Entender o crime de perigo abstrato na modalidade tentada e sua inconstitucionalidade de acordo com o princípio da lesividade

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Roniery Lima de Souza – Acadêmico de Direito na Fametro. [email protected]

Orientador: Dario Amauri Lopes de Almeida – Professor Especialista. [email protected],br

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise dos crimes de perigo abstrato na modalidade tentada, sob a ótica do princípio da lesividade. Para tal propósito foram utilizados conceitos de tais crimes, relacionando de maneira adequada e apontando os fundamentos para a impossibilidade desse crime. O tema é abordado de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, incluindo um estudo sobre a natureza do perigo, do perigo abstrato, da modalidade tentada e sobre o princípio lesividade. Para melhor compreensão do tema, iremos analisar determinado crime de perigo abstrato, a fim de exemplificar tal perigo. Este tema é de grande relevância, tendo em vista que muitos confundem perigo abstrato e perigo concreto.

Palavras-chave: Crimes de perigo abstrato. Tentativa. Princípio da lesividade. Impossibilidade.

 

Abstract: This article aims to analyze crimes of abstract danger in the attempted modality, from the perspective of the principle of injury. For this purpose, concepts of such crimes were used, relating them in an appropriate manner and pointing out the grounds for the impossibility of this crime. The theme is approached in accordance with the Brazilian legal system, including a study on the nature of danger, abstract danger, attempted modality and on the principle of injury. For a better understanding of the theme, we will analyze a certain abstract danger crime, in order to exemplify such danger. This theme is of great relevance, given that many confuse abstract danger and concrete danger.

Keywords: Abstract danger crimes. Attempt. Principle of injury. Impossibility.

 

Sumário: Introdução.1. Princípio da lesividade. 1.1 Culpabilidade.2 Crime de perigo abstrato.2.1 Conceito de Crime de perigo e suas espécies.2.2 Diferença entre crime de perigo abstrato, crimes formais e de mera conduta.3 Crime de perigo abstrato e o princípio de lesividade.4 Crime de perigo abstrato e a posição do STF.5 Conclusão.6 Referências.

 

INTRODUÇÃO

A criação de tipos de crimes de perigo abstrato, como queriam os vinculados a um pensamento voltado principalmente para a repressão, dependeu, não de uma conduta efetivamente perigosa para a vida social, mas de um comportamento simplesmente contrário a uma lei formal.

Entretanto, vale analisar que, os crimes de perigo abstrato são caracterizados por conterem a simples presunção de que o bem jurídico foi exposto a lesão ou perigo de lesão indo contra o princípio da lesividade ou ofensividade. De acordo com esse princípio, não poderia existir crimes sem a lesão ou exposição de lesão do bem jurídico no caso concreto. Além disso, cabe ressaltar que, esse princípio possui hierarquia constitucional, trazendo assim a necessidade de entender o crime de perigo abstrato na modalidade tentada e sua inconstitucionalidade de acordo com o princípio da lesividade.

Os crimes de perigo abstrato são aqueles no qual não exigem a lesão de um bem jurídico ou a colocação deste bem em risco real ou concreto. Estes crimes descrevem apenas um comportamento ou uma conduta na qual não se aponta um resultado específico. Estes crimes estão sendo questionados quanto sua lesividade, e pode-se usar como exemplo um motorista que dirige alcoolizado, que pode causar um acidente ou não. Neste contexto, deve-se analisar os princípios da lesividade e da adequação social.

Para Luiz Flávio Gomes, entende-se que não basta a conduta e seu desvalor para a existência do crime. Fundamental é a existência do resultado. (GOMES, 2002, p. 62). Tendo em vista que nos crimes de perigo abstrato seu resultado não vem causar danos ao bem jurídico, tem-se uma situação na qual ocorre a violação aos princípios fundamentais, tais como os princípios da lesividade e da adequação social, fazendo com que exista uma incoerência desta modalidade de crime para com o ordenamento jurídico brasileiro.

O estudo do tema se dá pela importância de se entender no que consiste um crime de perigo abstrato e na compreensão de uma ligação deste crime ao princípio da lesividade. Somado a isso, frisa-se o princípio da adequação social, analisando suas duas funções, e tendo como base que a sociedade tem um papel importante neste âmbito.

Além disso, é de fundamental importância acadêmica e pessoal a realização dessa pesquisa já que ela possibilita ampliar os conhecimentos a respeito do que consiste um crime de perigo abstrato e também contribuir para que outros estudantes e pesquisadores tenham esta pesquisa como fundamento a respeito da polêmica gerada por essa temática. Nesse sentido, esse trabalho também pode servir de base para futuras monografias e dissertações no final do curso.

A pesquisa deste trabalho foi realizada com base em artigos científicos, publicações e livros que visavam temas relacionados a consiste um crime de perigo abstrato, modalidade tentada e princípio da lesividade. Ademais, o trabalho se deu através de um processo exploratório e foi utilizado o método hipotético-dedutivo como metodologia, pois nesse trabalho foi utilizado conceitos e fenômenos já estudados e formados dos quais foram medidas as consequências em relação a aplicação ao tema escolhido. (GIL, 2010)

 

1 Princípio da lesividade

1.1 Culpabilidade

Nesse ponto cabe comentar também brevemente sobre o princípio da culpabilidade. O conceito que recai sobra a culpabilidade é tanto social como jurídico, pelo fato de que para sua elaboração se leva em consideração os requisitos da vida social, das mínimas exigências sociais de cada época. Com as transformações decorrentes do tempo, o conteúdo da culpabilidade também sofre alterações, denominando-se “a medida do juízo de culpabilidade”. (BAUMANN; 1981. p. 70-71).

Esse princípio, levando em consideração os fundamentos do Direito Penal, não admiti penas as quais não sejam consideradas merecidas, não permitindo que burlem a prevenção geral nem a especial. Somente o princípio da culpabilidade pode ser aplicado como princípio de medição das penas que, visem à correção do agente, lhe imputando culpavelmente a violação da norma, se o mesmo agente, através da pena aplicada, puder ser corrigido. (KLAUS; 2017. p. 03-05)

De acordo com Roxin (2008; p. 08) “a pena serve aos fins de prevenção especial e geral. Limita-se em sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode ficar abaixo deste limite desde que o tornem necessário exigências preventivo-especiais e a isso não se oponham as exigências mínimas preventivo-gerais”

O Estado Democrático de Direito que foi consagrado em nossa Carta magna, possui como base a ideia de que o homem como pessoa, como ser responsável, como um ser capaz de autodeterminação conforme critérios normativos. Assim, o conceito de culpabilidade possui coerência e ligação e com o conceito de ser humano que é usado como base na Constituição Federal.

“O Estado democrático, voltado à proteção da dignidade humana e orientado no sentido da proteção ao pluralismo político, deve ser entendido juridicamente como um Estado garantidor e incrementador tanto das liberdades individuais e das características diversificadas de cada um de seus cidadãos, quanto da realização integral das potencialidades humanas e de sua concreta execução dentro de uma política de integração e de participação”. (TAVARES; 1998, p. 151)

Vale ressaltar que o Código Penal Brasileiro menciona o termo “culpabilidade” em variados pontos com significados diversos. Desse modo, de acordo com o Luiz Flávio Gomes, pode-se dizer que a culpabilidade cumpre três funções: a) um dos fundamentos da pena; b) limite da pena e c) fator de graduação.

Em uma maneira mais sintética, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina explicam que:

A palavra culpabilidade, contida no CP, art. 59, expressa a posição do agente frente ao bem jurídico violado. Essa posição do agente pode ser: a)  de total menosprezo (que deriva do dolo direto de primeiro grau); b) de indiferença (decorre do dolo direto de segundo grau ou dolo eventual) e c) de descuido (emana do crime culposo). As duas primeiras retratam o que a doutrina ou teoria complexa da culpabilidade chama de “culpabilidade dolosa”; a terceira espelha a “culpabilidade culposa

Guilherme de Souza Nucci sustenta que a culpabilidade prevista no artigo 59 é o conjunto de todos os demais fatores unidos: antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos do crime, circunstâncias do delito, consequências do crime e comportamento da vítima, que será maior ou menor, conforme o caso.

Com tudo que fora exposto nesse ponto, se percebe que a pena que será fixada de acordo com a reprovação social ao crime praticado naquele caso específico e não à gravidade do delito de forma abstrata.

Sendo assim, afirma-se que o princípio da culpabilidade pode ser compreendido como a ausência a possibilidade de responsabilidade objetiva pelo resultado.

 

2 Crime de Perigo Abstrato

2.1 Conceito de Crime de Perigo e suas espécies

Na construção do conceito de crime de perigo abstrato, Silva Sánches (2011) analisa a legitimidade do direito penal de acordo um contexto histórico, político e social, pois este condiciona qualquer construção a respeito da missão do direito penal em sociedade, e quais fins deveria cumprir para suas atribuições serem compatíveis com direito positivo. De acordo com o seu entendimento, Direito Penal alcança sua finalidade mediante as normas primárias e secundárias que o integram. As primárias se entendem por ser mandatos ou proibições, enquanto os preceitos secundários cominam a pena pelo descumprimento do dever legal.

Antes de se chegar à definição de um crime de perigo abstrato, é necessário que ocorra a definição do que é um crime de perigo. Os crimes de perigo são descritos como aqueles que é elementar do tipo cuida da possibilidade de um dano, de uma possível ameaça à segurança de bens e interesses jurídicos (CORREA; 2015). Eles são classificados em concreto e abstrato.

Para Ângelo Roberto Ilha da Silva (2003), o conceito de crime de perigo foi criado da perspectiva do bem jurídico tutelado pela norma. Explica-se essa espécie de delito é classificada como de perigo em razão da situação a que a conduta tipificada expõe o bem interesse protegido. Os crimes de dano, da mesma forma, podem ser entendidos por causar um dano aquele bem ou interesse abrigado pela norma.

Cabe entender aqui que o risco é elemento integrante da tipicidade penal nos crimes de perigo abstrato. De acordo com a teoria tradicional a tipicidade penal, entenderia a mera subsunção do fato a norma. Porém, esse conceito restou superado diante da teoria moderna, in litteris:

Para a doutrina moderna, entretanto, a tipicidade penal engloba tipicidade formal e tipicidade material. A tipicidade penal deixou de ser mera subsunção do fato à norma, abrigando também juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. (CUNHA; 2016)

 

O crime de perigo concreto é aquele no qual o tipo exige uma constatação efetiva do perigo, o qual será elemento do próprio tipo. Neles é necessário que, para se configurar o crime, a conduta do agente exponha outrem a um perigo real, concreto e que pode e precisa ser comprovado.

De acordo com Rogério Greco (aput Camila Navarro, 2015) os crimes de perigo “não exigem a produção efetiva de dano, mas sim, a prática de um comportamento típico que produza um perigo de lesão ao bem juridicamente protegido, vale dizer, uma probabilidade de dano. O perigo seria, assim, entendido como probabilidade de lesão a um bem jurídico-penal. ” Ou seja, entende-se que perigo é uma possibilidade de dano ou probabilidade de lesão.

De fato, a característica que tradicionalmente define os crimes perigo abstrato reside na ausência de perigo como elementar do tipo, o qual se restringe a definir uma ação perigosa. O legislador elegeu determinadas condutas como intrinsecamente perigosas, não restando margem interpretativa ao juiz.

Para Bitencourt (2012), “a punibilidade da tentativa fundamenta-se no perigo a que é exposto o bem jurídico, e a repressão se justifica uma vez iniciada a execução do crime. Não se equipara o dano ou perigo ocorrido na tentativa com o que resultaria do crime consumado. Esta é a teoria adotada pelo nosso CP” (BITENCOURT, 2012, p. 127)

Seguindo o pensamento do autor Nelson Hungria (1958), o perigo para a legislação brasileira, é apresentado como uma categoria de resultado do crime, juntamente com o dano, mesmo que não coincida, cronologicamente, com a ação ou omissão, isto é, o perigo é entendido como um trecho da realidade.

Segundo Reale Júnior (1971), o tratamento do tema “perigo” no direito penal, baseava-se em um conceito objetivo, que nada mais é que um dano possível, o qual, pelas circunstâncias supervenientes, não se concretiza.

O crime de perigo abstrato não causa lesão afetiva. Sendo assim, Guilherme de Souza Nucci afirma que:

“[…] perigo abstrato, quando a probabilidade de ocorrência de dano está presumida no tipo penal, independendo de prova (ex.: porte ilegal de substância entorpecente – arts. 28 e 33, Lei 11.343/06 -, em que se presumi o perigo para a saúde pública); perigo concreto, quando a probabilidade de ocorrência de dano precisa ser investigada e provada (ex.: expor a vida ou saúde de alguém a perigo – art. 132, CP). ” (NUCCI, 2007, p.172).

 

O crime de perigo abstrato, em que a situação de perigo é tão-somente presumida, bastando a prática do comportamento previsto pelo tipo penal (GRECO, p.7, 2006), infringe o princípio da legalidade, uma vez que para a execução desse delito não há um tipo penal que descreva a conduta a ser punida. Tal situação permite julgamentos arbitrários, o que é motivo de preocupação para os cidadãos.

 

2.2 Diferença entre crime de Perigo e os crimes formais e de mera conduta

Os crimes formais são descritos pela doutrina de maneira diversificada. Paulo José da Costa Junior, Antonio José Miguel Rosa e Magalhães Noronha consideram os crimes formais e crimes de simples atividade equivalentes. Entretanto, João José Leal, discorre sobre o tema afirmando que os crimes formais podem ser chamados de crimes de mera conduta. Outro doutrinador que pode ser enfatizado aqui é Alvaro Mayrink o qual relata que os crimes formais e de mera conduta, quando fala da consumação, acrescentando a denominação de tipos de empreendimento.

Ainda seguindo Alvaro Mayrink, pode-se entender que os crimes formais por excelência são aqueles em que não há resultado definido e exigido no tipo penal, o que é o oposto do que ocorre nos crimes materiais.

Assim, com efeito, os crimes formais encontram sua consumação sem depender da existência de um resultado, ainda que este venha a acontecer. Como exemplos desse modelo de crime são os a extorsão (art. 158) e a extorsão mediante sequestro (art. 159).

Já os crimes de perigo podem ser entendidos como aqueles que causam um perigo de ofensa ao bem jurídico tutelado. Essa espécie de crime se subdivide em Crime de perigo real ou concreto e em crime de perigo abstrato ou presumido. ROMERO (2004) afirma que o “crime de perigo, é, pois, aquele, que sem destruir ou diminuir o bem jurídico tutelado pelo direito penal, representa uma ponderável ameaça ou turbação à existência ou segurança de ditos valores tutelados, uma vez existir relevante probabilidade de danos a estes interesses”

De acordo com Rogério Greco os crimes de perigo se entendem por:

não exigem a produção efetiva de dano, mas sim, a pratica de um comportamento típico que produza um perigo de lesão ao bem juridicamente protegido, vale dizer, uma probabilidade de dano. O perigo seria, assim, entendido como probabilidade de lesão a um bem jurídico-penal. (GRECO; 2011, p.108)

 

Desse modo, se entende que perigo é a possibilidade de dano ou a probabilidade de lesão. Crime de Perigo é a espécie de crime de injusto penal que se satisfaz ou se consuma com a mero perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.

Quando falamos do crime de mera conduta cabe entender que o seu resultado naturalístico se dá não só não precisa ocorrer para a consumação do delito, como ele é mesmo impossível. Aqui podemos colocar o entendimento do STF sobre o crime de porte ilegal de arma de fogo como um exemplo, sobre ser um crime de mera conduta:

O crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido é de mera conduta e de perigo abstrato, ou seja, consuma-se independentemente da ocorrência de efetivo prejuízo para a sociedade, e a probabilidade de vir a ocorrer algum dano é presumida pelo tipo penal. Além disso, o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física, mas a segurança pública e a paz social, sendo irrelevante o fato de estar a arma de fogo municiada ou não. HC 104.206/RS, 1.ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 26/08/2010

 

Quando estudamos esse tipo de crime, ou seja, de mera conduta, se entende que eles não provocam resultados concretos e por esse motivo não há como o resultado ser a causa da punição, mas sim a conduta. Outrossim, são delitos que exigem apenas a conduta, sem qualquer resultado naturalístico

 

3 Crime de Perigo abstrato e o Princípio da Lesividade

O Direito Penal contempla vários princípios, entre eles, o princípio da lesividade que, em síntese, estabelece que o direito penal deverá punir o crime se a conduta lesionar ou expor a lesão um bem jurídico penalmente tutelado, considerando-se, não ser função do direito penal moderno condenar e punir um comportamento visto pela sociedade como imoral ou impuro (GOMES; 2011). A conduta lesiva, deve ainda afetar interesses de outrem, desse modo, não haverá sanção quando os atos praticados pelo agente e seus efeitos permanecerem na esfera de interesse do próprio agente (GOMES; 2011).

Delito de perigo abstrato é, nas palavras de Claus Roxin (2006), “aqueles em que se castiga a conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha de ocorrer um resultado de exposição a perigo”

Gunther Jakobs (2003), partindo do entendimento de que se pune ainda que não ocorra o dano efetivo do bem jurídico, ou, ao menos, sua possibilidade concreta. Assim, se pune a pura violação normativa, o mesmo diz que as condutas punidas através dos delitos de perigo abstrato são aquelas que perturbam não apenas a ordem pública, mas lesionam um direito à segurança no sentido normativo.

Silva Sánchez (2011) diz que o bem jurídico penal é como aquele objeto que merece a proteção e em que ocorra não apenas a referida danosidade social, porém que sirva para atender a considerações utilitaristas e a considerações axiológicas ou de princípio. De acordo com a primeira, o bem jurídico precisa ser protegido penalmente somente quando for útil conforme o princípio da intervenção mínima. Enquanto a segunda entende que a proteção penal depende de merecimento, isto é, da gravidade intrínseca dos ataques ao bem jurídico. Cabe informar que aqui o merecimento não se confunde com necessidade.

O princípio da lesividade, também conhecido como princípio da ofensividade, é extraído da máxima latina “nullum crimen sine iniuria”, isso é, não há crime sem ofensa a um bem jurídico digno de tutela penal. Em outras palavras, é preciso que haja uma lesão efetiva ou um perigo concreto de lesão a um bem jurídico para que a conduta possa ser considerada crime.

Dessa maneira, percebe-se que, o crime de perigo abstrato não preenche as exigências do princípio da legalidade, pelo fato de não lesionar ou expor a lesão um bem jurídico. Esse princípio seque a linha de que apenas configura crime uma conduta que ofenda a um bem jurídico, através da criação de um dano, ou pela possibilidade de configuração de dano. Desse modo, a conduta deve ser punida apenas quando ficar comprovado dano ou provável perigo ao bem juridicamente tutelado. (BATISTA, p.92, 2001)

É com base nesse princípio que há hoje corrente doutrinária defendendo a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. O fundamento dessa linha de pensamento consiste em que a Constituição da República só permitiria a existência de tipos penais que incriminem condutas que colocam em efetiva e concreta situação de perigo determinado bem jurídico. Ou seja, os crimes de perigo abstrato seriam puramente inconstitucionais e sua sobrevivência dependeria de uma reinterpretação dos tipos de forma a torná-los condizentes com o princípio da lesividade, convertendo-os em tipos de perigo concreto.

O princípio da lesividade, basicamente, possui duas funções. A primeira que se caracteriza por limitar o legislador, de maneira que só poderia ele exercer sua tarefa criminalizadora com observância desse princípio. A segunda, de servir de garantia ao réu, significando que um crime só pode existir se, em uma avaliação posterior ao fato analisado, se verifique uma lesão ou perigo concreto de lesão a um bem jurídico penalmente protegido (GOMES, 2008)

Acerca do tema discorre Bitencourt:

Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Em outros termos, o legislador deve abster-se de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela normal penal. (Bitencourt:; 2015)

 

Luigi Ferrajoli, chama tais crimes de “delitos de suspeita” ou “fraudes de etiqueta”, descrevendo que eles são apenas um meio que ocupam o lugar de outros delitos mais concretos os quais não são levados a juízo por falta de provas. Por conta disso, seria como uma representação a uma violação às garantias processuais do autor (2000, p. 482).

Seguindo ainda a linha de raciocínio do autor citado, de acordo com a sua ideia o que se castiga é uma ação inócua, ou seja, que não provoca prejuízo ou danos, por mera desobediência da lei. Sendo assim, esse tipo de delito deveria ser reestruturado de acordo com o princípio da lesividade, tornando-se crimes de lesão ou de perigo concreto. Relata também que, para aqueles cuja transformação seja impossível, oportuna a sua supressão, porque implicam duplicar a responsabilidade por crimes comuns (FERRAJOLI, 2000, p. 482).

O crime tentado ocorre quando o agente inicia a execução do delito, mas este não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade (NUCCI; 2006). De acordo com o parágrafo único do art. 14, do Código Penal, “salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”. A tentativa é punida com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços, a diminuição de uma a dois terços não decorre da culpabilidade do agente, mas da própria gravidade do fato constitutivo da tentativa.

Nesse contexto, se entende que o perigo abstrato seria um contra-senso: ou o perigo existe em concreto ou não. Por tanto, tal categoria, não cabe ser aceita, em virtude de sua incompatibilidade com o próprio conceito de perigo, ou seja, a probabilidade de um resultado antijurídico.

 

4 Crime de perigo abstrato e a posição do STF

Para o melhor entendimento desse ponto, cabe entender sobre o que a espécie de perigo abstrato buscar proteger. Olhando pelo entendimento de Pontes de Miranda (2013; p.36), bem jurídico se entende por ser aquele que, por ser relevante para o direito, entrou para o mundo jurídico, por ser essencial, tornou-se portador de tutela jurídica.

Já no conceito de bem jurídico de Vonz Liszt (2003; p. 37), entendemos que ele estabelece um conceito a partir do respaldo nas relações sociais, enfatizando que o bem jurídico não era criado pelo legislador, mas por este reconhecido.

A vontade de proteger o bem jurídico, e possuir o desejo de remediar a tragédia antes que a mesma venha ocorrer levou o legislador a estabelecer como penalmente relevante o mero comportamento, independentemente de seu resultado de perigo ou de lesão. Por conta disso a atual legislativa penal possui uma espécie tipo de perigo abstrato (Lei n. 11.705/2008 – Lei Seca, Lei n. 11.343/2006 – Lei Antidrogas, Lei n. 11.105/2005 – Lei de Biossegurança, Lei n. 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento).

Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal enfrenta a legitimidade da aplicação destes pelo fato do mesmo sempre despertar controvérsias. Atualmente a discussão que está muito em questão diz respeito aos requisitos para reconhecer a relevância penal do porte de arma desmuniciada (RHC 89.889) ou do simples porte de munição (HC 90.075) e embriaguez ao volante (CTB, art. 306).

Nos delitos abstratos que abrangem o transito, Roxin (1997; p.408-b) reconhece que há imputação mesmo quando, na situação fática e concreta, estiver totalmente excluída a possibilidade de lesão ou de colocação em perigo de bens jurídicos efetivos4.

O Supremo Tribunal Federal não tem posição consolidada sobre o tema. Em alguns momentos exige a demonstração da capacidade lesiva da arma, quando se trata dos crimes de porte7, ora a dispensa8. Quando se diz respeito ao tráfico de entorpecentes, é comum se desvendar usando o princípio da insignificância como recurso, que nada mais é do que a constatação da falta de materialidade do crime de perigo abstrato previsto na Lei n. 11.343/2006.

 

EMENTA Recurso ordinário em habeas corpus. Embriaguez ao volante (art. 306 da Lei nº 9.503/97). Alegada inconstitucionalidade do tipo por ser referir a crime de perigo abstrato. Não ocorrência. Perigo concreto. Desnecessidade. Ausência de constrangimento ilegal. Recurso não provido. 1. A jurisprudência é pacífica no sentido de reconhecer a aplicabilidade do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – delito de embriaguez ao volante –, não prosperando a alegação de que o mencionado dispositivo, por se referir a crime de perigo abstrato, não é aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro. 2. Esta Suprema Corte entende que, com o advento da Lei nº 11.705/08, inseriu-se a quantidade mínima exigível de álcool no sangue para se configurar o crime de embriaguez ao volante e se excluiu a necessidade de exposição de dano potencial, sendo certo que a comprovação da mencionada quantidade de álcool no sangue pode ser feita pela utilização do teste do bafômetro ou pelo exame de sangue, o que ocorreu na hipótese dos autos. 3. Recurso não provido” (RHC 110.258, Relator o Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 24.5.2012)

 

CONCLUSÃO

O presente trabalho ao longo das referidas pesquisas feitas buscou explicar o crime de perigo abstrato e sua conexão com o princípio da lesividade, além da modalidade tentada. Principal ponto de análise e discussão deste estudo consiste na descrição dos crimes de perigo abstrato que se posicionam contra os princípios constitucionais, principalmente ao da lesividade.

Como já mencionado, este princípio determina que as condutas somente podem ser tratadas pelo Direito Penal quando atentarem ou oferecerem perigo real aos bens tutelados juridicamente. Demasiados doutrinadores, mencionados neste trabalho e que ajudaram na compreensão do tema, resguardam a ideia de que ao tipificar condutas como crimes sem que ofereçam perigo concreto, o legislador atenta diretamente ao princípio da ofensividade.

Desse modo, entende-se que, a justificativa do Estado de estar preservando e protegendo os bens jurídicos dos cidadãos criminalizando antecipadamente condutas que não oferecem real perigo, não é suficiente. O mesmo acaba indo contra princípios superiores, ou seja, os que se encontram na constituição federal, e podendo ainda cometer o erro de limitar a liberdade dos indivíduos.

 

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Rosa, Antonio Jose Miguel Feu. Direito penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 301 e 303.

 

ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 407.

 

ROXIN, Claus. Derecho penal parte 2. ed. Madrid Civitas, 1997, p. 408-b.

 

SILVA, Ângelo Roberto. Dos crimes de perigo abstrato  em face da Constituição. São Paulo: Revista dos tribunais, 2003. P. 56.

 

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximação ao direito penal contemporâneo – Col. direito e ciências afins – Vol. 7. Trad. Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 301.

 

TAVARES, Juarez. Culpabilidade: A Incongruência dos Métodos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, nº 24. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, out-dez 1998, p. 151.

 

 

 

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