Desenvolvimento e sustentabilidade como fatores delimitadores da discricionariedade do Estado nos atos administrativos que repercutem sobre a atividade econômica

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INTRODUÇÃO


A atuação do Estado na implementação das condições idôneas à viabilização do desenvolvimento sustentável decorrentes da atividade econômica compreende desde o fomento e a polícia administrativa até a execução indireta dos serviços e obras destinados à satisfação das necessidades coletivas.


Em qualquer das modalidades de atuação do Estado na busca do desenvolvimento sustentável, somente duas opções se lhe disponibilizam: ora seus agentes atuarão no exercício de conduta explícita e detalhadamente predefinida pela norma extraída da disposição constitucional, legal ou regulamentar, ora esses agentes deverão optar por uma dentre duas ou mais soluções. Estarão, portanto, neste segundo caso, diante da discricionariedade, fenômeno que, antes de representar uma liberdade para o administrador, configura um pesado encargo e, não raro, verdadeiro impasse.


É muito mais fácil para o administrador fazer a opção que a norma exige, pois será difícil responsabilizá-lo por ter cumprido o Direito aplicável e não ter atingido os objetivos que, técnica, econômica ou socialmente seriam mais desejáveis.


O que na prática sucede, entretanto, é que o agente da Administração, não intencionalmente, mas por desconhecimento, pois nem sempre tem formação jurídica, retrocede aos tempos do critério legalista de conceituação da administração, e sequer percebe que a aplicação literal – isolada – do comando legal não garante a juridicidade de sua atuação. Assim ocorre porque desenvolvimento e sustentabilidade são dois valores de básica e inafastável relevância na Constituição. Sem eles, muitos direitos fundamentais seriam reduzidos a mero discurso.


É, ademais, na atuação discricionária que o Estado obtém os resultados mais adequados à necessidade cujo atendimento é de interesse público, como adiante demonstrar-se-á.


No exercício do fomento à atividade econômica, o administrador se vê inúmeras vezes diante de opções reciprocamente excludentes. A norma não lhe indica a melhor opção, ele deverá optar por aquela que melhor assegurar o desenvolvimento sustentável da atividade e de seus efeitos sobre a sociedade.


Igualmente ao exercer seu poder de polícia sobre atividades econômicas, o administrador é instado a escolher o momento, a forma, e o conteúdo de sua atuação, a fim de não comprometer ou inviabilizar a trajetória da iniciativa privada em direção ao desenvolvimento sustentável.


Não são raras as licitações que têm por objeto a contratação de obras ou serviços com os quais a população jamais se preocupou. Objetos contratuais que podem até ser úteis, porém nada acrescentam, não colaboram na busca do desenvolvimento ou, às vezes até levam a este, mas não em bases sustentáveis. A origem do problema muitas vezes não está na instneção do administrador, mas no seu despreparo. Todo administrador deveria saber que desenvolvimento e sustentabilidade são dois princípios e como tais, normas, ou seja, vinculam todas as suas condutas no exercício da função pública.


O perfeito entendimento do que seja discricionariedade é fundamental pra o presente estudo. A fim, porém, de evitar longas considerações sobre a discricionariedade, vez que o objetivo aqui é delineá-la em função do desenvolvimento sustentável a ser alcançado, optou-se por conjugar as considerações necessárias a esse aprofundamento com aquelas diretamente pertinentes ao escopo nuclear deste trabalho: Estado, atividade econômica e desenvolvimento sustentável.


I.  A DIMENSÃO DA DISCRICIONARIEDADE NA PRÁTICA DO ATO


Na norma, enquanto ainda em tese, na etapa em que é extraída de sua fonte, a discricionariedade existe apenas potencialmente. No momento de sua aplicação ao caso concreto, ela será muito menor do que parecia ser na norma e, muitas vezes, pode mesmo desaparecer totalmente.


Diante do caso concreto, as peculiaridades, em especial quando a situação envolve atividade econômica, o desenvolvimento e a sustentablidade necessariamente vincularão a atuação do administrador. O contrário seria absolutamente inadmissível, pois a criteriosa execução das atividades econômicas é a principal impulsionadora do desenvolvimento e, se for conduzida criteriosamente, será também a responsável direta pela sustentabilidade. Se, no entanto, o Estado não for diligente no cumprimento de seu papel definido constitucionalmente, será infrutífero todo esforço que vier a ser levado a efeito pela sociedade e principalmnete pelos executores de atividades econômicas.


A visualização da discricionariedade sob os enfoques do ato administrativo e da norma, isoladamente, embora necessária como etapa preliminar, é insuficiente para o total conhecimento e para a exata compreensão do objeto perquirido.  A discricionariedade não tem existência autônoma, nem na norma, nem na situação concreta configuradora do motivo fático do ato administrativo integrante da operação de fomento, execução indireta de atividades pelo Estado ou polícia administrativa.


Sendo a discricionariedade aspecto caracterizador do exercício da competência, é no exercício  desta que efetivamente se completa e se configura o fenômeno.  É este o momento propício para se perscrutar suas peculiaridades mais marcantes, e em especial o seu caráter dinâmico que só então se opera, pois o estudo da discricionariedade relativamente ao suporte fático e aos elementos da norma incidem sobre o seu aspecto estático.


Sobre a série de opções que remanescem ao administrador, torna-se imperioso um estudo mais atento, pois é na sua identificação e delimitação que o agente vai deparar-se com o segundo momento crítico do percurso rumo à satisfação da finalidade de todo o processo.  


O primeiro impasse surge (na atividade discricionária como na vinculada) quando, diante da ocorrência do suporte fático (situação concreta), o administrador deverá buscar a norma apropriada, conjugar ambos (suporte fático e norma) analisando criteriosamente esta combinação e extrair as conclusões cabíveis. É esta percepção da ocorrência do fato, a busca da norma pertinente, a conjugação destes dois elementos, a sua análise e as conclusões, que devem necessariamente operar-se de forma essencialmente objetiva. Optando, portanto, pelo método subjetivo, ignorando ou desprezando o objetivo último de toda atuação do Estado – o desenvolvimento sustentável – o fator vinculante da configuração do ato administrativo, o agente já terá perecido diante do primeiro impasse.  Se porém, ele superar a contento este primeiro teste, deverá ultrapassar o segundo:  identificar o complexo de opções admissíveis pela norma. Este quadro de opções apresenta algumas propriedades a serem oportunamente analisadas no que concerne às suas amplitudes máxima (a partir da qual começa a ilegalidade)  e a mínima (imediatamente abaixo da qual situa-se o domínio da vinculação).


A norma defere ao agente da Administração um poder para agir discricionariamente.  Poderá ele, todavia, agir discricionariamente com maior ou menor liberdade de opção, conforme as peculiaridades do pressuposto fático, como também, poderá ele deparar-se com uma única, insubstituível e ineliminável solução.   A discricionariedade não está, portanto, na norma, mas na conjugação desta com a situação concreta a ele subsumida. Na norma chamada discricionária há apenas o gene da discricionariedade, o qual se manifestará somente se convergirem outras condições para tanto, condições estas, representadas pelas peculiaridades juridicamente relevantes de cada necessidade concreta a ser satisfeita pela Administração.


II. A DISCRICIONARIEDADE E A FONTE ESCRITA


O que se pode seguramente concluir das observações levadas a efeito sob o item anterior é que a expressão norma discricionária é falha, sendo a ela preferível a expressão norma potencialmente discricionária (dependente do grau de relevância  do pressuposto fático em relação à finalidade).


Contudo, uma incômoda questão ainda remanesce: como se pode identificar o grau máximo de relevância do pressuposto fático em relação à finalidade?


A resposta, todavia, não é impossível.  Mesmo considerando-se o caso da norma na qual a finalidade não está explicitamente definida, quando então recorrer-se-á aos princípios do regime jurídico-administrativo, com o auxílio dos quais identificar-se-á, na pior das hipóteses a finalidade geral comum a todo ato (a persecução do interesse público), é determinável o grau máximo de relevância do fato em relação a esta finalidade:  este  grau máximo terá sido seguramente alcançado quando o não atendimento da situação pelo agente da Administração configurar inquestionável inobservância da finalidade. Oportuno lembrar que finalidade do ato administrativo não somente aquele objetivo definido em tese pelo dispositivo legal, mas a conjugação deste com as exigências do motivo fático do mesmo ato. Quando o motivo está relacionado com atividades econômicas, o Estado não pode deixar que apenas a iniciativa privada envide seus esforços sem fazer ele a sua parte. Se o Estado vai contratar empresa privada para execução indireta de determinado empreendimento, a preocupação com o desenvolvimento sustentável deve se fazer presente – e vinculante – desde o momento (anterior à própria elaboração do edital de licitação) em que o motivo de fato (necessidade cujo atendimento compete ao Estado) deve ser analisado. Assim, já nos estudos de avaliação prévia da viabilidade econômico-financeira, ambiental, social ou administrativa, o administrador deve antever os fatores que viabilizarão a contribuição do empreendimento para o desenvolvimento sustentável, e deve evitar os que o comprometerão ou inviabilizarão.


Dentre as diversas dificuldades que o administrador nessa fase enfrenta, destaca-se a relativa à interpretação do dispositivo que contém a descrição do motivo legal do ato a ser praticado. Nessa primeira etapa, correspondente a uma simples interpretação ainda apenas literal, pressuposto, portanto, da interpretação jurídica que deverá operar-se daí em diante, o administrador defronta-se com os impasses provocados pelos termos vagos, imprecisos ou plurissignificativos do texto legal. Porém, por mais plurissignificativo, amplo ou vago, que possa ser o vocábulo representativo da finalidade, sempre haverá uma situação na qual será indubitável que a finalidade não foi atendida.


A linguagem é um meio utilizado para a manifestação e transmissão de idéias, é um sistema de símbolos que, convencionalmente tem um ou mais significados vulgares e/ou técnicos.  O sentido de um vocábulo não lhe é, portanto, imanente; ele é atribuído em razão do consenso geral não contestado.  Este complexo de fatores vem impor dificuldade ao agente quando de sua atuação objetiva, no estágio investigatório preliminar ao exercício efetivo da discricionariedade.


Todas as categorias de vocábulos, independentemente de sua classificação relativamente ao sentido, são passíveis de interpretaçãoE somente após a interpretação e nunca antes, é que o agente estará apto a saber com segurança se lhe é ou não deferida alguma margem de liberdade.


Já se demonstrou que não existe norma alguma que apresente peculiaridades tais que se possa afirmar que sempre, invariavelmente e necessariamente, resultará em atuação discricionária.


Não existe “norma discricionária”, existe “norma potencialmente discricionária” dependendo de sua combinação com os aspectos característicos da situação fática.


Por análogas razões, logicamente também não existe nenhuma categoria de palavras cuja simples presença em determinado texto normativo possa ser suficiente para condenar a norma a ser, fatalmente ou deterministamente, discricionária.   O que existem são determinados vocábulos cuja presença em texto normativo apenas aumenta a probabilidade de derivar-se daí uma norma potencialmente discricionária.   E, sem dúvida, esta probabilidade é maior quando há no texto vocábulos de sentido vago indeterminável, menor quanto aos de sentido vago determinável, diminuindo bastante em relação aos plurissignificativos impróprios, e muito mais quanto aos próprios, continuando a decrescer progressivamente desde os contextuais, passando pelos unissignificativos relativos, até atingir os unissignificativos absolutos quando é praticamente nula.


Todos estes vocábulos são, enfim, interpretáveis integral ou parcialmente. Não existe vocábulo cujo sentido seja absolutamente discutível e incompreensível.


Mesmo no caso de vocábulos de significado vago indeterminável, os quais não têm um limite definido, nem sequer definível em relação ao seu antônimo, não se pode afirmar que a sua presença no texto normativo teria o poder de transformar a norma em absolutamente discricionária, pois ainda que ao núcleo da hipótese normativa corresponda um vocábulo de tal categoria, a regra, quando conjugada com determinadas situações concretas, será vinculante, o que impõe necessariamente a conclusão, aliás inquestionável, de que não existe norma que, em si isoladamente considerada, seja incondicionalmente discricionária. 


Cada elemento da norma, assim como as suas partículas e as palavras que indicam um e outras, pode ser isolado unicamente para fins de análise, mas, sozinhos, nada representam, pois mesmo o seu significado isolado depende do contexto. E a norma integrada por tais elementos terá conseqüências diferentes de acordo com cada situação concreta. O conhecimento desta particularidade é de fundamental importância no estágio estático da atuação do agente.   Pois qualquer falha nesta fase, compromete todo o percurso em direção do satisfatório atendimento da finalidade.  E o erro mais freqüentemente cometido neste estágio consiste no fato de comodamente o agente inferir de modo sumário que, havendo, no núcleo de hipótese normativa, palavra de significado vago indeterminado, então fatalmente haveria discricionariedade.   Esta conclusão é absolutamente falsa.


O contexto do próprio diploma normativo em que se insere o texto a interpretar fornece elementos valiosos para a compreensão de qualquer termo que, à primeira leitura, pareceu plurissiginificativo, impreciso ou fluido. Esse recurso ao contexto propricia a interpetação contextual, por não poucos considerada, impropriamente, como sistemática. Não apenas o contexto, mas também, e principalmente, o sistema que a Ciência Jurídica convencionou denominar Direito, fornece elementos absolutamente inafastáveis para a interpretação jurídica; tratar-se-á, nessa etapa, da interpretação sistemática.


Na interpretação sistemática, o administrador não poderá desprezar nenhum dos fatores fornecidos pelo sistema, sob pena de ilegalidade. Dentre esses fatores, sobressai, sem dúvida soberanamente, o desenvolvimento sustentável.


III.  A DISCRICIONARIEDADE NA INTEGRAÇÃO DA NORMA


No estágio de execução do ato administrativo, o agente, já então conhecendo objetivamente a norma e o pressuposto fático, e já tendo procedido ao processo de síntese de suas conclusões, está apto a por em funcionamento este “aparelho”.   É este o momento em que ele dará início à execução do ato.   Antes disto, não há que se falar ainda em ato, não há até este momento atuação dinâmica, mas meramente passiva, objetiva, convergente do mundo da realidade para a mente do administrador, pois o que se verifica durante o estágio perquisitivo é uma recepção pelo agente, de algo que lhe é exterior.  E para isto, ele só pode agir objetivamente, vez que não o fazendo, jamais conhecerá a realidade absoluta da norma e do fato, os quais, além lhe serem extrínsecos, não foram sequer por ele provocados, nem poderiam por ele terem sido evitados, por uma questão, aliá, não apenas de pura lógica, como também de moralidade administrativa.


No estágio de execução, há atuação dinâmica e criativa do agente.  Ele não mais cinge a sua atividade à simples captação de algo que lhe é externo.   Ele já colheu a matéria prima (norma e suporte fático), já a analisou, já perscrutou minuciosamente as particularidades inerentes à combinação destas duas substâncias primárias, elementares, essenciais. Ele está pronto para elaborar o produto final, devendo respeitar rigorosamente as propriedades da matéria, sob pena de provocar uma “explosão”, competindo-lhe, ademais, criar um produto perfeito (elaborado com toda a perfeição humanamente possível) mediante critérios, obviamente, subjetivos, pois seria um absoluto despropósito, totalmente desprovido de qualquer congruência lógica, afirmar-se que alguém pode “criar” algo objetivamente.


No estágio de execução, não há convergência de realidades exteriores para a mente do administrador, não há simples captação objetiva, num mero conhecimento passivo.   Há nesta fase, reversamente, uma produção subjetiva, uma criação de bem jurídico novo não preexistente, cujas características devem ser congruentes com as condições encerradas na hipótese da norma, com o resultado a que o comando normativo limita (com maior ou menor liberdade) a atuação do agente, e com a finalidade, devendo ainda ser idôneo a satisfazer a necessidade resultante da situação concreta.


O agente administrativo deve preliminarmente analisar com critério e objetividade a norma e o fato, verificar se são ambos congruentes e combináveis, filtrá-los (e aqui também, só pode filtrar “objetivamente” o que efetivamente existe e nunca o que ele crê que existe) e, somente após este processo terá liberdade (sempre limitada) discricionária (subjetiva,  pois) para optar pelo volume e proporção dos aditivos e pelo processo mais idôneo e atingir o fim.


A hipótese da norma descreve teoricamente um fato que verificado concretamente, exigirá a atenção do agente.  Este examinará, fato e hipótese, avaliará o comando e a finalidade. Se da conjugação deste quadro todo, resultar uma ordem normativa vinculante, ele deve executar o ato.   Se resultar um mandamento discricionário terá, ele liberdade para executar ou não e, executando-o, deverá verificar se o comando normativo é discricionário ou vinculado com relação à maneira de execução, devendo, conseqüentemente, fazê-lo discricionária ou vinculadamente, conforme o caso.


O comando, como se vê, não se restringe a uma ordem una e indivisível.   Do mandamento normativo, é possível obter-se uma obrigação (quando há vinculação) ou faculdade (quando há discricionariedade) de fazer, de fazer em determinado momento por meio de um certo instrumento, em dado local, em determinada quantidade, com certa intensidade etc.  O comando normativo é, por conseguinte, observável, analisável sob diversos enfoques ou aspectos.   O exercício do ato, a seu turno, que deve corresponder ao mandamento da norma, tanto no caso de vinculação como no de discricionariedade, é igualmente analisável sob idênticos aspectos e, mais que isto, é divisível em tantas partes quantos forem os enfoques observáveis.   Deste quadro resulta que, no exercício do fenômeno discricionário, a execução não precisa necessariamente ser discricionária em todos os aspectos, e comumente pode sê-lo em um ou alguns e não nos demais.


O agente da Administração obriga-se a indefectivelmente, no estágio de execução, conhecer a existência de tais aspectos e a natureza (vinculante ou discricionária) de cada qual, sob pena de ilegalidade por infração ao mandamento da norma.


Dois aspectos fundamentais apresenta, o comando normativo:  um nuclear (ou substancial) e outro adverbial (ou circunstancial).   O primeiro concerne ao agir ou não agir.   O segundo, à maneira de executar o ato.   Assim, o segundo pode, a seu turno, assumir uma diversidade de aspectos secundários.


Necessário, uma vez ainda, reiterar que, em um mesmo ato, nada há a impedir que o comando seja discricionário em relação a um ou alguns dos seus aspectos e vinculado quanto ao outro, ou aos demais.   Esta conclusão é de fundamental importância prática, pois comumente o administrador imagina (e, não raro, até pretende) que, sendo, a hipótese, discricionária, está absolutamente livre para executar ou não o ato e, optando pela execução, pensa (e, às vezes quer) ser livre para escolher a seu exclusivo critério o tempo, o lugar, o meio, etc.


Formulando-se alguns exemplos, torna-se viável a constatação de que a ocorrência de comandos normativos parcialmente discricionários e parcialmente vinculantes é possível na prática:


No caso de construção de uma usina hidrelétrica, naturalmente o Poder Público não pode deixar de desapropriar os imóveis que serão abrangidos pela área do reservatório da represa, pois serão inundados, impossibilitando os seus proprietário do uso.  Quanto à execução do ato, portanto, a atividade da Administração é vinculada.  Quanto à quantidade do imóvel a ser atingida pela desapropriação, todavia, haverá discricionariedade, pois dependerá da potência da usina a ser construída e do aproveitamento do potencial hidrelétrico desejado, fatores que deverão influir na quota máxima de inundação, além da necessidade de se reservar uma faixa marginal de segurança, de manutenção do reservatório e de preservação ecológica.   Estes detalhes todos devem ser subjetivamente avaliados e escolhidos pela Administração. O momento de início da construção também não se vincula a previsão legal alguma. Tampouco o local de construção que até o momento de seu início pode, em razão de diversos fatores, ser deslocado para o outro à juzante ou à montante do rio.   O meio e o instrumento também não são vinculados: o Poder Público pode promover a desapropriação judicial ou extrajudicialmente, e o instrumento da aquisição será, então, uma sentença judicial ou uma escritura pública.


O percentual de área a ser desapropriada será tanto menos discricionário quanto mais as metas de desenvolvimento futuro restringirem a margem de escolha da potência da hidrelétrica.


A potência, a seu turno, será tanto maior quanto menores forem as imposições necessárias para preservação ambiental, para a sustentabilidade do empreendimento.


Neste exemplo, o mandamento normativo, ao conjugar-se com as peculiaridades inerentes à situação concreta, é vinculante quanto à execução (pois a hipótese é vinculante, vez que à construção da usina, sobrevém a inundação, que torna imperiosa e expropriação dos imóveis atingidos em vista de uma finalidade composta – interesse público e preservação do direito de propriedade – que simbioticamente interage com a hipótese).   Quanto ao tempo, ao prazo de execução, ao meio, ao local e ao instrumento, contudo, o comando da norma é discricionário.


Na hipótese da construção de uma estrada, igualmente haverá vinculação quanto à execução (da expropriação) e discricionariedade quanto aos demais aspectos, com um detalhe a mais: o traçado é muito mais livre do que o contorno da área atinente ao reservatório de uma hidrelétrica.    De qualquer forma, é outra situação a demonstrar que o mandamento da norma, como a execução do ato não são unos e indivisíveis, podendo ser totalmente vinculados, totalmente discricionários ou combinadamente vinculados e discricionários.


Também nesta hipótese, as metas de futuro desenvolvimento podem vincular a Administração a ponto de justificarem que em determinados pontos, a desapropriação exceda a faixa de segurança da estrada, tendo em vista a ulterior necessidade de construção de trevos, alargamentos da estrada. Consequentemente, considerando-se que imóveis próximos serão valorizados em razão do desenvolvimento trazido pela obra, pode tornar-se vinculante a exigência de desapropriação por zona caso esta se mostre mais conveniente e oportuna que a futura instituição de contribuição de melhoria.


A discricionariedade se manifesta efetivamente (e é experimentada pelo agente) durante a fase de execução.   É neste estágio que o administrador exercita a liberdade de subjetivamente escolher a solução (mais idônea a atingir a finalidade) entre o agir e o não agir, e opta por fazê-lo quando, como, onde, em que prazo, por que meio e instrumento etc.


O exercício da discricionariedade torna-se, assim, visível na fase de execução do ato, revelando-se o seu resultado no conteúdo deste.


Consoante a linha de raciocínio que se vem desenvolvendo, já se aduziu que a discricionariedade não existe na norma, mas resulta da conjugação desta com as peculiaridades do pressuposto fático. No conhecimento destes dois fatores  — norma e fato —  tampouco tem início o fenômeno discricionário,  nem no trabalho de conjugação de ambos, pois estas atividades são estáticas, de natureza objetiva, correspondem ao estágio perquisitivo da atuação do agente,  e é no estágio de execução  –  dinâmico e de natureza subjetiva –   que o agente está apto a agir discricionariamente.


Outro cuidado sobremodo relevante à atuação do agente no estágio de execução, concerne à liberdade que se lhe confere por força da discricionariedade que caracteriza o fenômeno cuja prática requer sua interveniência.


Desde os parágrafos iniciais, vinha-se fazendo remissão ao caráter de relatividade instrínseco a toda liberdade.  Não existe liberdade absoluta.   Quem é livre, é livre em relação a algo ou a alguém.   Imanente a esse caráter relativo da liberdade do agente, é o fato de ser ela sempre, invariavelmente, limitada.   Existe uma “faixa” de liberdade, liberdade condicionada, liberdade conjugada a disciplina.


Mediante recurso à figuração gráfica, a vinculação é apenas um ponto e a discricionariedade é um triângulo cuja base repousa sobre o eixo representativo da indeterminação da norma conjugada com o grau mínimo de relevância do pressuposto fático em relação à finalidade, e vai diminuindo em direção ao grau máximo de relevância do pressuposto fático em relação à finalidade, que é o ponto dominado pela vinculação.   Impende sempre lembrar uma fator da maior relevância: é na finalidade que residem as imposições constitucionais pertinentes ao desenvolvimento sustentável.


Quando se diz que no exercício discricionário há liberdade e no vinculado não há, é porque este reduz-se a um único e simples ponto, e aquele distribui-se por toda uma região, condicionada pelo “ponto da vinculação” e pelo contorno do triângulo, e a liberdade, por conseguinte, é limitada.


O agente consoante se pode depreender do texto, detém liberdade de opção, devendo cingir-se ao alcance dos motivos de oportunidade e conveniência da execução, à justiça e ao acerto em relação à realidade, fatores estes que devem caracterizar a atuação discricionária, e as posturas compatíveis com o interesse coletivo.


Inúmeras são as cautelas que o agente deve tomar em todo o percurso desde o pressuposto fático até a satisfação da finalidade.   E mesmo no estágio de execução ora objeto de estudo, quando a atuação do agente tem natureza subjetiva, muitos são ainda os condicionamentos. Sempre que a atuação for pertinente, por exemplo, ao exercício da polícia administrativa sobre atividades empresariais, o administrador não pode desprezar o lugar reservado no ordenamento jurídico à empresa. Seus compromissos e seus direitos decorrem de norma jurídica, a mesma norma que amenizará a discricionariedade do administrador. E desenvolvimento é, a um só tempo, elemento relevante tanto na determinação dos direitos quanto dos compromissos da empresa.


CONCLUSÕES


Quando se afirma que somente o administrador, em seu contato direto com as particularidades reais, efetivas da situação concreta, está em condições de eleger a melhor solução, a opção mais idônea à consecução do fim visado, o que teria sido impossível ao legislador, tem-se novamente a sensação de que se espera e exige do agente uma atuação perfeitíssima, genial, sobre-humana.


Mas a realidade não é esta. O direito jamais impõe ao ser humano exigências superiores à sua natureza. O princípio da possibilidade é ínsito do Direito, e uma de suas espécies diz respeito àquilo que é humanamente possível. Nem o Direito Penal pune o agente que, por exemplo, dirigindo cautelosa e prudentemente acaba atropelando alguém que inesperada e imprevisivelmente se lança sob as rodas do veículo de tal forma que era absolutamente impossível ao motorista evitar o resultado. Por que haveria, então, o Direito Administrativo, de exigir do administrador atenção, cuidado e capacidade geral superiores à normalidade? Da mesma forma, um médico não pode ser punido se no tratamento do paciente empregou todos os esforços e conhecimento e mesmo assim o seu paciente vem a perecer minutos antes de se divulgar a descoberta de remédio infalível que teria salvo aquela vítima.  O que se exige portanto, do administrador é o uso de toda a perícia, prudência, cautela e demais capacidades e cuidados gerais necessários à satisfação da finalidade legal e humanamente possíveis ao homem normal.


Afinal, diante da situação concreta, as condições do agente do ato para conhecer a solução mais idônea são melhores do que as do legislador, o qual considerou apenas a hipótese (em tese unicamente).   Enfatize-se, porém que nem sempre a posição do administrador é suficiente para propiciar a solução mais perfeita.


Todo dever jurídico termina onde se inicia a normal falibilidade humana. O administrador público, porém, ao desconhecer, ou negligentemente desprezar, o objetivo – imediato ou mediato – comum a todo ato administrativo, representado pelo desenvolvimento sustentável, não estará dentro dos limites da normal falibilidade humana, tampouco estará no exercício de competência discricionária, estará sim cometendo abuso de poder, desviando-se da finalidade do ato. Se assim é em relação a todo ato administrativo, sem dúvida será também na prática dos atos que direta ou indiretamente repercutirão sobre as atividades econômicas, pois estes também são atos administrativos.


Verdade é que a Constituição faz poucas referências à palavra desenvolvimento, mas o texto constitucional e o suporte físico em que está inscrito são apenas o instrumento da verdadeira Constituição, são apenas o documento. Assim como o documento de qualquer pessoa traz muitas informações, inclusive a foto, mas não é a própria pessoa. O exemplar contendo os dispositivos constitucionais não é a Constituição, bastando, para esta constatação, lembrar que grande é o número, por exemplo, dos princípios constitucionais implícitos. O fato de um princípio ser apenas implícito e não expresso no texto normativo, não o torna menos importante, têm ambos a mesma importância no sistema que integram. Por idênticas razões, o número de vezes que algo é explicitamente citado na Constituição não o torna mais importante.


O legislador constituinte, enfim, lançou as bases para o princípio do desenvolvimento. O legislador infraconstitucional (federal, estadual, municipal e distrital, por força do art. 23, parágrafo único) deve detalhá-lo, o que vem amenizar a discricionariedade que remanescia das normas constitucionais. A Administração, no exercício do poder regulamentar, deve pormenorizar ainda mais as exigências normativas indicativas e asseguradoras do desenvolvimento. E o administrador público, diante da situação concreta cujo atendimento compete ao Estado, conhecendo as imposições decorrentes das peculiaridades juridicamente relevantes do caso específico, deparar-se-á com uma discricionariedade meramente residual muitíssimo inferior àquela que em tese existia na Constituição.



Informações Sobre o Autor

Luiz Alberto Blanchet

Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Paraná; Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC – Pontifícia Universidade Católica do Paraná


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