A arbitragem necessária em solo português e o estudo da possibilidade de sua recepção em terra Brasilis: reflexões acerca do acesso à justiça

Resumo: O Direito, enquanto instrumento de ordem Estatal, com finalidade de manutenção social e florescimento das potencialidades humanas, tem objeto de estudo impermanente por natureza, restando condenado à infindável busca do ser no contexto histórico vivenciado. Com pano de fundo no welfare state e ao movimento de promoção dos direitos fundamentais sociais, estudos de índole jurídico-sociológica, fonte essencial à jornada de rejuvenescimento do Direito, indicavam a necessidade de atuação positiva do Estado para a concretização do princípio ao acesso à justiça. Nesta esteira, discute-se os meios alternativos de resolução de litígios como maneira de prestação mais célere, menos custosa e, por vezes, mais especializada da justiça. Busca-se, por meio destes escritos, analisar tal panorama debruçando-se sobre o método da arbitragem, com ênfase em sua modalidade necessária, vislumbrando, por fim, o acolhimento, nos moldes do ordenamento português, ao arcabouço jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Acesso à Justiça; Arbitragem; Direito Comparado.

Abstract: Law, as an instrument of order, with the purpose of social maintenance and flowering of human potentialities, has an object of impermanent study by nature and therefore remains condemned to the endless search for being in the historical context experienced. With a background in the welfare state and the movement to promote fundamental social rights, studies of a juridical-sociological nature, an essential source for the journey to rejuvenate law, indicated the need for positive action by the State to achieve the principle of access to justice. In this vein, alternative dispute resolution is discussed as a faster, less costly and sometimes more specialized way of providing justice. Through these writings, we seek to analyze this panorama by looking at the arbitration method, with an emphasis on its necessary modality, finally looking at the reception, in accordance with Portuguese law, of the Brazilian legal framework.

Keywords: Access to Justice; Arbitration; Comparative law.

Sumário: Introdução. 1. Acesso a justiça e meios alternativos de resolução de conflitos. 2. Arbitragens voluntária e necessária. 3. Arbitragem necessária enquanto meio alternativo eficaz ao sistema processual brasileiro. Considerações Finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O fenômeno de instrumentalização de normas-regra e normas-princípio com o fito de manutenção social, para além de traduzir necessidade político-sociológica, vide brocardo jurídico romano ‘ubi societas ibi jus’, traduz tarefa das mais sensíveis, e inerente à toda e qualquer ciência social: adentrar à seara das necessidades humanas.

A mutabilidade das verdades sociais, em contraste às análises descritivas infinitamente reprodutíveis, ínsitas às ciências naturais, impulsiona o direito à infindável jornada de encontro ao homem. Não por outra razão, as lições kantianas inclinam ao ser social a razão de ser de todas as instituições.

O homem é o fim em si mesmo. O Direito é instrumento ao homem.

Nesta esteira, a finalidade do Direito ganha contornos de verdadeiro trabalho de Sísifo, de modo que a transformação do ser social, implica, necessariamente, em mutações referentes à instrumentalização da vida social.

Ocorre que a concretização dos direitos substantivos depende, necessariamente, da implementação de meios adjetivos hábeis. Em outras palavras: a realização dos direitos, perpassa pela problematização das esferas processuais de acesso à justiça.

Movidos pela finalidade de somar à compreensão sobre o fenômeno sociológico-jurídico, doutos se debruçaram sobre os obstáculos ao pleno acesso à justiça. Entre as considerações realizadas, é unânime a necessidade de revisão dos conceitos de judicialização para solver litígios. Nesta monta, se fortalece a atuação holística com o fito de garantir métodos alternativos de resolução de conflito, dentre os quais se destaca a arbitragem.

Pretende-se, por via destes escritos, desenvolver panorama acerca da mutalibilidade social e, consequentemente, do Direito, apontando o desenvolvimento de ideias relativas ao princípio do acesso à justiça e enfrentando, especialmente, as disposições da legislação portuguesa no que tange às arbitragens voluntária e necessária, considerando a possibilidade de implementação desta última ao Ordenamento Jurídico brasileiro. 

1. ACESSO A JUSTIÇA E MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Os estudos kantianos nos revelam o apriorismo humano na instrumentalização da vida social (KANT, 1971, p. 60). Esta inferência, em verdade, guarda estreita relação a postulados filosóficos datados da Grécia Antiga, segundo os quais habita no homem a medida de todas as coisas. Destarte, crava-se às primeiras linhas deste trabalho, a finalidade de satisfazer os anseios sociais, frente a limitação natural de recursos, enquanto razão de existência do Estado e, consequentemente, seguindo a doutrina alemã, do Direito (KELSEN, 2006, p. 262).

Nesse diapasão, oportunamente, florescem os escritos hedeggerianos referentes ao Dasein, vocábulo de origem germânica corriqueiramente traduzido para a expressão 'ser-no-mundo'. Ao douto, o arcabouço social pode ser vislumbrado sob um emaranhado de relações sociais. Estas, necessariamente, coexistem e interagem sob a forte influência das forças política, econômica e filosófica, de forma que o ser não pode ser apartado destas relações, mas, se constrói, permanentemente, sob estes aspectos (HEIDEGGER, 2009).

A lição deixada por Heidegger, segundo a qual não há ser isolado a este mundo, repercute à seara social em virtude do também inseparável vínculo entre Direito e Sociedade, representado pelo celebrado brocardo jurídico ubi societas ibi jus. Ora, o dasein, ao representar interação construtiva ínsita ao ser social, incumbe ao Direito, por justificação apriorística, o permanente papel de aperfeiçoamento frente a realidade social.

Diante do exposto, sublinha-se o movimento de constante construção da ordem jurídica, elevando as condições sociais no que tange à política, à economia e ao sentimento de justiça enquanto fontes de fundamentação dos movimentos de renovação do Ordenamento (REALE, 2009, p. 140). Nesta seara, verifica-se congruência quanto às alterações no que toca à disciplina dos direitos fundamentais de ordem processual, entre os quais, o acesso à justiça.

Prolegômenos, tal norma-princípio guardava identificação enquanto Direito Fundamental de Primeira Geração, ecoando sob a forma de garantia do cidadão frente o poderio Estatal. Consubstancia-se, portanto, em dever negativo, ou seja, garantia de não agir, por parte do Estado, contra o cidadão (CANOTILHO, 2002).

Em verdade, a tutela jurídica como um todo corre o risco de se tornar inefetiva, caso os sujeitos de direito encontrem percalços na concretização do Ordenamento. Nesse contexto, os esforços jurídico-sociológicos empreendidos, na década de 70, por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988) constituem força motriz essencial à repaginação sofrida pelo acesso à justiça. Suas contribuições amplificaram a necessidade de revisão do meio social, ao qual o sujeito está inserido, para análises referentes ao princípio.

No movimento pela concretização dos direitos fundamentas sociais, o princípio do acesso à justiça ganha nova feição, ampliando seus horizontes para além da possibilidade formal de judicialização de um pleito. Sob fortes efeitos da ideologia social que inebriou as Constituições Mexicana de 1917 e da República de Weimar, datada de 1919, passou-se a investigar os fatores políticos e econômicos como meios hábeis a se satisfazer o ideal de materialização ao acesso à justiça (LENZA, 2014).

Em sua pesquisa, Cappelletti e Garth (1988) elencaram fatores econômicos relativos aos gastos judiciais, o parco conhecimento acerca de seus direitos, restrições referentes à capacidade postulatória, dificuldades concernentes à pluralidade de agentes em demandas coletivas, e a inter-relação entre estes, enquanto obstáculos à concretização do Direito de Acesso à Justiça. Aos doutos, a solução para estes entraves, inevitavelmente, passará pelo estudo de formas alternativas de acesso à justiça, permitindo maiores fluidez e economia pública na tutela jurídica processual.

Conforme grafa Emetério Oliveira Neto, a problemática referente à efetiva administração do Poder Judiciário enquanto pressuposto ao acesso a justiça, pode ser descrita matematicamente. O resultado do confronto entre número de demandas e a quantidade de tempo necessária ao aparato judiciário para resolução de litígios, contudo, tende a ser pesaroso. A oferta é inferior à demanda, resultando numa prestação jurisdicional morosa, portanto, insatisfatória (2015, p. 77). Neste escorço, formalizar métodos alternativos para resolução de conflitos configura não só inteligente resposta à diminuição de torrentes influxos ao Poder Judiciário, bem como tende a proporcionar de modo mais satisfativo a prestação da justiça.

A composição extrajudicial de litígios, de per si ou através do auxílio de terceiro(s) – árbitro, mediador ou conciliador – tende a permitir maior interação entre os litigantes, proporcionando maior satisfação das partes em relação ao teor decisivo e ao seu cumprimento, atendendo ao princípio do acesso à justiça ao mesmo tempo sem movimentar toda o aparato do Poder Judiciário (MACUSO apud OLIVEIRA NETO, 2015, p.105).

Percebe-se pois a dissociação entre as ideias de judicialização dos litígios e acesso à justiça, sendo esta última mais abrangente, e razão de existência da primeira. Sob este pano de fundo, a arbitragem encena papel protagonista num processo de transformação deste panorama.

2. ARBITRAGENS VOLUNTÁRIA E NECESSÁRIA

No paulatino caminhar rumo à dissociação entre ideias de judicialização e acesso à justiça, a metodologia arbitral inspira otimismo às partes por reunir o apanágio da heterocomposição, predicado-chave das atuações advindas do Poder Judiciário, somado às qualidades de celeridade e confiança no trâmite, tendo em vista a possibilidade de escolha do Tribunal Arbitral. Suas origens remontam às civilizações antigas, nas quais, geralmente, o sacerdote ou o ancião seriam encarregados de solver os conflitos de interesses, legitimados pela aprovação divina, ou, pela experiência e plena consciência dos costumes locais, respectivamente (DIDIER, 2014, p. 115).

Trata-se, pois, de meio alternativo à resolução de litígios em que se designa um ou mais árbitros, sempre em número ímpar (Tribunal ad hoc), ou mesmo um Tribunal Arbitral permanente, para o exame de divergências envolvendo direitos disponíveis, cuja matéria não seja de competência exclusiva ao Tribunal Estadual[1].

Sobre este ponto, impende-se descrever a possibilidade compor ou designar Tribunal Arbitral, em momento prévio, inexistindo qualquer litígio, ou, posteriormente, na presença do impasse. Cá, jaz a diferença entre cláusulas e compromissos arbitrais: estes são convalidados na atualidade do conflito, ao passo que aquelas têm condão de incumbir juízo arbitral previamente, em bojo contratual (DIDIER, 2014, 116)

Destaca-se a excepcionalidade de controle judicial das decisões arbitrais, sendo considerados sem valor jurídico os compromissos e as cláusulas arbitrais, quando se violar barreiras referentes à competência do tribunal, capacidade dos juízes, e idoneidade da convenção arbitral[2].

Em solo português, como regra, tinha-se a utilização da arbitragem enquanto meio voluntário de se dirimir conflitos. Ocorre que, por força legal, e com o fito de conduzir litígios de modo mais célere e, principalmente, sob uma tutela especializada, determinados objetos passaram a ser discutidos, necessariamente, em âmbito arbitral (BASTOS, 2016, p. 9). Seus primeiros registros em Ordenamento Jurídico português datam do século XIII, ocasião em que demandas de pequena monta passaram a ser solvidas em âmbito arbitral, por razões de economia das finanças públicas na movimentação do Judiciário (BASTOS, 2016, p. 12). Hoje, a arbitragem necessária perpassa por lides envolvendo o desporto, serviços públicos essenciais e alcança a propriedade industrial de medicamentos. Todavia, seu avanço é objeto de calorosos debates, entre os quais, questionamentos concernentes à sua constitucionalidade.

Rui Medeiros (2013, p. 6), em trabalho voltado às discussões referentes à (in)constitucionalidade da arbitragem necessária, resume em dois os motivos para a declaração de sua nulidade: de um lado, o direito de acesso aos tribunais, e, por outro, o princípio da igualdade.

Quanto ao primeiro aspecto, com supedâneo nos Artigos 20.º, número 1, e 268.º, números 4 e 5, ambos da Constituição Federal Portuguesa, sob a ótica de consubstanciar obstáculo ao acesso aos tribunais, advoga-se pela inconstitucionalidade da arbitragem necessária. Nesse diapasão, distingue-se a defesa dos vícios completo e parcial, considerando, esta última corrente, a constitucionalidade das disposições relativas à existência da arbitragem necessária, condenando, todavia, as impossibilidades de recurso aos meios judiciais, caso a decisão arbitral gere insatisfações às partes.

No que se refere à igualdade, indaga-se a dissemelhança no tratamento entre os objetos necessariamente discutidos em arbitragem, e os demais, considerando as vantagens relativas à possibilidade de se optar pelo método de acesso à justiça. Ainda neste viés, se levanta o princípio para indicar as altíssimas custas arbitrais enquanto fator de privilégio aos mais abastados, tolhendo-na dos demais (MEDEIROS, 2013, p. 9).

Em julgado emblemático, por 11 votos a 2, o Tribunal Constitucional Português[3], admitiu a constitucionalidade da arbitragem necessária, vetando, contudo, as disposições relativas à irrecorribilidade à justiça estadual, arrimado nas preleções consoantes ao princípio do acesso aos tribunais[4].

3. ARBITRAGEM NECESSÁRIA ENQUANTO MEIO ALTERNATIVO EFICAZ AO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO

 Para além dos efeitos econômicos ínsitos à relação entre Metrópole e Colônia, observa-se, igualmente, o movimento de irradiação do arcabouço normativo daquela a esta. Sob tal perspectiva, a utilização da arbitragem enquanto método extrajudicial e heterocompositivo em solo brasileiro é anterior à própria independência, havendo registros datados ainda do século XIX (DELGADO, 2007, p. 11).

A análise histórica das Constituições brasileiras remete à Lex Legum de 1824, ainda no período de império, a primazia na disciplina da arbitragem, ocasião em que as partes poderiam eleger árbitro para dirimir causas em searas cíveis e penais, e, voluntariamente, optar pela renúncia a recursos[5]. Posteriormente, em 1934, fora restrita ao âmbito comercial, designando-a enquanto competência da União[6]. Com o silêncio das Cartas Magnas posteriores, somente por meio do diploma proclamado 1988, a arbitragem voltou a ocupar status constitucional.

Hodiernamente, a arbitragem tem tratamento específico descrito pela Lei 9.307/1996, cujas disposições ganharam, recentemente, nova roupagem em virtude da Lei 13.129/2015.

Em Terra Brasilis, a arbitragem constitui meio essencialmente voluntário de acesso à justiça[7] e, tal qual a antiga Metrópole, seu regramento guarda diferenciações relativas às cláusulas e aos compromissos arbitrais, e aos tribunais ad hoc e institucionalizados.

Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, através do anuário ‘Justiça em Números’, os gastos referentes à manutenção do Poder Judiciário brasileiro somam 79,2 bilhões de reais (aproximadamente 22 bilhões de euros e 5% do PIB nacional), e a força de trabalho de 451.497 servidores atua para a decisão de 75 milhões de processos, cujo o tempo médio de sentença no 1º grau varia, em média 5,8 anos entre fases de conhecimento e execução (BRASIL, 2016).

Defronte às informações expostas, a garantia constitucional de tutela jurídica prestada de modos eficaz e célere[8] transfigura-se em norma inócua.

Cientes disto, os Poderes da República atuam de modo a promover meios alternativos de resolução de conflitos, na intenção de democratizar efetivo o acesso à justiça. Não por outra razão, o novel Diploma Processual Civil elenca a possibilidade de se celebrar audiência conciliatória prévia, e destaca quanto dever do magistrado a permanente atuação em prol de conciliar as partes.

Num contexto em que se diferencia judicialização de acesso à justiça, o direito comparado consiste em formidável fonte para rejuvenescimento das instrumentalizações de ordens substantiva e adjetiva. Por esta razão, se perquire acerca dos possíveis efeitos da adoção de medidas concernentes à arbitragem necessária ao Ordenamento Jurídico brasileiro. 

Ab initio, faz-se necessário enfrentar as possibilidades constitucionais de empreender tais operações, tal qual fora discutido no bojo do julgado 230/2013, pelo Tribunal Constitucional Português, circunstância em que se apreciou a nulidade ou não da legislação referente ao Tribunal Arbitral Desportivo.

Pari passu ao princípio do acesso aos tribunais, em solo tupiniquim, vigora o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, a partir do qual se retrata a ampla possibilidade de discussão dos conflitos sociais em âmbito judicial, se proibindo a lei de excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito[9].

Por outro lado, guarda mesmo status constitucional, os direitos fundamentais ao acesso à justiça e celeridade processual. Levando-se em consideração os princípios da unidade e harmonização das normas constitucionais, deve-se buscar solução que melhor atende seus preceitos, razão pela qual entende se admitir, com reservas, o acolhimento de arbitragem necessária, de modo a permitir a revisão judicial das decisões.

A Constituição Federal da República Federativa Brasileira guarda situação análoga, também referente ao desporto. A disposição presente no bojo do Artigo 217, §1º, revela ser imperioso o esgotamento das instâncias administrativas desportivas para se manejar ação judicial. Esta exigência, de igual modo, tem fito de promover celeridade à solução da lide, desconcentrar o acesso à justiça através do Poder Judiciário e, ainda, prestar tutela especializada, tendendo a decidir com maior conhecimento de causa[10].

Isto feito, entende-se ser por bem futuras disposições legais acerca da arbitragem necessária, salvaguardando, dessa forma, interesses individuais, ao concretizar a justiça de modo mais célere e especializado, assim como interesses coletivos, poupando recursos econômicos, e operando o aparato judiciário a um menor número de litígios, portanto, tendendo a prestar tutela mais célere e de maior qualidade à sociedade. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Ortega Y Gasset, a soma das circunstâncias descreve o ser. Na modernidade líquida (BAUMAN, 2008), a globalização é o fenômeno de emaranhamento terráqueo. Suas implicações são de ordem social, política e econômica, remodelando os modos de pensar e agir do sujeito e, consequentemente, do conjunto de normas que pretendem selar a paz social. Destarte, fruto de interações em âmbitos nacional e internacional, o Direito ganha novas feições de acordo com o contexto vivenciado. Tal qual o Ordenamento, suas micropartículas (TELLES JÚNIOR, 1973) galgam novas significações. Sob este escorço, se delineia as transformações no que concerne ao princípio do acesso à justiça.

Ab initio, considerado enquanto dever Estatal de nutrir a possibilidade de que se bata às suas portas, para resolução de conflitos sociais, o acesso à justiça era entendido sob as formas de manutenção e inafastabilidade do Poder Judiciário. Marcos históricos relativos às conquistas de direitos sociais fundamentais remodelaram, contudo, a aparência do acesso à justiça, primando pela sua democratização a partir da atuação positiva Estatal não só através do aparato Judiciário, mas na promoção de meios de acesso à justiça, a exemplo das Constituições Mexicana de 1917, e da República de Weimar em 1919 (LENZA, 2014).

Nesta esteira, a dedicação de Cappelletti e Garth (1988) em dedilhar aspectos políticos, sociais e econômicos enquanto fatores de entrave à resolução judicial dos conflitos, culminou em nova perspectiva ao princípio de acesso à justiça, dissociando-no da necessária judicialização dos litígios. Para os doutos, o cumprimento do acesso à justiça passa, inevitavelmente, pela idealização de meios alternativos extrajudiciais para a solução de conflitos. Assim, se fortaleceram as didáticas conciliatórias, mediatórias, e, ainda, as de natureza arbitral.

Entendida enquanto meio de resolução de litígios extrajudicial e heterocompositivo, a arbitragem reúne a possibilidade de solver disputas de modo mais célere, por via de terceiro(s) imparcial(ais), da confiança das partes, e a partir de um regramento elencado pelos sujeitos.

Em Portugal, para além da Lei da Arbitragem Voluntária, frisou-se o ímpeto legal de tornar necessária, para alguns objetos, entre eles os serviços essenciais à sociedade, a propriedade industrial de medicamentos e demandas de natureza desportiva, a satisfação do conflito por via arbitral, impedindo, por assim, o acesso aos tribunais. Esta implementação é alvo de constantes debates doutrinários, questionando-se, por certo, sua constitucionalidade. Em stare decisis, o Tribunal Constitucional Português, por via do Acórdão 230/2013, decidiu pela constitucionalidade da imposição legal a arbitragem necessária, declarando a nulidade, todavia, do dispositivo impeditivo ao pleito judicial posterior, com arrimo nos artigos 20, número 1, e 268, número 4 e 5, ambos da Constituição Federal Portuguesa.

Destarte, frente ao quilate desta implementação, passou-se a analisar a possibilidade de acolhimento deste método de resolução de conflitos em âmbito brasileiro, sublinhando os preocupantes dados anotados pelo Conselho Nacional de Justiça, no estudo 'Justiça em Números', acerca dos gastos relativos à manutenção do Poder Judiciário, número de serventuários, quantidade e tempo médio de vidas dos processos em trâmite.

Examinando os princípios da celeridade processual, do acesso à justiça e da inafastabilidade do Poder Judiciário, e da disciplina análoga dada à resolução de conflitos de natureza desportiva, entende-se pela constitucionalidade da arbitragem necessária também em terra brasilis, ressalvando-se, entretanto, a possibilidade de recursos ao Poder Judiciário, de modo similar ao disposto em Tribunal Constitucional Português.

 

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BASTOS, Susana Filipa Pereira. Arbitragem Necessária. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31348/1/Arbitragem%20necessaria.pdf>. Acesso em: 15/11/2016.
BRASIL. Constituição Federal de 1824. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 29/10/2016.
BRASIL. Constituição Federal de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 29/10/2016.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 29/10/2016.
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BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti – Bauru, São Paulo: EDIPRO, 2001.
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CAPPELLETTI, Mauro;  GARTH,  Bryant.  Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
DELGADO, José Augusto. A Arbitragem No Brasil – Evolução Histórica E Conceitual.  Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/29798-29814-1-PB.pdf>. Acesso em 28/11/16.
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REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
TELLES JUNIOR, Goffredo. O Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1971.
 
Notas
[1] A seguir, transcreve-se o Artigo 1.º da Lei de Arbitragem Voluntária:
“Convenção de Arbitragem
1 – Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.” (PORTUGAL, 2016)

[2] De acordo com Artigo 2º da Lei da Arbitragem Voluntária:
“Requisitos da convenção de arbitragem; sua revogação
1 – A convenção de arbitragem deve adoptar forma escrita.
2 – A exigência de forma escrita tem-se por satisfeita quando a convenção conste de documento escrito assinado pelas partes, troca de cartas, telegramas, telefaxes ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, incluindo meios electrónicos de comunicação.
3 – Considera-se que a exigência de forma escrita da convenção de arbitragem está satisfeita quando esta conste de suporte electrónico, magnético, óptico, ou de outro tipo, que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação.
4 – Sem prejuízo do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, vale como convenção de arbitragem a remissão feita num contrato para documento que contenha uma cláusula compromissória, desde que tal contrato revista a forma escrita e a remissão seja feita de modo a fazer dessa cláusula parte integrante do mesmo.
5 – Considera-se também cumprido o requisito da forma escrita da convenção de arbitragem quando exista troca de uma petição e uma contestação em processo arbitral, em que a existência de tal convenção seja alegada por uma parte e não seja negada pela outra.
6 – O compromisso arbitral deve determinar o objecto do litígio; a cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios respeitem.” (PORTUGAL, 2016)

[3] Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, e por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º,conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º128/XII, na medida em que delas resulte a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária. (PORTUGAL, 2013)

[4] A Constituição da República Portuguesa de 1976 roga em seu Artigo 20.º:
“(Defesa dos direitos)
1. A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.” (PORTUGAL, 2016)

[5] Art. 160. Nas civeis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juizes Arbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes. (BRASIL, 1824)

[6] Art 5º – Compete privativamente à União: […]
XIX – legislar sobre: […]
c) normas fundamentais do direito rural, do regime penitenciário, da arbitragem comercial, da assistência social, da assistência judiciária e das estatísticas de interesse coletivo; (BRASIL, 1934)

[7] Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. (BRASIL, 1996)

[8] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…]
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (BRASIL, 2004)

[9] Art. 5º:[…]
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (BRASIL, 1988)

[10] Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:[…]
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. (BRASIL, 1988)


Informações Sobre o Autor

Glauco Eduardo Salles dos Santos

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão Especialista em Direito Penal com Habilitação ao Magistério Superior Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa Advogado


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