O arrendamento mercantil e o uso indevido da ação possessória por inadimplemento do arrendatário

Para deter o poder do monarca, cujo sucessor é o Poder Executivo, concebeu-se o mecanismo difundido por todo o mundo civilizado, por força do qual quem executa as leis não pode fazê-las; quem as fez não pode executá-las; e quem dirime os conflitos, ao lume delas, não pode nem elaborá-las e nem cuidar de fazê-las cumprir.

Estabelecida a separação de poderes, o juiz não pode legislar, mas inegavelmente faz o direito, quando concretiza a ordem jurídica.

Não se pretende com tal afirmativa que se dê ao juiz poder novo, e sim, apenas está-se cuidando de pôr a descoberto esse poder que o juiz sempre teve.

Em discurso proferido perante o rei da Inglaterra, em 1717, o Bispo Benjamin Hoadly, afirmou com notável acerto que: “seja quem for que tenha autoridade para interpretar qualquer lei, escrita ou não escrita, é ele o verdadeiro legislador, e não aquele que primeiro a enunciou.”

JOSÉ DE AQUINO PERPÉTUO, Juiz de Direito do Distrito Federal, egresso da justiça capixaba, à qual emprestou o brilho de sua inteligência e serviu com singular honradez, em alentada monografia sobre o poder conferido ao Juiz, no exercício de sua atividade jurisdicional, cita o exemplo de AMÍLCAR DE CASTRO, notável juiz mineiro, que decidiu contra a lei, na década de quarenta, por entendê-la inadequada à solução dos inúmeros conflitos submetidos ao seu crivo.1

Efetivamente, dispõe o Código Civil, no art. 1.523, que “excetuadas as do art. 1.521, nº V, só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no art. 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte.”

À vista do enunciado acima, dúvida não há quanto a opção manifestada pelo legislador pela aplicação da responsabilidade subjetiva, tanto do preposto quanto do preponente.

Em sede de doutrina, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO deplorou tal solução, por ensejar, segundo enfatizou, situações de extrema injustiça, vez que, enquanto o preposto não paga, mesmo provada sua culpa, por lhe faltar recursos, o patrão também não paga, porque dificilmente emerge dos autos prova de sua culpa, não restando à infeliz vítima outra alternativa senão amargar, resignada ou não, o duro golpe da fatalidade, à míngua de amparo legal.2

Mesmo assistindo às reiteradas reformas de suas sentenças no Tribunal de Justiça, o então juiz AMÍLCAR DE CASTRO persistiu sustentando a tese segundo a qual presumia-se a responsabilidade do preponente, uma vez provada a culpa do preposto. Alçado ao cargo de desembargador, o obstinado magistrado manteve inalterado seu entendimento, imerso no seu papel de artífice do direito.

Num acórdão de 1942, do qual figurou como relator, foi a ementa assim redigida: “Presumida a culpa do preponente, sempre que provada a culpa do preposto.”

Tal construção jurisprudencial foi, portanto, à vista do prefalado enunciado, calcada em expressa antinomia à lei.

A partir de 1943, o Supremo Tribunal Federal perfilou seus julgados no mesmo sentido, acabando por editar a Súmula 341, com a seguinte redação: “É presumida a culpa do patrão, amo ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.”

Apesar de vigorar, até hoje, o artigo 1.523, do Código Civil, os juízes continuam decidindo contra seu texto expresso.

Importante tem sido a incursão pretoriana no trato das questões relacionadas ao arrendamento mercantil ou “leasing”, no bojo das incontáveis demandas judiciais, nascidas dos conflitos decorrentes da celebração de contratos sob tal “nomen juris”, tendo por objeto negócios jurídicos envolvendo veículo automotor, conforme se verá em tópicos abordados no contexto da presente exposição.

Enfocando tal instituto sob a ótica dos que dele, na literatura brasileira, primeiro cuidaram, cumpre mencionar PAULO RESTIFFE NETO, que, em obra considerada clássica, afirma que o “leasing” foi criado nos Estados Unidos, há mais de vinte anos, como solução inteligente e prática, visando a menor mobilização de capital na permanente necessidade de modernização dos equipamentos de produção, que se tornam obsoletos com o decurso do tempo3

O “leasing” traduz, na opinião de ARNOLD WALD, uma operação financeira que tem na locação a médio prazo sua essência, com a eventualidade de transformar-se, paga a última parcela pactuada, em venda, computando-se no preço o “quantum” pago a título de aluguel, convertido este em amortização de dívida.4

FÁBIO KONDER COMPARATO, em monografia sobre tal instituto, assinala que a soma total dos alugueres para a locação da coisa corresponde ao preço de aquisição, com os acréscimos de impostos e rendimentos de capital. Optando o arrendatário pela compra do bem, pagará uma complementação do preço previamente ajustado, comumente denominado de valor residual garantido (VRG).5

No plano legislativo, a lei 6.099/74, alterada pela lei 7.132/83 e Resolução 980/84, do Banco Central, fornecem o arcabouço jurídico aos contratos de arrendamento mercantil, estabelecendo normas objetivando a definição do seu campo de abrangência.

Todavia, enfocando um aspecto de singular importância para o escopo do presente, deixou claro o legislador ao sublinhar que:

“A aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições desta lei será considerada operação de compra e venda a prestação.” (art. 11, § 1º)

Por extravazar os limites impostos à abordagem do tema, não se discutirão aqui os motivos que ensejaram o acolhimento generalizado, no mercado de compra e venda de veículo, do arrendamento mercantil ou “leasing”.

Todavia, não erram os que afirmam que os detentores do capital, além de valorizar os efeitos fiscais decorrentes do negócio jurídico em tela, ao optar por tal instituto procuram albergar-se na proteção possessória, em ocorrendo inadimplência do arrendatário, assegurando, assim, de forma mais eficaz, o retorno do bem, objeto do negócio jurídico pactuado, enquanto desdenham os meios coercitivos de que dispõem, para tal, sob a clave do Decreto-lei 911/69, que estabeleceu o procedimento sobre alienação fiduciária.

Fruto do subdesenvolvimento cultural, o brasileiro se deixa seduzir facilmente por quaisquer novidades trazidas pelos ventos que sopram do primeiro mundo, apressando-se em abraçá-las sem outras considerações.

Convocados pelos detentores do capital para ajustar ao nosso ordenamento, de preponderância genética da lei, um instituto que teve seu batismo nos Estados Unidos, onde a fonte principal do Direito está no “judge-made-law” ou direito feito pelo juiz ou oriundo do caso, qual verdadeiro “binding precedent”, ou precedente obrigatório, os “juristas” de plantão atropelaram os princípios mais comezinhos sobre posse.

No esforço de harmonização do “leasing” ao nosso ordenamento jurídico, objetivando a utilização da ação possessória para a hipótese de inadimplência do arrendatário, foram os prefalados juristas buscar no anátema de esbulhador atirado ao rosto deste o fundamento de que careciam.

Combinando, aleatoriamente, os artigos 486, 499, 505, 1.192, do Código Civil, com os artigos 924 e seguintes, do Código de Processo Civil, além da alegação de que o arrendatário – então denominado esbulhador – incorrera em mora, face a inércia em que se manteve, ante a notificação a ele endereçada para devolver o veículo, objeto do negócio jurídico então realizado, as instituições financeiras que operam no setor passaram a bater à porta da Justiça, maciçamente, com pedidos de reintegração de posse do prefalado bem, obtendo-a, através de generosas liminares, dispensada até a audiência de Justificação Prévia, dando-se o juiz por satisfeito com a prova “documental” da posse, exibida com a inicial, como provam bastante os julgados a seguir trazidos à colação, somente a título de ilustração:

“Cabível ação de reintegração de posse se o contrato de arrendamento mercantil contém cláusula resolutiva expressa e resulta comprovada a mora. Demonstrados documentalmente os requisitos legais, impõe-se a concessão da medida liminar.” (Ac. un. da 7ª Câm. do TACivRJ de 11.02.87 – ADCOAS, verbete 113.852).

“Estando rescindido o contrato de arrendamento mercantil, por força da cláusula resolutiva expressa, o arrendatário devidamente constituído em mora, que não devolve o bem, passa a possuí-lo injustamente, configurando-se o esbulho.” (Ac. un. da 1ª Turma do TJMT, de 14.06.89, na Ap. nº 12.179)

“A via apropriada para recuperação de posse do bem dado em arrendamento mercantil, face ao esbulho possessório, caracterizado com o inadimplemento do devedor é a reintegratória de posse.” (Ac. un. da 1ª Câm. do TAMG, de 19.10.89 – RF 309/154)

“É admissível a concessão de medida liminar de reintegração de posse do bem, no caso de inadimplemento de contrato mercantil, fundado em esbulho praticado pelo locatário inadimplente, caracterizado pela retenção do bem, sem justo título, após a rescisão extrajudicial do contrato.” (Ac. un. da 4ª Câm. do TJSP, de 27.02.86 – RT 607/69)

“Para desatar contrato de leasing, por mora do arrendatário, a ação própria é reintegratória de posse.” (Ac. un. da 2ª Câm. do TJSC, de 08.03.84, no AI nº 21.630)

“Arrendamento Mercantil. Leasing. Notificação. Reintegração de Posse. No contrato de leasing a via apropriada para recuperar a posse do bem arrendado, após a notificação para o pagamento de débito atrasado, é a ação de reintegração de posse.” (TAMG – RT 653/188)

Não é difícil demonstrar, todavia, à luz de lições elementares de direito, que:

(a) O arrendante não dispõe de ação possessória em face do arrendatário.

(b) A inadimplência do arrendatário não lhe confere o anátema de esbulhador.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ensina, com notável sabedoria, que princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico.6

Ademais, frise-se, por oportuno, que os dispositivos legais não têm existência isolada, mas inserem-se organicamente em um sistema, que é o ordenamento jurídico, em recíproca dependência com as demais regras de direito que o integram. Desse modo, para serem entendidos devem ser examinados em suas relações com as demais normas que compõem o ordenamento e à luz dos princípios gerais que o informam.7

Por outro lado, direito não é um mecanismo cego que possa ser utilizado para fins puramente econômicos. Ao contrário, ele é um instrumento inspirado numa finalidade ética e destinado a atendê-la, e é exatamente dentro desse contexto que se tentará demonstrar que o contrato de “leasing” levado a reboque no dorso das ações de reintegração de posse, ajuizadas aos milhares perante nossos tribunais, não passa de um insulto à inteligência jurídica nacional, cujos primeiros sinais de indignação estão sendo notados nos últimos julgados do Superior Tribunal de Justiça.

Ao avançar na leitura da matéria ora exposta, além do presente parágrafo, ver-se-á que as questões enfocadas se situam ao nível de lições primárias e elementares do Direito, não se sabendo se não foram aprendidas ou se foram, resultaram esquecidas, posto não se admitir tenham sido preteridas por má-fé ou decorrente do acometimento de uma moléstia que priva as pessoas da visão lateral.

Certamente até um estudante de direito que esteja ainda na primeira metade do curso não ignora a existência de uma linha que demarca, com absoluta nitidez, as normas destinadas a regular as relações de caráter real das destinadas a regular as de caráter pessoal.

Não fosse isso, o Código Civil não teria disciplinado tais normas em Livros separados.

Pois bem, no Livro II, da Parte Especial, sob o “nomen juris” de Direito das Coisas, compreendendo os artigos 485 a 862, o Código Civil, centrado no conceito sobre posse e propriedade, regula o poder das pessoas sobre os bens e as formas de sua utilização econômica, através de institutos que se coordenam logicamente, traduzindo as necessidades do regime econômico a que todos estamos submetidos.

Com base, precisamente, no texto do artigo 485, do sobredito diploma legal e abandonando as discussões doutrinárias a respeito do conceito de posse, cuja abordagem num artigo de pequeno fôlego, como o presente, não se revela prudente, é possível afirmar que posse é o exercício, pleno ou não, de um dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade.

Do teor do dispositivo legal mencionado, resulta que possuidor é quem tem, de fato, o exercício de um desses poderes.

Por outro lado, a posse, como exercício de fato sobre a coisa, como o exerceria o proprietário, desvinculada de qualquer relação jurídica preexistente, verso-reverso do conceito de possuidor, na dicção do art. 485, do Código Civil, recebe da doutrina a denominação de “jus possessionis”.

Todavia, na multiplicidade dos fatos da vida, o proprietário, muitas vezes, visando a utilização econômica do bem, entrega-o a outrem, que sobre ele passa a exercer poderes fáticos de uso ou fruição, situação esta disciplinada no Código Civil, através do art. 486.

Presente que a posse, em tal hipótese, pressupõe uma relação jurídica que a antecede, quase sempre de natureza obrigacional, recebe da doutrina a denominação de posse jurídica – em oposição à posse de fato, do art. 485, do mesmo diploma legal – correspondendo à designação, em latim, conhecida por “jus possidendi”.

Tal posse, segundo dispõe o mencionado art. 486, do Código Civil, se fraciona em posse indireta, cujo titular é o proprietário (despojado temporariamente dos direitos que emergem do art. 524, do Código Civil) e posse direta, atribuída ao usufrutuário, ao locatário ou ao arrendatário etc.

Em verdade, somente as pessoas acima relacionadas – dado que estão investidas do poder de fato sobre a coisa – são possuidores, enquanto o nu-proprietário, o locador ou o arrendante, por não dispor da coisa, concretamente, tem de se contentar com a titularidade de uma figura que bem merece se inscrever nos anais da teratologia jurídica, conforme anotaram JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES e DARCY BESSONE, ao dissecar o conteúdo do art. 486, do Código Civil, afirmando o primeiro que essa posse mediata, existindo sem a detenção real da coisa é uma ficção, enquanto que para o segundo, tal situação não se harmoniza com a teoria de Savigny, nem com a de Jhering.8 9

Prosseguindo, frise-se que, os atentados à posse corrigem-se por meio das ações possessórias. Tais atentados podem consistir em ameaça, turbação ou esbulho.

O esbulho consiste no ato segundo o qual o possuidor é privado da posse, seja impelido pela violência, clandestinamente ou mediante abuso de confiança, conforme se infere do disposto no artigo 489, do Código Civil.

Frise-se, por oportuno, que o termo esbulho (tanto quanto as demais modalidades de atentado à posse), materializa e reflete a circunstância, o modo ou a maneira como o agente investiu-se na posse da coisa e no exato momento em que tal fato ocorreu, sendo, assim, contemporâneo à sua aquisição.

Tal singularidade sempre foi acentuada, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, conforme assinalou CLÁUDIA APARECIDA SIMARDI, arrimada no magistério de ORLANDO GOMES, para quem os vícios que maculam a posse se caracterizam como tal, quando de sua aquisição, qual estigma a lhe denegrir a origem.10

Finalmente, no Livro III, da Parte Especial, sob o “nomen juris” de Direito das Obrigações, compreendendo os artigos 863 a 1.571, o Código Civil regula, num conjunto de noções, princípios e regras, as relações jurídicas de natureza patrimonial que se formam entre sujeitos determinados para a satisfação de interesses tutelados pelo ordenamento jurídico, pertinentes à categoria dos chamados direitos de natureza pessoal.

Inserido na parte especial do Direito das Obrigações, o contrato de arrendamento mercantil – relação jurídica de caráter eminentemente pessoal – não pode se subtrair ao regime jurídico estabelecido pelo legislador para tal categoria.

As relações econômicas travam-se sob certas formas jurídicas que, por conta de sua frequência ou habitualidade, acabam por adquirir tipicidade, como ocorrem com os contratos de compra e venda, locação, mútuo etc.

Todavia, fiel ao princípio segundo o qual nas relações de ordem privada tudo é permitido, desde que não se agrida a ordem jurídica, é perfeitamente possível, mediante vínculo contratual, estabelecer quaisquer obrigações, estruturando-as livremente, como modalidade atípica.

Se o contrato, concretamente considerado, guardar, literalmente, o perfil do modelo previsto no Código Civil ou em lei especial, os direitos e obrigações das partes que a ele aderiram serão filtrados das normas a ele atinentes.

Relativamente ao contrato atípico, todavia, para melhor situá-lo no universo jurídico das infindáveis opções que a realidade sócio-econômica oferece, imprescindível se torna aprofundar na interpretação de cada uma de suas cláusulas, extraindo-lhes o verdadeiro sentido à luz das normas a que devam subsumir-se.

Conforme afirmado retro, o “leasing” traduz, na opinião de ARNOLD WALD, uma operação financeira que tem na locação sua essência, com a eventualidade de transformar-se em venda, se o arrendatário optar pela compra do bem mediante pagamento do valor residual; em novo contrato locatício, se o arrendatário pretender renová-lo ou em devolução pura e simples do bem ao arrendante.

Primeiramente, ninguém subscreve contrato de “leasing” com o escopo de alugar o veículo, e sim como instrumento destinado à sua aquisição, o que, por si só, já o descaracteriza como arrendamento mercantil, além de expor-lhe à execração de ato simulado, e portanto suscetível de ser invalidado à luz do inciso II, do art. 147, do Código Civil.

Acrescente-se ainda o fato de o valor residual do bem, correspondente à opção de compra do arrendatário, vir embutido na prestação, materializando, assim, uma modalidade de cobrança que, além de irregular, é também ilegal, porquanto suprime o exercício de um direito assegurado ao arrendatário.

Ressalte-se que o art. 11, da Lei 6.099/74, retro citado, dispõe que se deve considerar como compra e venda a prestação a aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com tal diploma legal.

Fiel ao texto acima e sensível ao papel que ao juiz é esperado exercer na construção do direito, o STJ ergueu uma bandeira memorável no processo de mudança da linha até então perfilhada pela jurisprudência, acerca da natureza jurídica do contrato de “leasing”, conforme julgados abaixo trazidos à colação:

“A opção de compra com o pagamento do valor residual, ao final do contrato é uma característica essencial do “leasing”. A cobrança antecipada dessa parcela, embutida na prestação mensal desfigura o contrato, que passa a ser uma compra e venda a prazo.” (REsp 178272/RS, 4ª Turma, de 18.03.1999, DJ de 21.06.99, pág. 163, RSTJ 123/325)

Idem, idem REsp 228782/SC, 4ª Turma, de 07.12.99, DJ de 20.03.2000, pág. 78

Idem, idem REsp 181095/RS, 4ª Turma, de 18.03.1999, DJ de 09.08.99, pág. 172, RSTJ 124/380

Todavia, apesar do avanço considerável, revelado através dos julgados acima transcritos, equiparando a operação creditícia realizada através de “leasing” ao contrato de promessa de compra e venda, o equívoco persiste, no entanto, quanto a admissibilidade da ação de reintegração de posse, por parte da promitente vendedora (= arrendante) em face do promissário comprador (= arrendatário), tendo por fundamento o inadimplemento consistente no não pagamento de prestação pecuniária a que se obrigou, desde que satisfeito o requisito da prévia notificação, conforme julgado abaixo, do STJ:

“LEASING. Mora. Interpelação. Ação de Reintegração de Posse. A notificação prévia da arrendatária é requisito para a ação de reintegração de posse promovida pela arrendante.” (STJ – 4ª Turma – ac. un. julgado em 18.12.97, publicado no DJ de 16.03.98)

Princípio elementar de direito ensina que celebrado o contrato bilateral, oneroso, comutativo, após atendidos todos os requisitos pertinentes à sua regular constituição, pode o mesmo ser dissolvido, no curso de sua execução, por inadimplemento ou inexecução imputável a uma das partes, como por exemplo, a falta de pagamento da pecúnia pactuada, como o caso “sub examine”.

Em tal hipótese, o contrato se desconstitui, fazendo jus o prejudicado, além do direito de haver a coisa, o de exigir do inadimplente perdas e danos ou outras sanções previstas na lei ou no contrato (CC, art. 1.092, parágrafo único), sendo imprescindível a intervenção judicial se as partes não acordarem sobre os efeitos pecuniários da resolução.

Excluída a discussão sobre o direito da promitente vendedora (= arrendante) de haver o veículo, em ocorrendo impontualidade de pagamento por parte do promissário comprador (= arrendatário), resta saber, unicamente, qual o instrumento de que se valerá para albergá-lo.

Mesmo admitindo-se, pelo amor ao debate, como incontroverso o inadimplemento por parte do promissário comprador (= arrendatário) e resolvido o contrato, de pleno direito, é perfeitamente possível afirmar, sem medo de cometer equívoco, que o ajuizamento da ação de reintegração de posse, nos casos de contrato de “leasing”, não encontra respaldo na lei, nem na melhor doutrina, conforme restará provado mais adiante.

Note-se que, diferentemente do que ocorre nos contratos de alienação fiduciária em que o adquirente do veículo figura como seu proprietário, assim consignado no certificado de registro expedido pelos DETRAN’s, relativamente às operações creditícias realizadas através de “leasing”, é a instituição financeira que figura como tal no documento acima referido.

Obviamente que, como proprietária do veículo, ao abrigo do direito real suscetível de ser invocado, a instituição financeira dispõe de duas medidas judiciais para haver tal bem, que se acha na posse do promissário comprador (= arrendatário): ou a ação reivindicatória, fundada no art. 524, do Código Civil, ou a ação de imissão de posse, fundada no “jus possidendi”.

Por se tratar de ações alicerçadas no direito dominial, e não se dispondo a aguardar a consumação da prestação jurisdicional requerida, para ao depois haver o veículo negociado, poderia a promitente vendedora (= arrendante) requerer o Sequestro ou a Busca e Apreensão do veículo, com pedido de concessão liminar, conforme o caso, isto é, como medida cautelar preparatória ou meramente satisfativa, ou ainda, no contexto da inicial da ação principal, pedir a antecipação da tutela.

Poderia ainda a mesma promitente vendedora (= arrendante) invocando seu direito subjetivo, no plano da relação jurídica de caráter pessoal, ajuizar ação de resolução contratual cumulada com pedido de imissão de posse, arguindo, como “causa petendi” o inadimplemento imputado ao promissário comprador (= arrendatário), adotando o mesmo procedimento assinalado no parágrafo anterior, se pretender haver o veículo antes da entrega, em definitivo, da tutela jurisdicional requerida.

À luz dos princípios que definem a lógica e racionalidade do sistema normativo, como muito bem assinalou CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO e invocando o Direito como instrumento inspirado numa finalidade ética e não como mecanismo cego que possa ser utilizado para fins puramente econômicos, impõe-se afirmar ser inadmissível a ação reintegratória para solução dos litígios decorrentes do não pagamento de prestação do promissário comprador (= arrendatário), nos contratos de “leasing”.

A simples leitura, mesmo superficial, da lei aplicável, é suficiente para se afirmar, de forma induvidosa, que para o ajuizamento de qualquer ação possessória, dentre as quais se inclui a reintegratória, imprescindível se torna a prova, pelo autor, da posse (CPC, art. 927, I).

Obviamente, que a posse referida no dispositivo acima não é outra senão a definida reflexivamente no artigo 485, do Código Civil, ou seja, a que se materializa no exercício, de fato, pleno ou não, de um dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade, em relação a qual os Tribunais repetem, há anos, a mesma cantilena:

“A posse se caracteriza pela prática de atos exteriorizantes do domínio ou propriedade.” (ADCOAS, 1975, verbete 36.184)

“Posse quer dizer uso. Ter posse é ter uso da coisa.” (RT 515/247)

“A posse se revela pelo exercício e pela utilização econômica da coisa.” (Ac. un. da 5ª Câm. do 2º TASP na Ap. Cível nº 38.663)

Manifesta a injuridicidade, portanto, da alegação, pelo autor, na inicial da ação de reintegração de posse, da titularidade da posse indireta – “jus possidendi” – documentalmente provada, mediante a juntada àquela peça vestibular, do contrato de arrendamento mercantil, bastando que se atente aos fundamentos, a seguir, aduzidos:

(a) Não tendo o legislador se referido, expressamente, no art. 927, I, do CPC, à posse indireta, não há como possa fazê-lo o intérprete.

(b) O possuidor direto, este sim, pode fazer uso dos interditos possessórios, não só em face de terceiros, como em face do próprio possuidor indireto, com o qual estabeleceu relação jurídica de caráter obrigacional, precedentemente.

(c) O possuidor indireto, dispondo unicamente do direito à posse, ou “jus possidendi”, está legitimado a fazer uso da ação de imissão de posse, em face do devedor direto.

(d) Pode o possuidor indireto, no entanto, valer-se dos interditos possessórios, em face de terceiro, na condição de substituto processual do possuidor direto, ante a recusa ou inércia deste em defender a posse do bem, na oportuna lição de JOSÉ PAULO CAVALCANTI11.

De plano, portanto, a promitente vendedora (= arrendante) sucumbiria ante tal requisito, erigido, em sede de quaisquer das ações possessórias, como condição da ação em estrita conexidade com o próprio mérito, eis que, de fato, nunca a pessoa acima teve posse sobre o veículo, objeto do pedido reintegratório, no sentido técnico-jurídico que tal instituto tem de ser entendido.

Se tanto não bastar, acrescente-se que não há como se imputar ao promissário comprador do veículo (= arrendatário) o estigma de esbulhador, mesmo após consumada a notificação, como instrumento de efetivação do chamado pacto comissório, sob pena de se subverter os princípios mais comezinhos de direito.

Não é despiciendo sublinhar que não se exige nenhum conhecimento mais aprofundado de direito para se chegar a tal conclusão, bastando, para tanto, uma leve leitura sobre os conceitos emitidos pela doutrina acerca dos vícios que contaminam, objetivamente, a posse, à luz do sistema normativo disciplinado no Livro II, do mesmo Código Civil.

Segundo ORLANDO GOMES, posse injusta, a “contrario sensu” do disposto no art. 489, do Código Civil, é aquela cuja aquisição repugna ao Direito, sendo, em suma, posse ilícita na sua aquisição, ou seja, aquela em que se verifica a presença de um dos vícios, do ponto-de-vista objetivo: (a) posse violenta; (b) posse clandestina; (c) posse precária.12

Ora, relativamente ao caso concreto, o promissário comprador (= arrendatário) foi investido na posse do veículo, com base em contrato devidamente formalizado, o que equivale dizer que a adquiriu conforme o Direito, isto é, pública, mansa e contínua, não se devendo esquecer, segundo acentuou o insígne civilista bahiano,

“que a qualidade justa ou injusta da posse decorre de sua aquisição.”

O esbulho, qualificado como um dos vícios de que pode padecer a posse, previsto e disciplinado no art. 489, do Livro II, do Código Civil, sob o “nomen juris” de Direito das Coisas, tem seu conceito e aplicação restritos ao que foi exposto retro, na opinião, sempre respeitada, de ORLANDO GOMES e no campo específico dos direitos reais.

A inadimplência do promissário comprador (= arrendatário) ocorrida, posteriormente à constituição do contrato, como ocorre em relação às operações cobertas por contratos de “leasing”, é absolutamente irrelevante, no plano do Direito das Coisas, posto que, o legislador, ao se referir aos vícios de que pode padecer a posse, a ela não fez qualquer menção, o que equivale dizer que não há como se imputar àquele a qualidade de esbulhador por haver descumprido a obrigação pecuniária, acordada no bojo de tal contrato.

No plano contratual, no entanto, constante das relações pessoais, disciplinadas no Livro III, do Código Civil, sob o “nomem juris” de Direito das Obrigações, o inadimplemento imputado a alguém, traduzido no não pagamento de pecúnia pactuada, provoca a desconstituição da avença, nos termos do parágrafo único, do art. 1.092, do referido diploma legal, podendo o prejudicado exigir perdas e danos pelos prejuízos sofridos, sem embargo do direito de haver o bem, objeto do negócio jurídico, no caso de compra e venda, por exemplo.

Portanto, se a promitente vendedora (= arrendante) não tem e nunca teve posse sobre o veículo, objeto do contrato de “leasing”, e a recusa do promissário comprador (= arrendatário) em devolver o veículo, após notificado, não pode ser considerada como esbulho, tem-se que a petição inicial da ação de reintegração de posse ficará desfalcada dos dois requisitos primordiais (CPC, art. 927, I e II), inviabilizando-a totalmente, posto faltar-lhe o próprio fundamento jurídico do pedido (CPC, art. 282, III).

Para não se alegar que nada foi dito em relação a hipótese de o contrato de “leasing” ter sido resolvido, de pleno direito, mediante manifestação unilateral do lesado, uma vez consumada a notificação ao inadimplente, cabe dizer que, dispensada a tutela jurisdicional desconstitutiva, restará à promitente vendedora (= arrendante) a via judicial para haver, através de procedimento ordinário, a imissão na posse do bem e a composição dos danos, tendo sempre o contrato como base normativa de direito material, sem estar descartada a possibilidade, obviamente, da obtenção do bem, liminarmente, através do Sequestro ou da Busca e Apreensão ou mediante antecipação da tutela.

Do exposto, resulta incontroverso que, efetivamente, descabe a ação de reintegração de posse, como remédio jurídico processual, para amparar pretensão deduzida pelas instituições financeiras que operam com o “leasing”, restando agora ao juiz assumir seu papel – do qual nunca se abdicou – no processo de criação do direito, embasado nos critérios de interpretação lógico-sistemática da lei, com resguardo dos princípios impostergáveis do Direito, como ciência, trazidos ao debate na esteira dos ensinamentos ministrados pelos juristas mais representativos do país.

DARCY BESSONE, discorrendo sobre a melhor técnica a ser adotada por quem se propõe à tarefa de interpretação, chama a atenção para o seguinte detalhe:13

“A interpretação opera sempre sobre um ato de vontade, exprima-se este na lei ou no negócio jurídico. No primeiro caso, a vontade é do Estado e se formula através de normas abstratas e gerais. No segundo, ela emana de entes privados e disciplina, concretamente, um certo negócio jurídico.”

Dito isso, arremata o civilista mineiro, que tanto enriqueceu a literatura jurídica brasileira, com notável sabedoria:

“As disposições contratuais são interpretadas, enquanto que às regras legais cabe dizer como deve realizar-se a interpretação daquelas disposições.”

Relativamente ao caso dos contratos de “leasing”, tal qual adotado na comercialização de veículos, a lição de DARCY BESSONE se ajusta como a luva à mão, bastando, para tanto, que se atente para o teor do artigo 11, § 1º, da Lei 6.099/74, no qual se inspirou o STJ, ao reconhecer que tais contratos, em verdade, devem ser havidos como compra e venda a prazo, posto que, o valor residual, previsto no contrato de “leasing”, típico, nos casos “sub judice”, vem embutido e fracionado nas parcelas mensais e com elas juntamente cobrado.

Partindo-se da linha de entendimento esposada nos julgados acima referidos, presente a natureza jurídica das normas inseridas no Livro II e a das inseridas no Livro III, ambos do Código Civil, invocadas na presente monografia, retro, e aplicando-se-lhes o método interpretativo lógico-sistemático, respaldado nos princípios gerais de direito, não há como o judiciário persistir na tecla da ação reintegratória para amparar a pretensão das instituições financeiras que operam com o “leasing”, em antinomia ao modelo previsto em lei.

No início da abordagem do tema, fez-se referência a AMÍLCAR DE CASTRO, exaltando-se a recusa daquele insígne magistrado em aplicar o disposto no artigo 1.523, do Código Civil, que estabelecia o princípio da culpa subjetiva, tanto do preposto quanto do preponente, uma vez convencido da iniquidade contida na lei.

No entanto, desta feita, pretende-se que o julgador abandone a linha de entendimento esposada nos seus julgados, passando a acolher a lei.

Em verdade, não há contradição alguma nas posições assumidas.

Tanto é iníqua a aplicação do artigo 1.523, do Código Civil, nas situações assinaladas retro, quanto a admissão da ação de reintegração de posse, em cujo bojo o réu não dispõe de espaço para discutir matéria relacionada a composição de danos, na hipótese em que tenha a opor desembolso efetuado, anteriormente ao desapossamento do veículo, o que ocorre na quase generalidade dos casos.

Acrescente-se ainda, que, relativamente à hipótese presente, mais grave do que a violação deste ou daquele artigo de lei é a postergação de princípio geral de direito, qual seja a aplicação, no plano do direito pessoal – sobre o qual repousam todas as relações negociais, das quais o contrato de arrendamento mercantil é uma espécie – de normas, cuja aplicação se restringe ao campo estrito do direito das coisas.

Demais disso, ao admitir a ação de reintegração de posse em favor das instituições financeiras, “in casu”, a justiça pretoriana nega vigência a dispositivos legais previstos expressamente pelo legislador para pacificação de conflitos que emergem das relações estritas de direitos pessoais, enquanto aplica outros, alocados no campo que regula os direitos reais, cuja impertinência salta aos olhos de qualquer mortal.

Vê-se, portanto, que não são diferentes, mas ao contrário, muito semelhantes as situações.

Mas, certamente, neste momento, por toda parte, onde quer que exista um Tribunal, neste país, os juízes estão envolvidos na discussão do tema acima, obstinados em encontrar uma solução que resguarde o Direito contra as investidas urdidas pelo poder econômico, cujo desfecho dispensa o concurso da alquimia.

 

Notas

1. O JUIZ E SEU PODER DE DECISÃO. LIMITES. Tese de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 1997. Pág. 138/139, José de Aquino Perpétuo.

2. CURSO DE DIREITO CIVIL, 5º volume, 2ª parte, 20ª edição, pág. 400/401, Saraiva, 1985, Washington de Barros Monteiro.

3. GARANTIA FIDUCIÁRIA, pág. 16, Revista dos Tribunais, 1976, Paulo Restiffe Neto.

4. REVISTA DOS TRIBUNAIS, volume 415, página 11, Arnold Wald.

5. REVISTA DOS TRIBUNAIS, volume 389, página 09, Fábio Konder Comparato.

6. ATO ADMINISTRATIVO E DIREITOS DOS ADMINISTRA-DOS, Revista dos Tribunais, edição de 1981. página 87, Celso Antônio Bandeira de Mello.

7. TEORIA GERAL DO PROCESSO. Malheiros, 10ª edição, pág. 99, Antônio Carlos de Araújo Cintra. Ada Pellegrini Grinover. Cândido R. Dinamarco.

8. POSSE, volume II, tomo I, Forense, 1985, pág. 452. José Carlos Moreira Alves.

9. DA POSSE, Editora Saraiva, edição de 1996, pág. 103, Darcy Bessone.

10. PROTEÇÃO PROCESSUAL DA POSSE, Revista dos Tribunais, edição de 1998, pág. 31, Cláudia Aparecida Simardi.

11. A FALSA POSSE INDIRETA, Editora Fasa, Recife, 1990, página 23 e seguintes, José Paulo Cavalcanti.

12. DIREITOS REAIS, tomo I, pág. 53/54. Forense, edição de 1962, Orlando Gomes.

13. DO CONTRATO, Forense, 1960, pág. 221/228, Darcy Bessone.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Antonio Franklin Monteiro da Cunha

 

Advogado em Vitória/ES

 


 

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