Dos regimes autoritários às democracias: direito e as colorações ideológicas

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From authority regimes to democracies: law and ideological colorations

Karhen Lola Porfirio Will[1]

Resumo: De algum modo, o presente empreendimento teórico pretende contribuir no campo academicista, lançando algumas sementes que permitam debater cada vez mais a despeito da influência ideológica no universo jurídico. Para isso, em consulta ao repositório bibliográfico, cabe trazer em nossas investigações referências que nos incentivam a compreender quais os impactos da circulação de ideologias incrustadas nos regimes ora analisados e como tudo isso repercute na noção do que seja direito. Em linhas introdutórias, propomos a examinar a conexão entre direito e ideologia, nos apegando a elementos conceituais basilares. De realçar que, o primeiro capítulo versa sobre o Direito como um instrumento ideológico em governos democráticos. Será, por isso, ocasião de se pensar em como a democracia tem ressignificado o Direito com suas colorações ideológicas. Por seu turno, no segundo capítulo, veremos o Direito como um instrumento ideológico a serviço do autoritarismo. Este direito se desvirtua da gramática da dignidade humana, de princípios voltados a uma ética de humanidade, fortifica o terror, estrangula a cidadania numa frequência bem mais intensa aquando comparado a outros regimes. Veja, pois, que no autoritarismo, o Direito ganha um significado redutor, um corpo normativo que combina com ideologias repressoras. Afora exalar formalismo, traduz uma verdadeira aliança com o opressor, indicando domínio sobre grupos vulneráveis. No epílogo deste artigo, não haveríamos de esquecer de reavivar algumas notas finais acerca do Direito como aparelho crucial que instrumentaliza e potencializa ideias, valores, princípios ideológicos, ingredientes-chave para manter regimes, perpetuando ora em democracias, ora em ordens antidemocratas.

Palavras-chave: Direito. Ideologia. Instrumento ideológico. Democracia. Regime Autoritário.

 

Abstract: In some way, the present theoretical undertaking intends to contribute to the academic field, sowing some seeds that allow for debate more and more despite the ideological influence in the legal universe. For this, in consultation with the bibliographic repository, it is worth bringing in our investigation references that encourages us to understand the impacts of the circulation of ideologies embedded in the regimes now analysed and how all this affects the notion of what is law. In introductory lines, we propose to examine the connection between Law and ideology, clinging to basic conceptual elements. Note that the first chapter deals with the Law as an ideological instrument in democratic governments. Therefore, it will be an opportunity to think about how democracy has given new meaning to Law with its ideological colorations. In turn, in the second chapter, we will see Law as an ideological instrument at the service of authoritarianism. This right detracts from the grammar of human dignity, from principles aimed at an ethics of humanity, strengthens terror, strangles citizenship in a much more intense frequency when compared to other regimes. See, then, that in authoritarianism, the Law gains a reductive meaning, a normative body that combines with repressive ideologies. In addition to exuding formalism, it translates into a true alliance with the oppressor, indicating dominance over vulnerable groups. In the epilogue of this article, we should not forget to revive some final notes about the Law as a crucial apparatus that instrumentalizes and enhances ideas, values, ideological principles, key ingredients to maintain regimes, perpetuating sometimes democracies and sometimes anti democratic orders.

Keywords: Law. Ideology. Ideological instruments. Democracy. Authoritarian Regime.

 

Sumário: Introdução. 1. Direito como instrumento ideológico nas Democracias. 2. Direito como instrumento ideológico nos regimes autoritários. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Antes de tudo, convém rememorar que o Direito se afigura como uma <<realidade profundamente ideológica>> (CUNHA, 2014, p. 1326). Digamos, em linhas fundamentais, que a partir da essência da ciência jurídica se é possível extrair variadas colorações ideológicas. É isso mesmo. De algum modo, as ideologias[2] impactam, sobremaneira, na órbita jurídica.

Resta-nos, afinal, saber um pouco mais sobre tais repercussões. Enfim, importa sondar se as ideologias carregam consigo efeitos deletérios ou não, e como tudo isso se atrela ao próprio modo de compreensão e interpretação da ciência jurídica.

Vale a pena comentar desde já que o tema se faz pungente e no mais das vezes dilacerante no mundo do Direito. Nem todos enxergam com bons olhos a conexão entre ideologia e direito. Eis aqui um tema sensível, que nos intriga até os dias hodiernos, despertando bastante debates jurídicos e perplexidades.

Longe de qualquer paz doutrinal, identificamos teses que vão desde a defesa da neutralidade no campo do Direito até aquelas que buscam desmistificar a retórica em comento. Estas últimas, sustentam a presença da ideologia no universo jurídico. Dito isto, é de se indagar, desde já, o que parece fazer mais sentido: falar num Direito neutro, ou mencionar um direito que se contagie pela ideologia?

Todavia, antes de discutir o caráter ideológico do Direito, cabe tecer algumas linhas explicativas do que se entende por ideologia. Muitos empregam o mencionado termo para caracterizar expressões, pensamentos e ideias, assim como outras formas simbólicas de expressão, se disseminando, sobretudo, no universo da linguagem, dos discursos, da doutrina, do conhecimento humano.

À guisa disso, não poderíamos subestimar o raciocínio que prega ser na própria linguagem que a ideologia se acentua. Até certa dose de medida, giza-se a ideologia como um fenômeno de manifestação linguística, com timbre, inclusive, na dimensão jurídica.

Neste escrito, nos ocuparemos em investigar, especialmente, as ideologias jurídicas presentes em diversos regimes políticos contemporâneos com ênfase tanto nas democracias quanto nos governos autoritários. Sem embargo, é imperioso captar, antes de tudo, algumas informações a despeito da ideologia neste complexo emaranhado banco de imagens inseridas num jogo de poder.

Ora, à primeira vista, quando se fala em ideologia, nos vêm, de algum modo em mente uma série de ideias-chaves conectadas as manifestações do pensamento, as formas de pensar e agir. Num conspecto a teorética, a ideologia é comumente avistada como uma categoria de pensamento e de ação, eis que faz parte de motivações coletivas, mormente, inconscientes, que se prestam a traçar o modo como os indivíduos pensam e agem.

Lídimos testemunhos da evolução conceitual do que seja ideologia vem acontecendo nos últimos tempos, nos fazendo enxergar que ela é mais que uma manifestação do pensamento. Ultrapassando perspectivas epistêmico e cognoscitiva, a percepção de ideologia não se restringe ao vínculo entre sujeito e objeto do conhecimento, indo além da esfera cartesiana e determinista, eis que cuida também das referências de valor cultural encravado no conceito (LYRA, 2006).

Afinal de contas, num excurso, a ideologia engloba também, como nos parece, um lado atrelado as visões de mundo. Melhor dizer, que a ideologia se introduz em normas morais e jurídicas que disciplinam formas sociais e comportamentais, de modo a assegurar a concretização de valores incrustados em uma concepção de mundo. Grosso modo, a ideologia faz alusão a um mundo de representações elaboradas por seres humanos enquanto sujeitos sociais.

Não obstante, é curioso, observar que tais representações acerca da realidade podem ser ilusórias ou não (LYRA, 2006).  Quanto a isto, frise-se que há diferenças teóricas. Daí, seria pertinente, por ora, nos questionarmos se a ideologia seria algo ilusório, imaginário, uma falsa representação? Se ela, seria uma concepção de mundo? Afinal, é importante compreender como a ideologia vem sendo tratada ao longo dos anos, qual o significado desta para a sociedade? qual conotação assumiriam, negativa ou positiva?

Seguro é delimitar um ponto de partida para o problema. Isto quer dizer que, tentaremos nos afivelar a origem do termo ideologia para então traçarmos as principais transformações nos trajetos conceituais de ideologia.

Pois bem, Pômpeo nos ensina que a palavra ideologia, reputada como uma invenção do filósofo e positivista francês Antoine Louis-Claude Destutt de Tracy, na obra seminal Eléments d’ideologie, foi empregada, no século XVIII, para se referir a teoria da formação de ideias. Acrescenta-nos que Destutt almejava inovar ao criar uma ciência, neutra e universal, para abordar o campo das ideias e sensações humanas, o qual batizou de ideologia, mãe de todas as ciências. [3]

A seguir, muitos teóricos passaram a se dedicar e a escrever sobre a ideologia a partir de uma concepção crítica[4], considerando-a como instrumento de dominação, que age por meio do convencimento de forma prescritiva, alienando a consciência humana. Trata-se, pois, de uma forma de domesticação dos pensamentos da classe subalterna pela dominante. Desacompanhando os passos da vertente neutra, os adeptos da teoria crítica vêm se afastando da ideia de uma ciência neutra.

Além disso, para eles não fazem muito sentido os comentários que afirmam que indivíduos e grupos de indivíduos possuem ideologia, que existem ideologias diferentes, que cada um tem uma ideologia. Em resumo, sobre ideologia, os críticos entendem que esta não seria disseminável como é uma ideia ou um conjunto de ideias.

A ala crítica tende a se prender a percepção de que a ideologia soa como algo direcionado a criação, assim como manutenção da relação de dominação que se dá através de qualquer instrumento simbólico[5].

Dentre a aludida temática da ideologia sob uma perspectiva crítica, credita-se a Marx e Engels, no escrito <<a ideologia alemã>> (1931), o marco inaugural na contemporaneidade quanto aos debates sobre a ideologia[6]. À parte Marx defende que o ideológico mascara a realidade, ilude, remete a falsa consciência, sendo instrumento de dominação de classe. Por seu turno, com base na tradição marxista, Althusser explica que:

A ideologia, começa por ser, segundo Marx, uma construção imaginária, um puro sonho, vazio e vão, constituído pelos «resíduos diurnos» da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente a sua existência (ALTHUSSER, 1970, p.73)

 

Em Louis Althusser, a ideologia se traduz basicamente numa representação <<da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência>> (1970, p.77). Registre-se, pois, que o conceito de ideologia repousa no plano das relações imaginárias. Observa o autor que a ideologia religiosa, moral, jurídica, política, etc., são vistas como «concepções do mundo»

E é claro que se admite, a menos que se viva uma destas ideologias como a verdade (por exemplo, se se «acreditar em Deus, no dever ou na Justiça, etc.), que a ideologia de que fala então de um ponto de vista crítica, ao examiná-Ia como um etnólogo examina os mitos de uma «sociedade primitiva», que estas «’concepções do mundo» são na sua grande parte imaginárias, isto é, não «correspondentes à realidade» (ALTHUSSER, 1970, p.77-78).

 

Além disso, o conceito de Althusser encontra assento na tese da existência material, já que ressalta que <<uma ideologia existe sempre num aparelho, e na sua prática ou suas práticas. Esta existência é material>> (1970, p. 84).

Senão vejamos que Karl Manheiem, procurando alargar o conceito de ideologia proposto por Marx, apresenta a concepção de que a <<ideologia significa qualquer conjunto de conhecimentos, crenças, verdadeiras ou falsas, condicionadas socialmente >> (GODOY, XAVIER; 2015, p. 861-862).

Thompson (1995) foca atenção mais na relação de dominação para definir a ideologia, deixando de lado o caráter de ilusão da realidade e falsa consciência. O ideológico seria um instrumento de dominação que não se restringe as relações entre classes, mas entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre nativos e estrangeiros, entre adultos e crianças, entre pais e filhos, chefes e subordinados.

Em linhas gerais, Godoy e Xavier, em menção a Luis Villoro, identificam duas tipologias conceituais, a saber: a) o conceito gnosiológico – em que a ideologia se atrela a questão da falsidade, refere-se a enunciados que podem ser reputados como falsos; b) conceito sociológico – vinculado a questão da causa e consequências sociais dos enunciados, indica enunciados ideológicos com função social determinada (VILOSO, 1985, apud GODOY; XAVIER, 2015).

A essa altura, soa óbvio que a ideologia se encontra presente no Direito. Nas certeiras palavras de Cunha, <<não se foge, por isso, à ideologia. E assim é necessário entendê-la para melhor lidar com ela. O Direito não deve ser uma pura e simples segregação ideológica, e, para isso, não deve esquecer a sua presença no seu meio e no seu ADN>>. Em linhas subsequentes, continua o autor a nos dizer que:

Ao contrário do que a ideologia ultraliberal pretende fazer crer, as ideologias não morreram, nem certas ideologias (a ela contrárias) abriram completa falência, nem ainda as ideologias são coisa intrínseca e generalizadamente negativa. É importante que os juristas não vivam na ignorância do fenómeno ideológico, ingenuamente acreditando que a sua tarefa se encontra isolada e imune à sua influência (CUNHA, 2014, p.1302).

 

Muito embora, a partir da guerra fria, autores como Raymond Aron (Ópio dos intelectuais-1955) e Daniel Bell (O fim da ideologia -1960) questionem o conceito de ideologia, criticando-a e considerando-a como algo obsoleto, preferimos creditar pontos em Cunha, quando dizia que anunciar a morte das ideologias <<foi, diria Mark Twain, deveras exagerado. Sempre aí estiveram, embora a ideologia ainda hoje dominante, o neoliberalismo, queira fazer-se passar por única verdade científica>> (CUNHA, 2014, p.1307).

Assim, a neutralidade nos parece muito mais um mito do que realidade[7]. Se engana quem, perante um fenômeno ideológico, acredita cegamente que seu labor se faz isoladamente e imune a qualquer influência. Nem os mais geniais pensadores escaparam das armadilhas do auto-engano e da vaidade de se autoproclamarem portadores da verdade.

Ora, como o ser humano, ser por natureza ideológico, ser da “práxis”, dotado de uma bagagem cultural, atingiria a neutralidade na esfera do saber científico, pedagógico e jurídico? Como no campo das ideias, pensamentos, doutrinas, concepções de mundo, um indivíduo ou mesmo grupos tenderiam a se direcionar para ações sociais e políticas num sentido neutro? O ser humano enquanto sujeito social, ser político não está imune as influências ideológicas, imagine agora, portanto, a ciência? E, o Direito, como este poderia ser neutro?

Enquanto a ideia de um direito sem ideologia decorre da modernidade, de uma necessidade de métodos científicos rígidos que cultuam um <<Direito puro>>, uma ciência jurídica que não sofre influência de outras esferas do saber, nem mesmo qualquer influência da metafísica, justiça e da ideologia (LIMA, MAGALHÃES, AGUIAR JÚNIOR, 2016), a contemporaneidade, em que pese algumas resistências[8], tenta desmistificar a neutralidade da ciência jurídica.

Sobre ciência e ideologia, Althusser se preocupa bastante em distingui-las no campo epistemológico, de maneira que se define a ideologia como o outro da ciência. A ciência aparece como uma ruptura, uma descontinuidade do senso comum da ideologia.  No entanto, convém lembrar que <<toda forma de conhecimento humano é atravessada pela ideologia>> (Gramsci apud Lyra, 2006, p.98). Aprendendo um pouco com Gramsci que <<nunca separou ciência e ideologia em compartimentos rígidos>>, somos partidários da tese de que não existe neutralidade em coisa alguma, nem na Ciência, nem na Educação e, muito menos no Direito.

É interessante assinalar que nos parece impossível pensar no Direito fora da relação de poder e da influência ideológica. Com já dizia Rubens Pinto Lyra (p.98, 2006), tomando préstimo da lição de Chauí, <<da trama da ideologia, não se escapa>>. Assim, até mesmo a forma que o direito é interpretado, lido pelo juiz, conecta-se a universo ideológico[9]. Em nota de rodapé, não haveríamos de esquecer de mostrar algumas reflexões proferidas por Cunha que confirmam os argumentos ora esposados[10].

No fim das contas, podemos dizer que àquele que trabalha com o Direito é mais que um mero técnico, possui opções políticas e não meramente jurídicas. Quem labuta nessa área, embora alguns parecem esquecer, não são meras máquinas, nem deuses, mas seres humanos e como tal, “animais ideológicos” (ALTHUSSER, 1970, p.94), seres da “práxis”, transformadores e criadores em suas permanentes relações com a realidade, produzem não apenas bens materiais, coisas, objetos, mas instituições, ideias e concepções (FREIRE, 1987).

De alguma maneira, somos todos envolvidos numa cadeia, numa teia, rede inescapável que se atrela a nossa formação como sujeitos sociais. Assim, ao deixarmos de perseguir a rota da ignorância, percebemos que as ideias não surgem espontaneamente das nossas cabeças, elas não fluem do nada. A própria estrutura do nosso pensamento lógico, simplesmente, não consegue se libertar inteiramente. Até a maneira de ver de cada um de nós, a nossa de compreensão do que seja real depende de variáveis, condicionantes que variam em razão da época e do tipo de sociedade (LYRA, 2006, p.95). Não há, portanto, neutralidade no Direito.

Evidentemente nos parece que a ideologia compreendida como <<conjunto lógico, sistemático e coerente, de representações (ideias e valores) e normas, ou regras de conduta que indicam aos membros da sociedade o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer >> (CHAUÍ; 1983, p.113-114) é, pois, na verdade, um vocábulo polissêmico e se revela tão numerosa quanto o seu conceito, enquanto isso o Direito seria apenas uma esfera do saber que instrumentaliza princípios ideológicos.

[…] existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão enigmáticos e polissêmicos como esse de ideologia. Ao longo dos últimos dois séculos ele se tornou objeto de uma acumulação incrível, até mesmo fabulosa, de ambiguidades, paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equívocos. (LOWY; 1987, p.09-10, apud Konder, 2002, p.9).

 

Entre a ideologia e o direito existe um laço. As ideologias moldam o direito, são peças-chave na compreensão do funcionamento do aparelho jurídico do Estado, achando-se presente tanto em regimes autoritários como democráticos.

“[…] é da essência do direito seu caráter ideológico, e que como instrumento ideológico que é, assim como o Estado, está a serviço da classe dominante. O direito se constitui, portanto, numa das técnicas principais da hegemonia. […] O direito é a ideologia que, como nenhuma outra, pode indicar domínio, crise ou ausência de hegemonia.” (ROCHA; 1997, p.132-133).

 

Apesar de reconhecer a relação entre Direito e ideologia, alguns cultores do direito discordam que o direito seja ideologia. Repare que, dissaboreando o argumento de Rocha de que direito é ideologia, evocamos a preleção de Cunha,

Cumpre, evidentemente, não confundir o Direito com política e ideologia. Mas, para isso, importa conhecer essas realidades e compreender como sempre procuram moldar o Direito — mesmo quando afirmam o isolamento de um Direito autónomo (CUNHA; 2014, p.1304).

 

Acerca da ideologia demarcou-se o terreno de análise no campo da representação, “práxis” e norma. Apercebida por muitos, como uma representação de sistemas de ideias que apresentam características específicas, a ideologia aparece para alguns como uma representação ilusória do real, enquanto para outros, se revela muito mais como “práxis” e valor.

Como se sabe, a “práxis” humana em sociedade é dotada de uma certa carga ideológica. Se, por um lado, Vásquez capta duas formas de “práxis”, por outro, torna-se necessário trazer à tona a práxis criadora e reiterava (1986; p.245-249).  Em suma, a “práxis” criadora remete aos elementos inovadores, aos aspectos criadores da atividade humana; enquanto a práxis reiterativa diz respeito mais aos elementos de reiteração e repetição do cotidiano, retratando uma dimensão tripla que se traduz no verbete: representação, “práxis”, valor.  Ao que vem de dizer-se, nos abalançaremos a compartilhar da formulação de que <<a práxis reiterativa, por si só, por ser ideológica, não é negativa; nela estão acostados os valores da sociabilidade tornados consensuais pela concepção de mundo>>. Até aqui, não será de admirar que a práxis como atividade situada no tempo e no espaço, contagiada pelos valores culturais e históricos, se consolida no campo jurídico.

Atente-se, no mais, que a ideologia como valor agrega-se, de algum modo, a identidade humana, através de um corpo de valor, sobretudo, político e moral, que se manifesta mais como um guião, como um princípio cardinal, promovendo orientações em sociedade.

Atrelado a sociedade que não é reputada como natureza morta, mas tem lá o seu valor cultural determinado por condições concretas, materiais e históricas de existência social e individual (LYRA, 2006), abriga-se uma constelação das normas (morais e jurídicas) carregadas de ideologias. Seria útil acrescentar que para Gramsci, a ideologia está socialmente generalizada, de tal maneira que os homens não podem agir sem regras de condutas, sem orientações (XAVIER, 2002).

Veja, pois, que até mesmo a Constituição de um Estado, carta fundante que norteia o ordenamento jurídico e, portanto, àqueles que laboram com o Direito, “é mais que um documento legal. É um documento com intenso significado simbólico e ideológico – refletindo tanto o que nós somos enquanto sociedade, como o que nós queremos ser” (BAKAN; SCHNEIDERMAN apud PIOVESAN, n.p, 1999).

Noutra banda, impõe-se relembrar que Marx tende a enxergar o Direito como instrumento ideológico do poder econômico, um sistema de normas coercitivas, de dominação de classe que propicia o sistema econômico capitalista produzir e reproduzir as condições de sua existência[11].

Nessa esteira, influenciado pela corrente marxista, Althusser compreende o direito como sendo determinado pelo modo de produção, sendo, pois, um aparelho ideológico jurídico que se insere na superestrutura, espelhando o modo de produção traçado na infraestrutura social. Para entender o que fora dito, resta aludir aqui a metáfora espacial tópica que se resume basicamente na percepção da estrutura da sociedade como um prédio que comporta: a) infraestrutura (base em que se ergue os andares da superestrutura. Palavras-chave: estrutura econômica, relações de produção, relações de classe); e, b) superestrutura (onde mantém as relações econômicas que constituem a infraestrutura. Palavras-chave: direito, política, cultura).

Sem invalidar esta linha de raciocínio, Luís Fernando Coelho enfatiza que o direito fomenta <<o controle social das condutas tal como é desejado pelas forças hegemônicas, desde sua criação, até a sua decodificação, interpretação e aplicação, de forma a atingir as expectativas dos grupos dominantes>> (COELHO; 2003, p.493).

Designadamente, o Direito como instrumento ideológico tem sido associado como instrumento de dominação, tampouco se descortina o Direito para além disso. Portanto, duas notas mais julgamos cabido acrescentar, a primeira é a de que o direito como instrumento ideológico pode ser usado de modo hegemônico, mas também contra hegemônico. A última é que, reconhecemos ser através do Direito e da práxis podemos ler o mundo através de sinais direcionados a apontar a existência de domínio, crise e até mesmo ausência de hegemonia numa dada sociedade.

Atravessado essas linhas introdutórias contendo algumas questões centrais, de harmonia com o que se vem dizendo, não causará perplexidade que os derradeiros capítulos do presente escrito serão locais apropriados para a tarefa árdua de discutir um tema tão enigmático e desafiador, que vem incomodando muitos até os dias atuais.

Por essa razão, nos limitaremos nas linhas subsequentes em pôr em relevo qual o sentido do Direito como instrumento ideológico quer nos regimes democráticos, quer autoritários, procurando ressaltar como o direito adquire significado e até mesmo se ressignifica a partir das colorações ideológicas.

 

  1. O direito como instrumento ideológico nas democracias

Muitos costumam dizer que a democracia – vocábulo etimologicamente oriundo de “demos”, povo, “kratos”, poder – se tornou um sistema dominante e o Direito sua arena ideológica. Pois bem, tudo nos leva ainda a crer que a democracia ainda é ou ao menos deveria ser << a ideia política mais forte do nosso tempo>> (GARCIA, 2006, p. 153).

A democracia representativa é, atualmente, o sistema político mais difundido e legitimado no mundo. Durante as últimas décadas, formou-se um amplo consenso sobre a democracia representativa (eleições livres, sufrágio universal, liberdade de pensamento, etc.) como a melhor e mais perfeita forma de governo, tornando-se esta visão ideológica um valor absoluto e quase inquestionável.

 

Por certo, no cenário internacional, a esmagadora maioria dos países optaram pela adoção da democracia. Mas, lamentavelmente, nem todas as democracias são plenas, bem consolidadas e responsáveis, existem àquelas que são imperfeitas, irresponsáveis, ineficientes. Em suma, podemos dizer que, vivenciamos na atualidade democracias que vão desde as mais altas até as mais baixas densidades.

Quando de alta qualidade, as democracias inclinam-se a efetividade, responsabilidade, legitimidade, liberdade e igualdade. Reputadas como perfeitas, apresentam, pois, uma estrutura institucional estável, mediante instituições que funcionam de modo legítimo, adequado, correto, adotando mecanismo que buscam satisfazer os cidadãos. Costumam demonstrar qualidade no resultado e no conteúdo, além da qualidade procedimental. Democracias perfeitas primam pela igualdade e liberdade, norteiam-se por valores do regime democrático. Nela, os cidadãos têm poder para averiguar e avaliar se o governo está observando os compromissos de um Estado democrático de Direito, monitorando a eficiência da lei, a eficácia das decisões, a responsabilidade, “accountability” política das autoridades a despeito das demandas expressas na sociedade (MORLINO, 2015).

Todavia, a maioria de nós vive em democracias de baixa qualidade/ sem qualidade, isto é, assistimos de mão atadas a ineficiência, irresponsabilidade, a pouca legitimidade ou até mesmo a ilegitimidade, eis uma democracia desigual, reduzida, mínima, imperfeita (MORLINO, 2015).

Não custa repisar que, em pleno século XXI, democracias plenas ainda são mundialmente raras. Somente uma percentagem mínima tem realmente o sabor de usufruí-la, enquanto mais da metade dos países nem sequer gozam de tal possibilidade (CARBONARI, 2018).

Ora, repare que para um Estado ser categorizado como democracia, não é necessário o preenchimento de tantos requisitos, exige-se no mínimo: voto universal, eleições livres, competitivas e justas, fontes alternativas de informações, mais de um partido político significativo (DIAMOND, MORLINO). Então, perante tal quadro, cabe-nos examinar o papel do Direito, o seu significado e potencial de ressignificar dentro de uma democracia.

Destarte, não poderíamos deixar de mencionar, desde logo, que nos filiamos a corrente que propugna que o Direito produz e reproduz ideologias centradas em assegurar a ordem democrática. Registre-se, porquanto, que nas democracias, o Direito é avistado como instrumento de difusão de valores e potencialização de ideias, sobremaneira, incutem em nossas cabeças pensamentos e ideias em torno da valorização da dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade, justiça social, função social, paz, diversidade, soberania popular, sufrágio universal, pluralidade partidária, participação política, cidadania, acesso à justiça, bem-comum, controles sociais plurais.

Num Estado democrático de direito, a temática cidadania, direitos humanos e grupos vulneráveis ganham maior protagonismo. Na verdade, são temas conectados que se destacam muito mais neste tipo de regime, do que em qualquer outro. Noutras palavras, não há como se falar em Estado democrático de direito, quando não há sequer respeito aos direitos humanos e proteção aos grupos vulneráveis. No entanto, a máxima não é válida para uma ditadura, para um totalitarismo, para um regime absolutista, autocrata, eis que não se preocupam com a gramática dos direitos humanos, colocando em xeque a dignidade humana, de modo a tornar muito mais acentuada as vulnerabilidades.

Deixando um pouco de lado, o que fora dito. Volvemos nosso olhar sobre democracia, resguardando uma análise mais pormenorizada dos regimes com inclinações autoritárias num momento oportuno.

Passemos agora, a observar um pouco mais o significado do direito para o regime democrático. Com o processo de humanização do direito, este adquire uma ressignificação, e também um papel crucial na manutenção da democracia.

Ora, uma democracia somente se torna substancial, quando realmente há garantias e efetivação dos direitos fundamentais. Não é difícil concluir que os Direitos humanos sem um Estado Democrático Direito, logo serão sepultados. No mais, sem direitos humanos e sem democracia, não há terreno prospero para a cidadania, ou seja:

[…] o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este o acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através de um processo de asserção aos direitos humanos (ARENDT apud MAZZUOLI, 2003, p.7).

 

Eis, em tese, a democracia como um regime com maior abertura para os movimentos contra-hegemônicos e para a consolidação da cidadania. Repare, pois, que o aparelho jurídico do Estado democrático de Direito abre mais espaço para o desenvolvimento de um direito não estatal, contra-hegemônico produzido pelo grupo oprimido, o que não é possível em regimes autoritários.

Assim, no regime democrático, percebemos o quão o Direito funciona pro sociedade. Além de freio contra o arbítrio estatal, ele é um meio necessário para assegurar direitos fundamentais, um instrumento de satisfação dos Direitos Humanos. Não à toa o regime democrático, quando comparado a outros regimes, ainda nos parece ser o que melhor convive com a gramática dos direitos humanos, com os ideais de tolerância e pluralidade. Conquanto, não nos escapa que a maior parte das democracias são frágeis e precisam de um certo cuidado para que não se tornem uma mera farsa.

Freire já nos alertava que << falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa>>.  Na democracia contemporânea, o certo seria que o Direito não pudesse ser elaborado, nem praticado pelos opressores, sob pena de se tornar um instrumento de desumanização que espelha regimes antidemocráticos. No entanto, nem sempre o caminho certo é seguido.

Como esclarece Cunha (2014, p.1313), existem democracias muito mal geridas, e até geridas por antidemocratas, numa espécie de regência, a esperar pela ditadura. E com, um tom de nitidez, já profetizava Boaventura de Sousa Santos, e assim não poderíamos ignorar a preciosa lição do lusitano de que <<as democracias podem morrer democraticamente, pela eleição de não democratas>> (SANTOS apud BITENCOURT, 2019).

Já, de há muito, Lênin (1979, p.106) criticava a democracia burguesa, assevera, pois, que <<continua sendo e não pode deixar de ser, sob dominação capitalista, um regime estreito, acanhado, mentiroso, hipócrita, um paraíso para os ricos, uma armadilha, engodo, para os explorados e pobres>>. Quiçá Lênin tinha razão. Muito de nós vivenciamos a ilusão de viver numa democracia (a dita democracia formal, reduzida a cidadania de papel). Francamente, poucos tem a sorte de vivenciar a democracia substancial.

Na contemporaneidade, muitos Estados enfrentam o esvaziamento da democracia. Abalados por problemas cotidianos (que vão desde corrupção, insegurança, violência, pobreza, impactos ambientais, epidemias, além de muitos outros problemas), os aparelhos estatais que se dizem democráticos não conseguem sequer dar uma resposta efetiva para tais questões tão corriqueiras[12]. Como bem examina Boaventura de Sousa Santos,

A democracia tornou-se uma daquelas palavras vazias de sentido. Como é usada para descrever tudo aquilo que não é um regime autoritário. […] Para uns, a democracia realmente está de tal modo descaracterizado que só por inércia ou distração se pode considerar como tal. Vivemos em regimes autoritários que se disfarçam num verniz de democrático. […] Vivemos em democracias de baixa ou muito baixa intensidade que convivem com regimes sociais fascistas. […] Vivemos em sociedades que são politicamente democraticas mas socialmente fascistas (BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 2016).

 

Todavia, não deveríamos nos esquecer que, nas certeiras palavras de Canotilho, a democracia consiste num <<governo menos mau no plano interno>>, ao passo que no plano externo, figura como <<um governo que promove a paz>>. A despeito da questão, digno mencionar ainda os escritos de Cunha (2014, p.1311):

Diz-se, já́ esquecendo quem o terá pela primeira vez afirmado, que a democracia é “o pior regime possível, à exceção de todos os demais”. E é uma grande verdade. sabemos, com efeito, que a democracia não é perfeita. Mas não arriscaríamos a viver numa ditadura, pelo menos se não soubéssemos (vendados com o véu de ignorância) em que posição aí estaríamos. Não é nada agradável ser da mó de baixo, dos pobres, dos calados, dos oprimidos, numa ditadura. Já não o é em democracia, que fará em ditadura.

 

Sobeja advertir, que Boaventura de Sousa Santos (2016, s.p.) já assinalava, <<o ideal democrático continua a captar a imaginação dos que aspiram a uma sociedade que combine a liberdade com a justiça social, mas na prática a democracia está cada vez mais longe deste ideal>>.

Apesar de tudo, das crises e ameaças a que se depara o regime. O pouco que nos resta é colocar fé no ideal democrático, sem deixar de fazer o nosso dever de zelar pela Magna Carta de 1988. Assim como precisamos de utopia, também somos influídos por ideologias. Estas últimas são engrenagens cruciais para a corrente democrática contemporânea, se por um lado prendem-nos numa teia, noutra, nos liberta em vários sentidos, anunciando, pois, uma proposta de construir um mundo com ênfase na cidadania e nos direitos fundamentais.

Touranie propõe uma concepção de democracia que deve combinar, de um lado, o respeito pela “liberdade negativa”, ou seja, a defesa de um conjunto de garantias institucionais que sustentam a capacidade para resistir ao autoritarismo do poder e, de outro, o apoio à luta dos sujeitos, no contexto de sua cultura e de sua liberdade, contra a lógica dominadora dos sistemas (GARCIA, 2006, p.155).

 

Ora, com lastro na teoria de Alaine Touranie, Vileni Garcia grifa às três dimensões da democracia, a saber: 1) direitos fundamentais: inseparáveis da liberdade e freios que limitam o poder estatal; 2) cidadania: demanda consciência de filiação tanto a uma sociedade quanto a uma comunidade ligada por uma cultura e história; 3) representatividade de dirigentes: agentes políticos são mediadores, representantes de uma pluralidade de atores sociais. Inclui-se, não obstante, que <<a democracia só pode ser representativa se for pluralista>> (GARCIA, 2002, p.155).

Anote que às três dimensões de Touranie se complementam e a interdependência delas constitui a democracia. Assim, entre direitos fundamentais, cidadania e representatividade de dirigentes não há que se priorizar um em detrimento do outro, sob risco de se trilhar por caminhos perigosos. Não descremos que tais trajetos sinuosos podem levar a desequilíbrios na relação subjetividade-cidadania quando se recusa uma das três dimensões ora descritas.

Se deixarmos a cidadania em plano secundário, a consciência inerente a ela vai se enfraquecendo, reduzindo alguns seres a condição de mero eleitor, enquanto outros à margem da sociedade acabam excluídos por diversas razões (ex. econômicas, políticas, étnicas, culturais). Se deixarmos a representatividade dos dirigentes de lado, arriscamo-nos vivenciar uma aguda crise. Muitos eleitores deixam de se sentir politicamente representados, diante de uma classe política sedenta por poder e até mesmo por enriquecimento pessoal. (GARCIA, 2002).

A essa altura, já é de se reavivar a memória que a ideologia como “práxis” reiterativa apresenta uma dimensão alicerçada na representação, “práxis” e valor. Essa “práxis” por ser ideológica não é, per se, negativa, afinal de contas, nela se encontra valores de sociabilidade que se tornam consensuais pela concepção de mundo (LYRA, 2006).

[…] A criação da sociedade formou um mundo humano, de relações entre nós, e não somente entre nós e a natureza ou ações ditadas espontaneamente pela psique. A própria psique foi enriquecida, pois sobreposto a sua dimensão natural surgiu a dimensão, eminentemente social, de sua articulação como linguagem (LYRA, 2006, p.102).

 

O ponto central que nos resta reconhecer repousa no fato de que muitas ideias, representações, “práxis” e valores não estão, necessariamente, conectadas a relações históricas de dominação, luta de classe, a uma conotação negativa. Tomando préstimo da lição de Gramsci, Xavier nos ensina que a ideologia pode ser um << terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.>> (GRAMSCI, 1978, p.377 apud XAVIER, 2002).

Gramsci (1978) rejeitou explicitamente uma noção negativa de ideologia (dominação, alienação). […] Na sua noção de ideologia, os sujeitos aparecem de forma mais autônoma ou, sendo propositalmente redundante […] a ideologia é, para ele, “uma concepção do mundo implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva” (GRAMSCI, 1978, p. 328, apud XAVIER, 2002).

 

Deve-se observar, ainda que, numa democracia, como seres humanos, somos levados a pensar na justiça não tão somente numa conotação individual, mas social. A dignidade não é de um ser humano ou de um determinado grupo humano, ela é para todos, com atenção especial, para os mais vulneráveis. Não existem vidas insignificantes, eis que todos tem direito a uma vida digna. A censura é vista como algo ruim, busca-se a liberdade de expressão, a manifestação do pensamento de um modo responsável, sem ignorar o direito de resposta, proporcional ao agravo, caso haja danos provocados a indivíduo ou grupos de indivíduos.

Normalmente, como vimos o mencionado regime democrático está relacionado a ideais de pluralismo, a expressão de diversos interesses. É nessa esteira que a democracia se faz liberal, se transfigura basicamente num sistema de representação, em uma forma de governo caracterizada por eleições regulares, sufrágio universal, liberdade, consciência, direito universal de se candidatar a um cargo, de formar associações políticas (GIDDENS, 1996, p.127 apud GARCIA, 2006). Mas sabemos também que a democracia pode ir muito além do campo das representações, para dar um novo significado a ordem jurídica a partir da “práxis” e valor.

A democracia dialógica de Anthony Giddens remete, por exemplo, a formas de intercâmbio social que podem contribuir para a reconstrução da solidariedade social, promovendo o cosmopolitismo cultural, estabelecendo conexões entre autonomia e solidariedade, fomentando a democratização da democracia. Segundo Garcia, Giddens capta que o processo de democratização, universalização, teórica e prática dos ideais de democracia, igualdade e solidariedade que caracteriza a sociedade global atual, seriam impulsionadas pela expansão da reflexividade social. Daí as práticas sociais estariam em permanente transformação à luz da reflexão e do conhecimento dela derivada.

Em redemocratizar a democracia, Boaventura Sousa Santos (SANTOS, 2002, apud GARCIA, 2006) propugna pela reinvenção da emancipação social a partir de experiências bem-sucedidas no que diz respeito a democracia participativa e a produção alternativa, segundo uma lógica não capitalista.

Lyra, por seu turno, traz à baila que a esquerda além de considerar socialismo e democracia como indissociáveis, enquadra a democracia participativa como um ingrediente fundamental para construção alternativa socialista.

[…] Um militante socialista da cidadania trabalhará pelo aprimoramento desta, quer esteja posta ou não na ordem do dia a ruptura com o capitalismo, e o fará sem subordinar seu trabalho e a fidelidade a seus princípios, a considerações de caráter político-partidário. Atualmente, a luta pela ampliação dos direitos de cidadania se insere em um espaço ético dotado de práxis e de uma eticidade política próprias, lastreado no respeito as regras do jogo institucionais, no âmbito de uma democracia representativo-participativa (LYRA, 2006, p.241).

 

Reconhece-se aqui que não há democracia sem socialismo, alertando-se para a necessidade de superar a dialética de teses liberais. O neoliberalismo, cego às pessoas e valores, não seria mais digno de apreço. À maneira de Carlos Coutinho, declara-se, modestamente, que <<só uma sociedade sem classes – uma sociedade socialista – pode realizar o ideal pleno da democracia. Ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular, e como tal, da democracia>> (COUTINHO, 1997, p.159 apus LYRA, 2006).

Ora, se a democracia liberal-representativa não conseguiu garantir processos intensos de democratização, não escapou de minorias que se apropriaram indevidamente dos bens públicos, nem fugiu aos efeitos catastróficos de uma inclusão política feita a base da exclusão social, a saída para este problema está na democracia participativa pregada por Santos, regime que tem, sobretudo, como protagonista a comunidade e grupos sociais subalternos, em luta contra a exclusão social e trivialização da cidadania em diversos países (GARCIA, 2006).

De modo sucinto, Santos nos fornece as diretrizes para o fortalecimento da democracia participativa, das quais,  Garcia destaca três teses: 1)  fortalecimento da demodiversidade a partir de formas múltiplas de articulação com democracia representativa, adensando a participação e uma crescente, e ampliada deliberação pública; 2) fortalecimento de articulação contra hegemônica entre local e global; 3) a ampliação do experimentalismo democrático, para inovar criativamente o formato de participação gerando a pluralização cultural, racial e distributiva da democracia.

Enfim, de tudo o que foi dito, repise-se que o Direito, como instrumento ideológico, é essencial para sustentar a democracia, assegurando preceitos matriciais e garantias para que o povo se mantenha no poder[13].

[…] A democracia é um regime em que o povo governa. Esse regime em que o povo governa tem, portanto como característica primeira e inarredável a de ter o povo como fonte de todo o poder. Porém, isso não é o suficiente: é preciso que ele o exerça, direta ou indiretamente (LYRA, 1996, p.40, apud GARCIA, 2006, p.153).

 

A essa altura, já é de se deduzir que a ideologia numa democracia, per se, não é algo bom ou ruim.  No entanto, é a sua utilização que lhe atribuirá um sentido.

Ora, num sistema democrático, o normal seria conviver com ideologias que não são tão prejudiciais quanto as ideologias do autoritarismo. Isto é, seguir ideologias que não contaminem tão seriamente o raciocínio do ser humano, afetando drasticamente a representação mental.

No entanto, não raramente, a ideologia numa democracia pode ser utilizada para padronizar, dogmatizar, universalizar valores, assim como perpetuar privilégios das classes dominantes em detrimento da humanidade. Esta, portanto, se afigura com uma faceta ruim, em que a ideologia é compreendida com conotação negativa, como mero instrumento de dominação. Todavia, acreditamos que ideologia não se resume apenas a isso.

A noção do que se entende, corretamente, por ideologia é uma noção bastante incompleta. Quiçá, possa ela, potencialmente, traduzir um signo de vitória do povo, uma concepção de mundo, ao invés de um retalho coberto de mentiras que mina o interior da humanidade.

Como vimos, a ideologia não se delimita tão somente a um conjunto de crenças e ideias, eis que apela para o lado da ação. Mas que isso, ela ao se conectar com as emoções, afetos, crenças e ações, mostra o quanto os seres humanos estabelecem relações afetivas com seu modo de vida e suas visões de mundo. Daí que, é possível se contrapor a ideologias dominantes, ideologias que possuem conotações negativas, que humilham nossa cultura de raciocínio, escondendo-nos a diária e desolante realidade.

Por fim, encerramos este tópico, observando que o aparelho ideológico jurídico se faz primordial para a manutenção do Estado democrático de direito, instrumentaliza-se aqui princípios ideológicos que tem a missão fundamental de perpetuar a ordem democrática.

 

  1. Direito como instrumento ideológico nos regimes autoritários

Importará deixar dito desde logo, que não nos arriscaríamos a viver numa ditadura ainda se soubemos em que posição estaríamos, a ordem enunciada não nos entusiasma. Os regimes autoritários[14], no decurso da história, buscaram apoio numa base do terror, exaltando o uso da força em menoscabo ao bem-comum, apresentaram uma grande tendência a violar os direitos humanos com mais intensidade que os regimes democráticos.

Se nos regimes democráticos já se é difícil honrar com as promessas em torno da dignidade humana, imagine num Direito que instrumentaliza o autoritarismo, se aliando ao poder castrador de liberdades, que estrangula garantias, direitos e prerrogativas dos indivíduos? O autoritarismo exala fanatismo, demagogia, populismo, conservadorismo, remete ao mito da neutralidade, acometido por um surto de anemia ética que persiste em proliferar no Direito, negligenciando o valor de um direito humanizado, negando a dignidade da pessoa humana num Estado com aversão as reformas sociais e que merece o epíteto de << monstro frio>>.

Ora perante ao autoritarismo, a sociedade se vê obrigada a conviver com a crueldade, forjada e estimulada a aceitar imposições de penas cruéis e infamantes, assim como tratamentos desumanos, degradantes. Se torna palco de um regime que banaliza a vida, incute o ódio, controlando a sociedade a partir da violência ora o usando contra oposição, ora se aproveitando dos medos e da inseguranças da população para levá-las a crer que o uso da tortura, do banimento/ desterro/degredo, do linchamento, do apedrejamento, da mutilação, do empalamento, da decapitação, crucificação, fuzilamento, enforcamento, esmagamento, injeção letal e outras formas de impingir sofrimento humano é algo natural, quando, na verdade não o é.

De alguma maneira, os traços gerais do retrato de um regime autoritário estão impressos num Direito opressor. Obviamente tal direito espelha um significado que pouco ou nada tem a dizer ao povo. Lido de modo redutor, estreito e silenciado, tal direito remete a uma significação engessada e até mesmo bastante cruel, eis que se revela como um instrumento ideológico que nega experiências de grupos humanos, além de <<desconstitucionalizar vidas>>.

Eis aqui um aparelho de opressão a serviço do poder arbitrário, perpetuando um Estado sem agilidade, ineficiente, um Estado do não-direito (um Estado injusto), que ignora limites, abrindo fissuras para a desregulamentação. Normalmente, no autoritarismo, se suprime ou se regula fortemente os Legislativo e Judiciário, o que corrói a independência e autonomia de tais poderes. Lamentavelmente é sob a capa de aparente regularidade formal, que se esconde o aparelho jurídico do Estado.

Num regime autoritário, onde a linguagem da violência e a aversão a liberdade de expressão triunfam, àqueles que laboram com o Direito se inclinam a comungar com o arbitrário, quer de livre espontânea vontade, quer forçosamente. Por isso, concorrem fortemente para a inoperância da lei.

A historiografia e a educação nos ensinam que nem sempre o direito e os juristas se aliaram a democracia e a liberdade, lembrando que, em muitos episódios, àqueles foram essenciais para a estruturação de um projeto de poder à disposição de um regime autoritário, em que os opressores impunham seu olhar de mundo, atuando como pastores num rebanho em que os oprimidos os seguiam. Àqueles estabeleciam, pois, com os oprimidos uma relação de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão, se contentando, amoldando, concordando com o tratamento violento, de modo a não querer enxergar a realidade (BRAGA; ALVES, 2020).

Assim, a ideologia do dominador traz consigo uma <<invasão cultural, um alongamento da opressão do oprimido>>. Quando o opressor alcança êxito em colocar na cabeça do oprimido a ideologia de inferioridade, o oprimido passa a naturalizar a percepção do opressor. Logo, aquele começa a internalizar a superioridade da ideologia dominante em seu esquema mental. Em síntese, o opressor almeja modificar a mentalidade do oprimido, em vez de transformar a situação que os oprime (BRAGA; ALVES, 2020).

Daí que, nesse regime, estrangula-se a cidadania, tornando o ser humano cada vez mais distante da conquista de direitos. Noutros termos, existe uma inclinação a negar a efetivação dos Direitos. Aliás, não é de se estranhar que o próprio sistema normativo com ideias arbitrárias legitime atos de exceção:

Todo direito de exceção, como refém do poder, em outra dedução lógica, não pode servir à regra de que o direito concerne à Justiça, à retidão; toda exceção dirá que o direito tem exceções e que estas servem ao poder necessário à manutenção do direito. O que não se diz no regime de exceção, contudo, é que o que se define por direito, na verdade, é antidireito, ideologia, opressão social, clausura moral em que o direito se desvia do justo para atender aos princípios inerentes daqueles que se locupletam do poder estabelecido. O direito de exceção se baseia na ilusão de que o direito deriva do Estado e que esta seria a premissa do positivismo jurídico (MARTINEZ, 2014).

 

Consabido é que, no autoritarismo, a ordem prevalece sobre a justiça. Não se julga com o propósito de obter justiça social, mas com o escopo de subjugar o indivíduo a um sistema cruel e desumano.

Bom seria, não olvidar que nesse regime abundam normas de cariz autoritário e agentes que passam a se guiar por uma abordagem preferencial ao corporativismo, a tecnocracia e burocracia, quiçá assim não repetíamos os erros dos nossos antepassados que caíram no mito da ideologia opressora -ao confiarem ou mesmo ao se amedrontarem diante do terror usado para manter a estabilidade do regime- e, acabarem lançando apoio a homogeneização e dominação de grupos sociais.

Não nos surpreende que os regimes autoritários comunguem com ideologias contrárias a dignidade e emancipação do ser humano[15], espelhando um Direito impregnado de dogmatismos e autoritarismos, descomprometido, porquanto, com a dignificação da condição humana e com o porvir da humanidade.

Num background histórico, podemos aprender com as lições deixadas pela Ditadura Militar de 1964, que faz recordar um Direito que pouco tinha a dizer ao povo, um Direito que instrumentalizava princípios ideológicos cruciais para a manutenção do autoritarismo, que flertava com a censura, e refletia um aparelho jurídico de um Estado, imbuído pela ideologia ufanista e pelo militarismo que tanto se afastava dos ditames da paz, tolhendo a pluralidade e perseguindo a oposição. Não custa lembrar que há aqui uma distorção ideológica que consiste em transfigurar os adversários do governo em inimigos de Estado.

Nesse contexto de pouca ou nenhuma abertura para os debates, o Direito se afigura com uma abordagem técnico-formal, que ignora e nega a cidadania, assim como sepulta gramática da dignidade da pessoa humana. Tal direito, lamentavelmente conecta-se as ideologias usadas para legitimar atrocidades, práticas cruéis e desumanas, reputadas na atualidade como crimes contra a humanidade.

No regime totalitário da Alemanha de 1933-1945, que <<elevou a máxima potência as características do regime autoritário>> (Porfirio, s.d.), inúmeras pessoas foram contaminadas pela ideologia nazista, pelo antissemitismo, passando a exaltar a guerra ao invés da paz, muitos optaram por violar a gramática da dignidade da pessoa humana.

É de se ver que o antissemitismo, pouco a pouco, foi sendo introduzido na linguagem nazista. A partir da análise de Cláudio Fernandes (FERNANDES, s.d.) acerca do nazismo e do processo de instituição do terceiro Reich por Hitler, a retórica antissemita se perfez numa das características mais evidenciadas do regime nazista, que, por vezes, se conectou a outros discursos no intento, igualmente, de alijar a própria população alemã de uma consciência humana.

Em consulta a enciclopédia do Holocausto, vemos que os nazistas não hesitaram em utilizar a máquina da propaganda para controlar a imprensa alemã a serviço de sua ideologia racista:

Os nazistas entenderam como então utilizar o poder de atração das tecnologias então emergentes, como cinema, os autofalantes, o rádio e a televisão, a serviço de sua propaganda. Essas tecnologias ofereceram aos líderes nazistas mais uma forma de disseminação de suas mensagens ideológicas, sendo também um veículo para reforçar a invenção da Volksgemeinschaft[…] (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, [s.d])

 

Os meios de comunicação controlados constantemente pelo ministro da propaganda Joseph Goebbels, a quem <<uma mentira dita cem vezes torna-se verdade>>, traduz a proposta de teor psicológico da propaganda nazista. Fomentam-se hinos de louvor a figura do Füher e investem na linguagem nazista, encarnando a essência da raça ariana, levando àqueles que acreditam nessa crença, a demonizar seres como os judeus, ciganos, negros, comunistas, a desprezar deficientes físicos, perseguir homossexuais. Assim, tomando como referência a preleção de Luiz Sérgio Krausz, Fernandes transcreve literalmente o que se segue (FERNANDES, [s.d]):

“A gradativa entrega ao fanatismo que se observa na Alemanha dos anos 1933-1945 revela-se como o triunfo de uma retórica e de uma língua cujo objetivo é conduzir à criação de hordas e não de um corpo de consciências individuais. (KRAUSZ, Luis Sérgio. Consciência e inconsciência do nazismoPandaemonium ger., São Paulo. n. 15, 2010. p 194.)

 

A conduta racista de um nazista, por exemplo, indica um modo de pensar que considera algumas raças e etnias como inferiores. Assim, o nazista age, concretamente, de maneira peculiar em relação aos integrantes de grupos étnicos e raciais. Não é à toa que tendem a destruir sistematicamente grupos humanos, através de inúmeras ações pautadas numa ideologia de superioridade da raça ariana.

Atravessando os séculos, o racismo é nutrido pela ideologia, eis que incute ideias na cabeça dos racistas para que inferiorizam seres humanos. Veja, conquanto, que o legado do terror (escravidão, fascismo, nazismo, segregação racial, “apartheid”) nos assombram até os dias agora.

Assassinar um ser humano com base no grupo racial, recusar empregos com base em razões de aparência pessoal, impedir o acesso a determinados lugares por motivo de cunho racial, se reportar de maneira pejorativa ao alvo da discriminação, subestimar a inteligência, o potencial e capacidade de seres humanos por julgarem serem inferiores, são comportamentos que se pautam numa ideologia que nasceu num dado momento histórico, vinculado a interesses de opressão, exploração, dominação.

Repare, pois, que a ação de quem discrimina não é neutra. Há, como pano de fundo, reações emocionais, psicológicas, em que se nutre aqui sentimentos de desprezo, asco, ódio para com àqueles que eles consideram inferiores:

O racismo é um estereótipo, uma idéia preconcebida que, devido a determinado sistema de valores, alimentamos em relação a certas pessoas, atos ou situações. Porém, em quaisquer destas hipóteses, trata-se sempre de sentimento de um ser que se pretende superior face a indivíduos preconcebidos como inferiores. Sentimento este que constitui o substrato psíquico de uma posição autoritária e dominadora vis-à-vis do discriminado (LYRA, 2006, p.102-103).

 

O certo, porém, é deixar claro que, no autoritarismo, a percepção ideológica dominante, sempre latente de eclosão, defende escancaradamente a desigualdade, pregando um estado de guerra e terror. Tanto o ditador, quanto o totalitário lê o mundo influído por ideologias que inferiorizam alguns seres humanos e tornam superiores outros. Daí que, segundo eles nem todos os seres são considerados dignos de direitos e de proteção.

Por tudo isto, concluímos que o aparelho jurídico ideológico, no autoritarismo, concorre mais para colocar seres numa posição subalterna, em vez de emancipá-los, vai à contramão do ideal da democracia. Aliás, repise-se que numa democracia plena comunga-se de princípios que fazem menção, substancialmente, a dignidade e igualdade inerente a todos os seres humanos.

Afinal de contas, difícil crer que, por tudo que nos foi exposto, que a convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial seria respeitada num Estado com regime autoritário, quando sabemos que nem mesmo em certos Estados que se dizem democráticos, seus ditames são cumpridos. Contudo, podemos perceber que, existe, na democracia, um corpo normativo direcionado a anunciar que <<qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, em que, não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum>>.

No regime autoritário, não podemos esquecer de normas desumanas e cruéis com base no racismo. Como, por exemplo, àquelas que legitimaram o “apartheid” na África do Sul –  Lei de Terras Nativas (1913), Leis sobre nativos em áreas urbanas (1918), Lei do Passe (1945), Leis de proibição de casamento misto (1948), Lei de Registro Populacional (1950), Leis de Áreas de agrupamentos (1950), emenda à Lei de Imoralidade (1950), Lei de autodeterminação dos Bantus (1951), Lei de Educação Bantu (1953), lei de Minas e Trabalho (1956), Lei de Reserva dos  Benefícios Sociais (1953), Lei de Cidadania da Pátria Negra (1971), entre outras. Secundado Mbete, infere-se que <<apartheid durou muito tempo, pois foi construído em cima de uma estrutura ideológica bem fundamentada que restringia a influência negra em todos os cantos da sociedade >> (PAULINO, 2014).

Obviamente, do que foi dito, resta dizer, expressamente, que a ideologia nos regimes autoritário e totalitário possuem uma faceta bem negativa que impacta no Direito e na significação deste. Anote que o monopólio de produção e distribuição do Direito liga-se, nestes regimes, preferencialmente a princípios ideológicos que ora ocultam, ora legitimam, ora complementam e até mesmo aprofundam processos de exclusões sociais calcados na perda da qualidade de vida e na guerra. Além disso, expõe como os marcadores sociais de diferenças (tais como gênero, sexualidade, raça, etnia, classe social) atuam como verdadeiros rótulos, estigmas dentro de Estados com viés autoritário.

 

Conclusão

Curaremos a seguir de fazer alguns apontamentos finais a despeito do tema, de forma que se poderá, em resumo, afirmar que a história muito nos tem a ensinar. A começar pelo fato de que a democracia não é uma conquista definitiva, eis que está sujeita a ameaças que podem vir de onde menos esperamos.

Não estamos, em todo e qualquer caso, imunes a vivenciar regimes que constroem suas bases de poder operando com hibridismo entre democracia e totalitarismo, regimes que incorporam traços de tirania nas instituições democráticas, assim como positivam normas vinculando o aparelho estatal para perseguir opositores.

Repise-se, pois, que a democracia é algo frágil e como tal exige cuidados. Não é difícil concluir que sem o povo no poder, não há democracia e, o mesmo é válido para os direitos humanos. Contudo, o mesmo não se diria numa ditadura, onde o povo é alijado do poder, e violado constantemente em sua dignidade.

Como quer que seja, descortina-se nos regimes um direito – instrumentaliza princípios ideológicos para a manutenção do próprio regime. De lado das muitas questões deixadas de lado, caberá esboçar um breve retrato do Direito. Este, por si só, não é algo bom ou ruim. Todavia, a forma como empregamos com base na nossa compreensão do que seja real, com fulcro em nossas representações, valores e ideias, enquanto seres humanos, enquanto seres ideológicos, pode servir para fins louváveis ou não.

Não se ignore, pois, que a ideologia pode se conectar ao mundo das emoções. Por isso, a vida humana daqueles que operam com o Direito possuem fortes ligações com esse universo ora marcado por laços de solidariedade, ora de antagonismo.

Dito isto, agora é o momento exato para observar que àqueles que laboram com o Direito, por mais isento que possam ser, ainda se deixam contagiar por ideologias. Assim, por exemplo, advogados, defensores, promotores, magistrados não se revelam isentos no processo interpretativo.

Finalmente, almejando dar conta das principais conclusões a despeito do Direito como instrumento ideológico se faz oportuno, de forma sintética, anotar que:

  1. Nas democracias, o direito se configura essencial para manutenção do regime que, por ora, mais se coaduna com a gramática da dignidade da pessoa humana, com a emancipação humana, com a pluralidade, tolerância, alteridade, participação e inclusão social;
  2. Nos regimes autoritários, com inclinações antidemocráticas, os cultores do Direito apoiam a base do terror, lançando as sementes para negligenciarem os Direitos humanos, alimentando a crença na coerção do Estado. Exalta-se o uso da força, sem levar em conta o bem-comum, a verdade. O Direito é, pois, essencial para manutenção de uma ordem que oprime, domina, silencia, exclui grupos humanos, em patente menoscabo a dignidade da pessoa humana. Deste modo, instrumentalizado pelos poderosos está longe de zelar pela justiça e pela isonomia.

Em conclusão inapelável, diga-se que, embora a reprodução da imagem de mundo seja sempre eivada de deformações, nenhuma ideologia seria tão capaz de desagregar profundamente e de modo nocivo à personalidade humana como àquelas que estão presentes num regime autoritário. Por fim, dessumimos que tais ideologias, lamentavelmente, condenam o Direito a uma existência mesquinha, desumana, engessada, limitando o significado do Direito para a sociedade.

 

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[1] Mestre em Direito Internacional Público e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UNIVALI em convênio com a Associação Catarinense do Ministério Público, graduada em Direito pela Universidade Potiguar, OAB 11034.E-mail: [email protected]

[2] Exempli gratia, liberalismo clássico, neoliberalismo, conservadorismo, capitalismo, meritocracia, comunismo, socialismo, anarquismo, democracia, militarismo, nazismo, fascismo, neonazismo, nacionalista, de gênero, etc.

[3] Se infira, porém, que consta nos escritos de Pômpeo que, a partir de Napoleão, “o conceito de ideologia começou a envolver nas polêmicas que perduram até hoje. Napoleão passou a criticar a ideologia como ciência vã e especulativa, e mais tarde, quando a situação política piorou, passou a classificar todos os fenômenos contrários ao governo como ideologia. A verdade é que Napoleão fez da crítica da ideologia e dos ideólogos (os associados de Tracy) uma arma política. Logo, todos os problemas da França passaram a ser culpa da ideologia. Napoleão chegou inclusive a debitar na conta da ideologia a perda de uma guerra” (PÔMPEO, 2008).

[4] Em suma, no plano teórico, por ideologia entende-a como sendo:  a) manipulação: avesso ao discurso racional e ao comprometimento a realidade; b) ilusão: contrário da realidade, distante da compreensão racional do real; c) da classe dominante: se mantém na sociedade em decorrência de um jogo de interesses e favorecimentos da classe dominante.

[5] Nas palavras de Thompson (2000, p. 73) “concepções críticas são aquelas que possuem um sentido negativo, crítico ou pejorativo.” Assim, dessa perspectiva, todo fenômeno ideológico é enganador, ilusório e/ou parcial” (LOPES, 2014, p.20)

[6] Numa passagem do manuscrito, Marx e Engels entroncam que a produção de ideias, de representações, da consciência, está “diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta do comportamento material. […] a consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda a ideologia, os homens e suas relações parecem invertidas como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida inteira físico” (MARX; ENGELS, 1984, p.36-37, apud LYRA, 2006, p.93-94).

[7] Diga-se, aliás, que o “jurista que mais pensa ser independente é, as mais das vezes, e sem o saber, agente da filosofia espontânea da área (o positivismo legalista), a qual se desenvolve, afinal, numa metodologia e numa prática de aplicação acrítica dos ditames do poder, não apenas do poder político vigente, como dos poderes mais profundos que a este determinam, o cultural e simbólico e o económico. Cuidando não fazer política nem ter ideologia na rigidez cadavérica da simples obediência ao direito constituído, posto, positivo, o jurista cristalizado, agelasta, o mero “burocrata da coação” não afivela no palco da tragédia do Direito a máscara de rigoroso sacerdote da Justiça: é apenas a própria máscara que ostenta, deixando de ter um rosto próprio. Ou a máscara se lhe fundiu com a cara”. (CUNHA;2014, p.1302).

[8] Para Elza Afonso (1984, p.275), “a independência da ciência do Direito tão cara a Kelsen-não será obtida de uma posição acrítica, em que o conhecimento jurídico se liberta, não dos conteúdos valorativos do Direito, mas de qualquer responsabilidade perante conteúdos […] essa independência será alcançada quando a ciência do direito se comprometer com o valor maior que desafia a toda manifestação circunstancial do poder, que se sobrepõe a todas as colorações ideológicas – o da dignidade do homem, não para justificação, mas para qualificação de qualquer ordem jurídica existente”.

[9] Acerca dos pressupostos hermenêuticos gerais de Inocêncio Mártires Coelho, Godoy e Xavier (2015, p.861-862) evidencia que:<< 9. Nenhum juiz se encaminha virgem nem impermeabilizado para a decisão de um caso.10. Por mais que se esforce para ser objetivo, o juiz sempre estará condicionado pelas circunstâncias ambientais em que atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações, suas emoções, seus valores ético-políticos […] em todo juízo sempre estará presente alguma dose de prejuízo. 11.O juiz que acredita extrair a decisão “só da lei” e não também da sua pessoa, com suas características peculiares, incorre num erro certamente funesto, pois acabará sendo, inconscientemente, dependente de si mesmo.12.[…] afirma-se que o juiz asséptico, objetivo e imparcial não passa de uma impossibilidade antropológica, porque não existe neutralidade ideológica, a não ser sob a forma de apatia, irracionalidade ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém e muito menos de um juiz>>.

[10] Embora muitos juristas mais tradicionais, mais clássicos, ou eventualmente até mais pós-modernos (é curioso como vários tipos confluem) não gostem de conotações políticas e ideológicas para o seu saber e o seu labor, a verdade é que a essencial politicidade do Direito (outrora uma das ciências morais e políticas — e só depois considerado uma ciência humana e social) é dificilmente controvertível. Ignorar as relações do Direito não apenas com o poder como com as ideias, e mesmo as ideias falsas, legitimadoras e ilusórias que fundam muitas instituições e institutos (e desde logo os mitos fundadores do próprio Estado) é virar as costas a realidades que têm falsas, legitimadoras e ilusórias que fundam muitas instituições e institutos (e desde logo os mitos fundadores do próprio Estado) é virar as costas a realidades que têm uma presença poderosa no quotidiano do pensar e do agir dos juristas, e estão no âmago do próprio Direito. Compreende-se, evidentemente, o esforço de libertação da juridicidade dessas amarras, desses condicionalismos, mas sabe-se bem que os dois grandes momentos de tentativa de independentização da arte boa e équa de essas determinantes (a démarche realista clássica e a démarche do Teoria Pura do Direito kelseneana) se saldaram por fracassos. A primeira, por via do advento dos direitos humanos, e do reconhecimento da dignidade humana como primeiro título jurídico, a reclamar que um mínimo de digna subsistência seja garantido, ao menos, a qualquer pessoa. A segunda, porque ao querer purificar o Direito Kelsen acabou quase o hibridizando com o Estado. (CUNHA; 2014, p.1301-1302)”.

[11] “Nossa sociedade é produto de um longo processo de individuação, ou, nos termos de Norbert Elias (1996), de encapsulação individual do ser social. Os laços coletivos e os vínculos de dependência mútua, que caracterizam as sociedades anteriores, foram sendo quebrados até restar aquilo que Marx (1993) batizou de homem egoísta, “indivíduo separado da comunidade, confinado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal” (Marx, 1996: 58). Não é de se estranhar que este processo de individuação incidisse também sobre o Direito que se transforma, ainda segundo o pensador alemão, no “direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo” (IASI; p.171).

[12] O vazio real da democracia, para além do olhar nostálgico de um passado idealizado, expressa-se, de maneira crua, na persistência ou no aumento das desigualdades, no fosso cada vez maior entre o Norte e o Sul, na devastação ambiental, no desemprego e na insegurança do emprego, na permanência de “áreas marrons”, onde o Estado não age e onde a violência urbana e a violência contra as mulheres é a norma, no oligopólio dos meios de comunicação, na ausência de reformas agrárias, na exclusão, na feminização da pobreza, no aumento das doenças, nas diferentes expectativas de vida em virtude da localização social e no acesso aos bens públicos, no aumento do orçamento da repressão e no compromisso da guerra como solução de conflitos. Em última análise, este vazio vincula-se a assuntos que têm a ver com o diferente lugar que se ocupa no âmbito da produção e da reprodução social, tanto nacional como internacional. (MONEDERO, 2012, p. 74, apud CORTE, 2018).

[13] Bruno Galindo (2015, p.79-80), trabalhando com os conceitos de autoritarismo e democracia, analisa o labor de Karl Popper, enumerando, inclusive, postulados que podem ser extraídos da teoria política formulada por este notável filósofo, os quais sobreleva grifar: “Democracia não é somente governo da maioria (esta pode governar de maneira tirânica), mas aquele regime em que os governantes podem ser dispensados pelos governados sem derramamento de sangue (possibilidade real de mudança pacífica e institucional); b) Regimes políticos são variações das democracias (sociedades abertas) e das tiranias (sociedades fechadas);c)Única mudança legal previamente excluída é aquela que possa abalar profundamente ou abolir a democracia; d) Proteção às minorias como regra geral (há exceções como os violadores da lei e os ativistas antidemocráticos); e) Destruição da democracia implica destruição dos demais direitos (apesar de possíveis e temporárias vantagens econômicas e sociais); f) Apresentação de precioso campo de batalha para a realização de reformas sociais sem violência (Popper: 2001, pp. 129-133)”. De modo crítico, Galindo, em linhas subsequentes, nos faz ver que Popper, apesar de tudo, não deixou tão claro, no plano teórico, sobre os diferentes graus de democracia e autoritarismo que permeiam as múltiplas experiências políticas.

[14] “os regimes autoritários se caracterizam pela ausência de Parlamento e de eleições populares, ou, quando tais instituições existem, pelo seu caráter meramente cerimonial, e ainda pelo indiscutível predomínio do poder executivo. No segundo aspecto, os regimes autoritários se distinguem pela ausência da liberdade dos subsistemas, tanto no aspecto real como no aspecto formal, típica da democracia. A oposição política é suprimida ou obstruída. O pluralismo partidário é proibido ou reduzido a um simulacro sem incidência real (BOBBIO, MATTEUCI, PASQUINO. 1998, p.100).

[15] Tais ideologias prejudicam sobremaneira o raciocínio, distorcendo drasticamente a realidade.

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