O uso simbólico do Direito Penal

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Resumo: O aumento da criminalidade exige de todos os operadores do direito urgentes esforços para seu adequado equacionamento. De fato, a população possui o direito de viver com um mínimo de tranqüilidade, com a proteção de bens jurídicos fundamentais, como a vida e a integridade física. Caso não sejam adotadas medidas de combate à criminalidade atreladas à políticas sociais eficazes, corre-se o risco de vermos crescer as milícias, onde a lei do mais forte prevalece. O discurso emergencial surgiu no Brasil, importando a idéia americana do Law and Order, que tem como fundamento que leis penais severas irão sanar o problema da criminalidade. Entretanto, os esforços no combate à violência não podem ignorar que a atuação repressiva expressa em leis penais emergenciais, com penas elevadas e que tornem mais cruéis o seu cumprimento, fazem parte de um direito penal simbólico que não resolve o problema. Em pleno Estado de Direito impõem-se o falacioso direito penal do terror, com surgimento de leis draconianas, logo desmoralizadas pelas estatísticas. A dramatização da violência não pode conduzir ao equívoco de um direito penal do terror, apoiado no medo e na crueza da execução da pena. Exige, ao contrário, medidas de caráter racional para se atuar com eficácia.


Palavras-chaves: Direito Penal Simbólico. Law and order. Teoria das Janelas Quebradas.


Sumário: 1. Introdução. 2. Um significado para emergência. 3. O modelo americano de implantação do estado de emergência. 3.1. Movimento da lei e da ordem (law and order). 3.2. Teoria das Janelas Qebradas (Broken Windows Theory). 4. Medo e terror social: um recurso para implantação do estado de emergência.


1- INTRODUÇÃO


A partir das grandes transformações que ocorreram nas sociedades ocidentais, com a reestruturação do capitalismo nos anos setenta, novas formas de controle social passaram a ser formuladas. Uma das áreas em que tais mudanças vem ocorrendo de forma fragmentada e contraditória é no âmbito do Direito Penal.


No Brasil, com a redemocratização dos anos oitenta, os políticos eleitos pelo voto popular se depararam com a criminalidade abafada pelo período de governo militar que, por meio do arbítrio e abuso, usava de todos os artifícios para reprimi-la ou escondê-la. As teses ressocializadoras da pena vão perdendo sua força, dando lugar a movimentos que reivindicavam maior intervenção do direito penal na sociedade.


Essas novas tendências político–criminais que influenciavam os países centrais alcançaram com rapidez os países periféricos. O modelo neoconservador da ordem, implantado no Brasil teve origem nos Estados Unidos, onde surgiu sob o nome de Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order).


Esse discurso busca o controle social com a difusão de notícias sobre o aumento da criminalidade que alimentam a insegurança na população e que, por sua vez, passa exigir uma resposta estatal imediata, por meio de leis mais severas, criação de novos tipos penais, bem como o recrudescimento das penas aos crimes já existentes.


Com isso, lideram os discursos de super-criminalização que, se por um lado não conseguem resolver as tensões sociais do mundo contemporâneo, por outro, agravam ainda mais o sentimento de insegurança em que já se vive. “Descriminalização, despenalização e diversificação são conceitos fora de moda, em desuso. A palavra de ordem, agora, é criminalizar, ainda que a feição punitiva tenha uma finalidade apenas simbólica.” [1]


Adota-se o Direito Penal de Emergência acreditando na sua capacidade de proteger a sociedade do caos, mas o único resultado que se tem é a inflação legislativa, com a crescente perda de legitimidade do sistema penal, incapaz de justificar o seu grau de seletividade sem fornecer nenhuma resposta ao problema da violência.


2- UM SIGNIFICADO PARA EMERGÊNCIA


As sociedades modernas vivem sob o signo da insegurança; a violência amplamente propagada, somada ao aumento da pobreza e à concentração de riqueza provoca um resultado devastador sobre os ânimos populares.


O perigo iminente ou a expectativa do perigo transforma a população em vítimas potenciais, capazes de aceitar facilmente a sugestão, a prática da punição ou até mesmo o extermínio preventivo dos supostos agressores potenciais. Nessas circunstâncias, a adoção de medidas emergenciais aparece como um meio para que as estruturas ameaçadas possam ser mantidas e protegidas. O conceito de emergência encontra-se normalmente ligado à idéia de urgência.[2]


Dadas as condições da realidade social, o Estado reduz a intervenção em matéria social e endurece a legislação penal, transformando o direito penal na principal forma de combate aos problemas sociais, retirando seu caráter de aplicabilidade somente em ultima ratio.


Importante distinguir a emergência no campo penal da emergência no campo constitucional. Como afirma Fauzi Hassan Choukr, a emergência constitucional liga-se “às exceções do estado democrático constitucionalmente previstas”.[3]  Note-se que a exceção à democracia é prevista no próprio texto constitucional, nos casos de Estado Defesa (art. 136 da CRFB) e Estado de Sítio (art. 137 a 139 da CRFB), onde se encontram mecanismos de proteção ao estado de normalidade em situações de emergência.


Assim, as duas medidas excepcionais previstas na Constituição Federal para a restauração da ordem em momentos de anormalidade consistem em um conjunto de normas constitucionais, que se fundamentam na necessidade, mas também na temporariedade e têm por objeto as situações de crises e por finalidade a manutenção ou restabelecimento da normalidade constitucional.[4]


O Estado de Defesa visa à preservação ou restabelecimento, em determinados locais, da ordem pública ou paz social, ameaçados por instabilidade institucional ou atingidos por calamidades da natureza. O decreto presidencial no Estado de Defesa deverá determinar o prazo de sua duração, especificar as áreas abrangidas e indicar as medidas que serão tomadas, respeitando-se os limites constitucionais.


Para sua decretação, não é necessária prévia autorização do Congresso Nacional ao Presidente da República. Entretanto, uma vez decretado em um prazo de vinte quatro horas, seus motivos deverão ser submetidos à apreciação do Congresso Nacional.


O Estado de Sítio corresponde à suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais, medida mais gravosa do que o Estado de Defesa e, neste caso, obrigatoriamente, o Presidente da República deverá solicitar prévia autorização do Congresso Nacional, a qual deverá ser concedida por maioria absoluta. Sua previsão encontra-se no art. 137 da CRFB, quais sejam, ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia da medida tomada durante o Estado de Defesa ou declaração de estado de guerra, bem como em resposta a agressão armada estrangeira.


Ao contrário da emergência no campo penal, a exceção tratada na Constituição da República é um estado de direito, no sentido da necessidade da sua decretação. A emergência penal, que não tem limite de tempo e geográfico, não é um estado de direito, definida por Fauzi Choukr como:


emergência vai significar aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o modelo de “estado democrático e de direito” como limite máximo da atividade legiferante nessa seara.” (CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002, p.5/6)


O filósofo Giorgio Agamben acredita que o estado de exceção tratado nas constituições e considerado como medidas provisórias e extraordinárias, vem tornando-se uma estratégia normal de alguns governos, determinando a política externa e interna dos países, inclusive nos Estados democráticos.[5]


O resultado da cultura emergencial é a introdução de um Direito Penal simbólico com fundamento na infusão do medo na população. A fisionomia simbólica das normas penais de emergência transforma o Direito Penal em alicerce para as correntes extremistas de política criminal, que pressionam o Congresso Nacional a elaborar leis penais cada vez mais severas, escritas e aprovadas às pressas. Sobre o assunto, afirma Alberto Silva Franco:


“A função nitidamente instrumental do Direito Penal ingressa numa fase crepuscular cedendo passo, na atualidade, à consideração de que o controle penal desempenha uma função nitidamente simbólica. A intervenção penal não objetiva mais tutelar, com eficácia, os bens jurídicos considerados essenciais para a convivencialidade, mas apenas produzir um impacto tranqüilizador sobre o cidadão e sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos individual ou coletivo, de insegurança.” (FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, 3ª. Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.10)


A opção pela criminalização de todas as condutas visa combater ideologicamente as tendências do minimalismo penal, com a mitigação, direta ou indireta, das garantias fundamentais e com violação do devido processo legal, aplicando-se uma “justiça” retributiva. Assim, o crescimento do direito penal nos últimos trinta anos nas sociedades ocidentais modernas representa o retrocesso e abandono de direitos que não deveriam ser sacrificados.


3- O MODELO AMERICANO DE IMPLANTAÇÃO DO ESTADO DE EMERGÊNCIA


3.1 – Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order)


Nos últimos trinta anos, as sociedades tiveram avanços e retrocessos na luta em favor dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Um exemplo desse retrocesso é o Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order), que surgiu como reação ao crescimento dos índices de criminalidade.


Informações distorcidas sobre a explosão da criminalidade criaram um estado geral de pânico; difundiam-se largamente nos EUA o alarme da escalada da violência. Embora algumas vezes o suposto aumento da criminalidade fosse apenas aparente, instalou-se naquele país uma campanha contra os criminosos e, ao mesmo tempo, verificou-se um fenômeno de aumento de insegurança na população, do qual se aproveitaram movimentos políticos como detentores de fórmulas infalíveis contra a onda criminosa.


A pena de morte, que estava suspensa, foi restabelecida em 1976 e novas leis e políticas duríssimas de combate ao crime foram adotadas, fazendo com que os EUA ostentassem o título de maior presídio do mundo, uma vez que comporta a quarta parte da população carcerária do planeta, sem contar com as pessoas em gozo do livramento condicional e liberdade vigiada.[6]


A fórmula milagrosa fundamentava-se na ideologia da repressão, que deveria justificar a pena como forma de retribuição e castigo. Defendiam seus seguidores que os atentados terroristas, o gangsterismo e a violência urbana somente seriam controlados com leis severas, que impusessem longas penas privativas de liberdade ou até mesmo a pena de morte.


O Movimento da Lei e da Ordem adota uma política criminal com os seguintes princípios:


1) A pena se justifica como castigo e retribuição;


2) Os crimes atrozes devem ser punidos com penas severas e duradouras;


3) As penas privativas de liberdade impostas a esses crimes devem ser cumpridas em estabelecimentos prisionais de segurança máxima, sendo o condenado submetido a um tratamento muito severo;


4) A prisão provisória (ou temporária) deve ter seus prazos aumentados, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime e, por fim;


5) Os poderes do juiz da execução da pena devem ser diminuídos, ficando o condenado a cargsob a responsabilidade das autoridades penitenciárias.


Este movimento separa a sociedade em dois grupos distintos: o primeiro, composto por “pessoas de bem”, merecedoras de proteção estatal; o segundo, composto pelos “homens maus”, os delinqüentes, aos quais se endereça toda a repressão da norma penal. Idéias muito tentadoras para o povo que reclama, sem muita racionalidade, por uma solução imediata para o problema da segurança pública.


De acordo com Zygmunt Bauman[7], os homens maus são os consumidores falhos[8], aqueles cujos meios não estão à altura de seus desejos e são vistos como uma ameaça aqueles que estão devidamente inseridos na sociedade consumerista, daí a obsessão com a lei e a ordem que influencia os setores bem-sucedidos. Isto significa dizer que as políticas sociais adotadas para a prevenção social da criminalidade proporciona segurança a uma parcela da sociedade, aqueles consumidores em potenciais e “merecedores” de proteção estatal.


Segundo os defensores do movimento repressor, o aumento dos índices de criminalidade nas grandes cidades seria culpa do Estado assistencialista, sobretudo da ilusão de que programas sociais poderiam prevenir o crime. Diferentemente da sociedade panóptica identificada por Foucault em que as classes mais baixas eram visadas como objeto de vigilância, mas com a preocupação em ressocializar, ressalta Bauman que existe uma mudança dessa preocupação e, por conseguinte, o que se almeja é a exclusão dessas pessoas do convívio em sociedade.


3.2 – Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows Theory)


Sob a influência do Movimento da Lei e da Ordem, na década de 80 surge a Teoria das Janelas Quebradas[9] (Broken Windows Theory) formulada por James Q. Wilson e George Kelling, em que se buscava estabelecer uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade, sustentando que é combatendo pequenos distúrbios do cotidiano que se preveniriam os crimes mais graves.


No estudo, cujo título é The Police and Neighborhood Safety (A Polícia e a Segurança da Comunidade), publicado na revista Atlantic Monthly, os autores usaram a imagem de janelas quebradas para explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar-se numa comunidade, causando a sua decadência e a conseqüente queda da qualidade de vida.


Kelling e Wilson sustentavam que se uma janela de um imóvel fosse quebrada e não imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se importava com o local e que naquela região não havia autoridade responsável pela manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras para quebrar as demais janelas ainda intactas. Tão logo, todas as janelas estariam quebradas.


Iniciava-se, assim, a decadência daquela rua e da própria comunidade. Apenas os desocupados e pessoas com tendências criminosas, sentir-se-iam à vontade para ter algum negócio ou mesmo morar na rua cuja decadência era evidente. O passo seguinte seria o abandono daquela localidade pelas “pessoas de bem”, deixando o bairro à mercê dos “desordeiros”. Pequenas desordens levariam à grandes e, mais tarde, ao crime. Em razão da imagem das janelas quebradas que seria a origem de todo o “caos”, o estudo ficou conhecido como Broken Windows Theory.


Condutas como vadiagem, jogar lixo no chão, beber demasiadamente em público, catar papel e a prostituição, se tolerados, levariam a crimes graves. Ou seja, se um pequeno delinqüente não fosse punido exemplarmente, o grande criminoso se sentiria seguro e à vontade para atuar na região da desordem. Essa teoria veio fundamentar a política criminal americana que, em meados da década de noventa, foi implantada em Nova Iorque pelo Prefeito Rudolf Giulliani, juntamente com o comissário de polícia William Bratton, sob o nome de Tolerância Zero.[10] A política de Tolerância Zero baseia-se em tratar com total intolerância todas as incivilidades e desordens das ruas.


“Assim, a lógica absurda constitui em julgar hoje os criminosos leves com base na suposição de que cometerão crimes graves no futuro ou de as pequenas infrações que afetam a qualidade de vida constituem chamariz natural para ação dos bandidos mais perigosos.” (BELLI, Benoni. Tolerância Zero: Visões da Segurança Pública na Década de 90. São Paulo: Perpestiva, 2004, XVI)


Com fundamento nesse discurso, implantou-se a idéia de que somente tratando com “tolerância zero” todas as infrações que ofendessem a qualidade de vida da população – que quebrassem uma janela – seria possível aplicar a lei e manter a ordem. Essas serão as diretrizes – policial e judiciária – que fizeram de Nova Iorque a vitrine mundial da política de Tolerância Zero, símbolo maior da Broken Windows Theory.


Com isso, o estado americano diminuiu, paulatinamente, suas intervenções sociais: a guerra contra a pobreza foi substituída por uma guerra contra os pobres. Paralelamente, a prefeitura de Nova Iorque expandiu seus recursos destinados à manutenção da ordem e em cinco anos aumentou em 40% seu orçamento com a polícia; quatro vezes mais do que com as verbas aplicadas em hospitais, sem contar que os investimentos nos serviços sociais foram diminuídos em um terço.


Segundo Wacquant, cinco tendências são observadas com a evolução do direito penal nos Estados Unidos:


1) Hiperinflação da população carcerária;


2) Extensão da rede penal vigiada;


3) Crescimento dos investimentos no penitenciário;


4) Ressurgimento e prosperidade da indústria privada penitenciária;


5) Afirmação da política de ação carcerária e sua ligação direta com a população desfavorecida.


Assim, o número de presos no país cresceu, atingindo principalmente os pequenos delinqüentes e os toxicômanos. Muito diferente do discurso político sempre repetido, as prisões americanas não estão repletas de criminosos perigosos e violentos, mas de condenados por pequenos furtos, por envolvimento com drogas ou simples atentados à ordem pública.


Paralelamente, os estados americanos implantaram bancos de dados centralizados que permitem qualquer pessoa o acesso, sem o menor controle ou justificação, à ficha criminal de um condenado.


O crescimento do setor penitenciário nas administrações públicas evidencia-se nos gastos que os EUA possuem com suas prisões: atualmente gastam 50% a mais nas penitenciárias do que gastavam. Wacquant alega que o governo americano optou por construir casas de detenção e estabelecimentos penais para seus pobres em lugar de hospitais, creches e escolas.


Além disso, observa-se o aumento da indústria privada carcerária, onde as empresas ostentam lucros exorbitantes com a manutenção das prisões americanas. “Dezessete firmas, quinze americanas e duas britânicas, oferecem a gestão completa de estabelecimentos de detenção. Sete dentre elas estão cotadas em bolsa, no mercado Nasdaq”[11].


Como era de se esperar, o sistema penal americano direciona-se prioritária e maciçamente sobre as famílias dos bairros pobres, particularmente, sobre os negros. Além disso, verificou-se um aumento dos abusos de policiais contra esta população.


A prisão é a principal medida a ser adotada como solução para todos os problemas que envolvem a criminalidade, nos repetidos discursos que apóiam esse movimento de política criminal. Sob a ótica da dominação, o sistema penal fundado em bases prisionais resume-se em uma função de custodialismo, assim como a pena se resume à finalidade de retribuição. Tratando da pena como forma de retribuição, Cezar Roberto Bitencourt, cita Carrara, alegando que:


“O delito, na visão de Carrara, ‘agrava a sociedade ao violar suas leis e ofende a todos os cidadãos ao diminuir neles o sentimento de segurança’, de forma que, para evitar novas ofensas por parte do delinqüente, a pena deve ser aplicada para poder ‘reparar este dano com o restabelecimento da ordem, que se vê alterada pela desordem do delito’”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, Parte Geral, 7ª. Ed, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 74)


Após os atentados terroristas no dia 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos, ampliaram-se as ações de controle e repressão contra os estrangeiros[12]. O Presidente George W. Bush criou uma situação em que a emergência tornou-se a regra, impossibilitando a distinção entre guerra e paz.


Não obstante o prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giulliani afirmasse que os índices de criminalidade tiveram uma drástica redução no período de 1993 a 1996, depois da implantação da política de Tolerância Zero, furtou-se em dizer que tais índices caíram em todo o país e não apenas naquela cidade. Portanto, essa queda não tem estrita dependência com a implantação do programa, mas certamente, também relaciona-se com o aumento do nível de empregos e do crescimento econômico do país.


Embora jamais tenha sido validada empiricamente, a Teoria das Janelas Quebradas continua exercendo uma grande influência nos Estados Unidos e nas sociedades modernas. Convive-se com a falsa crença de que a criação de novos tipos penais, o agravamento das penas dos tipos penais existentes, a supressão das garantias do acusado durante o processo e o aumento da severidade na execução das sanções permitirá que a violência urbana diminua.


“Sacrificam-se os direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência.[13]” Portanto, a idéia de que a repressão vai sanar o problema é apenas um mito. Leis penais mais severas, supressão de direitos constitucionais, cultura do medo e terror, maior encarceramento jamais será capaz de gerar segurança e paz social. Políticas exclusivamente repressivas – desacompanhadas de medidas sociais de contenção da pobreza, inserção das pessoas no mercado de trabalho, revalorização da dignidade e da auto-estima – só fazem potencializar a criminalidade e não inibi-la. Sem pretender estabelecer uma relação direta entre pobreza e criminalidade, não há dúvidas de que a desigualdade social desempenha um papel significante para elevar a incidência de crimes.


Ressalta-se que uma política de segurança pública orientada para o respeito aos direitos humanos não deve significar uma complacência com a criminalidade. Deve ser eficaz na medida que visa à pacificação de modo a socializar a população marginalizada, reintegrando-a socialmente e buscando reverter o quadro de pobreza e desigualdade.


4 – MEDO e terror social: um recurso para implantação do estado de emergência


A partir dos anos 80, fase que marcou o processo de transição democrática no Brasil, os meios de comunicação passaram a abordar o problema do aumento da criminalidade. Os temas sobre violência e segurança pública destacavam-se em todos os noticiários, as imagens e índices sobre a escalada da violência difundiam-se de maneira surpreendente.


“O terreno fértil para o desenvolvimento de um Direito Penal simbólico é uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade, pela violência urbana.[14]” A certeza, ainda que ilusória, de que se vive num extremo caos, com o aumento galopante da criminalidade, aumenta a insegurança da população. O medo vivido coletivamente, atrelado a angústia constante de que “algo pode acontecer”, resulta na necessidade de uma resposta imediata: está instalado o estado emergencial:


“A população passou a crer que a qualquer momento o cidadão poderia ser vítima de um ataque criminoso, gerando a idéia da urgente necessidade da agravação das penas e da definição de novos tipos penais, garantindo-lhe a tranqüilidade. E essa pressão alcançou os legisladores.” (JESUS, Damásio E. O Direito Penal e o Processo Penal no Próximo Milênio. Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, ano 2, n° 3, p. 49-55, 1977)


Não se pretende instituir um discurso de que a violência é fruto da imaginação do cidadão, ao contrário, ela realmente é um problema que deve ser combatido com seus devidos cuidados e sem vinganças pessoais. Segundo Benoni Belli (2004), no Brasil, a popularidade da política de Tolerância Zero convive pacificamente com a idéia de que a defesa ou os defensores dos direitos humanos constituem um estorvo para implementação de políticas de segurança de proteção aos “homens de bem”.


A população amedrontada legitima o Estado a tomar medidas simbólicas e autoritárias, fortalecendo o imaginário da ordem, isolando gradativa e voluntariamente as vítimas em potencial. “É a contenção da violência através do monopólio legítimo do uso da força pelo Estado de Direito que garante a eficácia da noção de contrato social.[15]


Surge o direito penal simbólico e a elaboração de leis elaboradas às pressas, inconstitucionais e que, por isso, muitas vezes, não são aplicadas.


Entretanto, não é possível condenar indivíduos tidos como “criminosos bárbaros” e absolver a estrutura social que fornece o terreno fértil para a barbárie. A miséria e o descaso, a maior forma de violência que pode sofrer um ser humano não será resolvida com aumento de penas, mas sim com a implantação de políticas sociais eficazes.


 


Notas:

[1] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, 3ª. Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.12.

[2] O conceito de emergência merece ser observado também fora da esfera estritamente jurídica. No Dicionário Aurélio, seu significado aparece como situação crítica, acontecimento perigoso ou fortuito; incidente; caso de urgência.” (AURÉLIO, , Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª. ed, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 634)

[3] CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002, p. 03.

[4] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11ª. Ed., São Paulo, Atlas, 2002, p. 647

[5] AGANBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Perdizes, São Paulo: Bointempo, 2004, p.1/2

[6] No ano de 1975 a população carcerária americana era de 380.000 pessoas. No ano de 1998, o número de presos cresceu para 2 milhões. (WACQUANT, Löic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 81)

[7] BAUMAN, Zygmunt. O mal–estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 57.

[8] Cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como um produto de predisposições ou intenções criminosas”. (BAUMAN, Zygmunt. O mal–estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.59).

[9] http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf

[10] “É preciso ter em mente que a Tolerância Zero não é apenas uma estratégia policial: ’Mais que uma estratégia, trata-se de uma retórica, de um vocabulário populista que sobrepõe arbitrariamente moral e direito, restauração dos valores e tutela da ordem pública, demagogia nos assuntos de segurança e demanda social por segurança.’ A Tolerância Zero é a expressão, no campo da gestão policial da segurança pública, de um contexto em que prevalece a descrença na reabilitação, na busca das causas sociais do crime, na transformação de estruturas sociais, na superação da exclusão produzida e reproduzida diariamente nas relações sociais.” (BELLI, Benoni. Tolerância Zero: Visões da Segurança Pública na Década de 90. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.76)

[11] WACQUANT, Löic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 91.

[12] Já o USA Patrioct Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, permite ao Attorney general “manter preso” o estrangeiro (alien) suspeito de atividades que ponham em perigo “a segurança nacional dos Estados Unidos; mas, no prazo de sete dias, o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei sobre a imigração ou de algum outro delito. A novidade da ordem do presidente Bush está em anular todo o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável. (AGAMBEN, 2004:14)

[13] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade Garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 15.

[14] SICA, Leonardo: Direito Penal de Emergência e Alternativas a Prisão, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2002, p. 77.

[15] DORNELLES, João Ricardo. Conflito e Segurança – entre Pombos e Falcões, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.45.


Informações Sobre o Autor

Sheila Lustoza Lovatti

Advogada criminalista no RJ, Pós-graduada pela FGV em Direito Penal Econômico


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