Execuções de criminosos: Um fabuloso espetáculo do cotidiano do medievo

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Se se tomar por objeto de estudo o cotidiano na França e na Inglaterra no mundo medieval dos séculos XIV e XV, com alguma facilidade se verá que as experiências tinham aos homens um caráter do prazer e da dor da vida infantil. Qualquer conhecimento ou quaisquer ações se integravam em formas expressivas e solenes; e isto fazia com que se elevassem à dignidade de um ritual. Assim eram as muito freqüentes execuções de criminosos. A cruel excitação e a rude compaixão suscitada por uma execução constituíam uma importante base do alimento espiritual do povo. As execuções de criminosos eram espetáculos nos quais se continha uma moral: para os crimes horríveis se inventava uma punição atroz. Em Bruxelas, por exemplo, um jovem incendiário e assassino foi colocado dentro de um círculo de feixes de lenha ardente e preso a uma corrente que girava em torno de um eixo. O jovem dirigiu aos espectadores comoventes apelos “e de tal modo enterneceu os corações que todos desataram a chorar e a sua morte foi considerada como a mais bela que jamais se viu” [i]


Mas antes de se ater às execuções propriamente ditas, cumpre traçar alguns comentários sobre os executados. Muito bem, no contexto ideológico e sociológico do Ocidente Medieval, os juízos de suspeição, de rejeição ou de exclusão encontram na articulação que fazem às voltas das noções de comunidade sagrada sua justificação. A noção desta é a de uma ecclesia que compreende clérigos e leigos. Para esta comunidade, todo o não-conformismo tende à heresia: a heresia concernente à pureza radica na crença da união indissolúvel entre corpo e alma, e no papel de indicador material que o corpo desempenha como expressão desta. Assim, lepra é sinal de pecado, posto que se o corpo padece, é porque a alma deve estar maculada. A heresia da normalidade constitui-se à volta da assimilação da natureza a Deus e à rejeição do misto: não se pode ser semi-clérigo e semi-leigo como os beguinos e as beguinas, metade-animal e metade-homem como certos monstros ou como o homem selvagem[ii].


Havia toda sorte de marginalizados. Jacques Le Goff, em seu estudo, classifica os marginalizados em várias categorias, desde os excluídos ou destinados á exclusão até os marginalizados imaginários. A primeira categoria de marginalizados, que é a que interessa para o presente estudo, pode ser compreendida no sentido de que é a que abrange “os criminosos (ladrões e bandidos, fures e latrones), os errantes, os estrangeiros, as prostitutas, os suicidas, os hereges”.[iii]. Mas, se olhar para as outras categorias de marginalizados, logo se perceberá que mais fácil parece classificar quem não era marginalizado naquele tempo, de vez que destas faziam parte: os praticantes de ofícios “desonestos” como os magrefe, tintureiros, mercenários, os doentes, os enfermos, os pobres, as mulheres, as crianças, os velhos, os bastardos, os desclassificados (como os cavaleiros pobres), os loucos, os pedintes, os usuários e, inclusive, os “monstros” (como os extraterrestres da Idade Média). Ou seja, não se incluíam entre os marginalizados a nobreza, a Igreja e, por evidente, a realeza. Mas, por que isso?


Em geral, do ponto de vista ideológico, procurava-se controlar ou excluir aqueles que pudessem representar perigo para a comunidade sagrada. A comunidade sagrada era uma comunidade que vivia fechada e, por isso, vivia num clima de insegurança material e mental. Este clima radica no fato de que esta comunidade se voltava apenas para a simples reprodução, de modo que, evidentemente, suspeitar que todos que nela não se incluíssem poderiam usurpar seus ganhos acumulados parecia ser algo muito natural. Vale dizer, parecia natural desconfiar de qualquer um que pudesse vir a ameaçar um equilíbrio fragilmente sustentado. Esta posição, ademais, produzia um certo autoritarismo sacralizado e um sentido hierárquico nesta comunidade. E isso conduzia a que toda tentativa de alteração social seria um pecado contra a ordem tão bem estabelecida por Deus, ou seja, se o pano de fundo da ação de um marginalizado seria a ação do inimigo humano, o Diabo, e se quase todas as pessoas naquele tempo eram marginais, quase todas as ações humanas, em efeito, eram ações pecaminosas, que, por isso mesmo, precisavam ser ceifadas desde sua origem.


Agora bem. Quando a pessoa a ser executada não se tratava de um marginalizado qualquer, mas, um grande senhor, os do povo pareciam demonstrar claramente uma certa satisfação por ver aplicado o rigor da justiça criminal, ao mesmo tempo que pareciam se satisfazer de ver que a inconsistência da fortuna do executado. E isto, segundo Johan Huzinga, era “exemplificado por forma mais impressionante do que num sermão ou numa pintura” [iv]. Como a execução de um criminoso era algo que movia-se no mais profundo íntimo de cada homem medieval, de forma que ninguém podia se furtar de comparecer ao “espetáculo” que verdadeiramente mais parecia o cerimonial de execução, o magistrado não deixava faltar todo o seu cuidado para que nada faltasse. Assim, no caso de se tratar de alguém importante a ser executado, conduzia-se este ao cadafalso cadasfalto, a guilhotina, vestido com o garbo devido à sua elevada condição. Assim foi a execução de Jean de Montaigu, grão-mestre do palácio do rei, vítima de João Sem Medo. Montaigu foi colocado numa carreta precedida por dois trombeteiros; levava as suas vestes de gala, gorro, capa, suas meias metade vermelhas metade brancas, além de suas esporas de ouro. As esporas foram deixadas nos pés do corpo degolado do executado, que ainda se encontrava suspenso da trave.


Um ponto que chama a atenção nessas cerimônias é que os crimes que davam origem à execução eram estabelecidos ao bel talante dos detentores do poder, em especial o rei. O mestre Oudart de Bussy, por exemplo, foi executado por negar um lugar no Parlamento. E esse poder de dispor da vida das pessoas não se esgotava com a morte do ser, mas ia além, isto é, mantinha-se até depois de ceifada a vida do infeliz. Neste sentido, não achado pouco retirar a vida de Oudart de Bussy, Luís XI, por ordem especial, mandou que a cabeça do executado fosse desenterrada e exposta na praça de Hesdin, coberta com o gorro escarlate forrado de peles “selon la mode des sonseillers du Parlament”, além de versos explicativos. Isso evidencia, ademais, não só a arbitrariedade do rei, mas também a que ponto chegava o seu autoritarismo, posto que aqui o que se deu não foi o desrespeito de uma ordem estabelecida, mas apenas o menoscabo a um convite; o que, por evidente, infringiu não a vontade real, mas apenas o frágil orgulho do soberano.


Mas, ao mesmo tempo em que reconhecem esse sentimento em seu “senhor”, os do povo nutrem por este uma paixão cega, que os fazem segui-lo piamente em seus desígnios. Assim o inabalável sentimento do direito (ditado pelo soberano) começa a tomar expressão na Idade Média. O homem medieval, assim, se convencia de que o direito era algo absolutamente fixo e inabalável na figura do soberano; e a justiça, por assim ser, deveria perseguir o “culpado” por toda parte e até o fim. A punição nutria-se de um caráter puramente vingativo, de modo que a retribuição e a reparação dos efeitos do crime deveria se dar por completo. Isso porque não se conhecia (ou não se percebia) que a pena não possui somente um caráter retributivo, mas também, e principalmente, um caráter preventivo, que engloba a idéia de que, uma vez que o Estado também possui sua parcela na formação do criminoso, a pena deve buscar, entre outras coisas, a ressocialização deste, para que haja uma amenização, ao menos, do efeito da exclusão. Mas, ainda que se conhecesse este outro caráter da punição, dados os contextos da marginalização, e também dos processos de criminalização e execução, ninguém, provavelmente, em seu são juízo, se atreveria a tocar na questão, pois, decerto, seria apenas mais uma peça principal neste grandioso espetáculo do cotidiano. Fosse como fosse, o que é certo é que não havia, em tal contexto como ser diferente.


Acresça-se a isso, a fusão do barbarismo primitivo, de fundo pagão, com a concepção cristã de sociedade. Disso deriva uma fantástica contradição patrocinada pela Igreja: ao mesmo tempo em que aconselhava indulgências e clemências para, assim, abrandar a moral judicial, estimulava o sentimento de justiça quando excitava a necessidade primitiva de retaliação ao “horror” do pecado, pois, para a Igreja, os crimes/pecados praticados pelos espíritos violentos e impulsivos não representavam senão o que faziam os inimigos da comunidade sagrada, ou seja, os patrocinados por Satã. Além disso, na medida em que mais avançava o número de fanáticos religiosos, tanto mais a idéia de retaliação se cristalizava na sociedade medieval, cronicamente instável, insegura, por suposto. Radica aqui a idéia de cada vez mais ser necessário maior rigor na punição de criminosos. Sim, porque quanto mais crônico o sentimento de insegurança, maior é o medo do que é efetivamente desconhecido, e conseqüentemente mais rigoroso, deve ser a medida a ser tomada para evitar que qualquer ameaça desconhecida venha a ser conhecida. Em palavras outras, todo meio possível e imaginável seria válido ser aplicado em seu maior vigor para coibir toda e qualquer ação do que sequer se conhece efetivamente, pois um criminoso não passava de um marginalizado, ou seja, alguém que estaria bem distante do núcleo da comunidade sagrada, portanto, desconhecido de fato por esta. Nesta esteira encontrava-se justificado por completo o rigor empregado por parte das autoridades na punição de criminosos-pecadores, posto que por estes, com seus atos, nada mais poderia fazer com seus atos pecaminosos que, como já mencionado, atentar contra a ordem social sagradamente instituída e insultar a majestade divina. Por tudo isso, foi algo extremamente natural que o fim da Idade Média se tornasse, por excelência, o período da crueldade judicial, contra o qual se levantaram pessoas como Montesquiel e Rousseal, entre outros.


Mas no período aqui tratado, não se colocava em dúvida o merecimento ou não da punição, e o sentimento popular sempre referendava as mais atrozes penas. Com isso, não raras vezes os magistrados empreendiam sem qualquer problema campanhas de severa justiça contra ou salteadores, ou bruxas, ou, inclusive, contra uns e outros, ou seja, contra os excluídos, marginalizados. O impressionante, segundo Johan Huzinga, nesta crueldade judicial, aceita pelo povo, era a sua brutalidade e malvadez: tanto a tortura como as execuções eram contempladas pelos espectadores como o eram as diversões das feiras. Certa feita – relata o referido autor – os cidadãos de Mons compraram um salteador por alto preço, somente para terem a satisfação de vê-lo ser esquartejado, “com o que o povo se divertiu mais do que se um novo corpo santo se tivesse erguido de entre os mortos”. E os habitantes de Bruges, em 1488, não se cansavam de assistir, em um estrado erguido no meio do mercado, as torturas infligidas a um grupo de magistrados suspeitos de traição, aos quais era negado o golpe de misericórdia, implorado pelos infelizes, para que o povo pudesse se deleitar por mais tempo com os seus tormentos [v]. A impiedade contra os crimes neste período chegava ao ponto de se negar a confissão e a extrema-unção a quem fosse condenado à morte; para que a tormenta do condenado durasse eternamente. Esse costume, embora rechaçado pelo Concílio de Viena, de 1311, não desaparecia, tanto que em 1500, Etienne Ponchier, bispo de Paris, se viu obrigado a renová-lo.


Na Idade Média ignoravam-se as idéias que tornaram, mais tarde, os sentimentos de justiça tímidos e hesitantes: dúvidas quanto à responsabilidade do criminoso; a convicção de que a sociedade pode ter de certa forma sua parcela de culpa no ato do indivíduo; o desejo de reformar o criminoso em vez de infligir novos castigos corporais; o receio de erros judiciais entre outros. Ao invés disso, somente se conhecia na Idade Média dois pontos extremos: a inteireza da punição cruel ou o perdão. E este, por sua vez, quando concedido, não se sabia quais eram as suas razões, sabia-se apenas que ao príncipe competia, de acordo com sua vontade; e com isto se conformavam.


Pode-se dizer, para concluir, que na Idade Média, os processos de marginalização e as execuções de criminosos (praticamente estes mesmos marginalizados) eram algo estranhamente arraigado no íntimo de todos os homens de tal modo que, ainda que se quisesse, jamais poderia ser esta situação modificada. Um misto de amor e ódio que emanava do homem medieval fazia com que sempre fosse necessária a marginalização, para haver, em conseqüência, uma execução, isto é, um sangrento e adorado espetáculo popular. Este quadro, embora vergonhoso, é o que foi pintado pelos homens que nos antecederam, por isso, pode até se dizer que também temos por isso certa parcela de culpa, que carregamos em nosso íntimo; embora nem sempre se queira reconhecer esta culpa e até, inclusive, muitos desejem que os velhos tempos retornem. Talvez até muito daquele tempo nunca tenha sequer deixado de existir, basta um pequeno olhar no modo de vida das sociedades ocidentais contemporâneas aos nossos dias. Seja como for, o que importa é que o legado deixado pelo homem medieval não pode ser simplesmente deixado de lado, mas, sim, deve ser valorizado como fonte de incansável estudo para que, talvez, as atrocidades ocorridas no passado não ocorram novamente no futuro.


 


Notas:

[i] HUZINGA, Johan. O declínio da idade média. s.n.t., p. 11.

[ii] LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, p. 177.

[iii] Idem, ibidem, p 178.

[iv] HUZINGA, Johan. O declínio da idade média. s.n.t., p. 12.

[v] Idem, ibidem, p. 24.


Informações Sobre o Autor

Carlos Henrique Pereira de Medeiros

Mestre em Filosofia, área de concentração Ética e Filosofia Política, pela Faculdade de São Bento – FSB. Professor nos cursos de Direito e Comunicação Social/Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu – USJT, Professor no curso de Direito da Universidade Nove de Julho – Campus São Roque FAC/São Roque, Professor no curso de Direito da Faculdade Integrada Torricelli – FIT. Membro de equipe de pesquisa do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Palestrante do Instituto Parthenon. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos e Parlamentares da 57ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil


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