Validade jurídica de documentos eletrônicos. Considerações sobre o projeto de lei apresentado pelo Governo Federal

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Recentemente, a Casa Civil da
Presidência da República submeteu ao crivo da sociedade em geral, na forma de
consulta pública1, um projeto de lei sobre documentos
eletrônicos (“dispõe sobre a autenticidade e o valor jurídico e
probatório de documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos
federais, estaduais e municipais, por meio eletrônico, e dá outras providências
“)2.

Como temos dedicado um tempo razoável
na pesquisa e estudo das várias relações entre o direito e as modernas
tecnologias da informação, tendo inclusive produzido um singelo trabalho acerca
dos meios eletrônicos e a tributação3,
realizamos uma análise, ainda que sumária, da proposta em questão.

Importa sublinhar que a matéria em foco
(validade jurídica dos documentos eletrônicos) representa o principal tema em
debate no campo do direito da informática. Afinal, o traço fundamental
da sociedade da informação consiste justamente na desmaterialização de
conceitos tradicionais, como o de documento. Por outro lado, avança de forma frenética
a utilização de registros eletrônicos de atos jurídicos, onde são literalmente
abandonadas as formas de armazenamento em papel 4.

O projeto de lei em questão apresenta
um defeito grave. Com efeito, trata dos documentos eletrônicos produzidos, emitidos
ou recebidos por órgãos públicos e pelas empresas públicas. Assim, os
documentos utilizados nas relações que envolvem tão-somente particulares não se
beneficiam do regramento ora discutido. Esta limitação ou restrição
decididamente não é aceitável5.

Esta errônea opção, esquecendo ou
desconsiderando as relações entre particulares, afronta a
necessidade de segurança jurídica nas relações comerciais por meios
eletrônicos, já significativas na Internet brasileira. Na quadra histórica em
que vivemos podemos afirmar, sem medo de errar, que um dos mais relevantes
instrumentos para o progresso ou desenvolvimento das atividades econômicas
consiste justamente na regulamentação dos documentos eletrônicos.

Curiosamente, o art. 5o. do projeto de
lei autoriza o arquivamento de documentos particulares por meio
magnético ou similar. Impõe-se a indagação: se tratou do arquivamento por que
não contemplou a produção e a circulação dos mesmos?

Deve ser ressaltado que as legislações
alienígenas sobre a matéria não consagram a opção restritiva antes destacada.
Pode ser apresentado, a título de exemplo, o Decreto-Lei n. 290-D, de 2 de
agosto de 1999, de Portugal 6.

É certo que alguns países, notadamente
na América Latina, iniciaram a normatização dos
documentos eletrônicos por intermédio de diplomas legais restritos à
Administração Pública. Nesta tendência se inclui o Brasil com a edição do
Decreto n. 3.587, de 5 de setembro de 20007.
Portanto, o próximo passo a ser dado consiste justamente em regular o assunto
para todas as relações jurídicas (públicas e privadas) ocorridas na sociedade.
Aparentemente não tem sentido continuar a trilhar este caminho apenas nos
domínios públicos.

Por outro lado, o projeto de lei, para
garantir valor jurídico (e probatório) aos documentos eletrônicos, consagra os
princípios anunciados pelos mais abalizados estudos da problemática em foco: autenticidade
(identificação do autor) e integridade (não alteração do documento).
Assumindo, como pensamos, o não-repúdio como decorrência da autenticidade.

O projeto adota uma das mais
importantes e corretas diretrizes firmadas na seara do direito da
informática
: a não edição de norma com força de lei consagrando uma
determinada tecnologia, mesmo que dominante ou única naquele momento.
Considerando a constante, porque não dizer frenética, evolução tecnológica não
convém que o diploma legal sobre a matéria faça uma opção por esta ou aquele técnica, que pode restar ultrapassada em
curto lapso de tempo.

Entretanto, seria de todo conveniente
que o dispositivo referido remetesse expressamente ao regulamento a
técnica de assinatura digital a ser utilizada, não fazendo referência a uma
designação momentânea, mutável e criada para a Administração Pública Federal
como o ICP-Gov (Infra-Estrutura de Chaves Públicas
Governamental). Afinal, o regramento do assunto será aplicável
a todos os entes da Federação, dotados de autonomia administrativa e,
justamente por esta razão, refratários ao comando do Chefe da Administração
Pública Federal, mas não ao regulamento da lei nacional.

Existe, contudo, um aspecto do uso da
assinatura digital que a nosso ver não poderia ser deixado ao regulamento: a
definição do sistema de certificação e credenciamento, processos cruciais para
garantia das pretendidas autenticidade e integridade. Entre outros razões, a
polêmica doutrinária acerca da extensão da atividade notarial (art. 236 da
Constituição Federal) 8 reclama tratamento legal. Afinal, a
Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 19949,
estabelece que os serviços notariais destinam-se, entre outras finalidades, a
garantir a autenticidade dos atos jurídicos 10.

Constatamos a ausência de definições precisas
de original e cópia de documentos eletrônicos, como presente em legislações
estrangeiras e, com muita propriedade, no Projeto de Lei n. 1.589/1999, oriundo
da OAB de São Paulo11.

Verificamos, outrossim, uma preocupação
excessiva com o arquivamento de documentos em meios eletrônicos ou similares e,
por outro lado, a ausência de importantes definições relacionadas com a
comunicação de documentos eletrônicos.

Por fim, deve ser ressaltado que
atualmente, antes da edição de qualquer lei sobre a matéria, a validade
jurídica dos documentos eletrônicos não pode ser recusada, em função do
disposto nos arts. 82, 129, 136 e 1.079 do Código
Civil e dos arts. 131, 154, 244, 332 e 383 do Código
de Processo Civil12. O projeto, tal como posto, terminaria
por subtrair a validade dos atuais documentos eletrônicos. Afinal, somente
seria reconhecido valor jurídico e probatório aos documentos eletrônicos onde
fossem assegurados a autenticidade e a integridade
(art. 1o. do Projeto). Estes condicionamentos não condizem com a tradição de
liberdade de forma dos atos jurídicos no direito brasileiro, onde se admite até
o contrato verbal ou por manifestação tácita de vontade.

Podemos concluir, a partir desta rápida
análise, que a proposta possui três marcas negativas bem nítidas: a) comete um
erro inaceitável na definição da abrangência de seus efeitos; b) deixa de regular inúmeros aspectos cruciais relacionados com os
documentos eletrônicos e c) afasta a validade jurídica, hoje presente, dos
documentos eletrônicos quando não asseguradas, por meio hábil, a autenticidade
e a integridade.

 

Notas:

1 Site da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br.

2 “Dispõe
sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de documentos produzidos,
emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais e municipais, por
meio eletrônico, e dá outras providências.

CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1o. Os documentos produzidos,
emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais ou municipais,
bem como pelas empresas públicas, por meio eletrônico ou similar, têm o mesmo
valor jurídico e probatório, para todos os fins de direito, que os produzidos
em papel ou em outro meio físico reconhecido legalmente, desde que assegurada a
sua autenticidade e integridade.

Parágrafo único. A autenticidade e
integridade serão garantidas pela execução de procedimentos lógicos, regras e
práticas operacionais estabelecidas na Infra-Estrutura de Chaves Públicas
Governamental – ICP-Gov.

Art. 2o. A cópia, traslado ou
transposição de documento em papel ou em outro meio físico para o meio
eletrônico somente terá validade se observados os requisitos estabelecidos
nesta Lei e em seu regulamento.

Art. 3o. A reprodução em papel ou em
outro meio físico de documento eletrônico somente terá validade jurídica se
autenticada na forma do regulamento.

Art. 4o. O documento eletrônico a que se
refere esta Lei deverá ser acessível, legível e interpretável segundo os
padrões correntes em tecnologia da informação.

Art. 5o. Fica autorizado o arquivamento
por meio magnético, óptico, eletrônico ou similar, de documentos públicos ou
particulares.

Art. 6o. Atendido o disposto nesta Lei,
os documentos arquivados na forma do artigo anterior, assim como suas
certidões, traslados e cópias obtidas diretamente dos respectivos arquivos em
meio magnético, óptico, eletrônico ou similar, produzirão, para todos os fins
de direito, os mesmos efeitos legais dos documentos originais.

Art. 7o. O arquivamento deverá garantir
a integridade e autenticidade dos documentos, assegurando, ainda, que:

I – sejam acessíveis e que os
respectivos dados e informações possam ser lidos e interpretados no contexto em
que devam ser utilizados;

II – permaneçam disponíveis para
consultas posteriores;

III – sejam preservados no formato em
que foram originalmente produzidos.

Art. 8o. O sistema de arquivamento na
forma autorizada por esta Lei deverá ainda:

I – manter equipamentos de computação
necessários para a recuperação e a exibição dos dados arquivados, durante o
prazo em que as respectivas informações permanecerem úteis;

II – dispor de métodos e processos
racionais de busca e trilhas de auditoria;

III – conter dispositivos de segurança
contra acidentes e emergências, capazes de evitar a destruição ou qualquer dano
que impossibilite o acesso aos dados arquivados ou em processo de arquivamento.

Art. 9o. Os documentos em papel ou em
outro meio físico e que tenham sido arquivados em meio magnético, óptico,
eletrônico ou similar poderão, a critério da autoridade competente, ser
eliminados por incineração, destruição mecânica ou outro processo adequado para
este fim.

§ 1o. A eliminação a que se refere o
caput far-se-á mediante lavratura de termo circunstanciado, por autoridade
competente.

§ 2o. Os documentos de valor histórico
não serão eliminados, e poderão ser arquivados em local diverso da repartição
que os detenha, para sua melhor conservação.

Art. 10. Esta Lei
entra em vigor na data de sua publicação.”

3 O texto pode ser encontrado no
seguinte endereço eletrônico: http://www.aldemario.adv.br/meios.htm.

4 Informações da FEBRABAN revelam que em
1999 no Brasil, 9,3 trilhões de operações foram realizadas
sem a intervenção de funcionários, representando 67% do total de transações. E
mais: 2,6 bilhões de cheques compensados, contra 4,6 bilhões de transações eletrônicas.
De 1998 para 1999, o número de transações pela Internet saltou de 38,7 milhões
para 126,3 milhões. Fonte: http://www.modulo.com.br/noticia/a-insegur.htm.

5 “A matéria (regulamentação de
documentos eletrônicos) deveria ser examinada e deliberada no foro apropriado,
que me parece ser o Parlamento, e não ser implantada unilateralmente por um
órgão da Administração Pública na sua esfera de atuação (Secretaria da Receita
Federal), quando se trata de matéria que deve receber tratamento uniforme em
relação a todos os tipos de relações jurídicas.” GRECO, Leonardo. A
Revolução Tecnológica e o Processo. Revista Crítica. Publicação do Centro
Acadêmico Cândido de Oliveira. Faculdade Nacional de Direito. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Outubro/Novembro de 2000. Págs. 13 e 14.

6 O diploma legal pode ser encontrado no
seguinte endereço eletrônico: http://www.giea.net/legislacao.net/internet/assinatura_digital.htm.

7 O diploma legal pode ser encontrado no
seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3587.htm.

8 “Art. 236.
Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.

§ 1o. Lei regulará as
atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos
oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus
atos pelo Poder Judiciário.”

9 O diploma legal pode ser encontrado no
seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8935.htm.

10 “A segunda perspectiva é de que
se transfira, para o momento e para o opaco foro da regulamentação da lei, o
embate relativo à atribuição da prerrogativa de registro de certificados
eletrônicos – se aos cartórios ou, como ocorre hoje, a empresas especializadas
e escolhidas pelas partes para reconhecer e garantir veracidade a documentos
transmitidos pela rede.” ORSI, Ricardo. O comércio eletrônico e um novo
direito da prova: questões jurídicas e o projeto em tramitação no Senado
Federal. Revista Direito em
Ação. Universidade Católica de Brasília. Volume 1. N. 1.
Dezembro de 2000. Pág. 146.

“(…) Não obstante, continuamos a
sustentar nossa discordância em relação à solução apresentada pelos arts. 33 e 34 (Projeto da OAB/SP) no sentido de que somente
a assinatura digital do Tabelião lançada em cópia
eletrônica de documento físico original, teria o valor de autenticação.” LUCCA, Newton de. Títulos e contratos eletrônicos: o
advento da informática e seu impacto no mundo jurídico. Direito e Internet. 1ª
Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 68.

“Nesse aspecto, o Projeto (da
OAB/SP) distancia-se da tendência internacional de deixar à iniciativa privada
a condução do comércio eletrônico em geral, e da atividade de certificação em
especial, como instrumento de formação de um mercado aberto e
competitivo.” QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura digital e o
tabelião virtual. Direito e Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 408.

Neste particular, entendemos que a legislação
brasileira deve seguir as tendências internacionais. Juridicamente, a lei,
conforme prevê o art. 236, §1º da Constituição, fixará as iniciativas
compreendidas, ou não, entre as atividades dos oficiais de registro. Assim, o
legislador não está vinculado a atribuir tais ações tão-somente aos notários,
restringindo o desenvolvimento das atividades sociais dependentes das
assinaturas digitais.

11 O Projeto de Lei da OAB/SP pode ser
encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.informaticajur.hpg.com.br/ploab.htm.

12 Código Civil:

“Art. 82. A validade do ato
jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em
lei.”

“Art. 129. A validade das
declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei
expressamente a exigir.”

“Art.
136. Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão
provar-se mediante:

I – Confissão;

II – Atos processados em juízo;

III – Documentos públicos ou privados;

IV – Testemunhas;

V – Presunção;

VI – Exames e vistorias;

VII – Arbitramento.”

“Art. 1.079. A manifestação de vontade, nos
contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa.”

Código de Processo Civil:

“Art. 131. O juiz apreciará
livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos,
ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os
motivos que lhe formaram o convecimento.”

“Art. 154. Os atos e termos processuais
não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir,
reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham
a finalidade essencial.”

“Art. 244. Quando a lei prescrever
determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato
se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”

“Art. 332. Todos os meios legais,
bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são
hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a
defesa.”

“Art.
383. Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica,
cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das
coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir a
conformidade.

Parágrafo único. Impugnada
a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a realização de exame
pericial.”

“Há quem sustente, no entanto, como
o gaúcho CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM (9), que o Código de Processo Civil, na
seção destinada a regular a prova documental, abarca, também, os documentos
eletrônicos, desde que o critério de interpretação não seja o literal”.
NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos jurídicos do documento
eletrônico. Revista eletrônica Jus Navigandi.
Disponível em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso em: 2 mar.
2001.

“Entendemos, também, que a validade
do documento eletrônico em si não deve ser questionada. Ora, se um contrato
verbal é admitido como válido desde 1916, o contrato realizado em meio
eletrônico por maior razão deverá ser considerado como válido, afinal qual pode
o mais pode o menos.” NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos
jurídicos do documento eletrônico. Revista eletrônica Jus Navigandi.
Disponível em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso em: 2 mar.
2001.


Informações Sobre o Autor

Adelmário Araújo Castro

Procurador da Fazenda Nacional
Professor de Informática Jurídica e Direito da Informática da Universidade Católica de Brasília


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