Parâmetros para a Judicialização da Saúde Pública

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Thiago Guimarães Cabreira – Analista Judiciário no TJMS. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Grande Dourados. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Futura. Email: [email protected].

 

Resumo: Saúde não é apenas ausência de doença. É um estado de bem-estar físico, mental e social. Relaciona-se, assim, com os mais diversos direitos fundamentais, como a vida e dignidade da pessoa humana. Assim, o dever de promover a saúde é de todos os entes políticos. Argumenta-se que o direito à saúde deve ser promovido por políticas públicas, submetendo-se à reserva do possível, sendo ainda indevida a atuação do judiciário, pois violaria o princípio da separação de poderes. Todavia, prevalece na jurisprudência que é direito subjetivo e passível de exigência em juízo em face de qualquer dos entes, haja vista a responsabilidade solidária. Não obstante, sendo tema de alta complexidade técnica, conclui-se que o julgador deve agir com cautela, respeitando o entendimento dos órgãos técnicos e atentando-se aos parâmetros fixados nos diversos julgados das cortes superiores.

Palavras-chave. Saúde. Judicialização. Critérios jurisprudenciais.

 

Abstract: Health is not just absence of disease. It is a state of physical, mental and social well-being. It thus relates to the most diverse fundamental rights, such as the life and dignity of the human person. Thus, the duty to promote health belongs to all political entities. It is argued that the right to health should be promoted by public policies, subject to the reservation of the possible, and the performance of the judiciary, as it would violate the principle of separation of powers. However, it is prevailing in case law that it is a subjective right and subject to legal demand in the face of any of the entities, given the joint and several liability. However, being a subject of high technical complexity, it is concluded that the judge must act with caution, respecting the understanding of the technical bodies and paying attention to the parameters set in the various judgments of the superior courts.

Keywords: Health. Judicialization. Jurisprudence criteria.

 

Sumário: Introdução 1. Direito à saúde 2. Competência para fornecimento das prestações de saúde 3. Direito à saúde como direito subjetivo. 4. Judicialização do direito à saúde. 4.1. Ativismo judicial e separação de poderes. 4.2. Reserva do possível. 4.3) Violação ao princípio da equidade. 4.3.1) Diferença de classe. 4.3) Responsabilidade solidária. 5. Critérios limitantes à atuação do judiciário. 5.1. Medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. 5.2. Medicamentos não registrados pela ANVISA. 5.3. Imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista que prestam serviços de saúde exclusivamente pelo SUS. 5.4. Ressarcimento ao SUS das despesas com atendimento a beneficiários de planos de saúde privados. 5.3. Outros pontos pendentes de julgamento pelo STF. 6. Novas perspectivas: ações coletivas e autocontenção judicial. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde é tema palpitante, haja vista o grande número de ações que resultam no Judiciário determinado ao Executivo a execução prestações de saúde.

Este artigo tratará do tema, analisando-se os parâmetros para intervenção do Judiciário.

Para isso, conceituar-se-á saúde, contextualizando como se encontra tutelada em nosso ordenamento jurídico, tendo como inspiração as principais fontes normativas, quais sejam constituição, legislação infraconstitucional, doutrina e jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Será abordado ainda a eficácia das normas constitucionais que dizem respeito aos direitos fundamentais inerentes à saúde, vem como a possibilidade de sua exigibilidade perante o Judiciário.

Ademais, serão enfrentados as principais questões processuais atinentes aos casos em que são requeridas prestações de saúde, a exemplo da alegação da reserva do possível, bem como da possível violação ao princípio constitucional separação de poderes.

Ora, é a resistência do Estado em efetivar direitos constitucionalmente garantidos que gera todo esse debate. Por sua vez, deve-se compreender que há políticas públicas consideradas prioritárias e de elevada importância à população.

Por fim, será visto qual o posicionamento dos tribunais superiores, principalmente os critérios até então definidos para se legitimar a intervenção do Judiciário.

 

  1. DIREITO À SAÚDE

Aquilo que se entende por saúde mudou ao longo do tempo, conforme as diversas perspectivas histórico-sociais. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), no preâmbulo de sua constituição, “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (Organização Mundial da Saúde, 1946).

Este é um conceito extensivo de saúde (AMADO, 2018, p. 76), tendo sido incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro no art. 3º da Lei n. 8.080 de 1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde:

Art. 3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social” (BRASIL, 1990).

Nota-se que atividade física foi incluída pela Lei n. 12.864 de 2013, em consonância com a ideia de prevenção, conforme o conceito dado por Frederico Amado, para quem a saúde pública “consiste no direito fundamental às medidas preventivas ou curativas de enfermidades, sendo dever estatal prestá-la adequadamente a todos, tendo a natureza jurídica de serviço público gratuito, pois prestada diretamente pelo Poder Púbico ou por delegatários habilitados por contato ou convênio, de maneira complementar, quando o setor público não tive estrutura para dar cobertura a toda população”.

Em nossa Constituição Federal de 1988, o direito à saúde é resguardado em diversos dispositivos, uma vez que há uma grande conexão entre o direito à saúde e o direito à vida, o princípio da dignidade da pessoa humana, a proteção da integridade física. Nesse sentido, para Ingo Wolfgang Sarlet (2018, p. 676):

A saúde é um bem fortemente marcado pela interdependência com outros bens e direitos fundamentais, apresentando, de tal sorte, “zonas de sobreposição com esferas que são autonomamente protegidas”, como é o caso da vida, integridade física e psíquica, privacidade, educação, ambiente, moradia, alimentação, trabalho, dentre outras”.

Com efeito, e mais especificamente no que tange ao direito à saúde, encontram-se positivados em nossa Constituição Federal, dentre outros, nos artigos 6º, localizando-se como um direito social, o que se coaduna com a noção de direito fundamental de segunda geração, quais sejam as prestações positivas a serem efetivadas pelo Estado (BRANCO, 2018, p. 200-201); bem como artigo 7º, inciso IV, sendo um dos objetos a serem considerados pelo salário mínimo.

Ainda, é tratada de forma autônoma nos artigo 196 a 200, onde encontra sua maior normatização específica na constituição, localizando-se geograficamente na Seção II do Capítulo II do Título VIII, da ordem social, sendo que conforme o artigo 194, enquadra-se, junto da previdência e assistência social, dentro do direito à seguridade social.

 

  1. COMPETÊNCIA PARA FORNECIMENTO DAS PRESTAÇÕES DE SAÚDE

Nossa Constituição federal, no tocante á repartição de competências relacionadas ao direito à saúde, disciplina no artigo 23, II, a competência administrativa comum da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde.

Ademais o artigo 24, XII, atribui competência concorrente à União, Estados e Distrito Federal para legislarem acerca do da defesa da saúde. Sempre lembrando que em se tratando de competência legislativa concorrente, a União limita-se a estabelecer normas gerais, não excluindo a competência suplementar dos Estados, sendo que inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, e a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário, tudo conforme redação dos parágrafos 1º a 4º do artigo 24 da Constituição Federal.

E não se olvida do artigo 30, inciso VII, outorgando aos Municípios o dever de prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população.

Noutro ponto, sabe-se que a Constituição estabeleceu o modelo básico para se operacionalizar a prestação do direito à saúde, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS encontra-se descrito no artigo 198 da Constituição Federal, e, no plano infraconstitucional, nas Leis n. 8.142/90 e 8.080/90. Trata-se de sistema organizado de forma descentralizada, de caráter regionalizado e hierarquizado.

Além disso, estabeleceu o financiamento do SUS mediante recursos orçamentários da União, Estados, Distritos Federais e Municípios, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 198 da Constituição Federal, corroborando a competência comum entre os entes da federação para tratar da saúde que consta do art. 23, inciso II da CF. Nesse sentido, diz Gilmar Mendes (2018, p. 1061):

Pelo caráter regionalizado do SUS, a competência para cuidar da saúde foi definida como comum dos entes da Federação. O art. 23, II, da Constituição, prevê que União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde junto ao indivíduo e à coletividade”.

Assim, denota-se verdadeira responsabilidade solidária entre os entes.

 

  1. DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO SUBJETIVO

Sabe-se que as normas constitucionais, segundo José Afonso da Silva (1998, p. 262) e cujo critério é adotado pelo STF, constituem-se de eficácia plena, contida ou limitada.

As de eficácia limitada são aquelas que não produzem efeito por si só, dependendo de regulamentação infraconstitucional, sendo portanto de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, embora possua certa eficácia, ainda que mínima, por exemplo ai vincular o legislador infraconstitucional a suas diretrizes.

Por sua vez, as normas de eficácia limitada subdividem-se em normas de princípio organizatório (estruturação dos órgãos públicos); e normas e princípio programático (abordam programas a serem efetivados pelo Estado).

Tradicionalmente, entendia-se que o direito à saúde, assim como as normas de direitos sociais em geral, tem caráter de norma de princípio programático. Mas tende-se a atribuir elevada eficácia às normas programáticas. Nesse sentido, aduz José Afonso da Silva (2013, p. 468):

A normatividade constitucional dos direitos sociais principiou na Constituição de 1934. Inicialmente se tratava de normatividade essencialmente programática. A tendência é a de conferir a ela maior eficácia. E nessa configuração crescente da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais reconhecedoras de direitos sociais é que se manifesta sua principal garantia. Assim, quando a Constituição diz que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais os expressamente indicados no art. 7º, e quando diz que a saúde ou a educação é direito de todos, e indica mecanismos, políticas, para a satisfação desses direitos, está preordenando situações jurídicas objetivas com vistas à aplicação desses direitos”.

No Brasil, grande parcela da doutrina já vinha a entender que o direito à saúde é direito subjetivo, passível de ser exigível em juízo e não possuindo mero caráter programático. Nesse sentido, esclarecedora a passagem de Ingo Wolfgang Sarlet (2018, p. 646):

Além disso, como ocorre com os direitos fundamentais em geral, também os direitos sociais apresentam uma dupla dimensão subjetiva e objetiva. No que diz com a primeira, ou seja, quando os direitos sociais operam como direitos subjetivos, está em causa a possibilidade de serem exigíveis (em favor de seus respectivos titulares) em face de seus destinatários. A despeito das dificuldades e objeções que se registram nessa esfera (v.g. , menor densidade das normas definidoras de direitos sociais, limites ao controle judicial das políticas públicas, dependência da disponibilidade de recursos, em outras palavras, do impacto da assim chamada reserva do possível), constata-se, no caso brasileiro, uma forte tendência doutrinária e jurisprudencial (com destaque aqui para a jurisprudência do STF) no sentido do reconhecimento de um direito subjetivo definitivo (portanto, gerador de uma obrigação de prestação por parte do destinatário) pelo menos no plano do mínimo existencial, concebido como garantia (fundamental) das condições materiais mínimas para uma vida com dignidade, o que, em termos de maior incidência, se verifica especialmente nos casos do direito à saúde e à educação”.

É possível deduzir o caráter de direito subjetivo também do art. 5º, §1º, da Constituição Federal, que dispõe que as normas de direitos fundamentais têm aplicação imediata, pois tal norma também se aplica aos direitos sociais, como alerta Ingo Sarlet (2018 p. 644):

Aos direitos sociais também se aplica (…) o disposto no art. 5.º, § 1.º, da CF, de tal sorte que, a exemplo das demais normas de direitos fundamentais, as normas consagradoras de direitos sociais possuem aplicabilidade direta (…). Assim, ainda que se possa falar, no caso de alguns direitos sociais, especialmente em virtude do modo

de sua positivação no texto constitucional, em uma maior relevância de uma concretização legislativa, essa peculiaridade não afasta o dever de se atribuir também às normas de direitos sociais uma máxima eficácia e efetividade, obrigação cometida a todos os órgãos estatais, no âmbito de suas respectivas competências, dever ao qual se soma o dever de aplicação direta de tais normas por parte dos órgãos do Poder Judiciário”.

Igualmente, em plano jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal o caráter de direito público subjetivo nos termos do AgR-RE 271.286-8/RS, como lembra Gilmar Mendes (2018, p. 1057):

A dimensão individual do direito à saúde foi destacada pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, relator do AgR-RE 271.286-8/RS, ao reconhecer o direito à saúde como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional. Ressaltou o Ministro que “ a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente”, impondo aos entes federados um dever de prestação positiva. Concluiu que “ a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (art. 197)”, legitimando a atuação do Poder Judiciário nas hipóteses em que a Administração Pública descumpra o mandamento constitucional em apreço”.

Assim, conclui-se que apesar do caráter programático, as normas de direito a saúde constituem-se em direito subjetivo, cabendo aos indivíduos sua exigência pelo poder Judiciário quando o Executivo não implemente de forma devida.

 

  1. JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Por certo, cabe ao Executivo a formulação de políticas para implementar o direito à saúde. Todavia, em sua omissão, resta ao cidadão buscar seus direitos junto ao Judiciário, precipuamente resguardado pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito).

Diversas são as prestações pleiteadas pelos cidadãos, tais como “fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses, criação de vagas de UTIs e de leitos hospitalares, contratação de servidores da saúde, realização de cirurgias e exames, custeio de tratamento fora do domicílio e inclusive no exterior, entre outros” (MENDES, 2018, p. 1073), sendo certo que por inúmeras vezes o judiciário já foi provocado a manifestar-se acerca de possíveis violações ao direito à saúde.

Uma vez judicializada determinada questão da saúde, faz-se necessária a análise dos principais pontos e argumentos que surgem nessa discussão.

 

4.1. ATIVISMO JUDICIAL E SEPARAÇÃO DE PODERES

A questão da judicialização do direito à saúde é intrinsicamente relacionada ao ativismo judicial.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2019, p. 1668), ativismo judicial é a “interferência indevida nas atribuições dos demais Poderes do Estado e, em consequência, infringência ao princípio da separação de poderes”.

Pode-se considerar que o ativismo é resultado do aumento de poder e confiança atribuída pela sociedade ao Judiciário, que nele muitas vezes encontra a resposta para seus conflitos. Barroso apresenta algumas causas para tal ocorrência:

A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais (…). A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade.” (BARROSO, 2018, p. 233)

A principal crítica que se faz, é que ao determinar ao Executivo a execução de prestações de saúde, o judiciário foge da sua função típica de interpretar e julgar, passando a agir como se administrador ou legislador fosse.

Ora, José dos Santos Carvalho Filho (2019, p. 150) lembra que dentre os diversos poderes da administração pública, há o Poder discricionário, que “é a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público”.

Assim, estaria o Judiciário violando o princípio da separação de poderes.

Ademais, há de se ter em mente a doutrina Chenery, da qual se conclui que “as cortes judiciais estão impedidas de adotarem fundamentos diversos daqueles que o Poder Executivo abraçaria, notadamente nas questões técnicas e complexas, em que os tribunais não têm a expertise para concluir se os critérios adotados pela Administração são corretos (STJ, 2017, AgInt no AgInt na SLS 2.240/SP).

Assim, alega-se que falta ao Judiciário capacidade institucional, que é “a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico.” (BARROSO, 2018, p. 236)

Por conseguinte, não dispondo o Judiciário, em geral, de aptidão técnica, a decisão judicial agrava por solucionar as problemática sociais, como lembra Di Pietro (2019, p. 1669):

Não existem condições de garantir nem o mínimo do mínimo existencial. Se todas as pessoas que vivem em situação de miséria fossem pleitear, perante o Judiciário, um teto para morar, alimentos, vestimenta, saúde, educação, não haveria recursos financeiros suficientes para atender a todos. É essa a razão pela qual o cumprimento dos direitos sociais exige prévia definição de políticas públicas. A interferência indevida do Judiciário, além de não resolver o problema, agrava a situação de desigualdade social e afronta o princípio da separação de poderes”.

Não obstante, tem-se percebido que tal alegação não vem sendo aceita na jurisprudência nacional, haja vista o Supremo Tribunal Federal entender que “a inércia do Poder Executivo em cumprir seu dever constitucional de garantia do direito à saúde (art. 196) abre a possibilidade do exame da matéria pelo Poder Judiciário” (MENDES, 2018, p. 1074).

Entende a Corte que o Judiciário estaria tão somente a exercer o controle judicial de atos administrativos.

 

4.2. RESERVA DO POSSÍVEL

A teoria da reserva do possível originou-se na Alemanha, oportunidade em que a Corte Constitucional, ao analisar pleito de ingresso em universidade pública, decidiu que há “limitações fáticas para o atendimento de todas as demandas de acesso a um direito” (JACOB 2013, p. 250).

Ora, toda e qualquer implementação de políticas públicas possuem custos, notadamente no que tange à área da saúde. Já lembravam Stephen Holmes e Cass Sunstein (1999) que os direitos dependem de tributos.

Assim, quando demandado em busca da implementação de políticas de saúde, o Estado alega a limitação orçamentária.

Em termos gerais, em se tratando de direitos fundamentais, o Judiciário não aceita a alegação genérica de inexistência de recursos, sem comprovação da insuficiência orçamentária (STJ, 2016, Resp. 1.607.472).

 

4.3 VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA EQUIDADE

Sabe-se que o SUS é regido, dentre outros, pelo princípio da equidade, segundo o qual a prestação de serviço de saúde deve ser isonômica nas situações similares (STF, RE 581488).

Inclusive, encontra-se positivado no inciso IV do art. 7º da lei 8.080/90, onde consta como princípio das ações e serviços públicos de saúde a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.

Ocorre que, em estudo (BARATA, CHIEFFI, 2009) realizado junto à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, onde se analisaram 2.927 ações judiciais cadastradas no ano de 2006 naquele Estado, verificou-se que 74% das ações foram propostas por advogados particulares.

Ademais, na mesma pesquisa, verificou-se que idêntica porcentagem – 74% – dos pacientes beneficiados residiam em locais de baixa vulnerabilidade.

Tais dados apontam que os mais beneficiados pela intervenção do judiciário fazem parte do setor mais economicamente mais abastado da sociedade, violando-se o princípio da equidade nas prestações de saúde.

Assim, revela-se “situação completamente contraditória ao projeto constitucional, quando do estabelecimento de um sistema de saúde universal, que não possibilitasse a existência de qualquer benefício ou privilégio de alguns usuários”. (MENDES, 2018, p. 1070).

 

4.3.1 DIFERENÇA DE CLASSE

Tema correlato diz respeito à “diferença de classe”, que tratava da permissão de que o “usuário do SUS pagasse diferença de valores e tivesse prestação de serviços em padrão diferenciado do normalmente fornecido pela rede pública de saúde (MENDES, 2017, p. 1075).

A “diferença de classe” foi proibida pela Portaria n. 113/1997 do Ministério da Saúde, nos seguintes termos:

2.1. A AIH garante a gratuidade total da assistência prestada, sendo vedada a profissionais e/ou às Unidades Assistências públicas ou privadas, contratadas, ou conveniadas a cobrança ao paciente ou seus familiares, de complementariedade, a qualquer titulo.

2.2. Nos casos de urgência/emergência, e não havendo leitos disponíveis nas enfermarias, cabe à Unidade Assistencial proceder a internação do paciente em acomodações especiais, até que ocorra vaga em leitos de enfermarias, sem cobrança adicional, a qualquer título”.

A matéria (tema 579 de Repercussão Geral) chegou à apreciação do STF (2016), pelo leading case Recurso Extraordinário 581488, oportunidade em que o Supremo decidiu pela constitucionalidade da vedação, formando a seguinte tese: “É constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de Saúde, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de Saúde, ou por médico conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes.”

 

4.3 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA

Como já tratado no início desta obra, a Constituição fixou competência comum entre os entes para questões de saúde.

Tal opção do legislador constituinte originário reflete a responsabilidade solidária entre os entes, que podem figurar como litisconsortes em ações de saúde.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (2019), no tema 793 de Repercussão Geral, que teve como Leading case o Recurso Extraordinário 855178, firmou a seguinte tese:

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

Tal tese está em consonância com o Enunciado 60 da II Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça:

A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento”.

Assim, pode o requerente ingressar contra qualquer dos entes, isolada ou conjuntamente. Mas, constatado pela autoridade judicial eventual ônus excessivo, há de ser ressarcido o ente que o suportou.

Importante notar que há exceção no tocante a medicamentos sem registo na ANVISA, que será abordada nos próximos tópicos.

 

  1. CRITÉRIOS LIMITANTES À ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Como já visto diversas são as razões para que se judicialize questão atinente ao direito à saúde.

Assim, caso exista política pública de saúde, o Judiciário deverá identificar qual motivo para o ingresso em juízo. Assim, lembra Gilmar Mendes (p. 2018, p. 1068):

Pode ocorrer de medicamentos requeridos constarem das listas do Ministério da Saúde, ou de políticas públicas estaduais ou municipais, mas não estarem sendo fornecidos à população por problemas de gestão: há política pública determinando o fornecimento do medicamento requerido, mas, por problemas administrativos do órgão competente, o acesso está interrompido. Nesses casos, o cidadão, individualmente considerado, não pode ser punido pela ação administrativa ineficaz ou pela omissão do gestor do sistema de saúde em adquirir os fármacos considerados essenciais, em quantidades suficientes para atender à demanda. Não há dúvida de que está configurado um direito subjetivo à prestação de saúde, passível de efetivação por meio do Poder Judiciário”.

Ademais, pode ser caso de medicamento que não seja fornecido pelo SUS, mas haja um similar, hipótese em que deverá ser demonstrada a razão pela qual o requerente não possa utilizar-se do medicamento similar. “E, a partir de um critério de ponderação, verificar a razoabilidade do fornecimento requerido” (MENDES, 2018, 1069).

Com o tempo, e levando em conta os pontos até então trazidos, a jurisprudência vem fixando certos parâmetros para a atuação do Judiciário.

 

5.1. Medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS

No presente caso, trata-se de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, sejam aprovados pela ANVISA ou não, sejam de alto custo ou não. As informações que seguem foram extraídas do Recurso Especial 1657156/RJ.

Alega o Estado, dentre outros, que há ônus da prova da patê autora em comprovar a insuficiência dos medicamentos oferecidos pelo SUS e a necessidade de que seu tratamento se dê com os medicamentos específicos que pleiteou, conforme artigo 373, inciso I do Código de Processo Civil: “Art. 373. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito”.

Ademais, argumenta-se que a imposição de fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS, mesmo existindo alternativas terapêuticas disponibilizadas pela rede pública e que possuem os mesmos princípios ativos dos fármacos requeridos, desconsidera o juízo técnico exercido pelo Ministério da Saúde para definir os medicamentos que devem integrar a política pública de fornecimento de medicamentos e viola os arts. 19-M, I, 19-P, 19-Q e 19-R da Lei n. 8.080/1990.

Contra-argumenta-se, porém, conforme parecer emitido pelo Ministério Público Federal naqueles autos, que a obrigatoriedade de inserção na lista do SUS para o fornecimento de medicamentos é mera burocracia prevista em normas de inferior hierarquia que não tem o condão de prevalecer sobre direitos fundamentais como o direito à vida e à saúde.

O Superior Tribunal de Justiça, em 2018, no Tema Repetitivo 106, tendo como precedente o Recurso Especial 1657156/RJ, fixou a seguinte tese de tema repetitivo nos embargos de declaração publicado no DJe 21/09/2018:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

  1. i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
  2. ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Quanto ao requisito ii, consta do voto vencedor que não se exige comprovação de pobreza ou miserabilidade, mas, tão somente, a demonstração da incapacidade de arcar com os custos referentes à aquisição do medicamento prescrito.

Quanto ao requisito iii, percebe-se que decorre do art. 19-T da lei 8080/90:

“Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA II – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa” (grifo nosso).

 

5.2. Medicamentos não registrados pela ANVISA

Situação similar, mas que não se confunde com a anterior, é quando o medicamento pleiteado não está registrado na ANVISA. Como visto, aquela situação abrangia medicamento não incorporado em ato normativo do SUS, podendo ou não ser registrado na ANVISA.

Como se sabe, a ANVISA é uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, criada para promover a proteção da saúde, sendo responsável por exercer a vigilância sanitária de medicamentos, conforme art. 8º, § 1º, I da Lei nº 9.782/99, que criou a ANVISA:

Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.

  • 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:

I – medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologia

Assim, exige-se aprovação e registro na ANVISA para comercialização de remédios no Brasil, como consta da Lei n. 6360/76, art. 1º combinado com o art. 12:

Art. 1º – Ficam sujeitos às normas de vigilância sanitária instituídas por esta Lei os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, definidos na Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, bem como os produtos de higiene, os cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários, produtos destinados à correção estética e outros adiante definidos” (grifo nosso).

Art. 12 – Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, em 2019, no tema 500 de Repercussão Geral, tendo como leading case o Recurso Extraordinário 657718, trouxe importantes parâmetros, que inclusive parecem influenciar no julgamento do STJ no REsp 1657156 supramencionado, no que toca à necessidade de registro na ANVISA.

Concluiu o STF que, em regra, não é possível o fornecimento de medicamento por decisão judicial caso inexista registro na ANVISA, tendo em vista ser o órgão técnico que atesta a segurança e eficácia dos medicamentos.

Todavia, há exceção em que se permite a concessão de medicamento sem registro, qual seja, quando há demora da ANVISA em analisar o pedido de registro, além do cumprimento de três requisitos: (i) existência de pedido de registro, salvo para medicamentos órfãos para doenças raras; (ii) existência de registro em agências de regulação no exterior; (iii) inexistência de substituto terapêutico registrado.

Quanto ao prazo para análise de registro, a lei n. 13.411/2017, alterou a lei 6360/76 e incluiu o art. 17-A, fixando prazos máximos para a decisão de registro em 365 dias, salvo 120 dias para medicamentos considerados prioritários, a partir do protocolo de priorização.

Em relação à exceção para medicamentos órfãos, segundo o Conselho Federal de Farmácia (2017), são aqueles destinados ao tratamento de doenças raras. “São consideradas raras as doenças cuja incidência não ultrapasse a 65 casos por 100 mil habitantes. Em muitos casos, o número de doentes é tão pequeno que acaba afastando, por restrição de mercado, o interesse da indústria farmacêutica na fabricação. Vem desse fato a designação de “medicamento órfão”.

Outro ponto a ser considerado é no que diz respeito a medicamentos experimentais, ou seja, aqueles em fase de pesquisas e testes. Considerando a incerteza de sua eficácia, o STF decidiu que o Estado não pode ser obrigado a fornecê-los.

A propósito, já havia o STF em 19/05/2016 se manifestado sobre a inconstitucionalidade da “pílula do câncer”. Na ADI 5501, declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, por incompatibilidade com os artigos 1º, inciso III, 5º caput, 6º e 196 da Constituição Federal, porquanto autoriza o uso do medicamento fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, apesar da inexistência de estudos conclusivos no tocante aos efeitos colaterais em seres humanos. A decisão foi em sede de medida cautelar, estando pendente de julgamento.

Por fim, decidiu o Supremo relevante questão processual, no sentido de que, em se tratado de medicamento pleiteado sem registro na ANVISA, há exceção à regra geral de responsabilidade solidária, uma vez que é obrigatório que a União faça parte do polo passivo, embora possa ser ajuizada a ação contra os demais entes também. Isso porque a ANVISA integra a Administração Pública Federal, sendo a União a responsável pela mora, não tendo os demais entes como saná-la.

Sintetizando os posicionamentos acima expostos, colaciona-se a tese fixada pelo STF no tema 500 de Repercussão Geral, Recurso Extraordinário 657718:

“1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União

Relevante lembrar que, por consequência, nos termos da Constituição Federal, artigo 109, I a competência dessas ações propostas em face da União será da Justiça Federal.

 

5.3. Imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista que prestam serviços de saúde exclusivamente pelo SUS

O tema foi discutido no Recurso Extraordinário 580264/RS, tema 115, todavia não foi fixada tese de repercussão geral, pois a decisão só valeu para o caso concreto em razão de suas peculiaridades.

Não obstante, pela relevância da matéria, comenta-se que a decisão foi no sentido de que a saúde é dever do Estado, sendo cumprido por meio de ações e serviços que, em face de sua prestação pelo Estado, se definem como de natureza pública, de modo que a prestação de ações e serviços de saúde por sociedades de economia mista corresponde à própria atuação do Estado, desde que a empresa estatal não tenha por finalidade a obtenção de lucro.

Assim, “as sociedades de economia mista prestadoras de ações e serviços de saúde, cujo capital social seja majoritariamente estatal, gozam da imunidade tributária prevista na alínea “a” do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal”. (grifo nosso).

 

5.4. Ressarcimento ao SUS das despesas com atendimento a beneficiários de planos de saúde privados.

A questão foi apreciada no Recurso Extraordinário 597.064/RJ, tema 345 de repercussão geral.

A lei 9656/98, art. 32, prevê que, caso algum cliente de plano de saúde utilize-se de tratamento médico pelo SUS, o Poder Público poderá ressarcir-se em face do respectivo plano de saúde. Veja-se:

 

Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS.

Argumenta-se, por parte dos planos de saúde, que sua participação é suplementar, uma vez que a Constituição Federal atribui aos entes políticos o dever primário de assegurar o acesso à saúde. Assim, o Poder Público é obrigado às prestações de saúde para quem o procure, não havendo dever de ressarcimento.

Ademais, o artigo 32 instituiria nova fonte de custeio para a seguridade social, o que só pode ocorrer por lei complementar, conforme art. 195, § 4º, da CF/88:

Art. 195 (…) § 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I”.

 

Art. 154. A União poderá instituir:

I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”;

Contra-argumenta-se, todavia, que: (i) embora o tratamento pelo SUS não possa ser negado em razão do princípio da universalidade, se o atendimento é de usuário do plano de saúde, do mesmo modo como ocorreria se tivesse sido atendido em hospital particular não conveniado ao SUS, deve haver ressarcimento, sob pena de enriquecimento ilícito; (ii) O art. 32 não criou nova fonte custeio da saúde, não se tratando de tributo, mas de obrigação de caráter civil, sendo a recomposição do gasto de dinheiro público no cumprimento de prestação assegurada por contrato entre a operadora e os beneficiários.

Fez-se a ressalva, todavia, de que a norma em debate só se aplica aos procedimentos ocorridos após a publicação da lei nº 9.656/98, isto é, 04/06/1998.

Sintetizando, eis a tese fixada: “É constitucional o ressarcimento previsto no art. 32 da Lei 9.656/98, o qual é aplicável aos procedimentos médicos, hospitalares ou ambulatoriais custeados pelo SUS e posteriores a 4/6/1998, assegurados o contraditório e a ampla defesa, no âmbito administrativo, em todos os marcos jurídicos”

A propósito, já havia decidido o STJ (AgRg no AResp 307.233-RJ): “As operadoras de plano de saúde que estejam em débito quanto ao ressarcimento de valores devidos ao SUS podem, em razão da inadimplência, ser inscritas no Cadin”.

 

5.3. Outros pontos pendentes de julgamento pelo STF

A título de curiosidade, há ainda outros relevantes temas com Repercussão Geral reconhecida e que aguardam o julgamento pelo Pleno, e que não serão aprofundados nesta obra, haja vista seu caráter de análise jurisprudencial:

 

  1. a) RE-RG 566.471/RN, tema 6: dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo: A última movimentação é a inclusão na pauta de julgamento para 11/03/2020.

 

  1. b) RE-RG 630.852, tema 381: aplicação do Estatuto do Idoso a contrato de plano de saúde firmado anteriormente a sua vigência. A última movimentação é a inclusão na pauta de julgamento para 13/05/2020.

 

  1. c) RE-RG 684.612, tema 698: limite do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde, ao qual a Constituição da República garante especial proteção;

 

  1. d) RE-RG 848.075, tema 818: controle judicial relativo ao descumprimento da obrigação dos entes federados na aplicação dos recursos orçamentários mínimos na área da saúde, antes da edição da lei complementar referida no art. 198, § 3º, da Constituição”.

 

  1. Novas perspectivas: ações coletivas e autocontenção judicial

Aqui, propõe-se o debate sobre a vantagem da utilização de ações coletivas em detrimento de ações individuais para o pleito de prestações de saúde, uma vez que as ações coletivas costumam ter muito mais elementos probatórios e envolvem diversos atores sociais, seja no polo ativo, a exemplo do Ministério Público e Defensoria Pública, seja como amici curiae.

Assim, gera maior discussão na sociedade, e tende a influenciar positivamente nas políticas públicas.

Como coloca Gilmar Mendes (2018, p. 1071-1072):

O nível de informações usualmente contidas nas ações coletivas é importante motivo pelo qual estas devem ser estimuladas. Com a participação de mais interessados e pessoas especializadas na matéria, o Poder Judiciário acaba por ter dados mais completos para julgar o caso. (…) Nas ações individuais, essa interferência é feita sem que se tenha noção dos reais impactos que podem ser causados pela decisão. Nas ações coletivas, porém, as questões orçamentárias podem ser sopesadas de forma devida, inclusive porque o pedido é analisado com maiores subsídios. Além disso, a longo prazo, as decisões proferidas em demandas coletivas tendem a gerar diminuição de gastos para a Administração Pública, que poderá organizar-se adequadamente para atender às demandas da coletividade dentro de prazos razoáveis.”

Por outro lado, deve-se considerar que o Judiciário não é o ambiente mais adequado à discussão de políticas públicas, sendo que a ideal solução é o debate junto aos Poderes Legislativo e Executivo.

Assim, como sugere Gilmar Mendes (2018, p. 1072-1073):

Finalmente, o fortalecimento da cultura administrativa, que permitiria a realização do Direito sem intervenção judicial, também é um desafio digno de ser arrostado. Há, entre nós, a consolidada compreensão de que a única forma de efetivar direitos é por meio do Judiciário. É necessário superar a denegação sistemática de direitos amplamente reconhecidos, permitindo-se que a realização do Direito se efetive, se possível, sem intervenção judicial. Nesse sentido, devem ser estimuladas práticas desenvolvidas no âmbito do Ministério Público, das Defensorias Públicas e da própria Administração, por meio das ouvidorias, sistemas de ombudsman ou instituições equivalentes”.

Havendo o fortalecimento da cultura administrativa, poderá o Judiciário passar a adotar a autocontenção judicial, ou seja, o oposto ao ativismo, respeitando as escolhas dos demais poderes, que detém maior legitimidade de implementação de políticas públicas. Explica Luís Roberto Barroso (2018, p. 173):

Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas”.

 

CONCLUSÃO

Como visto, a questão da judicialização da saúde é deveras complexa. De um lado, o orçamento público, necessário para promoção dos mais diversos direitos fundamentais. De outro, o direito à vida individualmente considerado, sendo o mais elementar dos direitos humanos.

É tema altamente técnico, sendo crucial a atuação do Executivo e do Legislativo na promoção de políticas públicas.

No mais, espera-se que o Judiciário, em especial o Supremo, como intérprete final da Constituição, utilize-se de prudência nas hipóteses em que seja provocado, considerando inclusive os parâmetros já fixados jurisprudencialmente.

 

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