Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico.

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1-
Introdução

Neste texto procuramos desenvolver
algumas reflexões sobre a construção histórica do Direito e como as relações
sociais produzem complexidades que são depois traduzidas e sistematizadas pelas
Ciências sociais e se tornam teorias, ou em outras palavras, sistematizações
simplificadoras de uma realidade complexa interpretada dentro de contextos que
são dinâmicos, e, portanto, em permanente mutação.

As teorias enquanto simplificações
coerentes sistematizadas do real observado, constroem códigos próprios, que
passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do
campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre
outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o
conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos
lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta
fundamental para a legitimação de poderes excludentes.

Simplificando e procurando
simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico,
organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e
reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras
palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações
tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma
forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e
verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem
escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma
racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no
cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos
“senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos
sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.

Ou: muitas pessoas em muitos
momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam
inventando.

2-
O nascimento do constitucionalismo moderno.

O constitucionalismo moderno se
afirmou com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; nos Estados Unidos,
em 1776, e na França em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse
constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a
primeira Constituição moderna, mas nela já estão presentes os elementos
essenciais deste moderno constitucionalismo como limitação do poder do Estado e
a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma
referencia histórica para alguns pesquisadores.

Podemos dizer que, desde o inicio
do processo de afirmação do constitucionalismo moderno no século XVIII até os
dias de hoje, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu tipo,
liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas estes
dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição
de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas que declaram
e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da pessoa humana.
O que muda de Constituição para Constituição é a forma de tratamento
constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de limitação ao poder
do Estado, a forma como o poder do Estado está organizado e os meios existentes
de participação popular e de respeito à liberdade de imprensa, de consciência e
de expressão, o respeito às minorias e a diversidade cultural e étnica (regime
e sistema político), a forma de distribuição de competência e de organização do
território do Estado (forma de Estado), a relação entre os poderes do Estado
(sistema de governo) e os direitos fundamentais declarados e garantidos pela
Constituição (tipo de Estado).

Outro aspecto do
constitucionalismo moderno diz respeito à sua essência. O nascimento desse
constitucionalismo coincide com o nascimento do Estado liberal e a adoção do
modelo econômico liberal. Portanto, a essência desse constitucionalismo está na
construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre
dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada.

A idéia de liberdade no Estado
liberal, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e ao
afastamento do Estado da esfera privada protegendo-se as decisões individuais.
Em outras palavras, há liberdade à medida que não há a intervenção do Estado na
esfera privada e, em segundo lugar, podemos dizer, segundo o paradigma liberal,
que os homens eram livres, pois eram proprietários (na primeira fase do
liberalismo, as mulheres não tinham direitos e a democracia majoritária não
existia). Esses dois aspectos são fundamentais para a compreensão do conceito
de liberdade para o pensamento liberal do século XVII e XVIII.

Convém ressaltar a importância da
inserção histórica desse pensamento para a sua adequada compreensão. Em
primeiro lugar, é importante lembrar contra qual Estado se insurgem os
liberais. Não se pode dizer que os liberais são contrários ao Estado social ou
socialista ou qualquer outra formulação histórica posterior, justamente pelo
fato de que o Estado que conheciam e contra o qual lutavam era o Estado
absoluto. Portanto, a primeira constatação importante é de que os liberais se
insurgem contra o Estado absoluto. Quando esses pensadores visualizam o Estado
como o inimigo da liberdade, têm como referencia o Estado absoluto, que
eliminou diversas liberdades para grande parte da população, e transformou os
direitos individuais em direitos de poucos privilegiados. Essa compreensão
histórica da teoria liberal nos ajuda a entender por que os liberais afirmam os
direitos individuais como direitos negativos, construídos contra o Estado,
conquistados em face do Estado.

A partir do consti­tucionalismo
liberal, o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento,
uma vez que o Estado não censura sua palavra; o cidadão é livre para se
locomover, uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é
livre, uma vez que o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma
vez que o Estado não intervém na economia. Lembramos que o Estado que os
liberais combatiam era o Estado absoluto.

Um aspecto fundamental para a
correta compreensão do constitucionalismo liberal e de qualquer idéia ou teoria
é a necessidade de inserção desta no contexto histórico em que ela surge. O
pesquisador, o leitor interessado em compreender o pensamento de determinado
autor deve conhecer o autor, sua historia e para qual realidade esse autor
escreveu ou escreve. Isso evitará muitos erros de compreensão comuns e
recorrentes na análise e compreensão de textos históricos. Não se pode
compreender o pensamento de Hobbes sem conhecer sua história e o momento
histórico que inspirou seu pensamento. Isso vale para qualquer outro pensador,
e as grandes incompreensões das teorias decorrem justamente da falta de conhecimento
do contexto histórico no qual elas foram pensadas e construídas, e mais, por
quem essas teorias foram pensadas. Não se pode, por exemplo, ler Nietsche sem
conhecer sua história; o risco que se corre é compreendê-lo pelo avesso ou, na
verdade, não compreendê-lo. Portanto, para entender a defesa que os liberais
fazem da propriedade privada, a confusão que fazem entre economia livre e
omissão estatal, desregulamentação e propriedade privada dos meios de produção,
é importante compreender o contexto histórico e a idéia de Estado que esses
liberais tinham no momento da construção de suas teorias. Ao estudarmos a
história da realidade econômica (e não do pensamento econômico) desde então,
perceberemos, com clareza, que esses fatores só trouxeram opressão e exclusão,
portanto, falta de liberdade para grande parte dos cidadãos.

A defesa do Estado forte defendido
por Hobbes, portanto, se dá em uma realidade de caos decorrente da fragmentação
de poder não coordenada, que trouxe constantes guerras e destruição. O Estado
absoluto surge com a necessidade de se colocar ordem no caos, surge da
necessidade de segurança, e daí decorre a construção de uma única vontade
estatal encarnada no soberano e no conceito antigo de soberania una,
indivisível, im­prescritível e inalienável, já estudado no volume 2 do nosso Curso
de Direito Constitucional
. Do poder permanentemente negociado, da
existência de diversos espaços quase soberanos, da negociação de fidelidade dos
exércitos dos senhores feudais, característica final do feudalismo, surge o
Estado absoluto, com um único foco de poder, uma única vontade soberana e um
único exército. Isso é garantia de segurança. O Estado moderno, na sua versão
absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante os impérios e a igreja
(soberania externa) e perante os senhores feudais (nobres) que fragmentavam o
poder do Estado, cada um possuindo seu próprio exército e poder quase soberano
sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre os impérios e a Igreja, de um
lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado, são a base para o surgimento
do Estado moderno, que é um Estado territorial, nacional, centralizador de
todos os poderes e soberano em duas dimensões, a externa e a interna.[1]

O Estado nacional é uma construção
histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e desse único
exército. A criação dos Estados nacionais como Espanha e França é um exercício
de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma comum, uma
religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse Estado que os
faça sentirem-se parte da vontade nacional, parte do Estado nacional. O
sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental para sua
formação e permanência. Este é um passo fundamental para que o poder do Estado
encarnado no Rei fosse reconhecido pelos súditos: criar valores e ressaltar
aspectos comuns de identificação dos súditos entre si para que estes reconheçam
o poder do soberano.

Entretanto esse Estado absoluto
elimina cada vez mais a individualidade (o liberalismo não inventa o indivíduo,
reinventa-o de uma maneira egoísta, monolítica e hoje, propositalmente
descontextualizada), eliminando a vontade pessoal e o espaço de seu exercício.
É nesse contexto que o pensamento liberal surge e as revoluções liberais ocorrem.
Elas representam um resgate de uma liberdade perdida (ou de algo que certamente
se perdeu mas não se sabe mais o que foi) há muito tempo, uma vez que a
opressão do Estado absoluto tornou insuportável a vida pessoal. O Estado
liberal não inventa o individuo, ele sistematiza e ideologiza o individualismo,
mas, acima de tudo, o Estado liberal representa a vitória da burguesia, e logo
a vitória dos interesses desta classe. Quanto ao povo, resta o discurso de
liberdade, em que muitos ainda acreditam hoje. Resta a liberdade liberal do
sonho da riqueza por meio do trabalho ou, melhor dizendo, da “livre iniciativa”
e da “livre concorrência”.

Não nasce neste momento uma
sociedade que corresponda ao discurso sempre interpretado. Não surge neste
momento uma sociedade de homens livres e iguais. A liberdade e igualdade
reinventadas permanecem para poucos e ainda hoje é assim na desigualdade de uma
sociedade em que muitos passam à margem. Não só para poucos era a liberdade e
igualdade mas para poucos também era a possibilidade de dizer o que era essa
liberdade e igualdade e ainda hoje é assim na desigualdade de uma sociedade em
que muitos passam à margem. Entretanto alguns contam uma outra história,
encoberta, de um Estado liberal que não foi democrático, não foi livre e não
foi igual.[2]

A essência do constitucionalismo
liberal no seu momento inicial é a segurança nas relações jurídicas e a
proteção do individuo (proprietário, homem e branco) contra o Estado. Não há
uma conexão entre consti­tucionalismo e democracia. Se a democracia deve ser
hoje elemento essencial para o constitucionalismo, no inicio do constitucio­nalis­mo
liberal ela parecia incompatível com a essência deste. Como combinar a proteção
da vontade de um com a democracia majoritária em que prevalece a vontade da
maioria. A junção entre democracia e constitucionalismo liberal ocorre na
segunda fase do Estado liberal, que estudamos no nosso livro Direito
Constitucional,
tomo I[3].
A idéia de que a vontade da maioria não pode tudo e que um governante não pode alegar
o apoio da maioria para fazer o que bem entender decorre dessa junção
importante para a teoria constitucional. O absolutismo da maioria é tão
perverso quanto o absolutismo de um grupo, e a confusão entre opinião pública e
democracia é sempre muito perigosa. Logo, a democracia constitucional liberal,
construída no século XIX, entende que a vontade da maioria não pode ignorar os
direitos da minoria e os direitos de um só. Os limites a vontade da maioria são
impostos pelo núcleo duro, intocável dos direitos fundamentais, protegidos pela
Constituição, e que na época do liberalismo eram reduzidos apenas aos direitos
individuais, efetivamente de poucos. Isto à época é bastante complicado pois a
maioria pode desde que não afete os interesses e direitos históricos de um
elite proprietária, o que tornava os limites para a democracia representativa
liberal muito largos.

Desde então, o constitucionalismo
evoluiu, transformou-se, regrediu nos últimos tempos e hoje se encontra em
grave crise, quando o discurso econômico, de forma ideológica e autoritária,
submete o Direito a seus pseudo-imperativos matemáticos. Entretanto podemos
dizer que em todas as constituições modernas (sejam liberais, sociais ou
socialistas) vamos encontrar sempre os dois tipos de conteúdos comuns em suas
normas: organização e funcionamento do Estado com a sua conseqüente limitação
do poder e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

A evolução do constitucionalismo
moderno coincide com a evolução do Estado moderno, o que foi estudado no
capítulo 1 e 2 do tomo I do livro Direito Constitucional e revisto com
outro enfoque no capítulo 2 do tomo II. Portanto não cabe aqui retomarmos este
tema e remetemos o leitor a leitura daqueles capítulos.

As constituições modernas que representam
o início desse longo processo de construção do constitucionalismo são a da
Inglaterra (a partir da Magna Carta de 1215 e em constante processo de
construção até os dias de hoje), a Constituição norte-americana de 1787 e as
constituições francesas do período revolucionário de 1791, 1793, 1795, 1799 e
1804. No Brasil, a nossa primeira Constituição de 1824 (no Império) e a de 1891
(primeira republicana) são liberais e representam a primeira e segunda fase do
constitucionalismo. A fase de transição para o constitucionalismo liberal no
Brasil ocorre na década de 1920 e a nossa primeira Constituição social é a de 1934. A Constituição de
1937 representa a influência do social-fascismo no Brasil. Essa Constituição
traz os elementos característicos dessa ideologia (ultrana­cionalista,
antiliberal, anti-socialista, anticomunista, antidemocrática, anti-operariado e
autoritária). Em 1946, temos o retorno do Estado social e democrático
(democracia representativa) com nova interrupção autoritária em 1964.

A ditadura do empresariado e dos
generais, apoiada pelos Estados Unidos, tentou se legitimar com as
constituições autoritárias (e desrespeitadas pelo próprio governo ditatorial)
de 1967 e 1969. Essas constituições têm caráter autoritário e permanecem até a
Constituição de 1988, típica Constituição social que introduz, entretanto, o
novo conceito de Estado Social e Democrático de Direito, interpretado de
maneira diversa pela doutrina brasileira.

Vamos analisar a formação das
constituições inglesa e norte-americana e compreender a contribuição que elas
trouxeram para o Direito brasileiro e para hermenêutica constitucional
contemporânea.

3- Interpretação, história e teorização das práticas
jurídicas.

O Direito Constitucional evolui
com grande velocidade nesses anos de crise. Podemos dizer que nunca na história
os dois grandes sistemas ocidentais de Direito vem se comunicando com tanta
intensidade e trazendo contribuições importantes um para o outro como a partir
do final do século XX.

A mudança da compreensão do significado
do que é Constituição ocorre a partir de exigências de um mundo dinâmico e
complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim
considerado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de
o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas
decorrentes dos avanços da tecnologia (biomédica, biotecnologia, tecnologia das
comunicações, tecnologia da produção entre outras), na vida das pessoas. A vida
se mostra muito mais complexa do que a ciência (simplificadora por exigência) e
os seres humanos felizmente não se adaptam aos sistemas prontos. Assistimos
desmoronar, diante de nossos olhos, os sistemas teóricos econômicos, sociais,
políticos construídos durante os séculos XVIII e XIX e implementados nos
séculos XIX e XX. Assim vimos morrer a promessa liberal, o socialismo real, nos
conformamos ao adiamento do sonho comunista e anarquista, assim como
presenciamos propostas que se diziam mais realistas e, portanto, mais tímidas,
como a social democracia, o social cristianismo, entrar em crise radical.
Assistimos, hoje, a patéticos economistas televisivos, arrogantes e presunçosos
(sua única defesa), afirmarem que não há salvação fora de suas pobres teorias
(daí o caos que vivemos) que mandam no mundo (teorias que transformaram os
seres humanos em pouco mais que ratos que reagem a estímulos de consumo e
poupança). A economia neoliberal (neoconservadora) se transformou em uma nova
religião inquestionável.

Diante deste mundo surpreendente,
o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade.
Diante disso, uma nova consciência jurídica começa a se expandir. A superação
de um legalismo pobre é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser
resumido a regra uma vez que não há possibilidade de previsão de regras para
solucionar todos os conflitos de um mundo complexo e em rápida transformação. O
Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto,
tornou-se uma exigência democrática. Para compreendermos as origens históricas
das reflexões contemporâneas do Direito Constitucional, e como, antes das
teorizações, elas já eram realidades históricas, vamos começar a estudar essa
questão pela compreensão da contribuição do Direito Constitucional inglês e
norte-americano para o Direito contemporâneo, que é, nesse sentido, (enquanto
método e processo), global ou universal.

3.1 – O constitucionalismo inglês

A Constituição inglesa (ou o
constitucionalismo inglês para alguns) começa a nascer simbolicamente com a
Magna Carta de 1215. Três são as instituições protagonistas da histórica
constitucional inglesa: o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. O
predomínio de cada um desses protagonistas marca períodos da história política
e constitucional do Reino. No período que vai de 1215 até o século XVII,
predomina a autoridade do Rei, marcando um período monárquico. Entre o século
XVII e meados do século XIX, prevalece a Câmara dos Lordes, marcando o período
aristocrático, e desde de final do século XIX até os dias de hoje ocorre o
predomínio da Câmara dos Comuns, que seria, então, o período democrático.
Alguns autores vêem no século XVIII um período misto, no qual, então, ocorreria
uma união ideal das três formas clássicas de governo: a monarquia, a
aristocracia e a democracia.

 Muitos equívocos foram cometidos a respeito da
Constituição inglesa. Dizia-se que a Inglaterra3 (leia-se Reino Unido) não tinha
Constituição ou, então, que não tinha Constituição escrita, duas incorreções.
Alguns começaram a separar o inseparável, a constituição moderna de
constitucionalismo, afirmando que na Inglaterra e Israel, dentre outros países,
havia constitucionalismo sem Constituição. O equivoco estava em reduzir a
Constituição à sua forma, não compreendendo que Constituição pode até ser forma
e pode até ser matéria específica, historicamente localizada, mas sua condição
necessária é a sua hermenêutica, a Constituição sempre será interpretação,
compreensão, leitura histórica, portanto temporal e geograficamente
localizadas. Aliás constituição é vida e vida é interpretação. Tudo é
interpretação, e a interpretação é história, cultura, vida, e portanto
complexidade.

 Para fins de referencial histórico, a maior
parte dos autores menciona a Magna Carta de 1215 como o marco inicial de
formação da Constituição inglesa. A Magna Carta não é a primeira Constituição,
mas nela podemos encontrar os elementos essenciais do constitu­cionalismo
moderno: limitação do poder do Estado e declaração de direitos da pessoa.

A Constituição inglesa, a partir
de então, começa a se construir sobre um tripé cuja Magna Carta constitui
apenas o início. Por Constituição na Inglaterra compreende-se três bases:

•As leis escritas produzidas pelo
parlamento que podemos chamar de Statute Law. As leis constitucionais
produzidas pelo parlamento são Constituição não porque são elaboradas por um
poder constituinte originário ou derivado, ou por observarem procedimentos
legislativos especiais, mas são Constituição, porque tratam de matéria
constitucional, ou seja, limitação do poder do Estado com distribuição de
competência e organização da sua estrutura e território e a declaração e
proteção dos direitos fundamentais da pessoa;

•As decisões judiciais de dois tipos:
o Common Law e os Cases Law. Por Common Law compreendemos
as decisões judiciais (escritas) que incorporam costumes vigentes à época. Por Cases
Law
temos as decisões judiciais que se traduzem por interpretações e
reinterpretações, leituras e releituras das normas produzidas pelo parlamento;

•As Convenções constitucionais, que
são acordos políticos efetuados no parlamento, não escritos, de conteúdo
constitucional (entenda-se por conteúdo constitucional aqui as normas de
organização e funcionamento do Estado, distribuição de competência e limitação
do poder do Estado e as declarações e posteriormente garantias de direitos
fundamentais).

Como se vê, a Constituição inglesa
existe e é essencialmente escrita, pois dois dos três pilares de sua estrutura
são escritos. Importante ainda ressaltar que as convenções constitucionais não
escritas são obrigatórias e, por força da tradição, são de difícil alteração.
Uma Convenção constitucional pode se transformar em lei do Parlamento, e nesse
caso o seu cumprimento ou não pode ser objeto de decisão judicial. Entretanto,
enquanto Convenção constitucional, esta é de competência do parlamento, e o
fato de uma ruptura com uma Convenção não autoriza o Judiciário a decidir sobre
o fato.

Em outras palavras, uma Convenção
constitucional é um acordo parlamentar não escrito, alguns durando séculos, que
tem enorme força, sendo de difícil alteração. Entretanto, para romper com uma
Convenção, basta não mais aplicá-la. Esse fato para nossa cultura pode parecer
fácil, mas, na cultura inglesa, extremamente tradicional, é difícil acontecer.
Ocorrendo rompimento deste acordo, este fato não pode ser objeto de análise do
Judiciário.

O que nos interessa no
constitucionalismo inglês é a sua contribuição para o constitucionalismo norte-americano,
que por essa via chegou até nós. A sua contribuição principal nesse caso não
está na força do parlamento, mas na força do juiz. O Judiciário constrói a
norma justa aplicável ao caso concreto, e se essa norma construída pelo
Judiciário cuida de matéria constitucional ela é Constituição. O que acabamos
de dizer será teorizado com maior consistência no século XX, entretanto é
praticado à séculos.

Essa construção e reconstrução da
compreensão da Constituição inserida na realidade econômica, social, cultural e
política é fato histórico que será sistematizado em uma teoria na segunda
metade do século XX. A Constituição inglesa é de extrema complexidade, pois não
foi construída sobre uma única base, um texto constitucional produto de um
poder constituinte originário, sistematizado, codificado, dividido em títulos,
capítulos, seções, artigos, incisos e alíneas, mas é formado por diversas leis
que são interpretadas, reinterpretadas e formalmente modificadas, isso tudo
somado a Convenções não escritas acordadas no parlamento.

Não há na história constitucional
inglesa um poder constituinte originário, eleito para elaborar a Constituição e
que se dissolve depois dessa tarefa, deixando um poder constituinte derivado de
reforma apto a atuar em qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos
formais. Podemos dizer que não há na Inglaterra um poder constituinte
originário nem derivado, mas um poder constituinte permanente que atua no
Legislativo, no Judiciário e na cultura política. A idéia britânica da
soberania do parlamento reside na afirmação antiga de que o parlamento (as
câmaras e o rei) pode adotar qualquer lei. Assim, não há norma superior à lei,
e logo uma lei de conteúdo constitucional pode a qualquer momento ser
modificada por uma lei ordinária. A lei constitucional não o é por ter
procedimento legislativo diferente, mas somente pelo seu conteúdo. Alguns ainda
defendem a idéia de que aquilo que o rei ou rainha fazem em seu parlamento é
direito e não há limites ao que pode fazer o parlamento (ao menos limites
jurídicos por ser obvio a existência de limites históricos, fáticos). Assim os
tribunais não podem recusar a aplicação de uma lei sob o fundamento de
invalidade ou incons­titucionalidade, recusando-se, portanto, um mecanismo
judicial de controle de constitucionalidade das leis produzidas pelo parlamento.[4]

Entretanto, recentemente, há um
forte movimento em defesa da adoção de uma declaração de direito, de uma
codificação dos direitos e liberdades com um valor supralegislativo e logo
suscetível de um controle de constitucionalidade. Essa tese ainda é minoritária.
Entretanto, mudanças importantes vêm ocorrendo a partir da condição do Reino
Unido de Estado-Membro da União Européia. O Ato dos Direitos Humanos adotado em
1998 tornou a Convenção Européia de Direitos Humanos diretamente aplicável.
Embora a Convenção não tenha superioridade em relação às leis ordinárias do
parlamento, um deputado que proponha uma lei deve fazer uma declaração sobre a
compatibilidade desta com a Convenção. Os tribunais continuam não podendo
anular uma lei do parlamento, mas devem, no caso de conflito entre uma lei do
parlamento e a convenção promoverem uma interpretação que as tornem
compatíveis. Sendo impossível a compatibilização, esta deve ser declarada pelo
tribunal. O juiz não pode afastar a aplicação da lei parlamentar, mas, para pôr
fim ao conflito, o Primeiro-Ministro pode emendar a lei sem voltar ao caso
concreto que gerou o conflito.[5]

Outro aspecto importante da
tradição jurídica inglesa, que decorre de maneira lógica de tudo o que foi
dito, é o recurso ao precedente, como fonte do direito constitucional. Os
precedentes judiciais são Constituição, na forma de decisões que incorporam
tradições e costumes, e nas interpretações e reinterpretações da lei produzida
pelo parlamento. Importante lembrar que a jurisdição suprema do Reino Unido é
exercida pela Câmara dos Lordes, que é também integrante do Legislativo. A
Câmara dos Lordes era composta, em 1999, de 758 pares hereditários e 542 pares
vitalícios, indicados pela Rainha, e recentemente, indiretamente pelo
Primeiro-Ministro, e 25 pares espirituais, bispos da Igreja Anglicana. Com as
reformas do governo Trabalhista de Tony Blair, os lordes hereditários deixam de
existir e se inicia um processo de democratização da Câmara dos Lordes com a
eleição de pares ao lado dos pares vitalícios nomeados pelo Primeiro-Ministro
por intermédio da Rainha. A reforma no sistema de designação dos lordes
vitalícios ainda não foi implementada até Julho de 2007. Assim, os lordes
hereditários perderam suas cadeiras com a exceção de 92, que permaneceram por
serem selecionados por eleição. Finalmente, acrescente-se que, com as
sucessivas restrições históricas ao poder da Câmara dos Lordes, a participação
desta no processo legislativo se resume na possibilidade de vetos suspensivos
que prorrogam a entrada em vigor de uma lei por no máximo um ano.

 O precedente não equivale ao que chamamos
entre nós de súmula. A súmula é uma redução absurda do caso, em que uma ementa
resume toda a sua complexidade. O pior é determinar que essa súmula dos
Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal deve vincular as decisões
de todos os órgãos do Poder Judiciário. Para entendermos a absurda
simplificação de uma súmula e a desumanização do processo no Judiciário quando
impomos sua vinculação, devemos compreender o significado de um precedente. A riqueza
do precedente e a sua contribuição para as compreensões da hermenêutica
constitucional contemporânea estão no fato de que o precedente não se resume a
uma sumula (uma ementa), mas leva em consideração toda a lógica argumentativa
desenvolvida pelas partes no decorrer do processo assim como o fundamento das
decisões, incluindo os argumentos de votos vencidos. Nesse sistema de
precedentes, as partes devem demonstrar que, levando em consideração a situação
histórica do caso em julgamento, com todo o seu pano de fundo social, cultural,
econômico, pessoal, dentre outros aspectos, a discussão que envolve um
precedente é se este se aplica ou não, qual precedente se aplica ou, ainda, se
é necessário criar um novo precedente. Nesse sentido, é que podemos dizer que
um precedente não se revoga, mas é superado pela história, cultura e valores
vigentes nas sociedades, sempre em transformação.

Partindo dessa experiência,
podemos resistir às simplificações impostas, utilizando a mesma lógica para
rechaçar a aplicação de uma súmula. Para evitar a desumanização do processo, é
necessário demonstrá-la, ou seja, é necessário demonstrar em cada caso a sua
natureza única, a sua especificidade e a razão por que a súmula não se aplica.

Isso posto, passamos à análise do
constitucionalismo norte-americano, modelo que contribuiu diretamente para
nossa história constitucional. O constitucionalismo norte-americano se aproxima
do nosso, uma vez que, a partir da experiência inglesa e da teoria francesa, os
norte-americanos elaboraram um texto, produto de um poder constituinte
originário, rígido, sintético e essencialmente principiológico, o que permite a
força do Judiciário na construção e reconstrução de sua interpretação.

Embora não tenhamos uma
Constituição com um texto sintético e principiológico, como a Constituição
norte-americana, a influência do constitucionalismo norte-americano, a partir
da nossa Constituição de 1891, ocorreu principalmente com a criação do controle
difuso de constitucionalidade. A introdução dessa forma de controle no Brasil
permite que recebamos importante contribuição teórica e prática, que ocorre com
a introdução da idéia de construção de um sentido mais amplo e democrático do
conceito de jurisdição constitucional. Essa contribuição é, hoje, importante
para o direito constitucional em todo o mundo.

3.2-O constitucionalismo
norte-americano

De forma diferente do
constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte
originário que produziu, em 1787, um texto codificado, rígido e sintético com
aspecto essencialmente princi­piológico e inicialmente, exclusivamente
político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a
partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.

O constitucionalismo estadunidense
criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de
constitucionalidade, mecanismos sofisticados de freios e contrapesos e uma
Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do
sistema de controle entre os poderes divididos.

Sobre a Constituição norte-americana
muito tem se falado, por isso muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se
que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser
a compreensão de seus intérpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam
encontrar-se nos Estados Unidos da América ao menos três Constituições, outros
falam em
sete Constituições diferentes. Isso significa que, embora
desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27 emendas,
ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos
significantes do seu texto, e essas mudanças de compreensão geraram novos
direitos.

 
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não
é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos
significados. Nesse sentido toda leitura de um texto significa atribuição de
sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, que mudam quando
mudam os valores sociais. A sociedade muda por meio das contradições e
conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores,
logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto,
passamos atribuir novos significados.

O processo evolutivo da
Constituição dos Estados Unidos da América ocorre, principalmente, por meio das
suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma
sociedade em permanente conflito.

Jorge Miranda[6]
afirma que a Constituição norte-americana é, simultaneamente, rígida e
elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e
diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para
alterar o texto ou promover emendas aditivas ou supressivas, é necessária a
participação dos Estados-Membros da federação em um processo lento e complexo.
Isso explica, em parte, o número reduzido de emendas. Entretanto, o principal
motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, por meio de emendas é
o fato de que esse texto sintético e principiológico permite mutações
interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus
princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto,
pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter
de mudar o texto.

Importante ressaltar que a mudança
interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto
sintético, que contenha mais princípios do que regras permite maiores mudanças
interpretativas do que um texto analítico, com excesso de regras que travem
mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto
mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos pode
construir modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as
mudanças interpretativas. Entretanto, podemos dizer que mesmo um texto
detalhado, minucioso, também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja
menor. Podemos concluir nesse aspecto, que, ao contrário do que se diz, a
Constituição dos Estados Unidos da América não é pequena, pois o seu texto
sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a
constituição dos Estados Unidos da América, juntamente com a Inglesa, seja uma
das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário
buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição
as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso
concreto.

Esse é o ponto que nos interessa
de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre
neste caso irá ocorre sempre, em todo o mundo, com intensidade diferente. A
interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O
texto por si só não existe, ele só passa a existir quando alguém o lê, e quando
isso ocorre, necessariamente, quem o lê e lhe atribui sentido, o faz a partir
de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão
do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos
afirmar que é impossível não interpretar.

Pode-se imaginar, a partir daí,
que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso
também é fato. O que cabe ao jurista buscar é a segurança jurídica possível
diante do universo de compreensão que se abre com essa descoberta. A segurança
que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma
nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo, é
uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo
autoritário.

Vivemos inseridos em sistemas de
valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros.
Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a
sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico
constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior
segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão
sistêmica e teleológica. Esse assunto será enfrentado mais adiante e nos
valemos das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo, não adotando sua teoria
mas pensando a partir dela.

Voltemos, pois, a história
constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução
constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática
histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo
o mundo.

Vamos tomar uma frase (em
português) que contém a idéia da igualdade perante a lei já presente na
declaração de independência dos Estados Unidos:

Todos
os homens nascem livres e iguais em direitos

Como o leitor compreende essas
palavras hoje, no século XXI? Provavelmente da maneira como a grande maioria
das pessoas: todas as pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de
credo religioso, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional, nascem livres
e iguais em Direito.

Como vemos, a frase “todos os
homens nascem livres e iguais em Direito” conquistou hoje o senso comum de
milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição
de um Estado nacional relativamente democrático. Foi um significado que se
universalizou. Entretanto, para lermos e compreendermos essa frase como a
compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta
conquista de direitos. A atribuição desse sentido aos significantes da frase,
embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades, representa uma busca
comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral desse princípio é hoje
bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade
não seja tão uniforme, e nem deva ser, em um universo cultural diversificado,
plural e democrático.

Se buscarmos, no entanto, a
compreensão dessa frase no século XVIII, pouco depois da independência dos Estados
Unidos da América, perceberemos que as palavras ganham outro sentido, e logo as
normas decorrentes desse princípio serão outras. O olhar de um juiz
norte-americano sobre essas palavras, expressando os valores daquela época, vai
permitir que ele extraia dessa frase a seguinte compreensão: todos os homens
(sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais em direito. A mesma frase,
com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar
do interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões desses
valores decorrentes em determinado momento da história. As compreensões são
historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as normas
decorrentes deste princípio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre
valores completamente diferentes e um sistema normativo também completamente
diferente.

A situação de exclusão e um
desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um
sul escravocrata e conservador geraram conflitos que levaram a guerra civil
norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a
sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as
compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de
novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente
construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo
símbolos, para os mesmos significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo
se constrói na linguagem, que é reconstruída pela marcha econômica e social do
capitalismo do século XIX. Essas mudanças ocorrem na cabeça das pessoas. Novas
demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam
essas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto
que refletem esses valores. No final do século XIX, as mesmas palavras que
traduzem o princípio da igualdade ganham novo significado e normas diferentes
são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma
diferente.

A frase “todos os homens nascem
livres e iguais em direito” passa a ter novo sentido, podendo ser traduzida da
seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem
livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas
só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos
só para brancos e só para negros, assim como outras separações, são permitidas,
desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros.[7]
Está criada a doutrina fundada sobre a idéia de separados mas iguais. Esse
processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo
pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar como paradigma de
compreensão durante algum tempo.

A compreensão do separados mas iguais
permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o
movimento pelos direitos civis na década de 1950 e 1960, com a liderança de
Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a
ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux
Klan, empurram a sociedade norte-americana para uma nova ruptura, com a
construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente, a doutrina do separados
mais iguais cede espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica.
A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ser
compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens,
brancos, negros, vermelhos, amarelos, independentemente de cor, etnia ou
qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos e não podem
ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação de qualquer
espécie.

A igualdade de direitos entre
homens e mulheres, entretanto, ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos Estados
Unidos da América, foi proposta a 27ª emenda, reconhecendo direitos iguais para
homens e mulheres. Na sua proposição, reconheceu-se que, caso a Suprema Corte
mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a
aprovação da emenda. Ela não foi aprovada, encontrando forte resistência nos
Estados do sul, mais conservadores. Entretanto, a Suprema Corte passou a
compreender a igualdade perante a lei de nova forma. Podemos dizer que a frase
“todos os homens nascem livres e iguais em direitos” passa a ser compreendida
da seguinte forma: todos os homens, leia-se, todos os seres humanos, sem
nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser
segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social
ou econômica, ou sexo.

A igualdade de direitos entre
mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição
de 1988, no seu artigo 5º inciso, I. Em muitos países, hoje respeitados como
modelos de Estado de bem-estar social democráticos, os direitos das mulheres
foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi
admitido em nível federal a partir de 1972.[8] 

Como vimos, o princípio da
igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos
até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Esse foi o
percurso de um princípio. A mutação sistêmica da compreensão do texto
constitucional representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É
como se fosse adotada uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disso
tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social,
sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo
processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz
respeito à admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no
domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos
a partir do governo Roosevelt nas décadas de 1930 e 1940, adotando um modelo
econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista.

A história constitucional
norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se
reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas.
Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é
interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova
dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do
Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a
Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas
de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja
interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.

 4. Um pressuposto: a autopoiésis é uma
condição humana

Um pressuposto fático e não apenas
teórico de tudo que foi comentado até agora, é a condição de que, enquanto
vivos, estamos condenados a uma condição autopoiética. Somos necessariamente,
como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se
manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.

Dois cientistas chilenos, Humberto
Maturana e Francisco Varela[9] biólogos, trouxeram uma importante
reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de
auto-referência que se aplica para toda a ciência.[10]

Estudando a aparelho ótico de
seres vivos,[11]
os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O
resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça
para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, também ia
para a direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico
condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.

A partir dessa simples
experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, mas que,
entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam
uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.

O fato é que, entre nós e o mundo,
existe, sempre, nós mesmos. Entre nós, e o que está fora de nós, existem lentes
que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de
tradução de cada uma dessas lentes.

Assim, para percebemos
visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo,
temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de
coisas, mas que não é capaz de perceber outras coisas e cores, ou por vezes nos
engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.

Outras lentes ou instrumentos de
compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de
outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais
condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos,
percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a
alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma,
quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos,
passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada.
É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não
queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim
como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química.
Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí
a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou
administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do
fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira
diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato
ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial
formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão
determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na
não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.

Assim, podemos dizer que outra
lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências,
nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que
percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa
história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e
preconceitos.

Novas lentes se colocam entre nós
e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos
revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a
cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais
estreito no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos
influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões
decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso
país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões
universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como
liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos
comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se
livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura
não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo
possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.

Chegando ao campo do Direito,
quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado
nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes
compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de
princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso,
geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos
deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o
texto vamos atribuir sentidos a essas palavras, sentido este construído a
partir dos referenciais de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do
mundo. Entretanto essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema
jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele
sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões
judiciais que interpretam o texto naquele sistema.

5- Conclusão

Somos seres autopoiéticos
(auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre
nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das
lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos
de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a
dimensão de nosso mundo.

A linguagem e a série de conceitos
que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer
que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e
compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre
conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será
revelado.

Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não
há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do que
é observado.[12] Daí
existirão tantas verdades quantos observadores existirem. Esse universo de
relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A
compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades
absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca
do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do
diálogo, essência da democracia.


Notas:

[1]
Sobre o Estado dois excelentes livros: CUEVA, Mario de la. La idea de Estado,
Fondo de Cultura Econômica – Universidad Nacional Autônoma de México, México,
D.F. CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes,
São Paulo, 2004.

[2] ELEY,
Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000,
Editora Perseu Abramo, São Paulo, 2005.

[3]
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional, Tomo I, Editora
Mandamentos, Belo Horizonte, 2ª edição, 2004.

[4]
HAMON,
Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito
constitucional
, São Paulo, 2003,
p.197.

[5] HAMON, Francis;
TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito
constitucional
, ob.cit. p. 197.

[6] MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição,
Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 84.

[7] A
pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora
Carla Dumont Olliveira, observa em sua pesquisa sobre a reforma da Constituição
dos Estados Unidos que no caso Plessy v. Fergunson, foi
questionada uma lei de Louisiana de 1890 que exigia acomodações iguais para
brancos e negros, porém em partes separadas de um mesmo trem. A Suprema Corte
entendeu que tal exigência era razoável e não feria a décima quarta emenda,
pois ao que visava a referida lei era promover o interesse público, a paz
pública e a boa ordem, e não oprimir uma classe específica. Consta, ainda, da
decisão, cujo relator foi o Juiz Brown, que se as duas raças buscam igualdade
social, isso precisa ser o resultado do consentimento voluntário dos
indivíduos, sendo que a legislação é impotente para erradicar instintos
raciais
. (Grifos nossos.) Plessy v. Fergunson iniciou a
denominada doutrina dos “separados, mas iguais”. Os precedentes Plessy v. Fergunson e
Brown v. Board of Education foram retirados do livro The
American Constitution
: cases, comments, questions, p. 939-941.

[8]
Segundo Geoff Eley, até 1914
a democracia compreendida como sufrágio livre,
universal, secreto, adulto, igual com respeito as liberdades civis clássicas de
expressão, consciência, reunião, associação e imprensa e incluindo a liberdade
com relação a proibição de prisões sem julgamento, só existia em quatro paises
do mundo: Nova Zelândia (1893); Austrália (1903); Finlândia (1906) e Noruega
(1913). Atenuando o conceito e considerando os países com sufrágio masculino
apenas este numero pula para seis, incluindo França e Suiça. (ELEY, Geoff.
Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005, pág.23.

[9] MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol
del conocimiento
. Undécima edición, Santiago do Chile: Editorial
Universitária, 1994.

[10]     No livro mencionado, os pesquisadores
chilenos escrevem: Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de
solidez percepetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las
cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede
tener otra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural,
nuestro modo corriente de humanos
. Prosseguindo, os autores afirmam que
escreveram o livro justamente como um convite para afastar, suspender este
hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: Pues bien, todo este
libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer en
la tentación de la certitumbre
. (MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El
arbol del conocimiento
, p. 5.)

[11] Os
autores propõem aos leitores experiências visuais que nos demonstram facilmente
como nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o
que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores, nossa visão revela
percepções diferentes de uma mesma cor. Os dois círculos cinza impressos com a
mesma cor, mas com fundo diferente, mostram como o círculo cinza com fundo
verde parece ligeiramente rosado. Ao final os autores fazem uma afirmativa
contundente, mas importante para tudo que dizemos aqui: El color no es una
propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo
.
(MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento, p.
8.)

[12] Cf.,
ainda: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana.
Organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2001.


Informações Sobre o Autor

José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.


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