Apontamentos sobre as ações coletivas no Direito Brasileiro

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Resumo: Visa o presente trabalho abordar, de maneira ampla, as denominadas ações coletivas no Direito Brasileiro. Ver-se-á seu conceito, os direitos materiais por ela tutelados, sua origem histórica, a adequação da legitimidade daqueles a quem a lei confere representatividade para litigar por esses direitos e, por fim, a extensão subjetiva da coisa julgada sobre os indivíduos envolvidos no caso, ainda que de maneira indireta.


Palavras-chave: Ação Coletiva. Class Action. Direitos Difusos. Direitos Coletivos. Direitos Individuais Homogêneos.


Abstract: The following work aims to approach, in a general way, the class actions on the Brazilian Law. It will be see their definition, the material rights whose protection is desired by them, their historical source, the adequacy of representation by those who the Law gives legitimation to litigate and, finally, the subjective extension of the res judicata on the persons envolved in the case, even indirectly.


Keywords: Class Action. Diffused Rights. Collective Rights. Individual Homogeneous Rights.


Sumário: 1. Introdução. 2. Da evolução dos Direitos Materiais. 3. Da evolução dos Direitos Materiais. 3.1. Classificação Tradicional na Doutrina. 3.1.1 Direitos difusos. 3.1.2 Direitos coletivos stricto sensu. 3.1.3 Direitos individuais homogêneos. 3.2 Classificação de Márcio Flávio Mafra Leal. 4. Das Class Actions no Direito Norte-americano. 5. Das ações coletivas. 6. Da legitimidade e seu controle jurisdicional. 7. Da coisa julgada nas ações coletivas. Conclusão
Introdução


Se certo é que, consoante o velho brocardo latino, não existe sociedade sem Direito e nem este sem aquela, fato, outrossim, é que as leis de determinado Estado devem revelar-se em compasso com a constante evolução através da qual marcham aqueles à quem sua ordem abstrata se destina, sob pena de se ter direitos não reconhecidos ou, em sendo consagrados pelo ordenamento, não se encontrarem concretamente efetivados perante seus titulares.


A crise, pois, da tutela a bens jurídicos relevantes para o convívio social pode se perfazer sob dois enfoques distintos: o não reconhecimento de determinado direito relativamente àquele bem jurídico digno de tutela, ensejando, aqui, uma problemática de direito material; ou, a não-efetivação daquele direito outrora esculpido no ordenamento jurídico, o que, em algumas situações, se dá por ausência de meios para protegê-lo de lesões ou simples ameaça de lesão.


Ora, tendo em vista que o processo civil, segundo o juízo de Walther J. Habscheid, consubstancia-se em um meio “no qual o direito material preexistente se concretiza em cada caso determinado…” (1978, p. 124), mais do que claro parece que o último enfoque da crise de tutela jurídica acima suscitada decorre de uma problemática de direito processual. Vale dizer, vezes há em que, inobstante certo direito material esteja assinalado pelo ordenamento, seus efeitos práticos – almejados pelo legislador – não são obtidos, e este impasse advém não da ausência de voluntas legis sob o prisma substancial, mas sim de não estar o titular daquele direito munido de instrumentos processuais idôneos a protegê-lo diante de atentados contra seu patrimônio jurídico.


É com esta premissa em mente que se vislumbra analisar a questão da tutela de direitos coletivos. Para tal desiderato, contudo, não é demais reafirmar-se o entendimento hodiernamente esposado acerca da evolução e do conceito de tais direitos.


2. Da evolução dos Direitos Materiais


De acordo com clássica construção doutrinária, os direitos fundamentais podem ser ter sua evolução demarcada em três grandes grupos, que se observaram em momentos históricos distintos. Neste sentido é que se falam nas denominadas gerações ou dimensões de direitos.


Pois bem. Seria a primeira geração de direitos fundamentais integrada por direitos de caráter negativo, é dizer, exigindo uma abstenção (rectius, não-intervenção) do Estado diante da esfera pessoal dos indivíduos. Ambicionava-se, com isso, remarcar a noção do que era privado e que, portanto, refugia aos tentáculos estatais. Tal dimensão de direito encontra na noção de liberdade sua pedra de toque.


São típicas deste período as primeiras constituições escritas de que se tem notícia – a estadunidense, de 1787, e a Declaração francesa, de 1791 –, as quais primavam pela liberdade de seus cidadãos, assim entendida em seus vários aspectos, bem como apregoavam a declaração formal de igualdade entre aqueles.


Com o passar dos tempos, porém, percebeu-se que, a completa isenção do ente estatal no cotidiano dos cidadãos poderia representar-lhes outra ameaça tão grande quanto à anteriormente combatida, por mais paradoxal que esta assertiva aparente ser.


Destarte, o homem não mais buscou o desenvolvimento de seus pares sem qualquer relação com o Estado, pois clarificada estava a noção de que aquele propósito jamais seria logrado longe de algumas medidas intervencionistas advindas do Poder Público.


Neste diapasão se desenvolvem os direitos de segunda dimensão, cuja primazia era pela efetivação da igualdade anteriormente proclamada, isto é, aqueles que eram formalmente declarados como iguais almejavam, agora, que sua igualdade fosse substancial, justificando, nesse ponto, a adoção de medidas desigualitárias, ilustradas, modernamente, pelas ações afirmativas.


Os mais notórios documentos legais dessa época são a Constituição Mexicana, de 1917, e a temerosa Lei Fundamental de Weimar, que data de 1919.


A palavra-chave – perceba-se – dos direitos de segunda dimensão é a igualdade.


Fixados tais direitos, pareciam os propósitos sociais momentâneos estarem bem resguardados.


Todavia, como há se tentado demonstrar neste trabalho, a sociedade evolui, e sua marcha em diante não espera o Direito, quiçá o Processo Civil.


Na evolução alcançada, sobremaneira, com o pós-guerra de 1945, os direitos até então vistos de forma extremamente individualista, típica, ademais, da cultura vigente nos séculos XVIII e XIX, foram sendo repaginados pelo entendimento de que a tutela aos indivíduos isoladamente considerados se configurava inidônea aos resultados esperados pela sociedade de então.


Em outras palavras, dever-se-ia pensar, de agora em diante, no coletivo, não bastando a tutela meramente individualista.


É neste cenário que se desenvolvem os assim chamados direitos de terceira dimensão, em momento histórico fortemente caracterizado por uma sociedade globalizada, de consumo em massa, demandando, pois, que assim também fosse a tutela conferida pelo ordenamento jurídico aos seus cidadãos.


Conforme bem observado por Marinoni e Arenhart, os direitos de terceira dimensão “são ditos de solidariedade a caracterizados por sua ‘transindividualidade’, pertencendo não mais apenas ao indivíduo, considerado como tal, mas sim a toda a coletividade.” (2008, p. 737).


A positivação de tal espécie de direitos representa, inegavelmente, uma grande conquista por parte da sociedade moderna, mas a falta de mecanismos jurídicos aptos a efetivá-los quando postos em xeque por parte de outrem (que pode ser outro particular ou o próprio agente estatal) representa risco a que os anseios que moveram o legislador a incluí-los no direito doméstico caiam por terra.


Neste viés, revela-se a inestimável missão de se ter um direito processual de cunho eficaz, antenado com os novos direitos materiais e garantias que deve concretizar. Ora, se coletivos passaram a ser os direitos conferidos pela lei, assim também teria de ser o processo que os resguardasse.


Outra não é a conclusão a que chegam Marinoni e Arenhart, ao afirmarem que “o surgimento dessa nova categoria de direitos exigiu que o processo civil fosse remodelado para atender adequadamente as necessidades da sociedade contemporânea.” (2008, p. 737).


Obviamente, remodelar o processo civil não é, ao menos de plano, tarefa das mais fáceis, na medida em que estão habituados os operados do Direito a militar com um mecanismo de poderio estritamente individual. Muito embora preveja o ordenamento alguns institutos, tais como o litisconsórcio (artigos 46 usque 49, CPC), que possibilitem a inserção de mais de uma pessoa nos pólos da ação, com tal noção não se confunde o processo coletivo, conforme se demonstrará em momento oportuno.


A mudança exigida, pois, para o trato do processo coletivo, não se restringe à promulgação de diplomas legais que o disciplinem com adequação, mas exige, ainda, como observa Teresa Arruda Alvim, alterações na própria “mentalidade” dos que freqüentam os corredores forenses. Em suas próprias palavras,


“Assim, só uma mentalidade de certo modo “conformada” com a necessidade de se abandonarem os padrões tradicionais do processo é capaz de ser receptiva e, portanto, entender esse novo processo, engendrado para regular uma outra faceta da realidade, que talvez possa ser eleita como a nota mais marcante da sociedade do nosso tempo.” (1994, p. 273).


Essa mudança, por certo, que apenas será obtida com o debruçar teórico e prático relativamente ao tema, o que reforça a importância de estudos que o desmistifique, demonstrando, ainda, qual a verdadeira “filosofia” – para usar expressão de Marinoni e Arenhart – que impulsiona a positivação deste novo modelo de processo.


3. Dos Direitos Coletivos “lato sensu”


O primeiro aspecto a ser observado quando se trata dos direitos coletivos lato sensu concerne ao seu próprio enquadramento jurídico. Isso porque, conforme se exporá com mais pormenorização, são espécies dos direitos coletivos lato sensu os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e – talvez não ontologicamente, mas por razões de conveniência e racionalização – os direitos individuais homogêneos.


Ocorre que a lei, em mais de uma situação, se refere aos direitos e/ou interesses coletivos [1]. Daí surge a indagação: estaria o ordenamento tutelando direitos ou interesses? Haveria distinção entre as terminologias?


De um modo geral, nota-se que não há grande preocupação da doutrina em diferenciar as nomenclaturas, o que, caso ocorresse, poderia dar a entender que o ordenamento tutela, de maneira diversa e em passagens diversas, categorias que também não se poderiam confundir.


Assim, ad exemplum, elucida Rizzatto Nunes:


“Tem que se entender ambos os termos [direitos e interesses] como sinônimos, na medida em que “interesse”, semanticamente em todos os casos, tem o sentido de prerrogativa e esta é exercício de direito subjetivo. Logo, direito e interesse têm o mesmo valor semântico: direito subjetivo ou prerrogativa, protegidos pelo sistema jurídico.” (2005, p. 697)


Não destoa desta exegese Teresa Arruda Alvim, para quem “embora se possa aludir à existência de diferenças que teriam algum interesse doutrinário, do ponto de vista pragmático carecem de importância, pois que desprovidas de qualquer utilidade.” (1994, p. 274).


O arremate, sobre esta primeira discussão, é de Kazuo Watanabe, que, com maestria, ensina:


“Os termos “interesses” e “direitos” foram utilizados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os “interesses” assumem o mesmo status de “direitos”, desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles.” (2001, p. 739)


Impossível discordar da explanação. De fato, quando o ordenamento erige à categoria de direito um determinado interesse que, outrora, lhe era alheio, torna desprovida de sentido qualquer pretensão que vise a uma distinção entre as terminologias, pois, como é evidente, por detrás de todo direito positivado, há um interesse que motivou o legislador a prevê-lo como tal.


Isto posto, pode-se esmiuçar o conceito dos direitos coletivos lato sensu.


Como bem notado por Hugo Nigro Mazzilli (2010, p. 50), os direitos coletivos lato sensu – ou direitos transindividuais – correspondem a um meio passo entre o interesse público e o privado, vez que rompem com o clássico paradigma individualista sem chegar, contudo, ao extremo da seara comum a todos [2].


Dogmaticamente, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. lecionam que:


“Denominam-se direitos coletivos lato sensu os direitos coletivos entendidos como gênero, dos quais são espécies: os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. Em conhecida sistematização doutrinária, haveria os direitos/interesses essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) e os acidentalmente coletivos (individuais homogêneos).” (2010, p. 73)


A classificação dos doutrinadores citados segue a determinação do parágrafo único do artigo 81 do CDC, dispositivo este que prevê o uso das ações coletivas para a hipótese que versar sobre estes três tipos de direito: difusos (inciso I), coletivos – stricto sensu – (inciso II) e individuais homogêneos (inciso III).


É de se salientar, neste ponto, que as ações coletivas mencionadas no CDC serão aplicáveis sempre que necessário o for para a salvaguarda daquelas três espécies referidas de direitos, despiciendo estar o direito conexo com matéria consumerista. A justificativa para tanto decorre da norma de extensão dos artigos 90 e 117 do CDC, que criaram um sistema de proteção – ou sistema integrado, no dizer de Marinoni e Arenhart (2008, p. 740) – dos direitos coletivos lato sensu ao permitir o uso indistinto, desde que compatível, com as disposições da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública – LACP) [3].


Note-se, ainda no que tange ao conceito do CDC, que, ao se referirem os doutrinadores supra registrados à “conhecida sistematização doutrinária” (idealizada por José Carlos Barbosa Moreira, 1984, p. 195), apresentam os direitos individuais homogêneos como apenas acidentalmente coletivos.


Ora, como visto, os direitos coletivos lato sensu são aqueles dotados do caráter da transindividualidade, vale dizer, sua titularidade não é de um ou outro indivíduo tomados em si, mas sim de uma coletividade deles.


Sendo esta coletividade o titular dos direitos em tela [4], parece intuitivo imaginar que não pertencem os direitos individuais homogêneos a esta categoria. E, de fato, isso não ocorre. O que se verifica no art. 81, parágrafo único, III do CDC é a acertada adoção, por parte do legislador, dos direitos individuais homogêneos como merecedores de tutela jurisdicional coletiva não porque se incluem na essência os direitos coletivos em sentido amplo, mas sim porque desta forma melhor se atenderia aos interesses ali representados, de forma a evitar decisões conflitantes ou mesmo a desencorajar os titulares de tais direitos, quando a lesão a eles fosse, individualmente, mínima a persegui-los em juízo, visando, além da efetiva reparação do dano ou cessação da ameaça de lesão, a punição exemplar de quem praticou a conduta vedada pela lei.


Outra nota individualizante do gênero de direitos coletivos, ao sentir de Mafra Leal (1998, p. 102), seria a ausência de patrimonialidade nestes direitos. Ensina o doutrinador que, enquanto os direitos de primeira e de segunda dimensão são marcados, de uma forma de ou de outra, pelo cunho patrimonialista, essa noção não se faz presente, senão de modo indireto, nos direitos difusos.


Destarte, por exemplo, para os direitos de primeira dimensão, cuja palavra lógica era a liberdade (conforme já registrado neste trabalho), apregoa Mafra Leal que “liberdade era lida como liberdade do e para ser proprietário.” (1998, p. 102).


Já no que diz menção aos direitos coletivos – por ele referidos como difusos – apontam-se duas características principais, ambas despidas de caráter patrimonialista, quais sejam: “qualidade de vida e uma concepção de igualdade vista como direito à integração, baseada em aspectos participativos nas várias esferas da vida social.” (1998, p. 103).


Neste mesmo sentido, Barbosa Moreira já proclamara que “os denominados ‘interesses difusos’ não raro se mostram insuscetíveis de redução a valores monetariamente expressos.” (1982, p. 10).


Passa-se, pois, a breve análise de cada um desses direitos previstos no CDC.


3.1. Classificação Tradicional na Doutrina


3.1.1 Direitos difusos


Segundo o art. 81, parágrafo único, I do CDC, direitos difusos são os “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”


Dentre os traços comuns que tal espécie de direito tem para com os direitos coletivos stricto sensu pode-se apontar o fato de serem transindividuais e de natureza indivisível.


A transindividualidade, leciona Antonio Gidi, significa que tais direitos “não pertencem a uma pessoa física ou jurídica determinada, mas a uma comunidade amorfa, fluida e flexível, com identidade social, porém sem personalidade jurídica.” (1995, p. 26). Ainda de acordo com Gidi, a transindividualidade, como já se registrou alhures em nota deste trabalho, não quer dizer que sejam indeterminados os titulares do direito em comento, mas, tão-somente, que – complemente-se – “uma não-pessoa para o direito é titular (sujeito de direito) de um direito subjetivo, o que pode ecoar como uma ruptura à tradição jurídica.” (1995, p. 26).


Complementa Mafra Leal que, nos direitos difusos, “a ordem jurídica confere um direito a uma entidade comunitária – unitariamente considerada – sem personalidade jurídica, sem representante e sem organização interna.” (1998, p. 45).


Não se pode confundir os direitos transindividuais com os específicos atribuídos a todas as pessoas. Assim, o direito à vida, por exemplo, é atribuído a todos de maneira uniforme, mas cada pessoa isoladamente é titular de tal direito. Diferentemente ocorre com os direitos transindividuais, que não são pertencentes a um indivíduo determinado.


Segundo o que lecionam Marinoni e Arenhart, os direitos transindividuais


“Não pertencem a um único indivíduo, e ainda se mostram indivisíveis dentre os sujeitos que dão composição à comunidade. Não se pode, por isso mesmo, admitir que tais direitos sejam confundidos com a somatória dos direitos individuais, pertencentes a cada um dos sujeitos que integram a coletividade.” (2008, p. 741).


Tais apontamentos certamente corroboram o compromisso, já percebido pela doutrina, de se separar o tratamento que sempre foi disponibilizado ao direito individual do que merece ser conferido e, mais do que isso, que é exigido pelo direito transindividual.


Outra característica de tal espécie de direito, observada por Medina, Araújo e Gajardoni (2010, p. 370), é a “indivisibilidade do seu objeto, o qual não diz respeito a um indivíduo ou classe.” Note-se, assim, que a indivisibilidade do objeto decorre de nada mais do que a própria natureza transindividual.


3.1.2 Direitos coletivos stricto sensu


Tal como os direitos difusos, os direitos coletivos em sentido estrito são marcados pelas características da transindividualidade e da indivisibilidade. Altera-se, contudo, o titular a quem o direito em tela é atribuído.


Com efeito, ao passo em que, consoante o CDC art. 81, parágrafo único, I e II, o direito difuso é atribuído “pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”, tem-se que os direitos coletivos stricto sensu pertencem a “grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.”


Segundo este aspecto, pois, fica claro que nos direitos coletivos stricto sensu existe uma noção mais evidente de agrupamento entre seus titulares, o que não ocorre, necessariamente, com os direitos difusos.


Neste sentido, ensinam Medina, Araújo e Gajardoni que:


“O interesse coletivo nasce da idéia de corporação, na medida em que são determináveis quanto a um grupo ou categoria. Entretanto, são direitos metaindividuais por não serem atribuídos aos membros de modo isolado, mas de forma coletiva, os quais estão reunidos por uma mesma relação jurídica base. (2010, p. 368).”


Note-se, neste ponto, que as semelhanças entre os direitos difusos e os coletivos stricto sensu talvez sejam mais evidentes do que os traços que os distinguem. É justamente por este motivo que tem a doutrina se esforçado em diferenciar, com rigorismo científico, uma classe de outra, de modo a prestar-se, em última análise, à correta e adequada tutela de cada um dessas categorias previstas no ordenamento.


A preocupação, aliás, não passa despercebida por modernos estudiosos do processo civil, ao mencionarem que, inobstante os esforços envidados pela doutrina no que concerne à distinção entre os direitos difusos e os coletivos, “observa-se uma concepção nebulosa e imprecisa.” (MEDINA, ARAÚJO E GAJARDONI, 2010, p. 368).


Segundo estes mesmos autores, o fator principal para que se possa cogitar da diferenciação entre os direitos difusos e os coletivos reside no vínculo jurídico mais acentuado que une os titulares da última categoria. Em suas palavras:


“Existe um vínculo jurídico que os une [os titulares do direito coletivo], o que demonstra a necessidade de organização e coesão. A identificação desses elementos, ou seja, o mínimo de organização, afetação a um grupo determinado e vínculo jurídico impede a confusão estabelecida com os interesses difusos.” (MEDINA, ARAÚJO e GAJARDONI, 2010, p. 368).


Em sentido um tanto quanto diverso, Marinoni e Arenhart (2008, p. 742) lecionam que, relativamente aos direitos coletivos stricto sensu, não há essa necessidade de organização, bastando que o conjunto de pessoas – considerado o titular do direito – possa ser identificado. Não duvidam os doutos autores que, em havendo um órgão representativo do grupo, será tal o legítimo responsável pela propositura da ação, mas lecionam que “os efeitos da tutela abrangerão a todos os que pertençam ao grupo, independentemente de estarem ou não vinculados ao organismo.” (Idem, ibidem).


Em sentido semelhante, Nelson Nery Jr. toma o binômio indeterminação/determinabilidade por base para a distinção das categorias de direito coletivo em sentido amplo, já que “a indeterminação dos titulares seria a característica básica dos interesses difusos, enquanto que a determinabilidade acusaria de coletivo [em sentido estrito] o direito ou interesse. Ambos seriam de natureza indivisível.” (1991, p. 26).


A nota marcante, portanto, para se diferenciar direito difuso de direito coletivo reside na possibilidade de determinação, ainda que genérica, de seus titulares. Assim, tem-se o direito ao meio ambiente sadio como direito difuso, ao passo em que o direito de certa classe de trabalhadores a um ambiente de trabalho adequado configura direito coletivo. No direito coletivo, uma classe, grupo ou categorias de pessoas estão ligadas entre si ou com a parte contrária mediante uma relação jurídica base, segundo o que reza o art. 81, parágrafo único, II do CDC.


3.1.3 Direitos individuais homogêneos


Os direitos individuais homogêneos, como o próprio nome sugere, não são do grupo de direitos transindividuais [5], vez que seus titulares, bem assim as lesões eventualmente por eles sofridas, podem ser individualizadas com exatidão. O uso da ação coletiva para seu resguardo, neste sentido, se dá por razões de conveniência, tal como a ânsia de evitar decisões judiciais inúmeras e contraditórias, e de racionalidade, calcada na economia processual.Um elucidativo exemplo desta espécie de direito na seara consumerista é o que ocorre com os produtos cuja quantidade alienada ao consumidor encontra-se em menor escala do que a apontada na embalagem. Nesta hipótese, cada um dos consumidores do produto, individualmente, foram lesados e, ainda mais, em montante determinável. Mesmo assim, por vários fatores, como a irrisoriedade do prejuízo em pecúnia, seria inviável a perseguição em juízo da reparação do dano por cada um dos lesados, mas extremamente aconselhável o acionamento jurisdicional na via coletiva, como corolário para afirmar a eficácia da norma proibitiva da conduta perpetrada.


A ação coletiva com fins de resguardo dos direitos individuais homogêneos corresponde, de acordo com o que apregoa a doutrina, à adoção, no direito pátrio, das chamadas class actions for damages, oriundas do direito norte-americano.


3.2 Classificação de Márcio Flávio Mafra Leal


Diversamente da classificação anteriormente delineada, Márcio Flávio Mafra Leal, em trabalho específico sobre as ações coletivas, trata dos aqui chamados “direitos coletivos em sentido amplo” sob outra perspectiva.


Segundo o autor (1998, p. 43), haveria no ordenamento jurídico pátrio duas espécies bem distintas de ações coletivas, uma destinada à proteção dos direitos difusos e outra que tem por missão a tutela dos direitos coletivos e dos individuais homogêneos.


Note que, de acordo com o critério proposto pelo autor, há uma única espécie de ação coletiva para os direitos coletivos e os individuais homogêneos. A explicação para isso é que, ao seu sentir, os ditos direitos coletivos são, em essência, de natureza individual, assim como os semanticamente dedutíveis direitos individuais homogêneos.


Destarte, explica Mafra Leal que apenas os direitos difusos é que não podem ser demandados individualmente, pois que atribuídos a uma comunidade de maneira autônoma dos membros que a compõem. Seria como se esta comunidade – titular do direito difuso – fosse dotada de “personalidade jurídica” distinta de cada pessoa (natural ou jurídica) que a integra. É evidente, porém, que, como o próprio estudioso propõe, esta metáfora serve apenas para fins elucidativos, vez que “na comunidade ou grupo, não há organização nem designação de representante ou natureza contratual (volitiva) como membro agregador.” (1998, p. 45).


Quer dizer o autor, em última análise, que a comunidade ou grupo, embora detentora de um direito que não se viabiliza a cada de um de seus membros por título individual, não depende do denominado affectio societatis para ser “constituída” perante o ordenamento. In veritas, “o fator de unidade é a atribuição aos membros da comunidade, vistos em conjunto, de um direito material.” (1998, p. 45).


Daí porque as duas principais características colhidas para os direitos difusos seriam a ausência de cunho patrimonial e a sua transindividualidade (MAFRA LEAL, 1998, p. 95).


De outra banda, os direitos coletivos mereceriam esta adjetivação apenas no que concerne ao seu tratamento no processo. É dizer, são direitos processualmente coletivos, mantendo, entretanto, seu núcleo substantivo de direito individual, de modo que as características da transindividualidade e da indivisibilidade “decorrem da formação uniforme sobre a classe da coisa julgada e não do direito material em si.” (MAFRA LEAL, 1998, p. 190).


Desta feita, vê-se que o critério sustentado pela doutrina quando à diferenciação entre os direitos difusos e os coletivos tomando-se por base “a determinabilidade dos titulares e a circunstância que une o grupo (fática em um e jurídica em outro)” torna-se, ao sentir de Mafra Leal, “insustentável”. (1998, p. 191).


Passando-se, depois, aos direitos individuais homogêneos, reconhece o autor que a ação coletiva aqui manejada o seria para a defesa dos direitos, por exemplo, de cada um dos consumidores que, por conta de publicidade enganosa, haviam adquirido um determinado veículo. Assim, “os titulares do direito material são determináveis e o montante da reparação é distinto para cada um deles.” (1998, p. 193).


Em virtude destas premissas é que a doutrina defende serem os direitos individuais homogêneos plenamente divisíveis. Mais uma vez, contudo, insurge-se Mafra Leal contra o posicionamento majoritário. Segundo ensina o doutrinador em comento, o pedido realizado nas ações coletivas para a tutela de direitos individuais homogêneos não é condenatório, mas sim declaratório “da responsabilidade civil do réu. E os pedidos declaratórios são indivisíveis por natureza” (1998, p. 193).


A divisibilidade, pois, da indenização devida a cada um dos lesados somente seria apurada, posteriormente, com a habilitação e a liquidação promovida na modalidade por artigos (1998, p. 193).


Para que surjam, na prática, os direitos coletivos e os individuais homogêneos, “basta que a lei discipline e permita algumas pessoas, em determinadas circunstâncias, legitimarem-se para a ação e que esta ação produza uma coisa julgada ampla.” (1998, p. 196). Segundo Mafra Leal, pois, não se depende, para a criação destas duas espécies de direitos, de sua conceituação legal.


Em conclusão, portanto, expõe o autor que:


“I) A nota da transindividualidade, do ponto de vista material, é típica somente dos direitos difusos. Do ponto de vista processual, a transindividualidade se verifica pela permissão de que determinado direito individual seja veiculado por intermédio de ação coletiva, quando a coisa julgada beneficia ou prejudica indistintamente todos os representados;


II) A indivisibilidade dos direitos difusos independe de um regime especial para a coisa julgada, pois deflui do atendimento do direito material, enquanto que, para os interesses coletivos, a indivisibilidade decorre somente em razão da previsão legal de extensibilidade da coisa julgada, sendo possível o trânsito em julgado com comandos diversos sobre o mesmo objeto em ações individuais;


III) Existem, na verdade, duas ações coletivas no Brasil e não três como conceitua a lei e a doutrina. Uma na defesa de direitos difusos (ACDD – art. 81, único, I do CDC) e outra na defesa de direitos individuais com tratamento processual coletivo (ACDI – art. 81, único, II e III do CDC).” (1998, p. 196).


Em síntese, pode-se apontar como notas marcantes da opinião diversa de Márcio Flávio Mafra Leal: os direitos difusos não integram um gênero conhecido por direitos coletivos em sentido amplo; os direitos coletivos (em sentido estrito) apenas o são sob a perspectiva processual, posto que, sob a ótica do direito material, de coletivo nada possuem além do nome.


4. Das Class Actions no Direito Norte-americano


As ações coletivas existem há pelo menos oito séculos (YEAZELL, 1987, p. 21), não sendo, por isso, um “fenômeno contemporâneo” (MAFRA LEAL, 1998, p. 21). Mesmo assim, observa Mafra Leal que há, “evidentemente, diferenças relevantes entre as primeiras medievais, as modernas e as contemporâneas.” (1998, p. 21).


Desta sorte, para bem situar-se no atual contexto pátrio e alienígena que cerca a ação coletiva, torna-se imperioso voltar os olhos em sua origem e evolução, entendendo-se como se adequou a cada momento social em que teve sua aplicação suscitada.


Aponta-se as contemporâneas class actions do direito norte-americano como um aperfeiçoamento do chamado Bill of Peace, existente no direito inglês do século XVII. (TUCCI, 1990, p. 11). Para entendê-las, pois, é mister que se tenha em foco no que se consubstanciava a mencionada criação legislativa britânica.


Segundo o que leciona Nelson Rodrigues Netto (2007, p. 80), Martin v. Paroquianos de Nuthampstead, datado do ano de 1199 e tendo por objeto questões relativas às contribuições dizimais e outros direitos e obrigações da diocese, corresponde ao mais antigo caso das class actions no direito britânico.


Também se referindo a Martin v. Paroquianos de Nuthampstead como o pioneiro caso de utilização das class actions no direito medieval inglês, André Vasconcelos Roque demonstra o caráter coletivo da demanda ao registrar que “proposta [a ação] contra uma coletividade, qual seja, os paroquianos de Nuthampstead, (…) apenas algumas pessoas foram chamadas a juízo para, aparentemente, responder por todos os integrantes do grupo.” (2010, p. 111).


De outra banda, Edward Peters (apud MAFRA LEAL, 1998, p. 21), propondo uma releitura da obra de Stephen Yeazell, quem aponta o caso supra como o primeiro de ação coletiva no direito britânico, leciona que o registro pioneiro da forma de litigância coletiva se deu em França, no ano de 1179, quando aldeões da vila de Rosny-sous-Bois pleiteavam o fim de suas condições de servos.


A par desta dissonância, necessário é que se registre a elucidação feita por Mafra Leal acerca do relacionamento de precedência do bill of peace com as ações coletivas do período medieval, no sentido de que, enquanto no primeiro, teve-se verdadeira reunião de processos originariamente individuais, com o fito de economia de ordem processual, as ações coletivas propriamente ditas do período medieval – dentre as quais se pode incluir ambos os precedentes retro citados, o de 1179 e o de 1199 – consubstanciaram-se, de fato, a levar à juízo direitos de uma comunidade, sem, portanto, personalidade jurídica própria (MAFRA LEAL, 1998, p. 25).


Em verdade, o manejo das ações de caráter coletivo no direito medieval inglês reflete a forma de organização social da época, que se perfazia “em torno de pequenas coletividades, mais ou menos coesas”, tais como os vilarejos e as paróquias. (ROQUE, 2010, p. 112).


Outra não é a conclusão a que chega Mafra Leal (1998, p. 26), quando se refere que, no período medievo, não se tinha noção do indivíduo como pessoa, dotado, por si só, de personalidade jurídica própria, já que este atributo advém do período liberal, inaugurado com as Revoluções do fim do século XVIII. Vale dizer, na Idade Média, não havia um sujeito de direitos propriamente dito, mas sim uma comunidade a qual poderia ser atribuído o poder de litigar por determinados e incertos direitos.


Com a Idade Moderna, marcada pelo período de desenvolvimento do Estado liberal, o indivíduo passa a ocupar o cerne das atenções, sendo que o pensamento no individual, ao invés do comunitário, era de certa forma um modo de evitar a repristinação do antigo regime medievo (MANCUSO, 1994, p. 32).


Neste momento, pois, as coletividades passaram a reunir-se através de agrupamentos denominados corporações, as quais, no direito britânico, para funcionar adequadamente, deveriam contar com uma concessão (charter) outorgada pela Coroa ou pelo Parlamento. Com o decair dos anos, porém, essas corporações foram obtendo reconhecimento legislativo e, de conseguinte, as ações coletivas advindas de tais entes caíram em desuso. (MAFRA LEAL, 1998, p. 29-31).


O enfoque contemporâneo das ações coletivas, de outro lado, não mais diz respeito à possibilidade de postulação por entidades desprovidas de personalidade jurídica, já que o CPC art. 12, VII possibilita que um dos sócios represente a pessoa jurídica de fato em juízo.


O que se versa atualmente sobre as ações coletivas, isto sim, é a representatividade de grupos, classes e categorias ligados por vínculos das mais diversas naturezas, os quais, não raramente, se encontram em posições submissas no seio social. Tais grupos, ainda que sejam destinatários de direitos materiais conferidos pela ordem jurídica, necessitam sempre de que os aludidos preceitos sejam efetivados do ponto de vista prático, aí entrando em cena a necessidade de uma devida – quiçá adequada – representação dos membros do grupo, o que corrobora o entendimento, aqui já delineado, quanto à hodierna problemática de direito processual.


Como anotado por Mafra Leal, “a modernidade requereu outro elemento que justificasse a ação coletiva” (1998, p. 34), pois com o rompimento do modo de vida do período medieval, aliado às especializações cada vez mais constantes da Idade Contemporânea, torna-se árdua a tarefa de encontrar um elemento de coesão entre as diversas pessoas componentes da sociedade, a ponto de se dizer que um delas pudesse representar as demais.


Assim, patente é nos dias atuais a problemática das ações coletivas no que concerne à representação e à extensão subjetiva da coisa julgada. “A questão, portanto, é equacionar as exigências do devido processo legal e da noção do direito de ação como direito do indivíduo (pessoa física ou jurídica) com o modelo representativo das ações coletivas e com a extensão da coisa julgada dela decorrente (coisa julgada extra partes).” (MAFRA LEAL, 1998, p. 36).


5. Das ações coletivas


De acordo com Mafra Leal, “a história da ação coletiva se desenvolve com a necessidade de institucionalização de conflitos envolvendo comunidades e grupos intermediários, sem adequada representatividade política ou jurídica.” (1998, p. 183).


Sem embargo disso, é relevante anotar que o desenvolvimento das ações coletivas no direito brasileiro se deu de forma totalmente destoada do que ocorrera, por exemplo, no direito norte-americano, onde o mecanismo coletivo foi nitidamente impulsionado por movimentos sociais, como dos consumidores e de minorias étnicas (MAFRA LEAL, 1998, p. 184).


No direito brasileiro, ao revés, segundo o juízo do mesmo autor, o que se verificou foi


“Uma ‘revolução’ de professores e profissionais do Direito que, estudando autores estrangeiros, principalmente italianos, passaram a reivindicar um tratamento processual no Brasil de conflitos metaindividuais, embora socialmente não houvesse manifestações e pressões visíveis para tal, por falta de consciência político-jurídica de grupos, pela debilidade organizacional da sociedade civil brasileira e pela repressão política vivida no país durante pelo menos duas décadas.” (1998, p. 184).


Conceitualmente pensando, segundo o que leciona Antonio Gidi,


“Ação coletiva é a ação proposta por um legitimado autônomo (legitimidade), em defesa de um direito coletivamente considerado (objeto), cuja imutabilidade do comando da sentença atingirá uma comunidade ou uma coletividade (coisa julgada).” (1995, p. 16).


O conceito de Gidi não passa imune de críticas por Mafra Leal (1998, p. 41), para quem o doutrinador não indica com precisão o que ele considera coletivo (se é o direito material em si ou a classe de titulares).


Convém ainda recordar que, para Mafra Leal, conforme já registrado nesse trabalho, existem duas espécies de ações coletivas no direito brasileiro: uma destinada à proteção dos direitos difusos e outra para a dos direitos individuais tratados processualmente sob a perspectiva coletiva.


Deixando de lado os conceitos, pode-se dar um passo adiante nas ações coletivas brasileiras pensando-se, mais do que em nomenclaturas, em que se pretenderia obter com aquelas. Seria, em outras palavras, indagar o tipo de provimento jurisdicional que o autor coletivo deduziria em juízo.


Tendo esta pergunta como pano de fundo, percebe-se existir, na verdade, uma variação muito grande ações coletivas, e não apenas “uma” delas.


Não por outro motivo, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart preceituam:


“A ação coletiva para a tutela de direitos difusos e coletivos é basicamente regida pelo conjunto formado pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor. Em verdade, não se trata de uma única ação, mas sim de um conjunto aberto de ações, de que se pode lançar mão sempre que se apresentem adequadas para a tutela desses direitos. Nesse sentido, claramente estabelece o art. 83 do CDC que, para a defesa dos direitos difusos e coletivos, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Portanto, não se pode dizer, realmente, que exista uma ação coletiva. Existe, isto sim, uma categoria de ações, que recebem o rótulo de “ação coletiva”, mas que se mostram distintas entre si com as peculiaridades de cada direito carente de tutela.” (2008, p. 748)


A lição dos doutrinadores encontra-se, ademais, em perfeita consonância com o princípio da atipicidade da ação e do processo coletivo, explicado como norma que possibilita a perseguição judicial em defesa de direitos coletivos novos, bem como que autoriza a utilização de qualquer forma de tutela na ânsia de salvaguardar estes direitos. (DIDIER JR. e ZANETI JR., 2009, p. 125).


Isto também superado, cabe, ainda, perquirir os motivos de existirem as ações coletivas. É indagar: o que pretendeu o Estado-legislador ao inserir as ações coletivas no ordenamento jurídico? Quais os fins por ele perseguidos?


É nesse diapasão, pois, que Nelson Rodrigues Netto destaca como objetivos das ações coletivas, seja na perspectiva ativa ou em seu âmbito passivo:


“(i) acesso à justiça; (ii) modificação ou dissuasão de comportamentos; (iii) isonomia entre as partes litigantes; (iv) economia de recursos processuais e judiciais; e, (v) impedimento de decisões conflitantes.” (2007, p. 92).


Não destoam dessas premissas Didier Jr. e Zaneti Jr. (2009, p. 34), ao estabelecerem o acesso à justiça e a economia processual como “justificativas atuais de ordem sociológica e política” da ação coletiva.


Merece, por fim, ser comentada a pretensa diferenciação que já se propôs entre a ação civil pública e ação coletiva. Neste exato sentido, registra Mafra Leal que “a ação civil pública foi concebida inicialmente como a ação em que o Ministério Público fosse o autor no campo cível, em paralelo com a ação penal pública.” (1998, p. 187), de modo que uma mera ação civil decorrente do delito, simplesmente pelo fato de ter sido proposta pelo Parquet, seria considerada civil pública, despiciendo do fato de estar relacionada com direitos de natureza coletiva. Somente com o advento da LACP é que se passou a visualizar a ação civil pública como uma espécie de ação coletiva (MAFRA LEAL, 1998, p. 188).


6. Da legitimidade e seu controle jurisdicional


A legitimidade corresponde, segundo o clássico conceito de Alfredo Buzaid, à pertinência subjetiva da ação.


Versar sobre legitimidade, sob a estrita perspectiva processual, significa perquirir quem pode validamente figurar em um ou outro pólo da ação. Ao seu turno, diz-se ser legitimado para a causa aquele indivíduo cujo direito material figura como objeto da demanda em curso.


Tem-se, assim, no dizer de Gelson Amaro de Souza (1998, p. 50), duas formas de legitimidade, uma oriunda da própria lide (aposta, pois, ao direito material debatido) e outra que deriva diretamente do processo (denominada processual), podendo, tanto uma quanto outra, ser de ordem ativa ou passiva.


De relevante, por ora, registre-se que, quando o Codex enumera como condições ao exercício do direito de ação, a legitimidade das partes – ao lado da possibilidade jurídica do pedido e do interesse processual –, CPC art. 267, VI, refere-se, tão somente, à legitimidade ad causam, eis que a legitimação ad processum figura dentre os assim denominados pressupostos processuais de validade (LACERDA, 1990, p. 77).


No que concerne às ações coletivas, contudo, alguns desses conceitos merecem ser analisados sob outra óptica, vez que, por exemplo, nem sempre a entidade a quem a lei confere legitimidade para defender (seja mediante o instituto do direito de ação, seja mediante seu reflexo imediato e necessário, o direito de exceção) em juízo determinado direito coletivo lato sensu é, de fato, a titular daquele direito material digno de tutela. Nesta esteira, Marinoni e Arenhart (2008, p. 738) apregoam o dever de ser “pensada de forma diversa” a legitimação para a causa fundada na titularidade do direito invocado.


É que, de fato, conforme identificado por Celso Lafer (1988, p. 132), um dos traços aptos a distinguir os direitos de primeira e segunda dimensão dos de terceira – nos quais se inserem os direitos coletivos em sentido amplo – é a sua titularidade. É dizer, enquanto é “inequívoca” a titularidade dos direitos individuais e dos de caráter social, tem-se, por outro lado, grande dificuldade em determiná-la no que concerne aos direitos coletivos lato sensu, dada a sua característica marcante da transindividualidade.


Isto posto, pode-se, agora, iniciar o estudo dos legitimados por lei a defenderem os direitos coletivos em sentido amplo. Para tanto, os dispositivos legais primordiais são o artigo 82 do CDC e o artigo 5º da LACP.


Tendo em mente que ambos os diplomas legislativos dialogam entre si (art. 90 do CDC c/c art. 21 da LACP), bem assim que o rol do art. 5º da LACP teve sua redação recentemente alterada, com vistas, dentre outras medidas, a acabar com a polêmica quanto a legitimidade da Defensoria Pública para a promoção da ação por aquela lei regulamentada, pode-se eleger o ultimamente mencionado dispositivo como objeto de análise.


O que se nota, de plano, sobre a matéria é que, “no ordenamento brasileiro, a legitimação ativa às ações coletivas é atribuída ope legis”. (GRINOVER, 2002, p. 4). É, ainda, tal legitimidade “concorrente e disjuntiva, vale dizer, independe [a participação de um dos legitimados] da participação dos outros.” (MARINONI e ARENHART, 2008, p. 746).


Exatamente por estas características é que se afirma ser a ação coletiva brasileira, em certa medida, distinta da class action norte-americana, já que, naquele ordenamento, é permitido a qualquer cidadão propor a ação em nome de uma quantidade indeterminada de sujeitos, contanto que o juiz da causa considere “adequada” a representação feita.


Conforme documentam Marinoni e Arenhart, relativamente ao regime jurídico das ações de classe do direito estadunidense,


“Para esse sistema legal, a avaliação da condição de certo(s) autor(es) para representar os interesses de todo o grupo é feita pelo magistrado, caso a caso, pelo magistrado, conforme expressem efetivamente os interesses da categoria e sejam dignos de agir em nome dela em juízo.” (2008, p. 744-745).


Do exposto, nota-se que o controle da representatividade adequada é feita, casuisticamente, pelo juiz, de modo que, se considerar o representante dos demais integrantes da classe abrangida como incapaz de bem postular judicialmente pelos interesses dos demais, ter-se-á a ação coletiva como não aceita.


Não por outro motivo, proclama Antonio Gidi:


“De acordo com o direito americano, para que uma ação coletiva seja aceita, o juiz precisa estar convencido, entre outras coisas, de que o representante possa representar adequadamente os interesses do grupo em juízo. Esse é, sem dúvida, o aspecto mais importante das class actions americanas, tanto do ponto de vista teórico como prático.” (2002, p. 66).


Conforme bem notado por André Vasconcelos Roque, na actio popularis do direito romano possibilitava-se ao juiz, na ocasião de duas ou mais pessoas pretenderem, mediante a referida ação, defender o mesmo interesse, dar preferência a que “apresentasse melhores condições em termos de idoneidade e de maior interesse pessoal no litígio.” (2010, p. 106-107). Ressalta, contudo, o estudioso que a noção das class actions do direito estadunidense foi construída totalmente alheia à experiência romana, não podendo, assim, ser a actio popularis apontada como fonte inspiradora das ações de classe anglo-saxônicas.


A representatividade adequada, ademais, encontra expresso amparo legal na Regra 23 (a) (4) das FRCP, erigida como um dos quatro pré-requisitos cumulativos para que a ação coletiva seja recebida pelo juiz, sob a redação de que se deve demonstrar que o representante irá “honesta e adequadamente proteger os interesses da classe.”


A medida é encarada com louvores por Antonio Gidi, para quem:


“Através do requisito da adequação da representação, o direito americano atinge três resultados: a um só tempo minimiza o risco de colusão, incentiva uma conduta vigorosa do representante e do advogado do grupo e assegura que se traga para o processo a visão e os reais interesses dos membros do grupo. O objetivo primordial é assegurar, tanto quanto possível, que o resultado obtido com a ação coletiva não seja substancialmente diverso daquele que seria obtido em ações individuais em que os membros do grupo defendam individualmente os seus direitos.” (2002, p. 66).


Propostas semelhantes ao regime de representatividade adequada já forma feitas no direito brasileiro. Segundo o que informa Ada Pellegrini Grinover (2002, p. 5), quando da elaboração do que viria a ser a atual LACP, havia, no projeto de Lei Flávio Bierrenbach, fruto do trabalho de comissão composta por alguns dos mais graduados processualistas pátrios, expressa previsão do sistema. Porém, preferiu-se, tanto na LACP como nos demais diplomas subseqüentes “a fórmula da legitimação ope legis”.


A dúvida que persiste, sobre o tema, é a seguinte: inobstante tenha-se o legislador pátrio adotado a fórmula derivada da lei em atribuir a legitimidade para propositura da ação coletiva, seria possível, ainda assim, ao juiz controlar a adequação daqueles que representam a coletividade titular dos direitos ali suscitados?


Segundo sustenta Ada Pellegrini Grinover, “o sistema brasileiro, embora não o afirme expressamente, não é avesso ao controle da ‘representatividade adequada’ pelo juiz, em cada caso concreto.” (2002, p. 5).


Aponta a referida doutrinadora (GRINOVER, 2002, p. 6) como evidências de que não existe incompatibilidade entre a medida de apreciação judicial e o ordenamento pátrio, a dispensa do requisito de pré-constituição para as a legitimação das associações de defesa do consumidor nos casos de manifesto interesse social, dimensão ou característica do dano, ou, ainda, pela relevância do bem jurídico que se pretende proteger (artigo 82, §1º, CDC). Nesse caso, como se desponta ao leitor, o juiz terá critérios a, verdadeiramente, incluir no rol de legitimados para a propositura da ação coletiva que vise à defesa dos direitos individuais homogêneos uma pessoa não contemplada originariamente como tal, ainda que o impedimento seja apenas de ordem temporária. Para tal inclusão, note-se, valer-se-á o magistrado de critérios extremamente casuísticos, tais como o interesse social manifestado na hipótese lhe submetida. É mais do que evidente a situação de controle, ainda que implicitamente, da adequada representatividade feita no pólo ativo da demanda.


Leciona Ada Grinover, outrossim, como situação de análise judicial da idônea representação dos sujeitos de direito o caso de militância do Ministério Público na defesa dos direitos individuais homogêneos, admitidos pela jurisprudência pátria “somente na hipótese de o juiz reconhecer e relevância social dos referidos interesses.” (2002, p. 6).


Explique-se esse ponto com maior zelo: ao ditar as funções do Ministério Público, em seu art. 129, a CF alude aos interesses difusos e coletivos (inciso III), sem nada dizer, porém, sobre os interesses individuais homogêneos. Mesmo assim, doutrina e jurisprudência têm reconhecido a possibilidade de o órgão ministerial também atuar na tutela desses interesses.


Neste diapasão, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2008, p. 745) ensinam ser perfeitamente possível ao Parquet a defesa de tais interesses, já que se trata de atribuição determinada por lei específica (art. 82, I do CDC) em perfeita consonância com as “outras funções” a que se refere o art. 129, IX da CF, assim como compatível com a ordem jurídica (art. 127, caput, CF), da qual o Ministério Público é guardião. A única ressalva a ser feita é que, em sendo individuais homogêneos os interesses protegidos pelo Parquet, deverão os mesmos se caracterizar, ainda, como sociais ou individuais indisponíveis (art. 127, caput, CF).


Complementando a idéia, Ada Grinover ensina que “sendo os interesses individuais homogêneos direitos individuais indisponíveis, somente quando sua defesa for de interesse social é que o juiz poderá reconhecer a legitimação do Ministério Público.” (2002, p. 6, nota 15).


Isto posto, ninguém poderia duvidar de que a apreciação sobre quando se tem ou não a presença de interesse social é algo a ser feito pela prudência do magistrado nas situações a ele submetidas, o que implica em controle jurisdicional de legitimação, ainda que, in casu, o órgão ministerial encontre guarida no inciso I do caput do art. 82 do CDC.


Poder-se-ia registrar, ainda, como legitimada para a ação coletiva protetora dos interesses individuais homogêneos a Defensoria Pública. Ainda que não se encontre sua referência dentre os incisos do art. 82 do CDC, a possibilidade decorre do art. 5º, II da LACP, com redação dada pela Lei n. 11.448/07, que, conforme já se mencionou nessa pesquisa, destinou-se a acabar com discussão quanto a legitimação do órgão para a propositura da modalidade de ação em comento.


Destarte, confrontando-se o dispositivo supra com finalidade primordial da Defensoria Pública, insurge-se estar ela autorizada a propor ação coletiva, desde que para a defesa dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos das pessoas necessitadas (CF art. 134 c/c art. 5º, LXXIV e art. 5º, II da Lei 7.347/85). Sobre o tema, advertem Marinoni e Arenhart:


“Não será necessário que a ação coletiva se volte à tutela exclusiva dos necessitados, mas sim que a sua solução repercuta diretamente na esfera jurídica dos necessitados, ainda que também possa operar efeitos perante outros sujeitos.” (2008, p. 746).


O juízo de valoração acerca de a medida repercutir ou não na “esfera jurídica dos necessitados” também há de ser feito, de modo casuístico, pelo magistrado.


A representatividade adequada, se necessária para aferir o pólo ativo da demanda, parece ainda mais preciso no que concerne à ação coletiva passiva.


Antes de qualquer coisa, porém, é necessário que se tome por admissível a possibilidade de a classe figurar como ré na ação. Assim, por exemplo, advogando pela possibilidade da ação coletiva passiva está Ada Grinover (2002, p. 7), apontando, como fundamentos legais de sua assertiva, o art. 5º, §2º da LACP que faculta ao Poder Público a habilitação como litisconsorte de qualquer das partes. Ora, ao falar em qualquer das partes, parece evidente que tanto pode a ação civil pública ser intentada por ou em face de uma coletividade.


Kazuo Watanabe, por sua vez, também admite a ação coletiva passiva, trazendo, dentre inúmeros exemplos, o caso de ser ré “uma associação de moradores do bairro que decidissem bloquear o acesso de automóveis a determinadas ruas.” (apud GRINOVER, 2002, p. 7).


7. Da coisa julgada nas ações coletivas


Para se cogitar do alcance da coisa julgada no que diz respeito às ações coletivas, é necessário, em princípio, que tenha em mente o que se concebe por coisa julgada.


Assim já foi enfrentado o tema pelos presentes autores:


“Com efeito, verifica-se não ser unânime a doutrina no que concerne à definição de coisa julgada, decorrendo tal cizânia da própria mística que gravita em torno da fixação de sua exata natureza, havendo aqueles que a concebem como um efeito da decisão (SILVA, 2003, p. 81), outros que a apontam como uma qualidade atribuída aos efeitos da decisão (DINAMARCO, 2003, p. 303) e, finalmente, quem a enxergue como uma qualidade do conteúdo da decisão (MOREIRA, 1984, p. 109).” (TOLOMEI e SOUZA, 2010, p. 280).


Ainda, fundamenta-se a coisa julgada na própria cláusula constitucional do Estado Democrático de Direito, como corolário que é da segurança jurídica. Neste sentido, Nelson Nery Júnior ressalta que “a doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada como elemento de existência do estado democrático de direito.” (2009, p. 60).


Pois bem. Passando-se ao tema da coisa julgada em questão de ações coletivas, a grande dificuldade que se encontra seria a pacificação entre o comando da sentença, inclusive acobertado pela imutabilidade de seu conteúdo, atingir aquele que não “participou” do processo coletivo e a cláusula constitucional do devido processo (CF, art. 5º, LIV).


Isto porque, conforme regra expressa do CPC (art. 472), que estatui os limites subjetivos da coisa julgada, a sentença apenas fará coisa julgada às partes para as quais foi dada, sendo-lhe defeso beneficiar ou prejudicar terceiros, a não ser pelos assim chamados efeitos naturais da sentença.


A coisa julgada para ações coletivas é disciplinada, legalmente, pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública.


Sendo voltada a ação coletiva para a defesa de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, a coisa julgada terá efeitos erga omnes, salvo se o pedido houver sido rejeitado por insuficiência de provas, caso em que idêntica ação poderá ser proposta com fundamento em novas provas (semelhante ao desarquivamento de inquérito policial), vale dizer, provas substancialmente novas.


Estando mirada, ao revés, para a tutela de direitos individuais homogêneos, a coisa julgada será secundum eventum litis, ou seja, se o provimento conseguido for favorável a parte autora, a coisa julgada se estenderá a todos os demais membros da categoria. De outra banda, quando a pretensão for rejeitada pelo Poder Judiciário, a res judicata não atingirá aquelas pessoas, restando-lhes, ainda, a possibilidade de manejar ações individuais para a defesa de seus direitos.


Sobre esta sistemática, observa Ada Pellegrini Grinover que “o legislador brasileiro serviu-se de técnicas que privilegiam os membros da classe, defendendo-os, no fundo, contra o perigo da inadequação da representação.” (2002, p. 8).


Para tratar do tema, Márcio Flávio Mafra Leal propõe, de início, uma divisão para os dois tipos de ações coletivas por ele identificados, quais sejam: ação coletiva para a defesa de direito difusos e ação coletivas para a defesa de direito individuais coletivamente tratados.


Segundo o autor, pois, o exame da coisa julgada nas ações coletivas está intrinsecamente ligado às próprias características dos direitos que se persegue em juízo. É dizer, no caso dos direitos difusos, primeiramente, por força de suas notas de transindividualidade, pertencendo a uma comunidade de pessoas, o efeito erga omnes da coisa julgada independe de comando legal apontando neste horizonte.


Em suas palavras, elucida o autor:


“Exemplificando, nas ACDDs [ações coletivas para a defesa de direitos difusos], quando um juiz determina a interrupção de uma publicidade enganosa, da emissão de um poluente ou a recuperação de uma área histórica, a decisão que atender ao direito material formará uma coisa julgada que beneficiará toda a comunidade, sem que a norma processual necessariamente diga que esta coisa julgada tenha de ser erga omnes.” (1998, p. 44).


Do exposto, urge mencionar que o fato de a coisa julgada ser operada erga omnes em sentença que decida sobre direitos difusos deriva do próprio direito material. O efeito de atingir mais de uma pessoa (rectius, um número indeterminado de pessoas) é algo extremamente natural em se tratando de direitos difusos, posto que seus titulares (uma comunidade) são, para empregar os dizeres de Gidi, aqui já transcritos, um ente “amorfo, fluido e inflexível.” (1995, p. 26).


De outro lado, no que tange aos direitos individuais coletivamente tratados (coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos), a coisa julgada, para que atinja quem não foi “parte” no processo, depende de assim estar regulamentada por lei, pouco importando a rotulação legal que se deu a tais direitos (MAFRA LEAL, 1998, 196).


Passando à análise da experiência norte-americana, observa Cruz e Tucci (1990, p. 24) que o primordial, segundo a jurisprudência estadunidense, para que não se fira o devido processo é cientificar, na medida do possível, todos os membros da classe cujos direitos são debatidos em juízo.


Neste exato sentido, ainda, se encontra a Regra 23 (c) 2 das FRCP, que cuida da notificação (notice) dos membros da classe. Em especial, a Regra 23 (c) 2 (B) veicula verdadeira cláusula aberta acerca da notificação dos membros da classe, na medida em que possibilita a análise casuística da necessidade de serem todos aqueles cientificados da ação coletiva posta em curso. Melhor explicando, ao estatuir que a Corte deve “cuidar do direcionamento aos membros da classe da notificação que for praticável sob as circunstâncias” (Regra 23 (c) 2 (B) das FRCP), deixa-se ao alvedrio e prudência do magistrado o aferimento da possibilidade ou não de ser exigida a ciência de todos os componentes da classe litigante.


No caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin, julgado aos 28 de maio de 1974, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que, pela redação expressa da Regra 23 (c) 2 (B) das FRCP, não permanecem dúvidas quanto à necessidade de notificação pessoal de todos os membros da classe litigante quando estes puderem ser identificados através de um razoável esforço (JUSTITIA, s.d., s.p.). No aludido caso, inclusive, o número de membros da classe de litigantes chegava à cerca de dois milhões e duzentos e cinqüenta mil pessoas, o que não isentou, contudo, segundo o juízo da Alta Corte Estadunidense, da necessidade da notificação pessoal, vez que “os nomes e endereços eram facilmente determináveis” (JUSTITIA, s.d., s.p.).


Esse esforço, porém, não fora considerado razoável no caso Booth v. General Dynamics Corp., julgado em janeiro de 1967 pela Corte Distrital do Norte de Illinois, situação na qual entendeu-se que a mera notificação por edital seria “suficiente para satisfazer as exigências do devido processo.” (apud TUCCI, 1990, p. 25).


Como se vê, a viabilidade da exigência de notificação, tal qual, aliás, se depreende do próprio texto da Regra 23, há de ser apreciada em cada situação específica, segundo critérios de calcados na prudência do julgador, aqui ganhando fôlego os postulados normativos aplicativos, dentre os quais o da proporcionalidade, com suas três etapas, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.


De acordo, ainda, com Cruz e Tucci (1990, p. 27), a formação da coisa julgada nas class actions estadunidenses, outrossim, depende da conjugação de dois importantes fatores comentados ao longo deste trabalho. São eles a representatividade adequada e, quando assim for razoável, a notificação de todos os membros da classe litigante.


Em suas palavras, leciona o autor:


“Assim, considerada adequada a representação da classe e tendo os seus respectivos integrantes recebido uma fair notice do processo, a coisa julgada vale para todos eles; caso contrário, vislumbrando-se possível ofensa às garantias do due process of law, o efeito declaratório do decisum se restringe apenas aos litigantes que participaram do contraditório.” (1990, p. 27).


Por fim, registra Cruz e Tucci (1990, p. 28) que, nas ações de classe indenizatórias, previstas na Regra 23 (b) 3 das FRCP, é possível ao indivíduo fazer o uso de seu direito de opt out, isto é, expressamente declarar que deseja sua exclusão da classe litigante a fim de que possa demandar individualmente.


Trata-se de situação, transportada ao direito brasileiro, das ações coletivas destinadas, propriamente, à defesa dos direitos individuais homogêneos, nas quais a via composta é utilizada com vistas, sobretudo, ao parâmetro de economia processual. Ora, se genuinamente individuais são os direitos perseguidos, motivos não existiriam para se obstar a postulação a título individual, daí porque se permite o direito de exclusão da classe.


Conclusão


Ante tudo o que se expôs ao longo deste trabalho, pode-se concluir que as ditas ações coletivas são, inegavelmente, instrumentos concebidos pelo legislador visando a assegurar novos e também velhos direitos materiais; estes, os direitos individuais, existentes, notadamente, desde o período liberal clássico e, aqueles, os modernos direitos, próprios de uma sociedade de massas, mas heterogênea entre si.


É possível afirmar, ainda, que, como a postulação a título coletivo põe em situação um único indivíduo para levar a cabo a pretensão de uma variedade de pessoas (comunidade ou coletividade, conforme a situação), têm os direitos materiais estar representados da maneira mais justa e adequada possível, sendo dever do magistrado zelar para que possíveis distorções nos interesses em jogo sejam sanadas.


Embora os direitos difusos e os direitos coletivos em sentido estrito sejam de titularidade, respectivamente, de uma comunidade e uma coletividade, certo é que ainda se tem muita dificuldade em assimilar que estas figuras compreendem um número expressivo de pessoas individuais, daí porque possam os efeitos da decisão ali emanada atingi-las, em algumas situações sem que sequer tenham “participado” do processo coletivo.


Neste sentido é que se aufere razão à Girolamo Monteleone, quando diz não ser a coisa julgada ultra partes qualquer exceção à noção clássica de limite subjetivo da res judicata, eis que “a decisão proferida na class action (…) é prolatada em relação à categoria de pessoas, todas representadas perante o juiz por aqueles que tomaram a iniciativa da ação.” (apud TUCCI, 1990, p. 27).


Parece, por tais motivos, plenamente válida a disciplina trazida pelo Código de Defesa do Consumidor no que concerne à coisa julgada nas ações coletivas, pendendo a balança do Direito para o lado da classe que se faz representar em juízo, já que, em havendo falha na medida – o que pode ser agravado ante a ausência de norma expressa que confira tal poder ao juiz – poderiam, ainda, os membros da classe deduzirem suas pretensões individualmente, segundo os preceitos clássicos do processo civil, o que, por outro lado, porém, colocaria em posição de inegável inutilidade todos os esforços anteriormente envidados na demanda conjunta.


 


Referências bibliográficas:

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Notas:

[1] Com efeito, verifica-se não ser unânime a doutrina no que concerne à definição de coisa julgada, decorrendo tal cizânia da própria mística que gravita em torno da fixação de sua exata natureza.

[2] Sobre o tema, vide, ainda, Marçal Justen Filho, para quem que “a atividade administrativa do Estado Democrático de Direito subordina-se, então, a um critério fundamental que é anterior á supremacia do interesse público. Trata-se da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais.” (2005, p. 40).

[3] Advogando pelo acerto no sistema de integração legal, Nelson Nery Jr. pontua: “os sistemas processuais do CDC e da LACP são interligados, sendo aplicável indistintamente um ao outro reciprocamente, conforme determinam os arts. 90 do CDC e 21 da LACP, este último introduzido pelo art. 117 do CDC. Há, por assim dizer, perfeita interação entre os dois sistemas, que se completam e podem ser aplicados às ações que versem sobre direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais, observado o princípio da especialidade das ações sobre relações de consumo, às quais se aplica o Título III do CDC e só subsidiariamente a LACP.” (1991, p. 24 e 25).

[4] Muito embora não seja incomum encontrar na doutrina quem advogue serem os direitos coletivos lato sensu, com exceção dos individuais homogêneos, aqueles em que sua titularidade é indeterminada, certo parece o posicionamento sustentado por Antonio Gidi, segundo quem: “É imperativo observar que, ao contrário do que se costuma afirmar, não são vários nem indeterminados, os titulares (sujeitos de direito) dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Há apenas um único titular – e muito bem determinado: uma comunidade no caso dos direitos difusos, uma coletividade no caso dos direitos coletivos ou um conjunto de vítimas indivisivelmente considerado no caso dos direitos individuais homogêneos.” (1995, p. 23).

[5] Em sentido diverso, anota Mafra Leal, cujo pensamento será posteriormente pormenorizado, que os direitos coletivos são “interesses ou direitos individuais que ganham o caráter de indivisibilidade e transindividualidade quando veiculados mediante ações coletivas, pelo artifício da extensão subjetiva da coisa julgada, quando, aí então, o resultado tem de ser uniforme para toda a classe invariavelmente.” (1998, p. 197).

[6] Especifica Ada Pellegrini Grinover: “Na verdade, as ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos não se limitam, no ordenamento brasileiro, à ação de responsabilidade civil por danos coletivamente causados, sendo sua aplicação mais ampla do que a contida no Capítulo II do Título III do CDC. Mas é neste capítulo que se encontra a regulamentação das class actions for damages, ou seja, das ações civis de responsabilidade pelos danos sofridos por uma coletividade de indivíduos.” (2001, p. 797).

[7] Merece referência, entretanto, a advertência feita por André Vasconcelos Roque (2010, p. 101-146) acerca do descaso da doutrina norte-americana no que concerne às raízes históricas das class actions. Com efeito, em louvável estudo sobre o tema, o mencionado estudioso destaca que a idéia de ação de proporções não meramente individuais já existia em Roma, através das actiones popularis, embora não se possa dizer ter sido esta figura usada como fonte de inspiração para a construção anglo-saxônica.

[8] Esses grupos são os detentores, segundo Didier Jr. e Zaneti Jr., dos “interesses e direitos ‘marginalizados’, já que muitas vezes estes estão representados em número infinitamente superior aos interesses ditos ‘majoritários’ da sociedade, embora não tenham voz, nem vez.” (2010, p. 35).

[9] A idéia pode ser complementada pela lição de Cássio Scarpinella Bueno, ao dizer: “enquanto a ‘legitimidade das partes’ tem, como reflexo exterior ao plano do processo, de saber a quem pertence o bem da vida deduzido em juízo, a ‘legitimidade para o processo’ volta-se, precipuamente, a saber quem pode exercer os atos processuais no plano do processo, ‘dentro’ do processo, observando, de resto, o que o próprio direito material tem a dizer a este respeito (arts. 7º e 8º).” (2007, p. 357-358).

[10] Sobre este postulado normativo aplicativo, leciona Humberto Ávila: “separar o dever de adequação do princípio que deve ser adequadamente promovido é separar a sombra do objeto que ela projeta. O mesmo vale para os deveres de necessidade e proporcionalidade.” (2008, p. 52).


Informações Sobre os Autores

Fernando Soares Tolomei

Estudante de Direito.

Gelson Amaro de Souza

Mestre em Direito pela ITE de Bauru e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor nas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente. Procurador Aposentado do Estado de São Paulo. Advogado.


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