízo, nada permite justificar um tratamento favorecido no exercício das atividades econômicas. O professor Marçal Justen Filho, reconhecido por sua produção literária, notadamente na área de licitações e contratos administrativos, não tem dúvida em afirmar que, por força do art. 173 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) nº 1, as entidades exploradoras de atividade econômica se submetem ao regime jurídico de direito privado (Comentários à Lei das Licitações e Contratos Administrativos. 8 ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 248/249).

Ao analisar o inciso VIII do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, o doutrinador considera ser inaplicável a extensão de seus efeitos para permitir a contratação, por órgãos ou entidades da administração pública, mediante dispensa de licitação, de entes da administração indireta que exerçam atividade econômica.

Marçal defende que tal contratação ofenderia o regime jurídico de direito privado conferido àquelas entidades pelo art. 173, § 1º, inciso II, da Lei da República, por violação dos princípios da isonomia e da livre concorrência. Alerta-se que, a despeito de o art. 24, VIII, da Lei de Licitações prever expressamente a possibilidade de dispensar a licitação, Justen Filho, após a EC nº 19, tão-somente admite a não realização de procedimento licitatório para contratar entidades do braço empresarial do Estado que prestem serviços públicos. Em nossa visão, vamos além: que prestem serviços públicos em regime de exclusividade (monopólio), e o fundamento seria a inviabilidade de competição (inexigibilidade), não uma hipótese de dispensa.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresenta fundamentos para as mesmas conclusões:

“O critério em que o legislador deveria basear-se é o que decorre da própria Constituição Federal, que, no título da “Ordem Econômica e Financeira”, bem distinguiu dois tipos de atividades prestadas pelo Estado: a atividade econômica, como exceção à regra da iniciativa privada, hipótese em que as empresas estatais se submetem ao regime das empresas privadas (art. 173, § 1º); e o serviço público (…)

No primeiro caso, as entidades podem atuar em regime de monopólio, e, nesse caso, a sua contratação pelo Poder Público cai na hipótese de inexigibilidade de licitação (art. 25); ou em regime de competição com a iniciativa privada, hipótese em que não podem ter os privilégios de serem contratadas sem licitação, sob ofensa ao princípio da livre concorrência, inscrito no art. 170, IV, da Constituição Federal, e ao próprio objetivo da licitação, de assegurar a proposta mais vantajosa para a celebração de seus contratos.

Quando a Administração exerce atividade econômica com base no art. 173, ela o faz a título de intervenção no domínio econômico, para subsidiar a iniciativa privada, e não para concorrer deslealmente com ela, o que ocorreria se tivesse, a empresa estatal, o privilégio de ser contratada sem licitação.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella e outros. Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 4ª ed. revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2000, p. 114/115)

Citamos também Toshio Mukai, que lança mão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“O inciso VIII dispõe sobre operações entre órgãos e entidades públicas (…). A lei nº 8.883/94 deu nova redação a esse inciso (…). Agora não só não se refere à exceção (‘exceto se houver empresas privadas que possam fornecer…’) (…). No nosso entender, a retirada do texto daquela expressão exceptiva não significa que o problema esteja superado, pois também à época do Decreto-Lei 200/67, no texto correspondente, não existia a exceção, e nem por isso o Superior Tribunal Federal deixou de entender ser necessário (…) se efetivasse a licitação (1ª T., RE 87.347, j. 4-3-1980, rel. Min. Xavier de Albuquerque: ‘Não cabe dispensa de licitação, em favor da Petrobras, para instalar postos de gasolinas e de socorro mecânico em estrada estadual. Essa atividade não se inclui no monopólio ou exclusividade de serviço (…)” (MUKAI, Toshio. Licitações e contratos públicos. 6ª ed. revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 65)

Por honestidade intelectual, somos instados a informar que, apesar da caudalosa produção doutrinária em sentido contrário, o Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão 1940/2015-Plenário, respondeu a consulta no sentido de que, com base na primeira parte do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal e no inciso VIII do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, a Administração Pública Federal não está obrigada a promover licitação prévia destinada a realizar a contratação de instituição financeira oficial para, em caráter exclusivo, prestar serviços de pagamento de remuneração de servidores ativos, inativos e pensionistas e outros serviços similares, desde que devidamente demonstrada a vantagem da contratação direta em relação à adoção do procedimento licitatório.

Independente de nossa visão sobre a matéria, parece-nos límpido que a doutrina confronta o que foi decidido pelo TCU no decisum citado. No bojo deste trabalho, com fulcro nas disposições constitucionais aplicáveis, e não exclusivamente na primeira parte do inciso XXI do art. 37, este artigo evidenciará o conflito entre o que foi assentado pela corte de contas e o ordenamento jurídico.

Apesar do inusitado Acórdão 1940/2015-Plenário, a jurisprudência do TCU sempre foi no sentido defendido pela doutrina majoritária. Faz-se referência, pontualmente, ao Acórdão 1171/2006-2ª Câmara, exarado nos autos do TC 017.963/2004-8, no qual se tratou da contratação, por dispensa de licitação, da então estatal Petrobras Distribuidora S.A. para fornecimento de combustíveis.

“Acórdão nº 1.171/2006-2ª Câmara: (Dispensa, contratação de entidade integrante da Administração Pública, fornecimento de combustível, Petrobras, art. 24, VIII)

SUMÁRIO: Pedido de Reexame interposto contra o subitem 5.1.1.7 do Acórdão n° 1.425/2005 – Segunda Câmara, Relação do Gabinete do Ministro-Substituto Lincoln Magalhães da Rocha, Ata 31/2005 – Segunda Câmara. Requisitos de admissibili­dade preenchidos. Conhecimento. Obrigatoriedade de licitação para aquisição de combustíveis. Pacífica jurisprudência do TCU nesse sentido. Precedentes. Improcedência das alegações recursais quanto à legalidade de aquisição de combustíveis, sem licitação, com base no art. 24, inciso VIII, da Lei n° 8.666/1993. Ferimento aos princípios constitucionais da livre concorrência, da licitação e da isonomia. Não-provimento. Manutenção do Acórdão recorrido em seus exatos termos. Juntada do processo às contas do exercício de 2004. Ciência ao Recorrente.

Trecho do voto

  1. No âmbito deste Tribunal, é remansosa a jurisprudência no sentido de que a aquisição de combustíveis na Administração Pública, sujeita-se a procedimento licitatório, conforme indicado no art. 2º da Lei nº 8.666/1993, vedando-se, assim, a aquisição direta desse bem com base no art. 24, inciso VIII, da citada Lei de Licitações e Contratos. Cito, como exemplos, as seguintes deliberações: Decisões n° 118/1998 – Segunda Câmara e 257/1997 – Plenário e Acórdãos n° 29/1992 e n° 56/1999, ambos do Plenário.
  2. Neste ponto, destaco que, diversamente do alegado na peça recursal, a Decisão n° 604/1998 – TCU – Plenário não autoriza a aquisição de combustíveis pela Administração Pública com suporte no referido dispositivo legal; ao contrário, dispõe expressamente em sua ementa a respeito da obrigatoriedade de licitação para aqui­sição desse bem. Veja a ementa do citado decisum:

EMENTA: Representação formulada pelo CADE contra a PETROBRAS. Possíveis irregularidades na área de licitação relativa à produção e comercialização de asfalto e de emulsões asfálticas. Possível concentração econômica decorrente da aquisição de fábricas já analisada pelo CADE. Ausência do objeto. Não conhecimento. Arquivamento. Obrigatoriedade de licitação para compra de combustível. Considerações” (TC 002.128/1998-5).

  1. No que se refere ainda à jurisprudência desta Casa, relativamente a essa matéria, cabe destacar recente deliberação do Plenário que, ao apreciar nos autos do TC 015.376/1997-4, Pedidos de Reexame interpostos pela Petrobras Distribuidora S/A, pela Diretoria-Geral de Administração da Presidência da República e pela Diretoria de Contas da Marinha do Brasil contra decisão com teor semelhante à que ora se aprecia, reafirma a obrigatoriedade de licitação para aquisição de combustíveis e a inaplicabilidade, em conseqüência, do art. 24, inciso VIII, da Lei n° 8.666/1993 para essa espécie de operação, demonstrando o acerto da deliberação recorrida (v. g.: Acórdão n° 2.063/2005 – Plenário, ratificado pelo Acórdão n° 98/2006 – Plenário). (…)
  2. Releva ainda esclarecer que a doutrina pátria, a despeito de posições minoritárias contrárias, tais como as indicadas pelo Recorrente, é majoritariamente desfavorável à aplicabilidade do art. 24, inciso VIII, da Lei n° 8.666/1993 aos processos de aquisição de combustíveis pela Administração Pública. Tem-se essa compreensão, com acerto, por entender que as entidades fornecedoras desse bem, sendo exploradoras de atividade econômica, sujeitam-se ao regime do art. 173 da Constituição Federal de 1988, que veda a concessão de privilégios a tais entidades não assegurados à iniciativa privada, em obediência aos princípios constitucionais da livre concorrência e da isonomia (…)”

O art. 24 do Estatuto das Licitações trata de hipóteses em que a licitação é dispensável. Contudo, igual encadeamento de ideias é perfeitamente aplicável a circunstâncias em que a licitação é dispensada ou a contratação direta é autorizada, pois o fundamento constitucional é o mesmo. E ainda devemos ter em mente que o comando do inciso VIII do art. 24 contém certa generalidade. A dispensa de licitação ali prevista pode ser aplicada “para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”.

Quando a licitação é dispensada, por opção legal, o administrador está impedido de realizá-la. Por outro lado, nas situações em que a licitação é dispensável a lei dá ao administrador a possibilidade de fazê-la ou não. O legislador confere poder discricionário ao gestor público. É também o que ocorre quando a contratação direta é admitida.

Quando a licitação é dispensável ou é possível contratar diretamente, existe a possibilidade de competição – esperada e desejada em uma economia de mercado, conforme a opção feita por nosso constituinte –, mas, alicerçado em fundamentos que devem encontrar respaldo na Constituição, o legislador opta por dar ao administrador a chance de escolher. Nas hipóteses em que as licitações são dispensáveis, identifica-se a aplicação dos princípios da eficiência, economicidade, interesse público e segurança nacional, dentre outros.

Outro princípio constitucional não pode ser esquecido nessa análise: o da isonomia ou igualdade. O que a Constituição veda com o princípio da isonomia é toda sorte de discriminação arbitrária, em total dissonância com os direitos fundamentais e demais princípios por ela albergados, como vemos no inciso XLI do art. 5º. Na outra ponta, o que a Carta Política manda é que se promova a igualdade quando não existirem razões – fundadas nela mesma – para as diferenciações havidas.

Nada obstante o que se vem de afirmar, certo é que a lei discrimina, conforme adequadamente sustenta Bandeira de Mello:

“Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais ou quais regras – sendo essa mesma sua característica funcional – é preciso indagar quais as discriminações juridicamente intoleráveis.” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 11)

Como se percebe, na esteira do que aqui já restou validado, a lei não pode instituir distinções calcadas em critérios arbitrários, que não encontram sustentação no texto constitucional, especialmente no que concerne ao próprio princípio da isonomia e outros princípios correlatos, tais como os princípios da dignidade da pessoa humana, da impessoalidade, da moralidade administrativa, do livre acesso aos cargos públicos (nos termos da lei), da proporcionalidade e da razoabilidade.

Assim, como exemplifica Celso Antonio (op. cit., p. 11/12), a estatura corporal tanto pode ser considerada critério ilegítimo para diferenciação em determinados casos como legítimo em outros, a depender das razões que fundamentam tais discriminações. Nesse sentido, oportuna é a lição de San Tiago Dantas, citado por Alexandre de Moraes:

“Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação a que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior; raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre distingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade de valia que ofereceu a todos; raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato, quase sempre os distingue conforme as circunstâncias em que se produzem, ou conforme a repercussão que têm no interesse geral. Todas essas situações, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos, são essenciais ao processo legislativo e não ferem o princípio da igualdade. Servem, porém, para indicar a necessidade de uma construção teórica, que permita distinguir as leis arbitrárias das leis conforme o direito e eleve até esta alta triagem a tarefa do órgão do Poder Judiciário.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 66.)

Associamos aos ensinamentos doutrinários a existência de duas características da norma legal: abstração e generalidade, que se associam complementarmente ao princípio da impessoalidade (caput do art. 37 da CF), sendo todos informados pelo princípio da igualdade.

O comando legal deve ser abstrato, genérico e impessoal. A abstração e a generalidade fazem com que se preveja situações hipotéticas nas quais se enquadrarão todos aqueles que possuírem as características descritas no dispositivo (igualdade/isonomia). Apenas a título de exemplo:

  • não se admite criar impostos sobre todos os templos de qualquer culto (art. 150, IV, b, da CF) – se é um templo dedicado a um culto, a vedação se impõe, independente do CNPJ, do tipo de templo ou da crença professada;
  • são isentas do imposto de renda as indenizações por acidentes de trabalho recebidos por pessoas físicas (art. 6º, IV, da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988) – quaisquer pessoas físicas que as tenham recebido são beneficiadas;
  • a licitação é dispensável na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos (art. 24, XIII, da Lei nº 8.666, de 1993) – de toda instituição brasileira que caiba na moldura legal;
  • não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa (art. 23, II, do Código Penal – Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) – qualquer agente que aja nessa condição;
  • a pena sempre é agravada quando o agente comete o crime por motivo fútil ou torpe (art. 61, II, a, do Código Penal) – qualquer agente que incidir nessa conduta terá a pena agravada.

Quando a lei cria tratamento diferenciado, benéfico ou maléfico, para uma pessoa específica (nominalmente identificada), física ou jurídica, pertencente à administração pública ou não, deixa de ser abstrata e genérica e descumpre o princípio constitucional da impessoalidade, aplicável a todos os atos estatais.

Fazemos paralelo entre a criação na lei de autorizações para a contratação direta de entes da administração indireta nominalmente identificados e a produção do ato administrativo, na qual há tensão permanente entre discricionariedade e vinculação. Quanto maior uma, menor a outra, e vice-versa. Não se contesta a possibilidade que a lei tem de criar hipóteses de dispensa de licitação ou reconhecer a sua inviabilidade (licitação inexigível), com fulcro na primeira parte do inciso XXI do art. 37 da Lei Magna; contudo, assim como ocorre com o gestor na prática do ato administrativo, o campo de discricionariedade do legislador ordinário – e também do constituinte derivado, em certa medida – é balizado pelas vinculações presentes no texto constitucional. Todas elas. A impessoalidade é apenas um desses limitadores, que deve ser concatenado com outros princípios e normas expressas presentes na Constituição.

Cremos ser igualmente correto afirmar que os permissivos para a administração pública contratar estatais sem licitação facilita a violação de outros princípios constitucionais: economicidade, eficiência (todos do art. 37, caput) e livre concorrência (art. 170, IV), bem como do princípio legal da seleção da proposta mais vantajosa para a administração (presente tanto no art. 3º da Lei de Licitações e Contratos quanto no art. 31 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, conhecida como Lei das Estatais).

Nesse sentir, a questão que se impõe é: qual o motivo ensejador para o benefício concedido às estatais de poderem ser contratadas pelo poder público sem licitação? Ao nosso ver, nenhum.

Podemos fazer outra pergunta, mais genérica, mas muito identificada com a primeira: sob o prisma jurídico-constitucional, qual a diferença entre se criar uma contratação direta pelo poder público de uma específica pessoa jurídica de direito privado integrante da administração pública que atua concorrencialmente no mercado e a criação de uma contratação direta pelo poder público de uma específica pessoa jurídica de direito privado não integrante da administração pública que atua concorrencialmente no mercado? Novamente, nossa resposta é: nenhuma.

A concessão de tratamento discriminatório exige previsão expressa na Constituição, em qualquer sentido, pois o favor a uns não deixa de ser um desfavor a outros. É o que acontece em nosso ordenamento, por exemplo, com as microempresas e empresas de pequeno porte (art. 146, III, d e p.u., art. 170, IX, e art. 179), os produtos e serviços que causem menor impacto ambiental (art. 170, VI) e a atividade garimpeira organizada em cooperativas (art. 174, § 3º).

Não há em nossa lei fundamental nenhum comando ou diretriz programática que sequer indique, muito menos estatua, a possibilidade de concessão de tratamento privilegiado a estatais no exercício de suas atividades empresariais.

Pelo contrário, o caput do art. 173 preceitua que a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, ressalvados os casos previstos na própria Constituição. A certeza de que não há espaço para que se outorguem benefícios a empresas públicas e sociedades de economia mista na sua relação empresarial com o Estado cristaliza-se na leitura do taxativo e cirúrgico § 2º desse mesmo art. 173: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”.

Se, por exemplo, em vez de instituir possibilidade da contratação direta do Banco do Brasil para determinada prestação de serviço bancário, uma lei autorizasse contratar o Banco Itaú sem licitação, a grita seria geral, não temos dúvida! Mas por quê? Quais os fundamentos constitucionais – não emocionais ou ideológicos – para a revolta seletiva, que teria igual ou maior intensidade se em outros diplomas legais pátrios o permissivo para contratar diretamente beneficiasse a Shell em vez da Petrobras, o Santander e não a Caixa Econômica ou a Amil no lugar da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares?

É normal ouvirmos em defesa da contratação direta de uma estatal que a empresa foi criada exatamente para prestar os serviços ou fornecer os bens que poderão ser contratados pelo Estado junto a ela, sem licitação. Ainda que soe bem aos ouvidos e aos corações nacionalistas, o argumento nada tem de jurídico. Diante de nossa Constituição, é unicamente ideológico.

Estatais que atuam em regime de concorrência, indubitavelmente, não prestam serviço público, e, portanto, não existem para ter suas atividades fomentadas, seletiva e arbitrariamente, por atos do próprio Estado que as criou. É uma inversão de valores e conceitos que a Carta Política não endossa ou alberga. Para que a prática fosse admitida, seria preciso primeiro alterar a norma fundamental.

Uma estatal criada antes de 1988 que possua competidores privados no mercado e cujo fim social seja unicamente prestar serviços ou fornecer bens para o Estado deve ter a sua existência reavaliada, podendo resultar na sua extinção ou redirecionamento mercadológico. Indesculpável é, depois da Carta Cidadã de 1988, criar estatais com essas mesmas finalidades únicas e cujo campo de atuação seja concorrencial. As existentes devem ser submetidas ao mesmo senso crítico acerca da continuidade de suas atividades, pois, em verdade, sequer deveriam ter sido criadas.

Os mais açodados poderiam imaginar também que o tratamento diferenciado que se quer conceder a determinadas estatais estaria albergado pelo princípio do interesse público. Com a devida vênia, discordamos. Não bastasse o princípio do interesse público não ser o único existente e dever ser sopesado e harmonizado com todo o conteúdo da Constituição, uma empresa estatal não se confunde com a União, de forma que os interesses e objetivos de um e de outra não são necessariamente os mesmos. O interesse público, aliás, nem é necessariamente o da União, e pode não ser o interesse da estatal, que possui objetivos próprios.

O interesse público é fluido e muito difícil de conceituar, mas certo é que, no Estado democrático de direito, o interesse público é do corpo social, mas não pode ser qualificado como o interesse da maioria da população, o que afrontaria sobremaneira ao princípio desse tipo de Estado, destruindo e marginalizando os interesses das minorias, em uma perigosa supremacia ou ditadura dos interesses da maioria, esta quase sempre eventual, sazonal e manipulável.

Conceituar interesse público não é objeto deste trabalho, mas inequivocamente ele passa pela carta de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela teoria da ponderação de interesses, em tudo marcados pelo deslocamento da centralidade do debate jurídico do Estado para a pessoa humana.

Voltando à discussão sobre comandos que garantem a empresas públicas e sociedades de economia mista tratamento diferenciado, não extensivo às pessoas jurídicas do setor privado que com elas possam concorrer, afirmamos que as últimas são colocadas em situação de menosprezo, vendo-se alijadas, por um ato do Estado que viola a Constituição, da possibilidade de competir em pé de igualdade com as estatais. Avalia-se que as benesses em favor das empresas pertencentes à administração que envolvem o alcance dos objetivos estatais, o que as coloca no campo da fiscalidade, não estão respaldados pela Constituição, pois as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado (§ 2º do art. 173). Em tempo, não se deve confundir fiscalidade com tributação. Privilégios fiscais são quaisquer regalias na relação com o Estado e na sua atividade, que não se resume exclusivamente ao exercício do poder de tributar.

Percebe-se insultado o § 4º do art. 173 da Constituição do Brasil. É incontroverso que se for garantida a contratação direta pela administração pública de uma estatal que atua concorrencialmente no mercado, ela é colocada em posição hegemônica, de dominação do mercado em que opera, estando sua concorrência virtualmente eliminada. Tudo isso como resultado de um ato do Poder Público, e não do legítimo e desejado jogo concorrencial entre empresas.

Consoante o proveitoso ensinamento de Bandeira de Mello em obra já citada neste artigo, o caput do art. 5º da Lei Magna estabelece o supracitado princípio da igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, com os temperamentos previstos no próprio texto constitucional ou em lei, desde que não haja violação de direitos e garantias fundamentais. No caso da produção legislativa e na aplicação da lei, ainda que seja óbvio, acrescentamos que não pode haver violação da Constituição.

“O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela se sujeita ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.

…………………………………………………………………………………………………………………..

Em suma: dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes. (BANDEIRA DE MELLO. Op. cit., p. 9/10) [grifos nossos]

Diante da imanência do princípio da igualdade, que permeia toda a Constituição e, obrigatoriamente, informa as alterações promovidas pelo constituinte derivado, a produção legislativa e a aplicação das normas jurídicas, o que importa conhecer são os limites dentro dos quais se admite o estabelecimento de um discrimen, para que se mantenha o respeito também ao princípio da isonomia e, no limite, à própria Carta Política.

O tratamento diferenciado concedido a estatais é, além de contrário à norma constitucional expressa, violador do princípio da igualdade. O diploma constitucional (art. 173, inciso II e § 2º), expressamente, coloca as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços em situação de isonomia e igualdade com as empresas privadas. A lei não pode afetar esse equilíbrio.

 

Conclusão

Diante do exposto, acreditamos haver demonstrado a inconstitucionalidade de comandos legais que autorizam a administração pública a contratar diretamente, sem licitação, estatais exercentes de atividade econômica em regime concorrencial – nominalmente identificadas ou não –, pois lhes confere vantagens competitivas em relação a outras entidades de direito privado que com elas disputam mercado e que podem prestar ao Estado os mesmos serviços ou fornecer mesmos bens.

Registramos que os competidores potencialmente prejudicados não se resumem a entes tipicamente particulares. Podem ser lesadas, inclusive, outras pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração pública que poderiam prestar o serviço ou fornecer o bem. Exempli gratia, quando um órgão ou ente estatal opta por contratar diretamente, sem licitação, a Caixa Econômica Federal para prestar determinados serviços financeiros, em princípio, está subtraindo do Banco do Brasil a possibilidade de concorrer para fornecer os mesmos serviços, talvez em condições mais vantajosas para a administração. Não apenas Itaú, Bradesco, Santander, Safra e outras instituições financeiras totalmente privadas têm suas esferas jurídicas malferidas. O mesmo pode ocorrer nos mais variados mercados.

Segundo entendemos, tais dispositivos legais violam os princípios constitucionais da impessoalidade, da economicidade, da eficiência (todos do art. 37, caput), da igualdade (art. 5º, I) e da livre concorrência (art. 170, IV), assim como os seguintes comandos constitucionais taxativos: o inciso XXI do art. 37 c/c o art. 173, inciso II e § 2º.

 

Referências

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1171/2006-TCU-2ª Câmara. Processo TC 017.963/2004-8. Recorrente: Centro de Obtenção da Marinha no Rio de Janeiro. Órgão/unidade: Centro de Obtenção da Marinha no Rio de Janeiro. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar. Relator da deliberação recorrida: Ministro-Substituto Lincoln Magalhães da Rocha. Brasília, 16 de maio de 2006.

 

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1940/2015-TCU-Plenário. Processo TC 033.466/2013-0. Interessado: Deputado Federal Henrique Eduardo Lyra Alves. Órgão: Câmara dos Deputados. Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues. Brasília, 05 de outubro de 2015.

 

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella e outros. Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 4ª ed. revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2000.

 

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei das Licitações e Contratos Administrativos. 8 ed. São Paulo: Dialética, 2009.

 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

 

MUKAI, Toshio. Licitações e contratos públicos. 6ª ed. revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2004.

 

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