Efeitos Sucessórios do Reconhecimento da Parentalidade Socioafetiva

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Autor: Hyago Belarmino Silva Souza, Bacharel em Direito pela Faculdade Faci/Wyden – Belém/PA – [email protected].

Orientador: Manoel Rufino David de Oliveira, Orientador de pesquisa; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) – [email protected].

 

RESUMO

O presente estudo objetiva analisar em que medida a parentalidade socioafetiva é tutelada pelo direito brasileiro, bem como os efeitos sucessórios decorrentes do reconhecimento, visando explicar a igualdade entre os filhos, assim como o melhor interesse do menor e a igualdade entre a paternidade biológica e a afetiva. Adotou-se o método de pesquisa a abordagem dialética, como método de pesquisa o método dedutivo e como ferramentas bibliográficas a revisão bibliográfica e a documental, fazendo uma análise de dados de forma qualitativa e utilizando como fontes principais de análise, respectivamente, a doutrina jurídica nacional e as leis e normativas brasileiras. Verificou-se que o reconhecimento da parentalidade socioafetiva produz efeitos relevantes para a sucessão, condição que gera conflito quanto à forma e métodos de reconhecimento. Concluiu-se, ao final, que a paternidade biológica não tem prevalência sobre a afetiva, que a igualdade entre os filhos é questão pacífica, tendo como espelho os princípios da dignidade da pessoa humana e igualdade entre os filhos. Além disso, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva destaca a modernização e normatização de filhos anteriormente desprezados pela família e filhos do genitor.

Palavras-chave: Parentalidade socioafetiva. Efeitos sucessórios. Paternidade.

 

 

ABSTRACT: The present study aims at analyzing the extent to which socio-affective parenting is protected by Brazilian law, as well as the inheritance effects resulting from recognition, aiming at explaining the equality between the children, as well as the best interest of the child and the equality between biological fatherhood and affective We adopted the method of research the dialectical approach, as a method of research the deductive method and as bibliographical tools the bibliographic and documentary revision, doing a data analysis in a qualitative way and using as main sources of analysis, respectively, the legal doctrine laws and regulations. It was verified that the recognition of the socioaffective parenting produces effects relevant to the succession, a condition that generates conflict as to the form and methods of recognition. It was concluded, in the end, that biological parenting has no prevalence over affective, that equality between children is a peaceful matter, mirroring the principles of the dignity of the human person and equality between the children. In addition, the recognition of socio-affective parenting highlights the modernization and normalization of children previously neglected by the family and children of the parent.

Keywords:  Socio-affective parenting. Succession effects. Paternity.

 

 

Sumário: Introdução. 1. Novos tempos, novas famílias: entendimento atual de família no direito brasileiro, relação de parentesco e princípios norteadores. 2. Conceito de família. 2.1. Relação de parentesco. 2.2. Princípios norteadores da família socioafetiva. 2.3. Da parentalidade biológica à parentalidade socioafetiva: evolução do conceito de parentalidade no direito brasileiro. 3. Código civil de 1916. 3.1. Constituição federal de 1988. 3.2. Código civil de 2002. 3.3. Efeitos do reconhecimento da parentalidade socioafetiva no direito sucessório brasileiro. 4. Formas de reconhecimento da parentalidade. 4.1. Ação de reconhecimento da paternidade socioafetiva. 4.2. Reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. 4.3. Direitos do descendente e do ascendente socioafetivo no âmbito sucessório. 4.4. Conclusão.

 

 

INTRODUÇÃO

 

O conceito do instituto civil “família” não é uma constante imutável no direito brasileiro.  Ao analisar a forma como o ordenamento jurídico tutelava as formações familiares, percebe-se que houve uma progressiva a evolução do conceito de família, levando em consideração a Constituição Federal de 1988 que inovou com o reconhecimento de novas formas de família, entre elas a família socioafetiva. A evolução do conceito de família previsto desde a promulgação do Código Civil de 1916 frente à promulgação do Código Civil de 2002 se deu, em grande parte, devido a um evidente respeito a princípios como melhor interesse do menor, afetividade, dignidade da pessoa humana e igualdade entre os filhos.

Para que se possa fazer uma reflexão atual sobre o instituto “família” é necessário trazer à baila questões contemporâneas que contemples a miríade de arranjos familiares desde há muito tempo existentes na sociedade e que agora ganham visibilidade a ponto de serem discutidos na seara jurídica. Uma das composições familiares que vem sido trazida constantemente às discussões civilistas é a família socioafetiva, popular no contexto fático, mas quase que invisível à tutela legislativa.

Dessa forma, a paternidade socioafetiva tem sido reconhecida pela jurisprudência brasileira como um vínculo relacional essencial para a garantia de um novo vínculo familiar, tendo em vista que surge com o intuito de suprir o sofrimento pela falta de convivência, cumprimento de dever familiar e afeto de um pai biológico.

A previsão desse novo arranjo familiar, ao mesmo tempo que revê a ideia anacrônica de filho ilegítimo, passa a reconhecer novos direitos privados às pessoas que são reconhecidas como descendentes ou ascendentes por vínculo socioafetivo. Dessa forma, o presente estudo busca analisar, na área do Direito Sucessório, que disciplina a transferência do patrimônio, em virtude de testamento ou lei, os efeitos sucessórios decorrentes do reconhecimento da parentalidade socioafetiva.

Nesse sentido, com base nas questões supracitadas, adotou-se como indagação de pesquisa a seguinte pergunta: Em que medida o reconhecimento da parentalidade socioafetiva produz efeitos na seara do direito sucessório?

Para tanto, adotou-se como objetivo geral: averiguar em que medida o reconhecimento da parentalidade socioafetiva produz efeitos no direito sucessório brasileiro.

E, como objetivos específicos, delimitaram-se os seguintes pontos: compreender o conceito atual de família no direito brasileiro, em especial no que tange a Constituição Federal e o Código Civil brasileiro, analisar a evolução do conceito de parentalidade no direito brasileiro, desde o paradigma biológico até o paradigma de socioafetividade, investigar os efeitos que o reconhecimento da parentalidade socioafetiva produz no direito sucessório brasileiro.

 

2 NOVOS TEMPOS, NOVAS FAMÍLIAS: entendimento atual de família no direito brasileiro, relação de parentesco e princípios norteadores

 

O modelo atual de família e as inovações normativas advindas com o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988 ajudaram a moldar o que conhecemos hoje como o conceito de família. Anteriormente ligada pelo patriarcalismo burguês vinculado a Portugal, o Direito Civil passou a adotar conceitos modernos acerca dos novos modelos de família e diferentes modos de formação. Dando caráter fundamental ao princípio da afetividade nas relações familiares atualmente marcadas pela busca da felicidade e proteção de direitos fundamentais assegurados a todos os pertencentes do núcleo familiar.

Para tanto, na presente seção, com vistas à compreender o entendimento atual de família no direito brasileiro, será, em primeiro lugar, tratado acerca do conceito contemporâneo de família adotado pela Constituição Federal e, por conseguinte, pelo direito brasileiro, para em seguida abordar o conceito de relação de parentesco e os princípios norteadores do reconhecimento desses vínculos relacionais.

 

2.1 CONCEITO DE FAMÍLIA

 

O conceito de família possui diferentes definições que podem variar de acordo com os ramos das ciências humanas em que esteja sendo estudada. A Sociologia, a Filosofia, a Biologia, a Antropologia e o Direito determinam de formas variadas o conceito de família. Todavia, neste estudo nos ateremos ao seu significado no ramo do Direito, ou seja, no ramo das ciências jurídicas.

No ordenamento jurídico não há um conceito definido sobre o que é família. Os doutrinadores compreendem de diferentes maneiras o que pode ser considerado como família e como passou a ser entendida com o advento do princípio da afetividade, adotado na Constituição Federal de 1988.

A doutrinadora Maria Helena Diniz (2014, p. 23) enumera três formas de conceituar a família, determinando-os de família em sentido amplíssimo, em sentido lata e em sentido restrito. Dando caráter fundamental a cada uma das relações familiares.

Sendo o sentindo amplíssimo caracterizado por todos os indivíduos ligados a família tanto pelo vínculo da consanguinidade como pela afinidade, atingindo inclusive pessoas do seu serviço doméstico. Já no sentido lata de família estaria incluído tanto os indivíduos oriundos da família do cônjuge, como os parentes em linha reta, ou seja, descendente, ascendente e colateral. E no sentindo restrito, unicamente o cônjuge, a prole e a entidade familiar formada pelos pais em casamento ou união estável, ou por qualquer um dos pais ou descendentes.

Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 23) apresenta apenas dois sentidos, o amplo e o restrito, ilustrando a importância da família como meio social e o valor do vínculo afetivo para as relações familiares a partir da Constituição Federal de 1988.

Estando no sentido amplo a família formada pelos descendentes, ascendentes e colaterais, incluindo o cônjuge e os seus familiares que são unidos pelo vínculo da afinidade. Já, no sentindo restrito, a família sendo formada apenas pelos pais e filhos, estendendo-se para o núcleo familiar formado por apenas um dos pais e seus descendentes.

Usando como critério os conceitos analisados, faz-se necessário observar o aludido por Flávio Tartuce (2016, p. 36) ao citar em seu livro que “é imperioso ainda verificar que há uma tendência de ampliar o conceito de família para outras situações não tratadas especificamente pelo Texto Maior” (TARTUCE, 2016, p. 36).

Observando a necessidade de não nos atermos apenas ao que alude a Constituição em relação às novas formas de família, tendo em vista, que o rol enumerado no artigo 226 da Constituição Federal de 1988 não é taxativo ou rígido, dando margem a conceitos modernos sobre família.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

  • 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
  • 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
  • 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
  • 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
  • 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
  • 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
  • 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
  • 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Neste instante, torna-se importante destacar a citação de Flávio Tartuce (2016, p. 36, p. 37) ao que diz Maria Berenice Dias sobre família, vejamos:

O novo modelo de família funda-se sob os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo uma nova roupagem axiológica ao direito de família […] A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado (TARTUCE, 2016, p. 36, p. 37).

Portanto, a família como instituto social é fundamental para a formação humana, constituindo-se como principal elemento estrutural de proteção e crescimento da sociedade atual. Necessitando, portanto, de especial proteção do Estado para garantir os seus direitos, a sua segurança social e inviolabilidade.

 

2.2 RELAÇÃO DE PARENTESCO

 

São modalidades de parentesco, o parentesco consanguíneo ou biológico consagrado no artigo 1591 do Código Civil de 2002 e classificado pela doutrinadora Maria Helena Diniz em matrimonial ou extrapatrimonial, o parentesco por afinidade e o parentesco civil, este classificado pelo doutrinador Flávio Tartuce em parentesco por adoção, parentesco por reprodução assistida e parentesco por socioafetividade.

No parentesco consanguíneo ou biológico há um membro comum ancestral em que todos descendem de forma direta ou indireta, desse modo, todos são ligados pelo mesmo sangue. Dividido por Maria Helena Diniz (2014, p. 489) em parentesco matrimonial, relacionado ao casamento e em parentesco extrapatrimonial relacionado a união estável, concubinato ou relações sexuais eventuais.

Já o parentesco resultado da afinidade, está relacionado ao parentesco de uma pessoa com o ascendente, descendente ou irmão do cônjuge ou companheiro, tanto por meio do casamento como pela união estável. Vale ressaltar três pontos: a sogra independentemente da dissolução do relacionamento permanecerá sendo sogra para sempre, os afins do cônjuge ou companheiro não são afins entre si, e cunhados podem casar ou viver em união estável.

Por último, o parentesco civil está relacionado às relações extrapatrimoniais, tendo em conta, que a relação não é oriunda sequer do parentesco consanguíneo ou biológico, ou mesmo do parentesco por afinidade. Podendo ser caracterizado pela adoção constante no artigo 1626 do Código Civil de 2002, pela reprodução assistida constante no artigo 1597, inciso V do Código Civil de 2002, e pela socioafetividade constante no artigo 1593 do Código Civil de 2002, no que tange a outras formas de parentesco e a posse de estado de filho.

Segundo Maria Berenice Dias (2015, p. 379) o parentesco civil anteriormente caracterizado pela adoção, passou a incluir a reprodução assistida e a socioafetividade devido o alargamento do conceito de filiação, acabando com a desigualdade frente a filiação biológica, uma vez que “O desenvolvimento das modernas técnicas de reprodução assistida ensejou o que passou a ser chamado de desbiologização da parentalidade, impondo o reconhecimento de outros vínculos de parentesco” (DIAS, 2015, p. 379).

Complementando-se por este outro trecho:

O prestígio da verdade afetiva frente à realidade biológica impôs o alargamento do conceito de filiação. Nos dias atuais, como afirma Guilherme Calmon Nogueira da Gama, paternidade, maternidade e filiação não decorrem exclusivamente de informações biológicas ou genéticas – dá-se relevo a sentimentos nobres, como o amor, o desejo de construir uma relação afetuosa, carinhosa, reunindo as pessoas num grupo de companheirismo, lugar de afetividade, para o fim de estabelecer relações de parentesco (DIAS, 2015, p. 379).

Como se pode observar o parentesco socioafetivo está relacionado a posse do estado de filho, portanto, faz-se necessário manifestação de vontade do genitor através do afeto, do carinho e não somente do fator biológico, como era utilizado anteriormente pelo Código Civil de 1916.

 

2.3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA FAMÍLIA SOCIOAFETIVA

 

Os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade entre os filhos, melhor interesse do menor e afetividade, são os mais importantes princípios do Direito de Família. Resolvendo questões de ordem familiar ou consolidando direitos estes princípios são os destaques de todas as relações jurídicas familiares.

O princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Considerado pela maioria dos doutrinadores como o princípio mais abrangente, o mais fundamental de todos. Princípio que garante aos integrantes do círculo familiar a plena proteção de seus direitos, independentemente da modalidade de família. Para Maria Berenice Dias (2015, p. 44), “A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem” (DIAS, 2015, p. 44).

O princípio da igualdade entre os filhos estudado no artigo 1596 do Código Civil de 2002, inclui os filhos adotivos, os filhos provenientes de relações patrimoniais e os filhos provenientes das relações extrapatrimoniais. Proibindo qualquer tipo de discriminação entre os filhos havidos do casamento, da união estável ou de relações sexuais eventuais, sem qualquer forma de identificação da sua ilegitimidade no registro de nascimento.

Flávio Tartuce (2016, p. 16) cita de forma coesa a atualização do ordenamento jurídico em relação à desigualdade antes vislumbrada pelo Código Civil de 1916 referente aos filhos tidos no casamento e os filhos havidos de outras relações.

Está superada, nessa ordem de ideias, a antiga discriminação de filhos que constava da codificação anterior, principalmente do art. 332 do CC/1916, cuja lamentável redação era a seguinte: “O parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção”. Como é notório, este dispositivo já havia sido revogado pela Lei 8.560/ 1992, que regulamentou a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento (TARTUCE, 2015, p. 16).

Funcionando como o princípio caracterizado por solucionar conflitos existentes decorridos da dissolução do casamento e da união estável, o princípio do melhor interesse do menor, consolidado no caput do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, tem como principal importância garantir ao menor de 0 (zero) a 12 (doze) anos o direito de melhor resolução dos conflitos, promovendo todas as formas de facilidades. Tanto em relação a guarda compartilhada, costumeiramente utilizada para dirimir as questões de afeto e psicológicas da criança como do direito de visitas ao genitor ou genitora que não obter a guarda da criança.

O princípio da afetividade, princípio fundamental, possui para o Direito de família tanta importância quanto o princípio da dignidade da pessoa humana, servindo como ponto essencial para as relações familiares e sendo norteador para a família formar-se e aperfeiçoar o direito a felicidade.

Para Maria Helena Diniz (2014, p. 40):

É preciso que no seio da família haja uma renovação do amor e sucessivos recasamentos, para que ela possa manter-se, numa época como a atual, marcada pela disputa, pelo egoísmo e pelo desrespeito. A família continua e deve sobreviver feliz, este é o desafio para o século XXI (DINIZ, 2015, p. 40).

Desta forma, é valioso destacar que mesmo observando o fato do princípio da afetividade não estar previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, doutrinariamente é notório que o seu conteúdo é de fundamental importância para as relações familiares do século XXI, balizando todas as formas de família e dando caráter fundamental para a busca da felicidade, através da formação de uma família.

 

3 DA PARENTALIDADE BIOLÓGICA À PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: evolução do conceito de parentalidade no direito brasileiro

 

Para melhor definirmos o atual entendimento sobre o conceito de família é necessário analisarmos a evolução histórica do conceito e suas especificidades. Dessa, a presente seção basear-se-á em uma análise genealógica do conceito de parentalidade no direito civil brasileiro, resgatando as mudanças que o Código Civil sofreu desde 1916 até 2002, perdendo o seu caráter patriarcal e passando a reconhecer direitos fundamentais garantidos a todas as pessoas pertencentes ao núcleo familiar. Ao final, será ressaltada a (re)volução normativa que o Código Civil de 2002 trouxe ao garantir direitos que o Código Civil de 1916 não reconhecia frente as relações de parentalidade.

 

3.1 CÓDIGO CIVIL DE 1916

 

O Código Civil de 1916 é baseado na ideia de patriarcalismo, sendo o homem a autoridade que decidia de forma exclusiva o comportamento da família, dando caráter de submissão a mulher dentro do casamento. Conceito que trazia consigo de forma clara a ideologia burguês e católica da época que considerava família apenas aquela resultante do casamento, portanto, tornando ilegítimos os filhos pertencentes de relações extrapatrimoniais.

A família neste momento era constituída principalmente pelos cônjuges e sua prole, podendo incluir os ascendestes. Não dando direitos aos filhos gerados por relação extrapatrimonial, ou seja, filhos de fora do casamento, por exemplo: alimentos ou poderes para propor ação de investigação de paternidade que buscasse atribuir a uma mulher casada um filho ilegítimo. Além disso, concedia ao filho ilegítimo durante a partilha de bens apenas o percentual de 50% do patrimônio herdado pelo filho legítimo, ou seja, o filho biológico considerado legítimo por pertencer ao casamento.

Os filhos adotivos também não eram considerados legítimos, sendo apenas nivelados a estes, contudo com valorização ao filho biológico em relação ao filho adotivo. Entretanto, diferentemente do que acontecia com os filhos oriundos de relações extrapatrimoniais, os filhos adotivos também considerados ilegítimos não tinham direito a partilha de bens, conforme o que aludia o artigo 377 do Código Civil de 1916.

Art. 377. Quando o adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária.

As ideologias defendidas pela igreja católica relacionadas ao casamento como único meio de constituir a família conferiam a ideia de virgindade da mulher, que deveria se guardar ao marido, pois caso ocorresse o contrário poderia gerar anulação do casamento por erro essencial sobre a pessoa. A intenção era impedir a dissolução do casamento e tratava de maneira desigual, inclusive de forma punitiva os filhos derivados de relacionamentos extrapatrimoniais, como forma de preservar o núcleo familiar e o casamento.

Nas lições de Maria Berenice Dias (2015, p. 32):

O antigo código civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações.³³ As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa da preservação (DIAS, 2015, p. 32).

Portanto, é imperioso destacar que os filhos tratados de forma desigual pelo Código Civil de 1916 que excluía direitos aos filhos considerados ilegítimos e dava prevalência aos filhos biológicos era uma afronta aos valores preservados pela Constituição Federal de 1988 e pelo princípio da afetividade.

Vale ressaltar que as inovações jurídicas com a virada do século XIX para o século XX, como a Lei do Divórcio (6.515/10977) e o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), tornaram notório a necessidade de um novo Código Civil que pudesse reparar as injustiças e as desigualdades do código vigente, trazendo à tona o direito de igual proteção aos filhos, igualdade entre o homem e a mulher e previsão legal do instituto da união estável, que consolidou outras formas de família, além da forma já instituída anteriormente através do casamento.

 

3.2 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 

A promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxe várias inovações que solidificaram os preceitos de família, sendo criadas novas modalidades de família e novos princípios que passaram a servir como base para a consolidação de direitos, como a igualdade entre as pessoas do mesmo núcleo familiar e a forma que conhecemos a família.

Dentre as novas modalidades criadas estão incluídas a família monoparental, em que há apenas um dos pais e os filhos, determinando, consequentemente, uma das novidades jurídicas do Direito de Família e seu modo de constituição. Assim como a família eudemonista caracterizada pelo vínculo afetivo das relações familiares e o reconhecimento ao princípio do melhor interesse do menor.

Em seu livro Flávio Tartuce (2015, p. 3) cita os dizeres de Maria Berenice Dias em relação as modalidades de família. Argumentação que indica as adequações e atualizações da Constituição Federal de1988.

  1. a) Família matrimonial: decorrente do casamento.
  2. b) Família informal: decorrente da união estável.
  3. c) Família homoafetiva: decorrente da união de pessoas do mesmo sexo, já reconhecida por nossos Tribunais Superiores, inclusive no tocante ao casamento homoafetivo (ver Informativo n. 486 do STJ e Informativo n. 625 do STF). O tema ainda será devidamente aprofundado na presente obra.
  4. d) Família monoparental: constituída pelo vínculo existente entre um dos genitores com seus filhos, no âmbito de especial proteção do Estado.
  5. e) Família anaparental: decorrente “da convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade e propósito”, tendo sido essa expressão criada pelo professor Sérgio Resende de Barros (DIAS, Maria Berenice. Manual…, 2007, p. 46). Segundo as próprias palavras do Professor da USP: “que se baseia no afeto familiar, mesmo sem contar com pai, nem mãe. De origem grega, o prefixo ‘ana’ traduz idéia de privação. Por exemplo, ‘anarquia’ significa ‘sem governo’. Esse prefixo me permitiu criar o termo ‘anaparental’ para designar a família sem pais” (BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos…, Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/artigos.php?TextID=86>. Acesso em: 20 mar. 2007). Vale lembrar aqui a hipótese de duas irmãs idosas que vivem juntas, o que pode sim constituir uma família, conforme o entendimento do STJ a seguir exposto.
  6. f) Família eudemonista: conceito que é utilizado para identificar a família pelo seu vínculo afetivo, pois, nas palavras de Maria Berenice Dias, citando Belmiro Pedro Welter, a família eudemonista “busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação dos seus membros” (Manual…, 2007, p. 52). A título de exemplo, pode ser citado um casal que convive sem levar em conta a rigidez dos deveres do casamento, previstos no art. 1.566 do CC (TARTUCE, 2015, p. 3). (grifo do autor)

Ressalta-se que no artigo 226, § 5º da Constituição Federal de 1988, foi incluído o princípio da isonomia entre o homem e a mulher, abandonando o modelo patriarcalista do Código Civil de 1916.

Além disso, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou a união estável pondo fim ao modelo de criação da família determinado anteriormente em que apenas pelo casamento seria instituída a família, com base no parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988.

 

  • 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Os princípios consagrados na Constituição, princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da afetividade, princípio do melhor interesse do menor e o princípio da igualdade entre os filhos, ajudaram a impor a vedação ao retrocesso do Código Civil de 1916 que distinguia os filhos, caracterizando-os de legítimos e ilegítimos.

O artigo 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, equiparou os filhos adotivos, afetivos e biológicos, protegendo-os contra as injustiças decorrentes do Código Civil de 1916 e proibindo distinção entre os filhos.

Artigo 227, § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

É imperioso destacar o papel fundamental do princípio da afetividade no novo ordenamento jurídico, usando como tese que a partir desse momento tornou-se viável o reconhecimento da filiação socioafetiva, momento que o filho teve reconhecido o direito de buscar sua felicidade, protegendo, por consequência, a sua fragilidade e resguardando os seus direitos preconizados no caput do artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).

Destaca-se também que o princípio da afetividade pode ser considerado como um dos princípios norteadores do Direito de Família, considerando que seu conteúdo aborda a maioria das relações familiares da atualidade, inclusive a parentalidade socioafetiva.

 

3.3 CÓDIGO CIVIL DE 2002

 

A elaboração do Código Civil de 2002 teve início em 1975, anteriormente a Lei de Divórcio (Lei 6515/1977), entretanto, já nasceu desatualizado e com várias emendas, haja vista que a Constituição Federal de 1988 trouxe à tona novas regras de direito material e uma revolução no ordenamento jurídico.

Acompanhando a Constituição Federal de 1988, o novo Código Civil, trouxe poucas mudanças para o ordenamento jurídico, reiterando alguns princípios da Constituição, como o princípio da afetividade, dignidade da pessoa humana, melhor interesse do menor e o princípio da igualdade entre o homem e a mulher, acabando com o modelo patriarcalista e excluindo artigos não mais usados, ou seja, letra morta.

Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 7) interpretou semelhante a maioria dos doutrinadores que o Código Civil apenas complementou a Constituição, reafirmando os princípios já preconizados anteriormente.

O Código Civil de 2002 complementou e estendeu esses princípios, mas, sem dúvida, a verdadeira revolução legislativa em matéria de direito privado e especificamente de direito de família já ocorrera antes, com essa Constituição (VENOSA, 2009, p. 7).

A família deixou de ser oriunda apenas do casamento e passou a ter novas modalidades, inclusive com a instituição da união estável, fato inovador, pois o Código Civil de 1916 bania o instituto do concubinato. Modernização que repercute de maneira positiva para os filhos havidos, pois primeiramente havia prevalência dos filhos biológicos aos afetivos, adotivos ou gerados de forma extrapatrimonial.

A própria titulação do capítulo referente aos filhos mudou, passando a chamar Capítulo “Da Filiação”, diferentemente do código anterior que o denominava “Da Filiação Legítima”. Demonstrando de forma irredutível os efeitos do artigo 227 da Constituição Federal de 1988 para a proteção e garantia de direitos.

Não obstante, o Código Civil de 2002 também inovou ao determinar que a ação de investigação de paternidade anteriormente prescritível, com base no artigo 178, § 3º do Código Civil de 1916, passasse a ser imprescritível, garantindo ao filho havido, portanto, o direito de propor a ação no momento que entender necessário.

 

4 EFEITOS DO RECONHECIMENTO DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO

 

Com a implementação do princípio da afetividade na Constituição Federal de 1988 mesmo que de forma implícita, como pode ser observado no artigo 227 da Constituição Federal, pode ser considerado que foram corrigidas violações aos direitos dos filhos não concebidos no casamento, como o direito de todos os filhos serem tratados igualmente e as mesmas garantias sucessórias dos filhos biológicos.

O doutrinador Christiano Cassettari (2017, p. 81) explica de forma concisa o que ocorre após o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, vejamos:

Assim, temos que, quando um pai ou mãe reconhece a paternidade ou maternidade socioafetiva, esse filho passará a ter vínculo de parentesco com seus outros parentes. Com isso surgirão os conceitos: avós, bisavós, triavós, tataravós, irmãos, tios, primos, tios-avós socioafetivos, que irão acarretar todos os direitos decorrentes dessa parentalidade (CASSETTARI, 2017, p. 81).

Portanto, torna-se evidente a total equiparação de direitos entre parentes biológicos e parentes socioafetivos no que tange o direito sucessório, bastando para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva o afeto, a vontade das partes em manter o vínculo afetivo, a convivência e o status de filho, ou seja, a posse do estado de filho que se configura a partir do comportamento de pai e filho existente entre o filho socioafetivo e o de cujus, caracterizando-se, dessa forma, o trinômio nome (nominatio), tratamento (tractatus) e fama (reputatio).

No mesmo sentido Flávio Tartuce (2016, p. 203) indica o filho socioafetivo como herdeiro do pai falecido, defendendo os mesmos direitos sucessórios do filho biológico ao filho socioafetivo.

[…] se o vínculo baseado na posse de estado de filhos gerar o registro posterior do descendente, o último deve ser reconhecido como herdeiro, com a sua inclusão na vocação hereditária, como se filho biológico do falecido fosse (TARTUCE, 2016, p. 203).

Por conseguinte, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva gera ao filho biológico os mesmo direitos sucessórios dos filhos socioafetivos, vinculando este como herdeiro legítimo, com base no artigo 1.846 do Código Civil de 2002, que diz: “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”. Efeito sucessório que faz jus aos princípios da igualdade entre os filhos e dignidade da pessoa humana ao dispensar a sobreposição de direitos entre os filhos do de cujus.

Entendimentos que seguem de acordo com o posicionamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido (STJ – REsp: 1618230 RS 2016/0204124-4, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 –TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2017)[1]

Dessa forma, é imperioso destacar a importância do princípio da afetividade nas relações familiares e a desbiologização da parentalidade como forma de garantir direitos, respeito a princípios como o princípio do melhor interesse do menor e suprindo o sofrimento pela falta de convivência e cumprimento do dever familiar.

 

4.1 FORMAS DE RECONHECIMENTO DA PARENTALIDADE

 

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva depende de requisitos para a sua caracterização, tais como a posse do estado de filho, convivência, publicidade, afeto recíproco, intenção das partes em manter o vínculo afetivo e vontade clara e inequívoca daquele que exerce a paternidade socioafetiva, sendo importante destacar a necessidade da declaração de duas testemunhas que reconheçam a existência de vínculo afetivo e a não indicação de vício de consentimento por parte do suposto pai.

Maria Berenice Dias (2016, p. 678) comenta em seu livro os dizeres de Paulo Lôbo quanto aos requisitos da posse do estado de filho, observemos:

Para o reconhecimento da posse do estado de filho, a doutrina atenta a três aspectos: (a) tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) nominatio – usa o nome da família e assim se apresenta; e (c) reputatio – é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais. Confere-se à aparência os efeitos de verossimilhança que o direito considera satisfatória (DIAS, 2016, p. 678).

Vale ressaltar que somente o nome (nominatio) não é o suficiente para a caracterização da posse do estado de filho, um exemplo seria alguém herdar o nome do padrasto e não receber o tratamento (tractatus) de filho por parte do marido da mãe biológica. Sendo importante ressaltar a fama (reputatio) de filho relacionada à convivência e publicidade perante a sociedade e entes familiares.

Christiano Cassettari (2017, p. 34) cita os dizeres de José Boeira em seu livro para conceituar posse do estado de filho, avaliemos:

Segundo José Bernardo Ramos Boeira,81 a posse do estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação diante de terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai (CASSETTARI, 2017, p. 34).

É importante salientar que a posse do estado de filho tem forte ligação com o princípio da aparência para caraterização da parentalidade socioafetiva, com base na boa-fé e na vontade inequívoca.

Diante disso, é notável que com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva com base no princípio da aparência, o objetivo se torna alcançar a verdade real e, portanto, reconhecer a parentalidade advinda da convivência, reciprocidade e sólido vínculo afetivo.

 

4.2 AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

 

O reconhecimento da paternidade socioafetiva é mais uma indicação que a verdade real e os princípios do melhor interesse do menor e afetividade são mais importantes do que o vínculo meramente biológico.

Vale ressaltar os dizeres dos artigos 227, §6º da Constituição Federal, 26 e 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo 1.607 do Código Civil que funcionam como base para uma possível ação que busque a verdade real e, portanto, o reconhecimento do fator afetivo relacionado ao tempo de convivência, status de filho e interesse das partes em manter o vínculo afetivo.

O artigo 1.593 do Código Civil indica a possibilidade da existência do parentesco socioafetivo quando cita: “ou outra origem”, gerando de uma forma mais consistente o direito a ação de reconhecimento ou ação declaratória de paternidade.

A doutrinadora Maria Berenice Dias (2016, p. 733) cita em seu livro o questionamento de Zeno Veloso quanto à possibilidade do registro da criança que recebe do suposto pai socioafetivo o tratamento de filho de forma contínua e notória, vejamos:

Questiona Zeno Veloso: se o genitor, além de um comportamento notório e contínuo, confessa, reiteradamente, que é o pai daquela criança, propaga esse fato no meio em que vive, qual a razão moral e jurídica para impedir que esse filho, não tendo sido registrado como tal, reivindique, judicialmente, a determinação de seu estado? (DIAS, 2016, p. 733).

Diante do questionamento torna-se necessário evidenciar que o consentimento do pai biológico não é fator primordial para a inclusão do nome do pai socioafetivo no registro civil de nascimento do filho, porém o consentimento do pai socioafetivo é indispensável, sob pena de configurar vício de consentimento e, por conseguinte, o não reconhecimento da parentalidade.

Vejamos o que dizem os Enunciados n.º 519 e n.º 520 da V Jornada de Direito Civil.

Enunciado n.º 519: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.

Enunciado n.º 520, Artigo 1.601: O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida.

Complementando com o Enunciado n.º 339 da IV Jornada de Direito Civil, que diz: “a paternidade socioafetiva, calçada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.

Dessa forma, é necessário destacar que o reconhecimento da parentalidade é um direito personalíssimo e com base no artigo 1º da Lei 8.560/92, é irrevogável. Podemos considerar inclusive que também é irretratável, caso não seja evidenciado vício de consentimento ou equívoco.

Faz-se importante citar que o reconhecimento da paternidade socioafetiva não significa a retirada do nome do pai biológico do registro civil de nascimento do filho, que passará a ter o nome de dois pais e da mãe no seu registro, sendo o pai socioafetivo averbado e não registrado, pois com o reconhecimento não é feito um novo registro de nascimento e sim uma alteração no registro já feito anteriormente.

 

4.3 RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

 

O reconhecimento extrajudicial deve respeitar as regras do Provimento n.º 63/2017 do CNJ, mas é importante ressaltar que este reconhecimento não é um desprezo à questão biológica e sim respeito a princípios como o da proteção integral da criança e do adolescente.

Dentre os requisitos para o cartório fazer a averbação estão à comprovação da posse do estado de filho, a diferença de pelo 16 anos entre as partes, não podendo ser reconhecida a paternidade socioafetiva entre irmãos e havendo a necessidade de anuência dos pais biológicos caso o filho seja menor de 18 aos e anuência pessoal do filho maior de 12 anos.

Além disso, com base no artigo 12 do Provimento n.º 63/2017 do CNJ, caso o registrador perceba vício de consentimento ou não caracterização da posse do estado de filho, o mesmo não fará a averbação e encaminhará o pedido para o juiz competente.

 

4.4 DIREITOS DO DESCENDENTE E DO ASCENDENTE SOCIOAFETIVO NO ÂMBITO SUCESSÓRIO

 

Com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva todos os direitos relacionados à paternidade biológica passam também a serem direitos da relação socioafetiva. Exemplos de direitos entre os descendentes e ascendentes são o direito a herança, alimentos e possibilidade de averbação do nome do pai socioafetivo em cartório no registro de nascimento do filho socioafetivo.

A herança se torna um direito recíproco entre o descendente e o ascendente, nos moldes do artigo 1.784 e seguintes do Código Civil de 2002, passando o filho socioafetivo a ser herdeiro legítimo e, por conseguinte, inserido na linha de vocação hereditária, de acordo com o artigo 1.829 e seguintes do Código Civil de 2002.

Os alimentos também se tornam um direito recíproco, usando como base o artigo 1.694 e seguintes do Código Civil de 2002, podendo tanto o ascendente como o descendente pedir em juízo a pensão alimentícia, seguindo as orientações da Lei de Alimentos n.º 5.478/68 e do Código Civil brasileiro.

Já a possibilidade de averbação do nome do pai socioafetivo no registro civil de nascimento do filho se torna um direito a partir do momento que é reconhecida a parentalidade socioafetiva, podendo fazer o registro no momento que for oportuno, seguindo como base os parâmetros da Lei de Registros Públicos n.º 6.015/73.

 

CONCLUSÃO

 

O conceito de família é dinâmico, ou seja, teve várias mudanças desde o Código Civil de 1916, passando pela Constituição Federal de 2002 e chegando no atual Código Civil. Nesse instante, os princípios norteadores da parentalidade socioafetiva, dentre eles a igualdade entre os filhos e a afetividade tem total relevância para o direito, no que faz referência à verdade real e o princípio da aparência. Importante também se faz compreender a relação de parentesco para entender o sistema da família nos moldes do Código Civil e Constituição Federal.

A parentalidade e a forma como o direito enxerga a família precisavam de ajustes, haja vista que o Código Civil de 1916 não contemplava direitos iguais aos filhos havidos ou não do casamento, portanto, a Constituição Federal se tornou importante ao contemplar implicitamente o princípio da afetividade no seu artigo 227 e o Código Civil de 2002 ao confirmar direitos da constituição e abrir margem no ordenamento jurídico no que tange a socioafetividade.

Em relação ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva, pode ser feito por via judicial ou extrajudicial, sendo a segunda através de cartório e de acordo com regras do Provimento n.º 63/2017 do CNJ. Devendo cumprir requisitos como a convivência, posse do estado de filho, afeto recíproco, vontade das partes de manter o vínculo afetivo e publicidade.

Já no que tange o problema de pesquisa, no que refere aos efeitos sucessórios com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, a conclusão é que após o reconhecimento da (não) discriminação nas relações de parentalidade todos os filhos possuem os mesmos direitos sucessórios, tendo sido gerado na constância do casamento ou não havido, devendo haver respeito aos princípios da igualdade entre os filhos e dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se, a guisa de proposição, que seria interessante um provimento legislativo que reconheça expressamente a socioafetividade, especificando quais são os direitos e deveres entre os ascendentes e descendentes socioafetivos e os diversos procedimentos para seu reconhecimento. Apenas jurisprudência e enunciados não são mais o bastante para a compreensão de um tema tão importante no cenário jurídico, tendo em vista as novas modalidades de família e o princípio da busca da felicidade, implícito na Constituição Federal de 1988.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil. v. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1941.

BRASIL. Código Civil. Vade Mecum. 13. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2012.

BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. 13. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2012.

CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos/ Christiano Cassettari. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas. 2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Rev. Atual. e Ampl. 2015.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Livro eletrônico. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2016.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. v. 5. 29. ed. São Paulo: Saraiva. 2014.

FACHIN, Luiz Edson. Família hoje. A nova família: problemas e perspectivas. Vicente Barreto (Org). Rio de Janeiro: Renovar. 1997.

FIUZA, Cesar, Direito civil. 12. ed. Revista Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte: Del Rey. 2008.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense. 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Principais introduções do código civil de 2002. São Paulo: Saraiva. 2007.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Resp. n.º 1.618.230 – RS (20160204124-4). 3ª Turma. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em: 28/03/2017. Acesso em: 25. abr. 2018. Disponível em:

https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465738570/recurso-especial-resp-1618230-rs-2016-0204124-4/inteiro-teor-465738580?ref=juris-tabs.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das sucessões. v. 6. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense. 2016.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. v. 5. 11. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. 2016.

VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros. 1997.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 9. ed. São Paulo: Atlas. 2009.

 

[1] STJ. Recurso especial. Resp nº 1.618.230 – RS (20160204124-4). 3ª turma. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em: 28/03/2017. Disponível em:

<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465738570/recurso-especial-resp-1618230-rs-2016-0204124-4/inteiro-teor-465738580?ref=juris-tabs>. Acesso em: 25 abr. 2018.

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