O porquê da coisa julgada material assegurar a preservação do Estado Democrático de Direito: Segurança Jurídica versus Desconsideração da Coisa Julgada

Resumo: Este artigo tem por objetivo tratar da segurança jurídica das decisões acobertadas pela coisa julgada material no Estado Democrático de Direito em contraponto às possibilidades de desconsideração/relativização da coisa julgada.

Palavras Chaves:  Coisa julgada. Estado Democrático de Direito. Segurança Jurídica. Relativização da coisa julgada.

Abstract: This article aims to address the legal certainty of decisions covered up by res judicata material in the democratic rule of law in opposition to the possibilities of disregard / relativization of res judicata.

Keywords: Res judicata. Democratic state. Legal security. Relativization of res judicata.

Sumário: 1. Introdução; 2- O porquê da coisa julgada material assegurar a preservação do Estado Democrático de Direito; 3- Segurança Jurídica versus Desconsideração da Coisa Julgada; 4- Referências.

1. Introdução

Preliminarmente, entende-se que havendo choque entre a justiça da sentença e a segurança das relações sociais e jurídicas, resolve-se o choque optando pelo valor segurança jurídica, consagrado através do instituto da coisa julgada material. Tal valor deve prevalecer em relação à justiça, a qual será sacrificada. Por sua vez, o instituto da desconsideração da coisa julgada, objeto do presente estudo, vem quebrar a preponderância da segurança jurídica em detrimento da justiça da sentença em casos excepcionais no Estado Democrático de Direito.

2. O porquê da coisa julgada material assegurar a preservação do Estado Democrático

Preliminarmente, faz-se essencial conceituar o que vem a ser Constituição. Segundo Michel Temer[1], a Constituição significa o corpo, a estrutura de um ser que se convencionou denominar Estado.

A Constituição, segundo professado por Michel Temer[2], em síntese, possui três sentidos: o sociológico, cujo representante reside em Ferdinand Lassale, que defende que a efetividade da Lei Maior derivaria dos fatores reais de poder; o sentido político, cujo sendo Carl Schmitt seu representante, o qual a considera como decisão política fundamental; por fim, o sentido jurídico, defendido por Hans Kelsen, que salienta a distinção entre o mundo do “ser” e o do “dever-ser”, bem como a idéia de que a um antecedente liga-se indispensavelmente dado consequente.

A Lei Fundamental assevera que a República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito, conforme preceituado no art. 1.º da CF/88, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

A coisa julgada material contribui significativamente para assegurar a preservação do Estado Democrático de Direito porque traz segurança jurídica para os conflitos intersubjetivos dirimidos pela justiça.

Com efeito, vejamos o advogado por Nery[3] sobre a segurança jurídica trazida pela coisa julgada material:

“A segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é manifestação do estado democrático de direito (CF 1.º caput). Entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (justo possível), que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material.

Descumprir-se a coisa julgada é negar o próprio estado democrático de direito, fundamento da república brasileira. A lei não pode modificar a coisa julgada material (CF 5.º XXXVI); a CF não pode ser modificada para alterar-se a coisa julgada material (CF 1.º caput, 60 §4.º); o juiz não pode alterar a coisa julgada (CPC 467 e 471). Somente a lide (pretensão, pedido, mérito) é acobertada pela coisa julgada material, que a torna imutável e indiscutível, tanto no processo em que foi proferida a sentença, quanto em processo futuro.”

Com efeito, vale a pena salientar que Nelson Nery[4] entende que apenas as sentenças de mérito, proferidas com fundamento no art. 269 do CPC, são acobertadas pela autoridade da coisa julgada. Aduz o suso referido processualista que as sentenças de extinção do processo sem julgamento de mérito, previstas no art. 267 do CPC, são atingidas apenas pela preclusão, ou seja, pela coisa julgada formal. Dessa forma, a coisa julgada funciona como instrumento de pacificação social .

Outrossim, advoga o processualista Luiz Guilherme Marinoni[5] que a coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário – obviamente quando se pensa no processo de conhecimento. Afirma ainda que essa é a lição de Rosenberg-Schwab-Gottwald.

Dessa forma, Marinoni[6] entende que de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada.

Nesse sentido acima exposto, aduz o suso referido processualista[7] que a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode emitir decisões contrárias à justiça, à realidade dos fatos e à lei, possa ser vista como um adequado fundamento para o que se pretende ver como “relativização” da coisa julgada. Ora, o próprio sistema parte da ideia de que o juiz não deve decidir desse modo, no entanto, ignora – nem poderia- que isso possa ser feito. Tanto é que prevê a ação rescisória, nos casos previstos no art. 485 do CPC.

O que aconteceu, segundo aduzido por Marinoni[8], diante da inevitável possibilidade de comportamentos indesejados pelo sistema, foi a expressa definição das hipóteses em que a coisa julgada pode ser rescindida. Com isso, objetivou-se, a um só tempo, dar atenção a certas situações absolutamente discrepantes da tarefa jurisdicional, mas sem eliminar a garantia de indiscutibilidade e imutabilidade, inerentes ao poder estabelecido para dar solução aos conflitos, como também imprescindível à efetividade do direito de acesso aos tribunais e  à segurança e à estabilidade da vidas das pessoas.

“Mesmo sem adentrar em complexos temas da filosofia do direito, pode-se logicamente argumentar que as teses da ‘relativização não fornecem qualquer resposta para o problema da correção da decisão que substituiria a decisão qualificada pela coisa julgada. Ora, adimtir que o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de ‘relativizar’ a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça[9].”

Eis que assevera ainda o seguinte:

“Entretando, apesar de se reconhecer o primado do princípio da dignidade pessoa humana como vetor do sistema do direito, é certo que o atual desenvolvimento das teorias pelas quais sempre seria obtenível uma decisão justa ainda não possibilita sua execução fática. Em outras palavras, ainda não existem condições de disciplinar um processo que sempre conduza a um resultado justo.

Diante disso, a falta de critérios seguros e racionais para a ‘relativização da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua ‘desconsideração’, estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça. Essa ‘desconsideração’ geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbrunch citando a seguinte passagem de Sócrates: ‘crês, porventura, que um Estado possa substituir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos.

Portanto, nunca foi tão atraente e importante estudar o princípio da segurança dos atos jurisdicionais[10].”

Não obstante tudo o acima exposto, Marinoni[11] ressaltar que em favor da relativização da coisa julgada, argumenta-se sua admissibilidade a partir de três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade.

No exame do princípio da instrumentalidade, sublinha-se que o processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando o julgamento estiver pautado pelos ideais de Justiça e adequado à realidade.

Em relação ao princípio da legalidade, afirma-se que como o poder do Estado deve ser exercido nos limites da lei, não é possível conferir a proteção da coisa julgada a uma sentença totalmente alheia ao direito positivo.

Por fim, no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, sustenta-se que a coisa julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho.

Destarte, o Estado Democrático de Direito visa a assegurar a própria dignidade humana, através da segurança das relações intersubjetivas dirimidas no âmbito do judiciário. Todavia, a segurança dos atos jurisdicionais é garantida com a formação da coisa julgada material.

3- Segurança Jurídica versus Desconsideração da Coisa Julgada

A doutrina reconhece o instituto da coisa julgada material como elemento de existência do estado democrático de direito.  Ademais, saliente-se que a falta de fundamentação da decisão judicial acarreta sua nulidade, com base no art. 93, IX, da Lei Maior. Destarte, como a motivação das decisões judiciais é corolário do estado democrático de direito, ainda que não houvesse previsão expressa de nulidade da sentença não fundamentada, essa nulidade existiria e deveria ser proclamada quando suscitada.

O subprincípio da segurança jurídica, do qual a coisa julgada material é elemento de existência, é manifestação do princípio do estado democrático de direito. Dessa forma, o processo civil é instrumento de realização do regime democrático e dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual os processualistas devem se comprometer com esses preceitos fundamentais, porque sem democracia e sem estado democrático de direito o processo não pode garantir a proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.

Cabe ressaltar que consoante o direito constitucional de ação, previsto no art. 5.º, XXXV, da Lei Maior, busca-se pelo processo a tutela jurisdicional adequada e justa. Eis que a sentença justa é o ideal – utópico- maior do processo. Outro valor não menos importante para essa busca é a segurança das relações sociais e jurídicas.

Eis o afirmado por Piero Calamandrei[12] sobre a forma de encontrar a justiça das decisões:

“Para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê”.

Tradicionalmente, entende-se que havendo choque entre esses dois valores, ou seja, entre a justiça da sentença e a segurança das relações sociais e jurídicas, resolve-se o choque optando pelo valor segurança jurídica, consagrado através do instituto da coisa julgada material. Tal valor deve prevalecer em relação à justiça, a qual será sacrificada. Por sua vez, o instituto da desconsideração da coisa julgada, objeto do presente estudo, vem quebrar a preponderância da segurança jurídica em detrimento da justiça da sentença em casos excepcionais.

Vale a pena observar a questão do controle de constitucionalidade da sentença. A regra consiste em que os atos jurisdicionais do Poder Judiciário ficam sujeitos ao controle de sua constitucionalidade, como todos os atos de todos os poderes. Para tanto, o due process of law desse controle tem de ser observado.

Com efeito, há três formas para fazer-se o controle interno, jurisdicional, da constitucionalidade dos atos jurisdicionais do Poder Judiciário[13]: a) por recurso ordinário; b) por recurso extraordinário; c) por ações autônomas de impugnação. Na primeira hipótese, havendo sido proferida decisão contra a CF, pode ser impugnada por recurso ordinário (agravo, apelação, etc.) no qual se pedirá a anulação ou a reforma da decisão inconstitucional. O segundo caso é de decisão de única ou última instância que ofenda a CF, que poderá ser impugnada por Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal – STF. Por fim, a terceira e última oportunidade para controlar-se a constitucionalidade dos atos jurisdicionais do Poder Judiciário ocorre quando a decisão de mérito já tiver transitado em julgado, situação que poderá ser impugnada por ação rescisória ou revisão criminal.

4-Conclusão

Em apertada síntese, com fundamento no princípio da proporcionalidade, a coisa julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho.

 

Referências
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Material da 4.a. aula da Disciplina Prova. Sentença e Coisa Julgada, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual Civil – UNISUL-IBDP-REDE-LFG, 2006.
NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
_________________________________. Código Civil Comentado. 4.ª ed. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2006.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 17.a. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
 
Notas:
[1] Elementos de Direito Constitucional. 17.a. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 15.

[2] Op. Cit. pp. 17-19.

[3] NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria. Op. Cit. p.863.

[4] NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria. Op. Cit. p.863.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Material da 4.a. aula da Disciplina Prova. Sentença e Coisa Julgada, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual Civil – UNISUL-IBDP-REDE-LFG, p. 3.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit. p.3.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem, ibidem.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem, ibidem.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem, ibidem.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem, p.2.

[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem, p.3.

[12] Eles, os juízes, vistos por um advogado. Capítulo I – Da fé nos juízes primeiro requesito do advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 4.

[13] NERY JR., Nelson. Idem, p.867-868.


Informações Sobre o Autor

Adriana de Andrade Roza

Procuradora Federal graduada em Direito pela UFPE com Especialização em Direito Constitucional pela UNISUL e com Especialização em Direito Processual Civil pela UNISUL


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