A relativização da presunção da violência em delitos sexuais

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Resumo: Um dos crimes que mais atinge a vida de uma pessoa, senso comum, é o crime de estupro. Além da violência física – que muitas vezes o acompanha – ele ainda traz uma densa carga de impacto psicológico que afeta a vítima por vários anos. Sem dúvida alguma é um delito que deve ser tratado com o maior rigor possível pelo Estado, que deve punir o criminoso e, ao mesmo tempo, oferecer à ofendida toda forma de amparo para que ela se restabeleça. Concomitantemente, é importante que o Estado possa acompanhar as mudanças sociais que vão se alternando ao longo dos tempos, promovendo mudanças no ordenamento jurídico que possam atender a essas novas demandas. Comportamentos antes definidos como criminosos já não mais são assim considerados, ao passo que outros, antes nem ao mesmo pensados, hoje são práticas delitivas e que merecem estar na legislação penal. Uma dessas alterações versa na parte que trata o delito de estupro, que tem em sua tipificação a figura da violência ou grave ameaça para a consumação do crime. Ocorre que, em determinados casos, essa violência é presumida, ou seja, não há necessidade de comprovação material para ser caracterizada. Essa presunção de violência acontece em três possibilidades, sendo uma delas quando a vítima tem menos de quatorze anos de idade. É justamente esse o alvo da polêmica dentro da doutrina e, principalmente, na jurisprudência pátria. Violência presumida absoluta ou relativizada? O assunto urge posicionamento mais claro, porém, enquanto ele não ocorre, o debate está lançado.


Palavras-chave: estupro; presunção de violência; relativização.


Abstract: One oh the crimes which most affect someone’s life is, without any doubt, rape. Besides the physical violence – which follows someone – it brings a dense psychological impact which affects someone for several years. With no doubt, is a crime that must be deal with by the state, that must punish the criminal and, at the same time, to give a support to the offended, in order that she can recover. At the same time, is important that the government accompany the social changes that is alternating from time to time, bringing changes on the juridical rules that can attempt the new demands. Behaviors, before defined as criminal are no longer been considered as it and, on the other hand, acts that had never been thinking about, should have been on the criminal legislation. On of these changes refers to the rape which is shown on the legislation as serious threat or violence to be a crime. The point is that, in several cases, that violence is presumed; there is no need to be proved. That violence presumption can happen on three situations, on of witch, when the victim is less than 14 years old. It is just the point of the controversial on the doctrine and the judgments. Absolute presumed violence or relative? The subject needs more arguments, however, while is not happening, the debate is on.  


Key words: rape; presumption of the violence; relativisation.


INTRODUÇÃO


O Direito, diferentemente de outras ciências, tem como uma de suas peculiaridades a questão da não-adaptabilidade em tempo que se passa. Por mais que os órgãos legislativos atuem, ainda assim não será possível fazer com que o Direito caminhe junto aos fatos que movem o tecido social. Uma legislação, dependendo do assunto que traz em seu teor, pode adentrar ao mundo jurídico já defasado, como é o caso do, segundo alguns doutrinadores, Código Civil de 2002.


Mudanças recentes no Código Penal deixaram de tipificar condutas que eram consideradas crimes, mas que a sociedade já não mais as via com estes olhos. É o caso, por exemplo, do crime de adultério, que constava no CP até o ano de 2005, quando foi retirado por uma alteração legislativa que mexeu em diversos assuntos referentes aos chamados crimes sexuais.


Embora o legislador tenha atentado para esses tipos de mudanças, alguns assuntos, talvez pela polêmica de seu teor, continuaram com a mesma legislação antiga, ainda que a sociedade tenha outro olhar, que os costumes tenham mudado. É a questão da presunção de violência nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor a menores de 14 anos. O assunto é polemizado a cada divulgação de novos casos, que sempre geram conseqüências terríveis tanto para o menor quanto para o suposto autor, sendo que este, ao ser preso por um crime desta natureza, se vê envolvido num ambiente passível das mais terríveis atrocidades, sofrendo violência sexual, inclusive.


A doutrina jurídica é dividida nessa questão. Alguns autores defendem a tese de que se deve manter a presunção da violência nos casos que tenham menores de 14 anos envolvidos, ao passo que outros autores defendem uma relativização desta presunção, com a avaliação, caso a caso, da efetividade ou não da violência para a consumação do delito. A jurisprudência ainda se encontra dividida e não há um posicionamento que pode ser considerado como majoritário.


O Direito Penal se baseia em princípios que tentam proteger a sociedade de futuros delitos, mas que também protegem àqueles que são acusados de praticá-los. Uma pessoa não pode ser punida sem que tenha agido, no mínimo, com culpa. Colocar em um presídio um cidadão que tenha praticado ato sexual com uma menina menor de 14 anos, sem verificar se este ato foi consumado com ou sem violência, pode ser uma arbitrariedade estatal. É preciso uma cautela majorada quando se trata de processos com crimes dessa espécie.


Neste trabalho, tentar-se-á mostrar como a questão é trabalhada nos tempos atuais, quer seja pela doutrina, quer seja pela própria jurisprudência, buscando a tendência futura para decisões de uma questão das mais importantes do ordenamento jurídico.


1 METODOLOGIA


O artigo teve como fonte principal de pesquisas outros trabalhos de cunho acadêmico, como artigos, doutrina jurídica na esfera do Direito Penal, além da análise de textos legais e decisões dos Tribunais Superiores.


2 REVISÃO DE LITERATURA


2.1 Crimes Contra os Costumes: Estupro


O Código Penal Brasileiro, em seu título VI na parte especial, que trata dos crimes contra os costumes (Artigos 213 a 234), traz em seu capítulo I Os crimes contra a liberdade sexual, dentre os quais encontra-se o tipo penal do estupro, in verbis:


Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:


Pena – reclusão, de seis a dez anos.”


Nesse caso deve-se frisar que o objeto jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher. No crime de estupro, somente o homem pode ser o sujeito ativo material, porquanto somente ele poderá manter conjunção carnal com a mulher. Conquanto, nada impede que a mulher possa configurar como co-autora – executando atos de grave ameaça enquanto o homem pratica o ilícito penal, por exemplo – ou atuar como partícipe – realizando atos não essenciais à prática delitiva, como, por exemplo, induzindo o sujeito ativo material à pratica do delito por vingança á vítima. O sujeito passivo por sua vez, somente pode ser a mulher, haja vista a descrição contida na conduta típica do tipo penal “constranger mulher (…)”.


Para que haja o delito em tela, segundo Corrêa Júnior e Rocha, é necessário que seja:


“imprescindível o dissenso da vítima, ou seja, que ela não queira realizar o ato sexual e que os meios de execução sejam mediante violência (real, física) ou grave ameaça (violência psíquica).”


Dessa forma a consumação ocorre quando há cópula vagínica mediante o emprego da violência ou da grave ameaça, total ou parcial, não exigindo que haja a ejaculação para a realização do estupro.


A tentativa do estupro é admitida pela maioria da doutrina caso, por exemplo, o agente primeiro pratique atos libidinosos com a vítima e que, por circunstâncias alheias à sua vontade (uma sirene ou a chegada de terceiros), a conjunção carnal não se realiza, deverá, então, o sujeito ativo responder por estupro tentado em concurso material com o tipo penal do art. 214 (atentado violento ao pudor). Vale ressaltar que o tipo penal de estupro não admite a forma culposa por ausência de previsibilidade legal, porém admite-se o concurso de agentes.


O crime de estupro em sua forma simples (art. 213, CP), bem como sua forma qualificada pelo resultado morte (art. 223, § único) é tipificado – de acordo com a Lei 8.072/90, art. 1º, V – como crime hediondo, posicionamento este que vai de encontro com o entendimento da jurisprudência dominante do STF (HC nº 81.288, HC 81.891-SP, Resp. nº 327.131-DF e outros) e STJ (HC nº 20.455SP, HC nº 17.915-RJ; Resp nº 479.688-DF e outros).


2.2 Disposições gerais sobre os crimes contra os costumes: da presunção de VIOLÊNCIA.


O artigo 224 do Código Penal Brasileiro traz a seguinte redação:


“Art. 224 – Presume-se a violência, se a vítima:


a) não é maior de catorze anos;


b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;


c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.”


A presunção de violência, também chamada de violência ficta, é encontrada nos casos em que há a relação sexual sem a ocorrência de violência física, porém o crime está caracterizado por uma questão de política criminal onde o legislador optou por considerar crime as hipóteses em que a vítima não tem condições de impedir, consentir ou defender-se da realização da conjunção carnal.


No caso da alínea “b” em que a vítima é alienada ou débil mental é imprescindível que o agente conheça tal estado da vítima, estado este que deve ser comprovado para que haja a presunção de violência. Se não houver comprovação da alienação ou debilidade mental não há de se falar em crime de estupro na forma presumida. É importante frisar que a vítima seja inteiramente incapaz de compreender a natureza da relação sexual, caso seja parcialmente incapaz também não haverá o delito em tela.


A alínea “c” traz a hipótese de a vítima não poder, por qualquer causa, oferecer realização do ato sexual. Por qualquer causa entende-se embriaguez, sob efeito de utilização de entorpecentes ou medicamentos que causem a perda total ou parcial da consciência, entre outras causas. Não é exigido que tais situações tenham sido provocadas pelo agente ou pela vítima, basta que a resistência esteja diminuída e que a vítima não possa resistir ou consentir a realização da conjunção carnal, não importando, nesses casos, se a vítima é capaz ou não ou até mesmo se possui mais de quatorze anos.


Já na alínea “a” que trata da hipótese em que a vítima do estupro não é maior de quatorze anos. O legislador entendeu que crianças e adolescentes com menos de quatorze anos não possuem capacidade de consentir, ou não, a prática de relações sexuais. Mesmo que haja consentimento da vítima e o autor pratique relações sexuais, estará cometendo o crime de estupro em sua forma presumida, haja vista que o agente deve, efetivamente, saber que a conduta que pratica é contrária ao ordenamento jurídico, de acordo com Corrêa Júnior e Rocha:


“A jurisprudência vem entendendo que essa presunção é absoluta (jure et de jure) havendo o crime, ainda que a menor de quatorze anos tenha consentido na prática do ato sexual e já tenha experiência anterior.”


Porém, em um caso concreto, caso a vítima se encaixe na previsão da alínea “a” do artigo 224: “não é maior de catorze anos”, mas em razão de seu desenvolvimento físico, desenvoltura e experiências anteriores, aparenta ter mais de quatorze anos e consente a relação sexual induzindo o agente a acreditar que não age contrário à norma jurídica, poderá ocorrer o erro de tipo, o qual passa-se a analisar adiante


2.3 O ERRO DE TIPO NO CRIME DE ESTUPRO


O erro de tipo está previsto no Código Penal Brasileiro em seu artigo 20:


“Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”


O erro de tipo é aquele que recai sobre as elementares ou circunstâncias do tipo penal. Segundo Damásio o erro de tipo é aquele que incide sobre “os pressupostos de fato de uma causa de justificação ou de dados secundários da norma penal incriminadora”. O erro de tipo é caracterizado quando o agente comete um fato sem o conhecimento que este pertence a um tipo penal. O agente não sabe o que faz, pois falta o dolo da conduta típica.


O erro de tipo, segundo Corrêa Júnior e Rocha:


“É o erro decorrente da má interpretação da lei ou erro na avaliação das elementares ou circunstâncias em que envolvem o fato, bem como das justificativas para a prática do ato ou dos dados secundários na norma penal. É a falsa percepção da realidade.”


Ainda na conceituação de erro de tipo, Rogério Greco ensina que no erro de tipo o agente:


“(…) pratica uma infração penal pela falsa representação da realidade e, dessa forma, resta afastado o dolo que é a vontade livre e consciente da prática da conduta incriminadora.”


O erro de tipo é classificado em duas espécies: o erro de tipo essencial e o erro de tipo acidental. Erro de tipo essencial é aquele que ocorre uma falsa percepção da realidade, impedindo a compreensão, por parte do agente, do caráter ilícito do fato como no exemplo clássico da doutrina que o agente atira em uma pessoa pensando tratar-se de um animal bravio. Ocorrendo o erro de tipo essencial e excluída a consciência e a vontade do agente sempre haverá a exclusão do dolo, chamado pela doutrina dominante de erro de tipo invencível, escusável, justificável ou inevitável. Porém se houver a previsão legal a título de culpa e o erro ser vencível, inescusável, injustificável ou evitável, o agente responderá culposamente.


Já no erro de tipo acidental, conforme Corrêa Júnior e Rocha, seria:


“(…) aquele que não recai sobre as elementares ou circunstâncias do crime, mas sim sobre um dado secundário da norma penal incriminadora. O sujeito atua com plena convicção do que faz, porém se engana a respeito de um dado não essencial ao delito.”


Dessa forma, o erro de tipo acidental não excluirá, jamais, o dolo. O agente recairá, geralmente, sobre erro sobre o objeto (error in objecto), erro sobre a pessoa (error in persona), erro na execução (aberratio ictus) ou erro sobre a causa (aberratio causae), respondendo assim sem nenhuma prerrogativa.


Por esse instituto jurídico, há casos na jurisprudência em que acusados de estupro são absolvidos da condenação, ainda que tenham mantido relação sexual com menores de idade.  Isso ocorre quando o agente incorre no erro de tipo, por acreditar estar mantendo a relação sexual com uma maior de 18 anos, dada a compleição física da suposta vítima e a vida social da mesma, freqüentando ambientes tradicionalmente ocupados por adultos. Nesses casos, não há crime, pois o erro de tipo invencível exclui o dolo, logo, também a tipicidade. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso julgou a Apelação criminal nº 34.462/2003 procedente:


“TJMT – APELAÇÃO CRIMINAL – RÉU CONDENADO POR INCURSO NAS PENAS DO ART. 213 c/c ART. 224 “a” c/c ART. 226, II, TODOS DO CP – IRRESIGNAÇÃO – PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO – PROCEDÊNCIA – RELACIONAMENTO SEXUAL CONSENTIDO E ESPONTÂNEO – AUSÊNCIA DE DOLO – ERRO DE TIPO – EXCLUDENTE DA CULPABILIDADE – VIOLÊNCIA PRESUMIDA – INAPLICABILIDADE – RECURSO PROVIDO.”


Em seu relatório, a ilustre relatora da Apelação Criminal, Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, discorre com maestria sobre o erro de tipo que recaiu o agente – no caso concreto – sobre o elemento constitutivo do tipo da presunção de violência:


“(…) Ademais, pelo convívio entre o recorrente e vítima o mesmo não tinha o conhecimento de que tal relacionamento (consentido e espontâneo) fosse criminoso, nem que a idade pouco abaixo dos 14 anos fosse de sua informação. Na verdade, trata-se de réu pescador, inculto, tanto é que quando interrogado em juízo consignou ignorar que esse tipo de relacionamento é criminoso, o que reveste de plausibilidade suas afirmações. Caso contrário, tentaria esconder tais fatos do conhecimento da família da vítima e da vizinhança. No que pertine às alegações da vítima em momento algum esta consignou ter mantido relações sexuais de maneira coercitiva, sem a sua anuência. Na hipótese versada há ausência de dolo, ou seja, erro de tipo que é excludente de culpabilidade. (…) No que concerne à presunção da violência (art. 224 “a”) esta não merece aplicabilidade no caso concreto, visto que, frise-se novamente, a vítima não é “inocente”, ingênua e tampouco desinformada a respeito do sexo. De outro lado, tal decisão não tem o caráter de fomentar atos tais quais os dos autos, mas que na verdade trata-se de um caso isolado, daqueles que raramente encontramos na prática. (…) Devendo-se, por conseguinte, decretar a absolvição do mesmo.” (DJ de 14.11.2003 – Apelação Criminal nº 34.462/2003).


Vê-se, portanto, que o erro de tipo é reconhecido pelos tribunais nos casos concretos, mas trata-se de um caso isolado. Não se deve abstrair que tal decisão é pacífica na jurisprudência, pois haveria o risco de se ter diversos casos graves de violência e abuso contra crianças e adolescentes justificados pelo erro de tipo.


3 DISCUSSÃO


A presunção de violência que é tipificada no artigo 214, alínea “a” do Código Penal é absoluta, ou seja, basta que haja relação sexual entre o agente e a vítima menor de 14 anos para que, dessa forma, ocorra violência, independente de a relação ser consentida ou não mediante o emprego de violência real ou ficta. É notório que, à época em que o Código Penal brasileiro foi editado – em 1940 – os usos e costumes da sociedade estavam de acordo com os bens jurídicos que o legislador optou por salvaguardar. Porém, passados quase setenta anos de sua edição, reformado e modificado por algumas leis, é necessário que haja determinada relativização na interpretação da norma penal antes de sua aplicação devido a modificações dos costumes e comportamentos da sociedade.


Não se pode analisar a presunção de violência de forma abstrata e absoluta, dado o momento em que o Código Penal foi elaborado. Deve-se, dessa forma, fazer a análise de tal situação em cada caso concreto, ou seja, de maneira relativizada para que o Estado não cometa erros ao aplicar o direito ao caso concreto.


Dada a não pacificação do assunto na doutrina e na jurisprudência, encontra-se, ainda, posicionamentos – dentro de um mesmo tribunal – divergentes, a favor ou contra a aplicação da norma de forma absoluta. Observa-se, nesses dois julgados, posição favorável à aplicação da presunção absoluta da violência em crimes de estupro:


“TJSP – Inadmissível a impunidade do indivíduo lascivo que mantenha coito carnal com menor de 14 anos, sob a alegação de ter sido por ela provocado e incitado para o ato. Mesmo que leviana, ainda que apresente liberdade de costumes, a menor merece toda a proteção legal. (RT 444/296).”


“TJGO – Recurso de apelação. Estupro. Violência presumida. Se a pessoa ofendida, nos crimes sexuais, não for maior de catorze anos, presume-se por avaliação feita pelo legislador, que o autor do crime atuou com violência, ainda que na realidade tal não tenha ocorrido. A presunção legal absoluta da violência deve prevalecer, afastada qualquer dúvida sobre a maturidade da ofendida em se tratando de menor sem auto determinação no campo sexual, incapaz de decidir, com liberdade dada sua pouca idade e sem condições pessoais para repelir propostas feitas pelo namorado. Recurso improvido. (DJ de 11.04.1995 – Apelação Criminal nº 14194.0.213.).”


Porém, o próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se posicionou em alguns casos, de maneira diversa, aplicando a presunção de violência de forma relativa:


“TJSP – É relativa a presunção de violência pela idade prevista no art. 224, “a”, do Código Penal, pois fundada no grau de inocência de cada vítima quanto à vida sexual. Desta forma, se a ofendida, embora contasse com menos de 14 anos à época dos fatos, mostrava-se aparentemente informada sobre práticas sexuais, revelando capacidade de auto determinar-se no terreno da sexualidade, não há que se falar em crime de estupro, pois em tal hipótese, inexistente a presunção de violência. (RT 823/583).”


“TJSP – Estupro – exclusão da presunção de violência quando a ofendida deixa claro ter maturidade suficientes para exercer sua capacidade de se auto-determinar no terreno da sexualidade. (JTJ – 272/583).”


Decisão em teor semelhante foi adotada no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que enfrentou o assunto de forma bem elucidativa, conforme se observa no seguinte julgado:


“O fundamento da ficção legal de violência estampada no art. 224, a, do CP, é a inocência, a falta de conhecimento do adolescente, em relação aos fatos sexuais. Esta presunção, no entanto, deve ser afastada quando a ofendida, embora menor de 14 anos, possui maturidade e conhecimentos suficientes para auto determinar-se no campo da sexualidade. Não se pode esquecer de que o nosso Código Penal data de 1940, e, de lá para cá, o sexo tornou-se um assunto amplamente discutido nas escolas, nas famílias e em todos os meios de comunicação de massa. O juiz tem a obrigação de observar o que acontece, em termos de transformações da realidade social, e, a partir daí, conjugar fatos e lei. Considerar, portanto, como relativa, a presunção de violência do art. 224, a, do CP, é entendimento que não lesiona o texto legal e permite colocar o Julgador em sintonia com a realidade em que está inserido.” (TJMG – Acr 72.892-3- 3a C. Crim.- Rel. Des. Gomes Lima- DJ. 01.10.1996)


Nesse mesmo sentido, a doutrina começa a posicionar-se a favor da análise do caso concreto, ou seja, da relativização antes da aplicação do instituto da presunção de violência, para se evitar, dessa maneira, as possíveis injustiças na aplicação de medidas coercitivas pelo Estado. Nas lições de Damásio:


“(…) a presunção de violência, no caso de a vítima não ser maior de catorze anos, é relativa, cedendo na hipótese de o agente incidir em erro quanto à idade desta, erro este plenamente justificável pelas circunstâncias.”


Mirabete corrobora no mesmo sentido ao atentar que não existe presunção absoluta, sugerindo, dessa maneira, a interpretação sociológica da norma penal


“(…) não se caracteriza o crime, quando a menor de 14 anos se mostra experiente em matéria sexual; já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos; é despudorada e sem moral; é corrompida; apresenta péssimo comportamento. Por outro lado persiste o crime ainda quando menor não é mais virgem, é leviana, é fácil e namoradeira ou apresenta liberdade de costumes (…)”


O Direito Penal moderno veda qualquer forma de responsabilização objetiva, ou seja, aquela onde se pune o autor independente dele ter agido com dolo ou mesmo com culpa. O que se busca é responsabilizar o agente que dá causa ao resultado na medida de sua culpabilidade. Assim sendo, a aplicação do instituto da violência presumida no caso de menores de quatorze anos pode atingir justamente essa premissa e punir pessoas de forma injusta, movimentando toda a máquina judicial para dar tratamento igualitário a um criminoso de fato e um agente que, em um caso concreto, agiu sem incorrer em crime algum, dada a conduta social da suposta vítima. Grande lição trouxe o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em decisão no Superior Tribunal de Justiça, a qual aduz:


O direito penal moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se a conduta delituosa. Conduta e fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato, que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo bem, corolário do imperativo da justiça. Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O principio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva. Na hipótese dos autos, entretanto, o acórdão fundamentou a condenação na conduta do réu, que teria se valido de grave ameaça para conseguir o seu intento.” (Sexta Turma, Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Resp 46.424, D.J.U. 08.08.1994)


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Tal questão não é pacífica na doutrina e na jurisprudência, destarte a necessidade de ser debatida. É assunto que deve ser inserido na ordem do dia da discussão acadêmica e jurisprudencial, visto o risco de se punir condutas que não merecem atenção da esfera penal e, ainda mais grave, colocar no falido sistema carcerário nacional pessoas que agiram sem intenção criminosa, que não são bandidos e não merecem suportar essa clara violação de direitos fundamentais.


A jurisprudência já tem se mostrado mais favorável à tese da relativização da presunção de violência, no tocante ao previsto na alínea “a” do artigo 224 do Código Penal, que trata da presunção de violência em delitos sexuais cometidos contra menores de quatorze anos. Obviamente que os outros dois tipos de presunção de violência, quais sejam, quando a vítima é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância ou quando ela não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência ainda se mantém de forma absoluta, ou seja, dispensam a análise do caso concreto, bastando apenas a comprovação da falta de capacidade de discernimento da vítima.


Essa mesma comprovação da falta de capacidade de entendimento da vítima não pode ser definida como absoluta quando a vítima for menor de quatorze anos, visto, como trazido nos estudos e julgados explanados no presente trabalho, as mudanças sociais que ocorreram desde a edição do Código Penal, em 1940. Tais mudanças, incontestavelmente, influenciaram e ainda influenciam o comportamento das pessoas, e não pode ser diferente no tocante a visão de aspectos sexuais por parte dos adolescentes. Se antigamente esse assunto era considerado um tabu, hoje em dia é discutido abertamente, quer seja nas escolas ou mesmo na internet, fonte essa quase sempre intocável de qualquer tipo de censura.


Por todos esses tipos de mudanças, é importante que o direito busque acompanhar as alterações sociais. Ainda que mudanças legislativas sejam mais morosas, a jurisprudência pode, com inteligência, adaptar as fontes materiais à realidade fática, sobretudo quando tal entendimento busca atender a um dos princípios do direito penal, qual seja, o in dubio pro reu, que trabalha a ideia de, na dúvida sobre autoria ou materialidade, o benefício é do réu, que deve ser absolvido. Como punir um agente que manteve relações sexuais com uma menor de quatorze anos, sendo que essa menor, em análise de sua vida pregressa, já demonstrava claro conhecimento de aspectos sexuais, já havia se envolvido sexualmente com outras pessoas? Não é esse o fundamento do jus puniendi do Estado, que busca punir condutas realmente relevantes.   


O Direito busca trazer justiça às pessoas, justiça essa que é trazida após um processo, onde se tem a análise de aspectos probatórios, para então o Estado, através da figura do juiz, emitir opinião acerca dos aspectos legais que cercam o determinado caso. Não é mais admissível, em pleno século XXI, que se puna pessoas apenas por determinações legais que foram previstas há quase oitenta anos. É preciso mais que isso, ou seja, que o sistema judiciário chame para si a responsabilidade de analisar cada caso em concreto, buscando a justa punição para quem realmente merece. Essa mudança jurisprudencial pode, num futuro, pressionar o Poder Legislativo a se movimentar, promovendo as alterações nos textos legais, buscando adaptá-los à realidade presente.


 


Referências

CORRÊA JÚNIOR, Luiz Carlos Bivar; ROCHA, Zélio Maia da. Direito Penal. 18ª Ed. Brasília: Vestcon Editora, 2006.

COSTANZE, Bueno AdvogadosEstupro presumido. Bueno e Costanze Advogados, Guarulhos, 08.02.2008. Disponível em: <http://buenoecostanze.adv.br/index.php?option=com_ content&task=view&id=548&Itemid=81>. Acesso em 30 de abril de 2009.

DANTAS, Bruno Macedo. Apontamentos acerca da presunção de violência elencada no art. 224, alínea “a” do código penal. Disponível em: <http://www.neofito.com.br/artigos/art01/penal111.htm>. Acesso em 30 de abril de 2009.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Niterói – RJ: Impetus, 2007.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994.

. Direito Penal. Parte Especial. 3º Volume. 12ª Edição. Ed. Saraiva. São Paulo, 1998.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 2º Volume. Parte Especial. 12ª Edição. Ed. Atlas. São Paulo, 1997.


Informações Sobre os Autores

Victor de Oliveira Rosa

Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, Servidor público

Alexandra Danielle Noia Rodrigues

Profissional de educação física, servidora pública


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