Noções básicas de Direito Internacional Privado

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Sumário: Cosmopolitismo. Diversidade legislativa. Uniformidade das leis. Fatos anormais. Conflitos de leis. Coexistência das ordens jurídicas. Sociedade internacional. Certeza do direito.

 

Baseado na obra de Irineu Strenger, Direito Internacional Privado, São Paulo: LTr., 1996, pp. 29-42.

Cosmopolitisno

Os seres humanos não vivem isolados. A humanidade sempre revelou necessidade de se constituir por meio de comunidades.

A vida em sociedade, por sua vez, demonstra-se difícil e cheia de divergências nas relações interpessoais. Cada grupo social constitui suas próprias regras de relacionamento e convívio, segundo as suas próprias características, usos e costumes. Estes diferentes grupos nacionais constituíram, cada qual, um diferente Estado.

Os diferentes Estados nacionais constituem, no seu todo, a realidade mundial atual. Mesmo cada Estado formado não consegue sobreviver sem se relacionar com os outros Estados nacionais. Os países formados sempre se relacionaram de formas distintas, porém, ininterruptamente. O convívio internacional gera, por si só, a necessidade de se buscar um complexo de regras que se apliquem à sua comunidade de países.

Cada Estado representa uma realidade que gera uma ordem jurídica original.

 A natureza cosmopolita do ser humano e a variedade das leis estatais motivaram o nascimento das relações de direito internacional privado.[1]

O grande intercâmbio estabelecido de todas as ordens da vida fez surgir a sociedade internacional. Como toda a sociedade estabelecida requer um grupo de normas para a sua sobrevivência, também a sociedade internacional requer um grupo de normas que regulem as relações entre os diferentes países e seus cidadãos.[2] 

Diversidade legislativa.

Em cada país as leis que determinam os direitos das pessoas e a situação jurídica dos bens são diferentes.

Diz STRENGER:

“No plano do direito internacional privado o fenômeno jurídico se revela constituído pela pluralidade dos ordenamentos jurídicos e da relação que entre eles se estabelece. Sobre esse dado concreto é que opera o direito internacional privado”.[3]

O elemento é constituído da pluralidade de ordenamentos jurídicos e as relações de ordem privada entre os diferentes povos.

Sabe-se que a legislação de cada Estado deve ser expressão exata das necessidades de cada povo, tomando-se como referência sua cultura, seu grau de civilização, sua história.

O direito em cada Estado é variado.

Uniformidade das leis.

A uniformidade de legislações é algo quase irrealizável. O que se pode esperar é o ajustamento das diferentes ordens aos princípios mais universais de justiça.

É a opinião de STRENGER:

“Sendo as mais importantes instituições de direito apreciadas de modos diversos pela consciência jurídica nacional dos distintos Estados, e consagradas, em conseqüência, pelas suas leis, com caracteres às vezes contraditórios, torna-se mister que se ampare e reconheça a necessidade de vincular entre si os diversos modos pelos quais emerge o direito positivo entre os povos”.[4]

Fatos anormais.

Fatos anormais são aquelas ocorrências que exigem a interferência das regras de direito internacional privado.

Os fatos anormais acontecem quando duas ou mais leis divergentes, de diferentes ordenamentos jurídicos concorrem para resolver a mesma relação jurídica.

Conflitos de leis.

São três os fundamentos que explicam a existência do direito internacional privado. Os conflitos de leis no espaço, a extraterritorialidade das leis e o intercâmbio universal ou comércio internacional.

O direito internacional intervém nos casos em que há divergência entre leis de diferentes países. A solução da existência de uma legislação internacional única é considerada quase impossível, como sabemos.

A extraterritorialidade das leis é o segundo fundamento. Os diferentes países devem permitir a aplicação de leis estrangeiras em seus territórios em casos específicos para permitir a própria existência do direito internacional privado. Isto se interessa no interesse mútuo dos diferentes países em manter uma agenda internacional.

O comércio ou intercâmbio internacional é o terceiro fundamento da existência do direito internacional privado. Clóvis Beviláqua já explicava que o comércio internacional de um lado, e, de outro, a diversidade de leis, são o fundamento lógico e social do direito internacional privado que consistiria no conjunto de preceitos reguladores das relações de ordem privada da sociedade internacional. Deve ser ressaltado, entretanto, que a expressão “comércio internacional”, aqui, não quer dizer apenas mercantil, mas sim o intercâmbio entre os diferentes povos do universo, tanto mercantil quanto, familiar, cultural, artístico, etc.

A partir das relações entre os diferentes países, ocorrem conflitos de leis a serem resolvidos pelo direito internacional privado.

STRENGER conclui:

“Com a intensificação cada vez mais acentuada do comércio internacional, dominado quase inteiramente pelas práticas operacionais a ele concernentes e a sedimentação de usos e costumes peculiares, que se convencionou chamar de lex mercatoria, o direito internacional privado sofreu grande impulso doutrinário e prático, tornando-se em nossos dias a célula mater de inúmeras novas disciplinas que têm como base programática a metodologia que concerne aos fundamentos básicos das relações privadas e públicas internacionais”.[5]

Coexistência das ordens jurídicas.

O principal ponto ou, nas palavras de STRENGER, “…a pedra angular da teoria desse ramo do direito…”, é a coexistência de diferentes ordens jurídicas. Isto em razão da inexistência de um direito primário universal e de nenhum outro ramo do direito que desempenhasse esta função.[6]

Entretanto, é de se ressaltar que o direito internacional somente existe quando os sistemas jurídicos particulares não se negam a coexistir dentro de um regime de vida com este enfoque.

Sociedade internacional.

Clóvis BEVILÁQUA é quem admite a existência da sociedade internacional como fundamento do direito internacional privado. Baseando-se na doutrina de SAVIGNY DA “comunhão do direito”, admite essa comunidade entre povos independentes realizada pela adoção de um sistema harmônico de soluções de conflitos entre as legislações. São pressupostas aqui necessidades e aspirações comuns e determinantes da criação de instituições semelhantes, desenvolvidas pela sociedade internacional que resulta organizada pelos diferentes Estados.[7] 

Resulta que, em assim sendo, a comunidade internacional adota um sistema harmônico de solução de possíveis conflitos entre as diferentes legislações.

Já em 1911, por meio de comunicação no Congresso Jurídico de Heidelberg, BEVILÁQUA concluiu que:

“sociedade internacional formada por indivíduos de diferentes nacionalidades cimentada por interesses privados de toda a ordem, é um fato; onde existe uma sociedade é preciso que exista uma disciplina das relações de seus membros, ubi societas, ibi jus; o direito da sociedade internacional é o internacional privado”.[8]

Certeza do direito.

O direito internacional privado primordialmente visa a estabelecer a certeza do direito privado nas relações internacionais, por meio da adoção de princípios gerais que, ao conceder primazia a uma lei de determinado Estado, mantém um sistema capaz de racionalmente combinar as necessárias diferenças de cada qual.[9]

Conclusão.

Está na natureza dos seres vivos a coexistência em sociedades. A sociedade humana também não foge desta característica. Por tal razão, os diferentes grupos sociais reuniram-se, ao longo da História humana, em diferentes grupos com características predominantes de seus membros.

Na História contemporânea surgiram os Estados nacionais, sendo os mesmos grupos politicamente organizados, sujeitas assim a um governo próprio e soberano, de pessoas que se assentaram em territórios determinados.

Os diferentes países surgiram na Europa, a partir de Portugal, Inglaterra e Suíça. O que cabe notar, é a tendência revelada, desde então, às viagens comerciais marítimas ou terrestres a partir destes para novos lugares.

À medida que os séculos se passaram, a humanidade continuou a manter todas as espécies de relacionamentos dentro de diferentes países. No início do terceiro milênio podemos citar, inclusive, os avanços tecnológicos a aproximar cada vez mais as pessoas consumidoras de praticamente qualquer local do planeta Terra.

O fato é que, a cada dia que se pessoa, mais e mais pessoas viajam e fazem negócios de toda a espécie com pessoas de outros países diferentes dos seus.

 Cada grupo social politicamente organizado, ou seja, cada Estado possui um conjunto de leis que regula a vida daquelas pessoas que fazem parte do mesmo. Estas normas refletem necessariamente os valores praticados dentro do grupo. Isto porque tais leis são feitas, geralmente, por pessoas que representam o todo da população e devem espelhar os anseios daqueles que os elegeram representantes seus. Em outras palavras, cada grupo social produz ou deve produzir as normas que mais lhe assemelham o modo de ser e de viver. Em razão disto, os sistemas legais de dois ou mais países diferentes serão necessariamente distintos.

Pode ser considerada, na atual conjuntura mundial, uma utopia cogitarmos um conjunto único de leis para todas as centenas de países existentes na face da terra.

Somando-se as tendências humanas de se viajar e se relacionar com pessoas de diferentes partes do planeta, as diferentes legislações de cada país e as relações jurídicas entre diferentes pessoas de diferentes nações, a realidade resultante é a existência de uma sociedade internacional que deve ser regulada por normas que possibilitem, assegurem e garantam a convivência de todos e sem haver conflitos não solucionáveis entre dois ou mais cidadãos de diferentes nações.

 
Notas
[1] LAZCANO, Carlos Alberto, apud STRENGER Direito Internacional Privado, São Paulo: LTr., 1996, p-30.
[2] STRENGER, Irineu. Direito Internacional Privado, São Paulo: LTr., 1996, p-30.
[3] STRENGER (1996:31).
[4] STRENGER (1996:32).
[5] (1996:36).
[6] Idem.
[7] (1996:37).
[8] (1996: 37-39).
[9] (1996: 39-40).

Informações Sobre o Autor

Francisco Mafra.

Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.


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