O abolicionismo e a ressocialização do condenado

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Resumo: A investigação que se pretende desenvolver, nesta breve reflexão, tem por finalidade tercer críticas ao sistema penal vigente, com foco na questão abolicionista e na função ressocializadora da pena, ressaltando o pensamento de alguns defensores do abolicionismo, com o objetivo de responder à seguinte indagação: Afinal, o abolicionismo seria eficiente numa sociedade já profundamente traumatizada pela violência ou não passa de sonho utópico de juristas lunáticos?


Palavras chaves: abolicionismo penal – ressocialização – violência – discriminação – sistema penal


Sumario: 1. Introdução 2. Análise do sistema penal brasileiro e dos ideais abolicionistas 3. Louk Hulsman 4. Thomas Mathiesen 5. Nils Christie 6. Abolicionismo na sociedade brasileira. 7. Conclusões.


1. INTRODUÇÃO


  Floresce nos meios acadêmicos da Europa, desde o final da Segunda Grande Guerra, um movimento jurídico-social denominado Abolicionismo Penal, que procura envolver a sociedade organizada, solidária à clientela preferencial do sistema penitenciário (pobres, negros, africanos, asiáticos, homossexuais, ciganos, prostitutas, e outras minorias), na defesa da supressão da pena de prisão e, finalmente, na perseguição do objetivo maior dos abolicionistas, que é a extinção do próprio Direito Penal.


A investigação que se pretende desenvolver, nesta breve reflexão, tem por finalidade tecer críticas ao sistema penal vigente, com foco na questão abolicionista e na função ressocializadora da pena, ressaltando o pensamento de alguns defensores do abolicionismo, com o objetivo de responder à seguinte indagação: Afinal, o abolicionismo seria eficiente numa sociedade já profundamente traumatizada pela violência ou não passa de sonho utópico de juristas lunáticos?


2. ANÁLISE DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO E DOS IDEAIS ABOLICIONISTAS


É despiciendo se fazer qualquer questionamento em relação à função penal de ressocialização do indivíduo – a pena no Brasil sempre assumiu feições de caráter meramente punitivo, retributivo, e não de reintegração do indivíduo ao convívio social. Queremos crer que a sociedade brasileira nunca teve propensão para aplicar a lei com o fim de ressocialização do apenado, pois a clientela do sistema prisional é esmagadoramente composta por pessoas oriundas dos baixos extratos sociais e os demais aspectos da “socialização” do indivíduo são relegados a um segundo plano, como a educação fundamental, a assistência médico-hospitalar, erradicação do trabalho infantil etc.. Como podemos falar em “ressocialização” de quem não foi sequer socializado? Ressocialização no Brasil evidentemente jamais foi uma política de Estado.


Levando em consideração que, na contramão da expansão das idéias minimalistas e abolicionistas dos modernos pensadores do Direito Penal, há um clamor público nos países do terceiro mundo, notadamente no Brasil, em favor do agravamento das penas e até da implantação da pena de morte, discutir a Ciência Criminal e suas novas vertentes passou a ser uma preocupação dos operadores do Direito, que têm a obrigação maior de trazer, para a sociedade, uma resposta baseada no conhecimento histórico e científico, como meio de se contrapor às soluções demagógicas e empíricas de determinados setores do conservadorismo político-social.


Como é público e notório que o efeito prático das penas de prisão mostra-se em sentido oposto ao apregoado e que a ressocialização é uma ficção, o clamor dos abolicionistas pela extinção do Direito Penal ou, ao menos, pela sua minimalização soa mais autêntico aos ouvidos de quem busca uma evolução do Direito, ainda que em princípio, a idéia de libertar milhares de condenados perigosos cause perplexidade em quem vive em países de alto índice de violência como o Brasil. Para tanto, é preciso que pelo menos conheçamos as linhas mestras do abolicionismo penal, para que possamos aceitar e até tornar possível a elaboração de uma política penal compatível com a nossa realidade.


Abolicionismo, no aspecto semântico, é uma palavra originária dos movimentos de emancipação da escravatura no século XIX.  Segundo Vicenzo Guagliardo (1997), “a palavra abolicionismo nasceu na luta contra o escravismo”; hoje, qualifica um movimento que se propõe a realizar uma justiça sem prisões e os abolicionistas americanos sustentam que a luta iniciada contra a escravatura só terminará quando não mais houver penas de reclusão.


O abolicionismo no campo do Direito tem suas origens em fins do século XVIII, quando William Godwin questionava a coerção como método de pacificação social e prevenção dos delitos. Para Godwin, a melhor saída para a resolução dos conflitos é a conciliação e a educação, algo muito próximo do que é defendido pelos abolicionistas contemporâneos, como Hulsman, que defende a absorção do Direito Penal pelo Direito Civil.


O Abolicionismo Penal tem hoje três grandes expoentes – o professor holandês Louk Hulsman, que já esteve aqui na Bahia em 2004, e proferiu uma palestra no Auditório da Escola de Direito da UFBA, e os escandinavos Thomas Mathiesen, que já esteve em Porto Alegre, como palestrante em um congresso, e o professor Nils Christie.


Podemos citar ainda, como destacados abolicionistas, o alemão Sebastian Scheerer, e o argentino Raul Zafaroni, cujas obras Sistemas Penais e Direitos Humanos na América Latina, e Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal tiveram grande repercussão entre abolicionistas de todo o mundo. A seguir, faremos uma breve análise do pensamento dos três mais conhecidos abolicionistas europeus.


3. LOUK HULSMAN


Louk Hulsman nasceu em 1923, na Holanda e, desde 1964, leciona Direito Penal e Criminologia na Universidade de Roterdã. Participou da resistência contra a ocupação nazista durante a Segunda Grande Guerra e foi preso pela própria polícia holandesa (àquela época a serviço das forças de ocupação), e enviado para um campo de concentração, de onde conseguiu fugir.


Foi nesta época, questionando a própria reclusão, feita com auxílio da polícia de seu próprio país, que Hulsman começou a duvidar da eficácia da prisão. Diz ele, em entrevista, quando de sua passagem pelo Brasil – “descobri que a não ser excepcionalmente, o sistema penal jamais funciona como querem os princípios que pretendem legitimá-lo. (ENTREVISTA, 1996).


O foco do pensamento de Hulsman tem por base o fundamento de que, estatisticamente, a maioria das infrações penais não chega até a autoridade policial, e entre aquelas que chegam, apenas um número reduzidíssimo de seus autores é punido, sem que isso cause uma hecatombe social. Além disso, é fato que a supressão da pena privativa de liberdade, ou seja, o abolicionismo penal, já é praticado nas altas esferas da sociedade. A proteção de que se valem as pessoas ricas e influentes junto ao aparelho estatal, que quase sempre agem no sentido de repugnar a pena de prisão, é prova da seletividade social do Direito Penal, e os pobres irremediavelmente acabam constituindo a clientela do sistema penitenciário.


O mesmo pensamento do Professor Hulsman é compartilhado pelo jurista argentino, Raul Zaffaroni (apud MARCHI JUNIOR) – “múltiplos são os casos demonstrativos de que os poderosos só são vulneráveis ao sistema penal quando, em uma luta que se processa na cúpula hegemônica, colidem com outro poder maior que consegue retirar-lhes a cobertura de invulnerabilidade”.   


Do ponto de vista de nossa região periférica, não há razão alguma para se acreditar que seja menos utópico um modelo de sociedade no qual não existe invulnerabilidade penal para os poderosos do que um modelo de sociedade no qual seja abolido o sistema penal. Como se falar, então, em legitimação?


Hulsman divide o abolicionismo em duas vertentes – o abolicionismo acadêmico e o abolicionismo social. O abolicionismo acadêmico, que é sua principal atividade e que foi tema da sua palestra na Universidade Federal da Bahia em 2004, tem, por meta, questionar a linguagem da profissão. Segundo Hulsman, todas as profissões têm seu linguajar típico, forjado nas universidades, e, neste caso, o abolicionismo acadêmico visa abolir a atual linguagem conservadora, e substituí-la por outra, moderna e avançada, de forma que a mudança da linguagem funcione como elemento transformador da mentalidade e permita aos estudantes de Direito questionar a necessidade da justiça criminal. A partir desta mudança, o abolicionismo social será mera conseqüência. No livro Pene Perdute (2001), Hulsman enumera diversos fundamentos para justificar a extinção do Direito Penal:


● Castigo corporal – dizem que foi abolido, mas não é verdadeiro – a prisão degrada o corpo pela privação diária de sol, luz, espaço e pela promiscuidade dos companheiros de infortúnio.


● Relatividade – por que o fato de ser homossexual, usuário de drogas ou bígamo é punível em certos países e não em outros?


● Estigma – em numerosos casos, a experiência da prisão deixa, no condenado, cicatrizes que podem ser profundas e irreparáveis na ressocialização do indivíduo.


● Contragolpe – quando sai da prisão, o preso sente que pagou tão caro que passa a ser movido por sentimento de ódio e agressividade, ou seja, o efeito é totalmente oposto ao discurso oficial que pretende “ressocializar” o condenado, fazendo dele uma outra vítima.


● Indenização – em algumas situações, por que não recorrer às regras de direito civil, que já se aplicam em muitos pontos?


● Resoluções de conflitos – a maior parte dos conflitos interpessoais se resolve fora do sistema penal, graças a acordos entre os interessados.


● Desigualdade social – o sistema penal, ao excluir o preso da vida produtiva, cria e reforça a desigualdade social.


● Distância sideral – os juízes de carreira, assim como os políticos, são, social e psicologicamente, distantes dos homens que eles condenam. Para o juiz, a pena é apenas um ato burocrático e para nós, homens livres, a prisão e o prisioneiro constituem uma realidade distante.


● A vítima – a vítima não pode parar uma ação pública, uma vez que esteja em andamento. É vedado aceitar uma proposta conciliadora que possa garantir um ressarcimento aceitável.


Segundo Hulsman, as estatísticas mostram claramente que a impunidade penal é regra, e nem por isso o mundo deixou de ser mundo, e que o Direito Penal poderia ser absorvido pelo Direito Civil, sem que necessariamente houvesse uma convulsão social.


Enfim, para Hulsman, a justificativa para o abolicionismo está na ineficácia do Direito Penal para a resolução dos conflitos e na avaliação de que o sistema penal é um problema em si mesmo, pois é injusto, voltando-se prioritariamente contra os socialmente desamparados, sendo ineficaz na resolução dos conflitos e inútil como elemento de prevenção.  


4. THOMAS MATHIESEN


Thomas Mathiesen nasceu na Noruega, em 1933, é doutor em Filosofia e professor de Sociologia do Direito da Universidade de Oslo. É autor de numerosos livros, traduzidos em várias línguas, nas áreas de Sociologia do Direito, Criminologia, Sociologia do Poder e Sociologia dos Meios Massivos de Comunicação. É o mais notável pensador europeu na área do abolicionismo penal. Adotou a concepção marxista do Estado, como instrumento de dominação da classe dirigente contra os pobres e oprimidos, e está convencido que o Direito Penal funciona como elemento de legitimação dessa opressão, empurrando para as prisões, quase sempre, as pessoas deserdadas e sem influência junto ao sistema judiciário.     


Em seu mais destacado trabalho – Política da Abolição, ele relaciona oito itens que embasam os seus argumentos para a extinção das prisões:


1 – Aprisionamento não evita os encarcerados de reincidirem na conduta criminosa.


2 – A eficácia da prisão em dissuadir o crime é incerta e menos significante que outros fatores sociais que poderiam alcançar o mesmo resultado.


3 – A superpopulação dos presídios deveria servir como estímulo ao confinamento de menos prisioneiros e não para construir outros centros de detenção.


4 – As prisões possuem um caráter irreversível, tal que, se elas existirem, serão usadas. O perigo reside em manter populações carcerárias para justificar a sua própria existência.


5 – A expansão das prisões é dirigida por uma ação política que incentiva a sua proliferação, levando a um momento em que é difícil parar de erguê-las.


6 – As prisões são desumanas.


7 – Valores culturais embutidos no significado das prisões refletem uma crença social de violência e degradação. Quando as prisões se expandem, disseminam-se valores negativos que simbolizam a aceitação desta estratégia para a resolução de conflitos interpessoais.


8 – Prisões têm baixíssimo custo-benefício.


Na visão de Mathiesen (1996),


Se as pessoas soubessem o quão frágil é a prisão, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas, um clima para desmantelamento das prisões começaria já, uma vez que a solução altamente repressiva falhou. A maior dificuldade no momento para a abolição das prisões é que as pessoas ainda acreditam que as prisões funcionam.


Mathiesen analisa os principais objetivos normalmente defendidos para justificar o encarceramento:


– Primeiro, a ressocialização este talvez seja o mais fácil de ser desmistificado. Há vários estudos que demonstram a ineficiência da prisão no quesito reabilitação. As prisões estão mais para escolas do crime do que para centros de ressocialização e, se há casos esporádicos de reabilitação, seguramente correspondem a um índice mínimo que não justificaria o objetivo supracitado.


– Segundo, a intimidação  a idéia de que o transgressor, ao ser levado ao cárcere, passa a temer a prática do crime. Este argumento, Mathiesen considera tão fácil quanto o primeiro para desmistificar, ou seja, além dos estudos e pesquisas demolirem este argumento, a população está exaustivamente informada sobre como os criminosos continuam chefiando quadrilhas de dentro das prisões, ordenando seqüestros, roubos, assassinatos etc.


– Terceiro, a prevenção geral  Mathiesen considera este argumento difícil de mensurar através de pesquisas, que são “menos sensíveis”, mas, numa afirmação conservadora, é de resultado incerto e, seguramente, menos importante nas áreas de relevância econômica e social do Estado.


De fato, em uma região pobre e desassistida e com intensa repressão do aparelho policial, o índice de criminalidade é infinitamente superior, se esta for comparada a uma região com alto índice de desenvolvimento humano e com baixo nível de policiamento ostensivo. Nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos do Brasil, o efeito da prevenção é tímido ou, como diz o jurista norueguês, “…é mínimo em grupos populacionais predispostos ao crime, enquanto talvez seja mais forte em grupos que por outras razões são, de qualquer modo, obedientes à lei” (1996).


Mathiesen cita um estudo do criminologista alemão Karl Schumann, entre jovens infratores alemães. A conclusão é que o risco da prisão e a severidade da punição não surtiam efeito preventivo, a não ser em ações criminosas insignificantes, como pequenos furtos, uso de metrô sem pagar etc., possivelmente porque as características das pessoas potencialmente praticantes destes crimes de pequeno poder ofensivo sejam mais sensíveis ao efeito preventivo. No entanto, o efeito preventivo era quase nulo sobre os potenciais praticantes de crimes graves.


Pelo resultado da pesquisa, o efeito preventivo existe de fato, mas não tem caráter relevante, notadamente em relação aos delitos de maior potencial ofensivo. Por fim, cita ainda que, entre 1973 e 1982, a quantidade de prisões dobrou nos Estados Unidos e, nem por isso, a atividade criminosa diminuiu.


Mathiesen então propõe uma mudança no eixo da ação estatal direcionado às vítimas – compensação econômica do Estado, quando possível, centros de apoios para vítimas da criminalidade (ou seja, ao invés de aumentar a punição ao agressor, propõe aumento de apoio à vítima).


“A guerra contra o crime deveria tornar-se uma guerra contra a pobreza, a legalização do consumo de drogas eliminaria a indústria criminosa do tráfico, que é uma das mais nocivas e caras à sociedade e os recursos viriam do próprio desmantelamento do sistema carcerário, de alto custo para o poder público.” (MATHIESEN,1996).


Por fim, Mathiesen admite a possibilidade de manter algumas pessoas encarceradas, mas que isto deverá ser reduzido ao mínimo, para casos peculiares, e a forma de tratar o preso deverá ser completamente diferente. Ressalta ainda que, com um reduzido contingente carcerário e dando-se a devida atenção, aí, sim, o Estado poderá obter um aumento significativo no índice de ressocialização.


5. NILS CHRISTIE


O sociólogo e criminologista Nils Christie, nascido em 1928 na Noruega, e Professor do Instituto de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Oslo, é um dos mais notáveis intelectuais noruegueses, sendo muito conhecido por sua capacidade de analisar as questões relativas ao sistema penal. Seus livros, traduzidos em muitos idiomas, tornaram-se leitura obrigatória para os defensores do abolicionismo penal. Christie foi o primeiro intelectual de renome internacional a chamar a atenção para a indústria do controle do crime. Nos Estados Unidos, as penitenciárias foram privatizadas e tornou-se um negócio altamente lucrativo e, ao mesmo tempo em que oferece emprego, paradoxalmente passou a depender de uma crescente clientela para se justificar. Bairros periféricos disputam a instalação de prisões, devido à geração de empregos nestas regiões.


Para Christie, o grande inimigo do ser humano é o Estado. O Estado é um elemento decididamente perigoso para a vida humana, notadamente no âmbito do sistema penal. Ao cair numa prisão, seja americana, russa ou de qualquer outro país, é alto o risco de sair morto, ou destruído do ponto de vista psicológico e social. Segundo Christie (2006), referindo-se aos EUA: “…não é possível assistir uma nação duplicar sua população carcerária em apenas 10 anos, com uma taxa de quase 700 presos para 100.000 habitantes, em sua maioria pobres ou incômodos ao poder”. Neste aspecto, ele parece ter razão, pois, segundo a organização Califórnia Prison Focus, nenhuma sociedade encarcerou tanto na história humana, como atualmente fazem os EUA. (INDÚSTRIA…2005).


De acordo com Christie, é muito baixa a possibilidade de que uma pessoa deixe de praticar uma ação porque um outro indivíduo foi encarcerado por um ato análogo. Quando se perde o controle, não se pensa nem no código penal nem em quem está nas celas e muito menos quando se age por necessidade de sobrevivência econômica, como, por exemplo, um camponês boliviano que cultiva ou transporta coca, ou quando há um mecanismo de gratificação em um ambiente degradado, no qual a violência é o único meio de emergir. É sabido por todos, por exemplo, que, no meio das favelas do Rio de Janeiro, um jovem traficante, armado com reluzente fuzil AR-15, ocupa posição de status elevado entre seus pares – é temido, respeitado e valorizado pelos garotos e garotas pobres que buscam proteção entre os traficantes.


Em entrevista realizada em março de 2004, em Padova, Itália, Christie afirma que o crime não é um conceito de valor absoluto. Depende do lugar, da sociedade, da época. Determinada ação praticada por uma pessoa, tem que ser vista no contexto em que é praticada.


“Para um camponês afegão que cultiva a papoula, matéria prima do ópio, não há nada de reprovável, enquanto que para nós, ocidentais, é algo degradante; no entanto, as partes se invertem quando tomamos em consideração o gesto de lançar bombas de fragmentação sobre os vales onde ele vive.” (INTERVISTA.2004)


Quando um adolescente furta a mesada do irmão, ao ser descoberto pelo pai, ele o acusa de ladrão? O pai considera este filho, um delinqüente? Christie pergunta se estes atos são crimes para punir ou um comportamento para se entender. Quais são as condições sociais e pessoais que determinam a leitura em uma e noutra direção?  


Finaliza Christie que, se queremos que a sociedade na qual vivemos seja feita de pessoas responsáveis, devemos empenhar-nos para difundir a idéia de que o delito é algo relativo, que o legal e o ilegal não são mais que opiniões.


Em um livro de Christie (1985), cujo título em inglês é “Limits to Pain”, (traduzido para o italiano como Abolire le Pene?), no capítulo 11, intitulado Justiça Participativa, o jurista faz a si mesmo, a questão mais polêmica a respeito do assunto – qual a solução alternativa? – Primeiro, diz ele, “é importante não partir do pressuposto que o conflito deva ser necessariamente resolvido; a obrigação da solução é um conceito puritano e etnocêntrico”.


Ele admite um conceito alternativo, que ele chama de “administrar o conflito”, ainda assim, segundo ele, uma escolha limitada, etnocêntrica.


“Em verdade, os conflitos devem ser resolvidos, mas deve-se também conviver com eles. A expressão mais correta, seria “gestão dos conflitos” ou melhor, ainda, “participação nos conflitos”, que não focaliza atenção nos resultados, mas na ação. Na sociedade atual, a vítima de um delito criminal é duplamente perdedora – defronte ao agressor e defronte ao estado, que a exclui de qualquer possibilidade de participar do conflito do qual é protagonista.” (CHRISTIE, 1985).


Para Christie, a prioridade é restabelecer a paz e, especificamente ressarcir a vítima. O ressarcimento da vítima é uma espécie de solução natural a que recorrem quase todos os povos do mundo, em muitas situações. Christie questiona  por que pelo menos não estendemos o sistema de ressarcimento imediato da vítima, restringindo assim, o campo da legislação penal? (CHRISTIE, 1985)


O que mais nos agrada no pensamento de Nils Christie (1985) é a franqueza em declarar que não temos necessariamente que admitir uma solução imediata para o problema da criminalidade. Ele questiona: “até que ponto um crime é considerado reprovável quando a vítima é um pobre e o culpado é rico e poderoso? E quando estamos diante de um caso inverso, um pobre ladrão diante de uma vítima rica? Uma pessoa rica e educada deveria pagar mais ou menos pela infração cometida”?


6. ABOLICIONISMO NA SOCIEDADE BRASILEIRA


Como dito no início desse estudo, a sociadade brasileira clama por segurança pública, pois já não suporta o crescimento da violência, apesar de saber que o sistema prisional é ineficiente na ressocialização do indivíduo e que a solução para o problema é muito mais complexa que a atitude simplista de confinar um condenado numa penitenciária.


Cremos que o redirecionamento das ações do Estado, com esteio nos ideais abolicionistas, poderia contribuir substancialmente para a redução da criminalidade.


Como Mathiesen, defendemos um sistema penal misto, que privilegie a compensação econômica, sempre que possível, porém que admita o encarceramento em casos realmente excepcionais, inclusive para se evitar a criação de centros privados de poder e o exercício da autotutela (olho por olho, dente por dente), contudo sempre tratando o preso com dignidade e respeito e dando-lhe o devido acompanhamento, inclusive psicológico, para que possa ser reintegrado no seio da sociedade.


Não temos dúvida que a solução para a contenção da criminalidade no Brasil está na educação e no combate à pobreza, bem assim que o Poder Judiciário tem importante papel nessa conquista.


7. CONCLUSÕES


– A pena no Brasil sempre assumiu feições de caráter meramente punitivo, retributivo, e não de reintegração do indivíduo ao convívio social;


– O sistema penal brasileiro tem sido ineficiente para conter a criminalidade;


O redirecionamento das ações do Estado, com esteio nos ideais abolicionistas, poderia contribuir substancialmente para a redução da criminalidade.



Informações Sobre o Autor

Jose Cícero Landin Neto

Especialista em Ciências Criminais, Convênio EMAB e Universidade da Amazônia, Juiz de Direito do Estado da Bahia


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