A Apelação Parcial da Fazenda Pública e uma Análise da Aplicabilidade da Remessa Necessária ao Capítulo da Sentença Não Impugnado

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Gabriela Thamires Kotschella. Advogada, Especialista em Direito Público ([email protected]).

Resumo: Também nominado reexame necessário, o instituto da remessa necessária foi objeto de substanciais modificações com o advento do Código de Processo Civil de 2015, dentre as quais ocupa posição de destaque o afastamento da possibilidade de reexame quando interposta apelação, à vista da redação do art. 496, §1° do aludido diploma processual. Entrementes, remanescem dúvidas em relação aos efeitos da apelação parcial da Fazenda Pública sobre o capítulo da sentença não recorrido e no qual tenha, igualmente, sido sucumbente. Isso porque a literalidade do dispositivo referido viabiliza interpretações dúbias, que colocam em cheque a segurança jurídica do processo civil e impedem uma padronização do entendimento jurisprudencial a respeito do tema. Ainda assim, uma abordagem jurídica dos elementos caracterizadores da remessa necessária, da lógica geral do processo civil e da intenção do legislador ordinário ao redigir o CPC/15, conduz à conclusão de que a apelação parcial não é óbice ao reexame da sentença pelo tribunal, contanto que este seja restrito à parte não recorrida da decisão, não obstante subsista a necessidade de tomada de medidas legislativas ou jurisprudenciais para a pacificação do tema, a bem da estabilidade e da segurança jurídica no direito processual civil.

Palavras-chave: Remessa Necessária. Apelação Parcial. Fazenda Pública.

 

Abstract: The necessary review has undergone substantial modifications by virtue of the Code of Civil Procedure of 2015, among which occupies a prominent position the removal of the possibility of necessary review when there is appeal, due to the provisions of art. 496, §1° of the referred procedure law. Meanwhile, doubts remain regarding the effects of the Public Law Entity’s partial appeal on the non-appealed sentence chapter in which it the State has been succumbed. This is because the literality of the referred device enables dubious interpretations, which put in check the legal security of the civil process and prevent a standardization of jurisprudential understanding on the topic. Even so, a legal analysis of the elements that characterize the necessary review, of the general logic of the civil procedure and of the intention of the legislator when he wrote the CPC/15, leads to the conclusion that the partial appeal is not an obstacle to the review of the sentence by the court. For this to succeed, the necessary review must be restricted to the non-appealed part of the sentence, despite the need to take legislative or jurisprudential measures to pacify the issue, for the sake of stability and legal security.

Keywords: Necessary Review. Partial Appeal. Public Law Entity.

 

Sumário: Introdução. 1. Apelação: noções gerais. 2. O tratamento jurídico da remessa necessária no sistema processual civil vigente. 3. A apelação parcial e a possibilidade de sujeição do capítulo não impugnado à remessa necessária. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O presente artigo, confeccionado no desígnio de propiciar uma compreensão mais ampla a respeito do tema, ocupa-se da análise do cabimento do instituto da remessa necessária em relação ao capítulo da sentença não impugnado por apelação parcial do Poder Público.

No contexto do regime processual instaurado com o Código de Processo Civil de 2015, promoveram-se amplas inovações na condução das demandas judiciais, tanto na própria forma de se pensar o processo como nas características basilares de diversos institutos do ramo.

Não foi diferente para os processos em que figura como parte a Fazenda Pública. Fundamental à regulação dos mais diversos aspectos do trâmite processual civil aplicável ao Poder Público, o CPC/15 rompeu paradigmas no que tange ao reexame necessário e, com o seu advento, a legislação passou a expressar como condição à reanálise a ausência de apelação, em completa oposição à sobreposição de institutos que vigorou no bojo da codificação de 1973.

Ainda assim, a nova disciplina legal da remessa necessária não foi suficiente para evitar que florescessem dúvidas a respeito do emprego do mecanismo, o que compromete a precisão e segurança jurídica do processo. Uma delas constitui justamente o âmago deste escrito e consubstancia-se no seguinte questionamento: haverá reexame necessário em relação à parte da sentença não recorrida por apelação parcial da Fazenda Pública?

Ora, em termos jurídicos, os altos índices de litigância da Administração Pública no Brasil exprimem a relevância do assunto aos mais diversos ramos do direito, não apenas à seara processual, ao que se somam tanto a amplitude de cabimento do recurso de apelação como a indisponibilidade do interesse público.

Não bastasse, considerável parcela dos temas que integram as demandas em que figura como parte o Estado são dotados de uma relevância social ímpar, tais como o fornecimento de medicamentos e a concessão de benefícios previdenciários, que, respectivamente, ligam-se de maneira profunda aos direitos fundamentais à saúde e à previdência social.

Portanto, a fim de consolidar um entendimento sistemático e mais completo sobre a

matéria, os principais aspectos pertinentes ao tema serão abordados, ordenadamente e sob o emprego do método dedutivo, com destaque às noções gerais sobre o recurso de apelação, ao tratamento jurídico da remessa necessária na atualidade e à discussão propriamente dita a respeito da compatibilidade entre a apelação parcial e referido reexame, no intuito de apurar as posições de estudiosos do direito e da jurisprudência no tocante à contenda que, potencialmente, pode afetar milhares de demandas por todo o país.

 

  1. Apelação: noções gerais

No que tange à temática dos recursos no direito processual civil, a apelação ocupa uma posição central e de notável proeminência, sobretudo em razão de sua ampla aplicabilidade no âmbito em questão. Prevista no inciso I do art. 994 do Código de Processo Civil vigente e regulamentada mais adiante no mesmo diploma, precisamente nos artigos 1.009 a 1.014, a apelação é um recurso circundado por controvérsias de  naturezas diversas, uma delas diretamente conectada ao instituto do reexame necessário.

Preliminarmente, no entanto, é fundamental a compreensão dos mais relevantes aspectos de ordem geral pertinentes à modalidade recursal em tela, delineados tanto pela letra fria da legislação brasileira como por outras fontes do direito processual civil, de idêntica valia.

A apelação, conforme o processualista Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2017, p. 1131), é o recurso cabível contra a imensa maioria das sentenças, estas entendidas como as decisões que encerram a fase cognitiva do processo ou extinguem a execução, independente de procederem ou não à resolução do mérito da demanda. Entrementes, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, o objeto da apelação passou a abranger também as decisões interlocutórias não impugnáveis por agravo de instrumento (em suma, aquelas não contidas no rol do art. 1.015 do Código), à vista da abolição do agravo retido, como assevera o doutrinador supracitado. Neste caso, a apreciação das decisões interlocutórias pelo julgador ad quem estará condicionada à arguição em sede preliminar na própria apelação, sob pena de preclusão da matéria.(GONÇALVES, 2017, p. 1131)

Os requisitos de admissibilidade da apelação são cominados pelo Código de Processo Civil, especificamente nos capítulos reservados à disciplina geral dos recursos (arts. 994 a 1.008) e à regulamentação da espécie recursal em comento (art. 1.009 a 1.014). As seguintes disposições legais demandam um destaque especial:

 

“Art. 1.003. […] § 5º Excetuados os embargos de declaração, o prazo para interpor os recursos e para responder-lhes é de 15 (quinze) dias.

[…]

Art. 1.010. A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá:

I – os nomes e a qualificação das partes;

II – a exposição do fato e do direito;

III – as razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade;

IV – o pedido de nova decisão.

[…]

  • 1º O apelado será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias.

[…]

  • 3º Após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade.” (grifo nosso)

 

Em suma, é possível constatar que a admissibilidade da apelação é condicionada à satisfação de pressupostos de feitio geral e pouco restritivos, diversamente de outras modalidades recursais, como o recurso especial e o recurso extraordinário. No caso da apelação, inclusive, sequer ocorre uma apreciação dos requisitos correspondentes pelo juízo a quo, cabendo ao mesmo tão somente a remessa dos autos à instância ad quem, após a intimação do recorrido para a apresentação de contrarrazões. Isso amplia consideravelmente as situações em que é cabível o recurso e, como consequência lógica, seu emprego prático.

Ademais, é importante ter em conta que, em regra, não se admitem inovações no objeto de apreciação e julgamento da apelação, limitação decorrente da expressa manifestação do art. 1.013, §1° do CPC, que, de igual modo, limita o tribunal ao exame do capítulo impugnado no recurso. Contudo, a restrição à apreciação de questões não discutidas em primeiro grau comporta ressalvas, como é o caso das matérias de ordem pública, cognoscíveis de ofício, e da ocorrência de fatos modificativos, constitutivos ou extintivos que impactem o direito autoral e o mérito da demanda. (GONÇALVES, 2017, p. 1135)

Dito isso, é evidente que a apelação pode impugnar toda a íntegra da sentença recorrida ou apenas parte dela – trata-se de nominada apelação parcial. Em todo caso, é notório que, por sua própria natureza, aludida modalidade recursal é empregada com considerável frequência em demandas judiciais de naturezas diversas e, em virtude disto, sua compreensão é dotada de grande importância para os profissionais do direito, assim como o é a análise das celeumas que circundam o assunto.

Uma das problemáticas correlatas ao tema diz respeito à remessa necessária e sua aplicabilidade no intento de apelações parciais por parte da Fazenda Pública, matéria que constitui o foco do presente escrito e que será o ponto central de uma abordagem mais detalhada adiante, não sem um prévio estudo sobre o tratamento legal conferido ao reexame necessário no ordenamento jurídico brasileiro.

 

  1. O tratamento jurídico da remessa necessária no sistema processual civil vigente

            A remessa necessária pode ser definida como a imposição, ex lege, do reexame da sentença pelo tribunal como condição à eficácia e ao trânsito em julgado da mesma, independentemente do intento de recurso voluntário pela Fazenda Pública. O mecanismo aplica-se aos casos em que seja sucumbente algum dos entes federativos (União, Estados, Municípios e o Distrito Federal) ou suas autarquias e fundações de direito público, bem como às sentenças que deliberem pela procedência, parcial ou integral, dos embargos à execução fiscal. (GONÇALVES, 2017, p. 1110-1111)

Somam-se a tais hipóteses de cabimento, reconhecidas no Código de Processo Civil, outras previstas em legislações específicas. É o caso da ação popular julgada improcedente ou em que se conclua pela carência de ação, vide art. 19 da Lei n° 4.717/1965. De igual modo, aplica-se a remessa necessária à sentença proferida em mandado de segurança que conceda a segurança ao impetrante, a teor do disposto do art. 14, §1° da Lei n° 12.016/2009.

Também designada pela terminologia reexame necessário, a remessa tem como principal efeito impedir que se opere a coisa julgada e que a sentença prolatada produza efeitos. Para que esses efeitos venham a se suceder, é indispensável o reexame e a confirmação da decisão pelo tribunal ad quem – e note-se que, a bem da precisão técnica, mostra-se mais apropriado o emprego da terminologia reexame, e não remessa, visto que a ausência de remessa dos autos ao tribunal não impedirá a reapreciação da sentença, o que será abordado oportunamente. (MEDINA, 2015, p. 755)

Referido reexame, em consonância ao expresso no art. 496, §1° do diploma processual civil vigente, é condicionado à ausência de interposição de apelação pela Fazenda Pública, ao contrário da disposição anteriormente consolidada pelo Código de Processo Civil de 1973, que, como assevera o Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz (2020, p. 368-369), previa como irrelevante a interposição ou não do recurso para a obrigatoriedade do reexame da sentença em segundo grau.

A literalidade de ambos os Códigos enuncia a distinção da relação entre a remessa necessária e a interposição de apelação nos diferentes regimes processuais civis, nas palavras de Paulo Afonso Brum Vaz (2020, p. 368-369):

 

A alteração redacional promovida pelo art. 496, § 1º, do CPC/2015 (‘não interposta a apelação, o juiz ordenará a remessa dos autos’) – quanto a seu correlativo art. 475, parágrafo único, do CPC/1973 (‘o juiz ordenará a remessa dos autos, haja ou não apelação’). […] Como a lei não tem palavras inúteis, a alteração implica admitir que somente haverá remessa necessária na hipótese de não haver apelação da Fazenda Pública contra a sentença que lhe é desfavorável. […]” (grifo nosso)

 

Assim sendo, hoje não há que se falar em remessa necessária quando houver apelação, a princípio. Isso porque, ao proceder à interposição de recurso, a Fazenda Pública, por meio de suas procuradorias especializadas, manifesta seu inconformismo em relação ao julgado de modo justificativo e fundamentado, de maneira que a subordinação da remessa à ausência de apelação exprime justamente a presunção legislativa de que eventual recurso já seria o suficiente por conter, em tese, “o mais amplo e possível inconformismo da Fazenda Pública em relação à sentença, de modo a dispensar o esforço judicial de desconfiança procurando encontrar ainda possíveis ilegalidades.” (VAZ, 2020, p. 369)

Ausente referida manifestação de inconformismo, consubstanciada na interposição de apelação, sabe-se, à luz do exposto, que o juízo de primeiro grau procederá, de ofício, à remessa dos autos ao tribunal para reexame do julgado. Entrementes, caso o magistrado singular não o faça, deverá o tribunal ad quem avocar os autos para julgamento, em conformidade ao que aduz o art. 496, §1° do CPC/15.

Todavia, o diploma processual civil em vigor excepciona situações em que o reexame necessário não será aplicável, ainda que sucumbente a Fazenda Pública. Algumas das relativizações reportadas relacionam-se ao importe econômico auferido com a sentença prolatada, caso líquido e de valor certo, as quais constam dos incisos do §3° do mencionado art. 496 do CPC/15, ipsis litteris:

 

“§ 3º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:

I – 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II – 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;

III – 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.” (grifo nosso)

 

Paralelamente, o §4° do mesmo dispositivo prevê outras hipóteses de inaplicabilidade do reexame, desta vez relacionadas à fundamentação da sentença:

 

“§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

I – súmula de tribunal superior;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.” (grifo nosso)

 

Isto posto, é perceptível a limitação da incidência do reexame necessário fomentada pelas disposições do Código de Processo Civil de 2015, sobretudo no tocante ao importe da condenação estabelecida como piso para a remessa dos autos ao tribunal. Vale rememorar que, sob a égide da codificação anterior, bastava que o proveito econômico obtido com a causa ultrapassasse 60 (sessenta) salários-mínimos para que fosse exigido o reexame, ao passo que, atualmente, a legislação dispõe patamares muito superiores, mormente para a União, além de cominar hipóteses de dispensa para matérias pacificadas, jurisprudencialmente ou pelo próprio ente público.

Não obstante a redução de seu cabimento decorrente das recentes reformas legislativas, a utilidade da remessa necessária na conjuntura do processo civil contemporâneo é fortemente criticada por diversos juristas, mesmo nas restritas hipóteses em que permanece aplicável. Um deles é Weber Luiz de Oliveira (2017), que reflete sobre o tema ao chamar a atenção para o papel da advocacia pública na análise da viabilidade recursal, na medida em que não se justificaria a remessa do feito ao reexame de um tribunal quando a própria Administração, sucumbente, absteve-se de recorrer e, com tal conduta, manifestou anuência para com o entendimento proferido em primeiro grau.

Ato contínuo, o jurista prossegue com sua abordagem crítica chamando a atenção para a estruturação atual do Poder Público como mais um elemento que enfraqueceria a real necessidade do instituto ora discutido:

 

Não se vive mais em tempos de escassez de estrutura e de pessoal. A profissionalização do serviço público, concretização do princípio da eficiência (CF, art. 37, caput), traz a reboque a adequação da atuação e cuidado com os deveres do serviço prestado. Dentro do processo, a advocacia pública tem a responsabilidade e o dever institucional de aferir o interesse recursal existente. Inexistindo destacado interesse, até pela possibilidade de realização, veja-se, de negócio jurídico processual (CPC/2015, art. 190), não há espaço para remessa necessária.” (OLIVEIRA, 2017) (grifo nosso)

 

Ainda assim, a manutenção da previsão do instituto do reexame necessário na letra fria da legislação processual civil impõe a continuidade de sua utilização, a despeito das discussões sobre sua real efetividade e utilidade, segundo Paulo Afonso Brum Vaz (2020, p. 370). E é por tal contexto que remanescem atuais e relevantes as discussões que permeiam o assunto.

Uma das questões que cingem o tema é suscitada por José Miguel Garcia Medina (2015, p. 755-756) e pode ser sintetizada pela indagação: a remessa necessária pode ser considerada um recurso? Para o autor, a resposta é não. Isso pois, mesmo que o reexame procedido pelo tribunal guarde notórias semelhanças a um julgamento recursal, ele “volta-se apenas à verificação da correção da decisão reexaminada, não se sujeitando ao interesse das partes”, ao contrário dos recursos, e não constitui um meio de impugnação de decisões judiciais, definição esta medular aos recursos. (MEDINA, 2015, p. 756)

Elpídio Donizetti (2020, p. 659) replica idêntica posição, acrescentando às razões pelas quais a remessa necessária não pode ser considerada integrante do gênero dos recursos o fato de não possuir tipicidade, assim como a ausência de certos pressupostos básicos inerentes aos recursos, como a tempestividade, a obrigatoriedade de fundamentação e o interesse em recorrer da decisão.

E, ainda no escopo comparativo entre a remessa necessária e os recursos voluntários, é importante ter em vista que, mesmo que o reexame impeça a produção de efeitos da sentença, não se pode afirmar que o mesmo detém efeito suspensivo, tal qual a apelação. Em verdade, o reexame necessário sequer suspende a eficácia da decisão, mas sim apresenta-se como uma condição para que tal eficácia se produza. (GONÇALVES, 2017, p. 1113)

Igualmente relevantes à discussão sobre o tema são diversas súmulas editadas pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Por exemplo, a Súmula 45 da Corte proíbe o tribunal ad quem de proferir decisão que, em sede de reexame e sem recurso da outra parte, agrave a condenação do Poder Público, ao passo que a Súmula 325, também do Superior Tribunal de Justiça, aduz que a remessa necessária devolve ao tribunal o julgamento da integralidade das condenações impostas ao Poder Público, abrangendo tal reexame, inclusive, os honorários advocatícios sucumbenciais. Logo, qualquer das condenações contrárias à Fazenda Pública poderá ser reexaminada pelo tribunal.

Isto abrange as matérias de ordem pública, fato que, como qualifica Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2017, p. 1114), é o maior perigo a ser enfrentado pela Fazenda Pública com o reexame da condenação. Trata-se do efeito translativo da remessa necessária: o tribunal pode apreciar quaisquer questões imanentes às matérias de ordem pública, independentemente de nelas ter sucumbido ou não a Administração, posto que tais aspectos são cognoscíveis oficiosamente. Por conseguinte, é possível que uma sucumbência meramente parcial da Fazenda Pública seja, por exemplo, convertida em um julgamento sem resolução de mérito.

E é sob os auspícios deste tratamento outorgado pelo sistema jurídico brasileiro à remessa necessária, com destaque às aduções da Súmula 325 do Superior Tribunal de Justiça, que exsurge a discussão central do presente artigo, consubstanciada no seguinte questionamento: considerando que o reexame necessário devolve à apreciação do tribunal toda a matéria em que condenada a Fazenda Pública, em havendo apelação parcial desta, haverá remessa necessária em relação à matéria em que foi sucumbente e que não tenha integrado o capítulo impugnado?

É o que será analisado no tópico subsequente.

 

  1. A apelação parcial e a possibilidade de sujeição do capítulo não impugnado à remessa necessária

Imagine-se a seguinte situação: a Fazenda Pública, insatisfeita com a sentença proferida em primeiro grau, interpõe uma apelação em face de apenas um dos capítulos  nos quais foi sucumbente. No caso, sabendo-se que há outros pontos da decisão em que o Poder Público foi sucumbente, os quais não foram objetos do recurso, haverá reexame necessário? E, considerando que, em razão do que versa o art. 496, §1° do CPC/15, não haverá remessa necessária em relação à parte recorrida, será possível o reexame do tópico não impugnado pela Fazenda Pública?

A resposta para tais questionamentos é complexa e demanda uma análise mais detida e minuciosa do assunto, assim como o rememorar de diversos pontos importantes sobre o tema.

Em primeiro lugar, é sabido que, à luz do já referido art. 496, §1°, o reexame necessário está condicionado à ausência de apelação da Fazenda Pública. Logicamente, é certo que a não interposição de qualquer recurso pelo Poder Público tem como efeito inequívoco a necessidade de submissão da sentença proferida contra ele ao duplo grau de jurisdição, e seu consequente reexame pelo tribunal competente. Isso é simples e lógico.

Mas, com relação à situação narrada no parágrafo inicial deste tópico, o cenário se mostra mais nebuloso, posto que o Código de Processo Civil de 2015 não dispõe de forma específica sobre a apelação que impugne apenas parte da sucumbência da Fazenda Pública. É uma controvérsia que não existia sob a égide do Código anterior, onde a interposição ou não de apelação era irrelevante ao reexame necessário.

Sobre a problemática em questão na conjuntura processual civil atual, o jurista Eduardo Talamini (2016) chama a atenção para a vedação da sobreposição de institutos preconizada pelo CPC/15 como justificadora do condicionamento da remessa à não interposição de apelação, assim como enumera a possibilidade de uma apelação parcial da Fazenda Pública, posicionando-se a respeito da celeuma ora tratada:

 

“A regra é em certa medida compreensível: se a Fazenda Pública já recorreu, fazendo com isso que o pronunciamento vá ao reexame do tribunal, é desnecessária a sobreposição de medidas. […]

(1ª) o recurso interposto pela Fazenda Pública pode ser parcial, ou seja, não atingir todo o objeto de sua sucumbência na causa. Por exemplo, ela foi condenada a pagar dez milhões e recorre apenas pedindo a redução da condenação para seis milhões. Contra uma parte da condenação, de seis milhões, não há impugnação recursal. Contra essa parcela – e ressalvada a hipótese do art. 496, § 4.º -, impõe-se reexame de ofício;” (grifo nosso)

 

A lógica do jurista coaduna-se perfeitamente para com as disposições do Código de Processo Civil vigente, que, não obstante deixe de dispor sobre a hipótese de apelação parcial da Fazenda Pública, também não exprime qualquer comando que exija que a remessa necessária aplique-se exclusivamente à sentença em sua totalidade. Assim como não há impedimento legal à apelação parcial, não existe óbice ao reexame necessário de apenas uma parte da decisão de primeiro grau.

O posicionamento de Eduardo Talamini é corroborado por Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2017, p. 1113), que, como base à sua conclusão, evoca a previamente estudada Súmula 325 do STJ, cuja literalidade preconiza a devolução de toda a condenação proferida contra a Fazenda Pública à apreciação do tribunal ad quem. Para Gonçalves (2017, p. 1113), a incidência da súmula em comento à apelação parcial implicaria da necessidade de submissão dos capítulos não recorridos da sentença à remessa necessária.

Seguindo uma linha de pensamento semelhante, Elpídio Donizetti (2020, p. 659) explica, em maiores detalhes, a sistemática do reexame necessário em paralelo à existência de apelação:

 

“A obrigatoriedade ou não de reexame necessário, a depender do valor da condenação, não retira da parte (tanto do particular quanto do ente público) a faculdade de recorrer. Se houver reexame necessário e recurso interposto pela pessoa jurídica de direito público, o tribunal aprecia todas as questões passíveis de novo julgamento (as que foram impugnadas no recurso e as que foram devolvidas por força do reexame necessário) e, então, julga prejudicado o recurso interposto pela pessoa jurídica de direito público. Caso não se enquadre na hipótese de reexame necessário, em decorrência do valor da condenação ou da conformidade da decisão com os precedentes citados no § 4º, mesmo assim o advogado público pode recorrer. E, havendo recurso, obviamente o tribunal irá analisar a matéria impugnada.” (grifo nosso)

 

Constata-se uma certa convergência de diversos juristas a se posicionarem pela possibilidade de aplicação do instituto da remessa necessária aos capítulos da sentença não impugnadas pela apelação interposta pela Fazenda Pública.

Entretanto, as disposições do art. 469, §1° do Código de Processo Civil podem levar a conclusões diversas. João Pereira Monteiro Neto (2017, p. 262) evidencia isso ao afirmar que a interposição de apelação parcial não configuraria, por si só, um óbice ao reexame necessário, mas sim uma mera dispensa da necessidade de prolação de uma ordem para que a remessa ocorresse, visto que o recurso intentado bastaria para que os autos fossem remetidos ao tribunal e, assim, reexaminados.

Como sustentáculo para a posição supracitada, Monteiro Neto (2017, p. 262) evoca o Enunciado n° 432 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, proferido em atenção ao art. 496, §1° do CPC/15. O aludido enunciado assim dispõe: “A interposição de apelação parcial não impede a remessa necessária”.

Porém, Paulo Afonso Brum Vaz (2020, p. 372-373) extrai uma conclusão diversa da interpretação conjunta do Enunciado n° 432 e do art. 496, §1°, adotando a mesma direção das concepções expostas por Eduardo Talamini, Marcus Vinicius Rios Gonçalves e Elpídio Donizetti, de maneira a proclamar que a interposição de um recurso que impugne apenas parte da sentença não impede o reexame necessário do capítulo não recorrido, embora obste a sujeição dos tópicos recorridos à remessa, o que constituiria justamente a razão de ser do enunciado referenciado.

Isso porque, também conforme Vaz (2020, p. 373), interpretar as disposições do CPC/15 e do Enunciado n° 432 em sentido contrário, entendendo a apelação parcial como mera desoneração da ordem de remessa dos autos ao segundo grau, não obstando o reexame da íntegra da sentença, conduziria ao esvaziamento de sua justificação, assim como de sua utilidade prática, sobretudo em relação à obrigatoriedade do reexame na ausência de recurso, independentemente se parcial ou total.

Em suma, é notório que, dentre os juristas analisados no decorrer do presente artigo, prevalece o juízo de que a apelação parcial é empecilho apenas à remessa necessária dos capítulos recorridos, remanescendo a obrigatoriedade do reexame em relação aos pontos da sentença não impugnados pelo recurso da Fazenda Pública.

Contudo, a adoção deste entendimento não exclui a importância de observar que, mesmo nas hipóteses de interposição de recurso parcial, as restrições ao reexame necessário reconhecidas no diploma processual civil se aplicam à parte não recorrida da sentença, podendo ser o seu reexame, inclusive, dispensado caso configurada alguma das condições dispostas no art. 496, §3° e §4°. Tal advertência foi, inclusive, aduzida pelas supratranscritas enunciações de Talamini e Donizetti.

A despeito de a temática ter sido tratada de forma ampla por diversos juristas, não foi possível encontrar muitos julgados sobre o tema na jurisprudência brasileira. No entanto, pelo menos três tribunais já se manifestaram a respeito do assunto e dois deles proclamam um terceiro posicionamento sobre o tema.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por ocasião da apreciação da Apelação Cível n° 5008409-37.2019.4.04.9999, proferiu entendimento antagônico à possibilidade de coexistência da apelação parcial e da remessa necessária. Leia-se a ementa da decisão referida:

 

“PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. REQUISITOS. Remessa oficial. Descabimento. […] 2. O reexame necessário não tem o mínimo cabimento quando há apelação, parcial ou total, da Fazenda Pública, estando sua obrigatoriedade, como condição para o trânsito em julgado da sentença, dependente da ausência de recurso da Fazenda Pública.” (TRF4, Apelação Cível n° 5008409-37.2019.4.04.9999, Turma Regional Suplementar de SC, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, julgado em 15 maio 2020) (grifo nosso)

 

Ato contínuo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também entendeu pela impossibilidade de reexame necessário quando interposta apelação pela Fazenda Pública, in verbis:

 

“REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL. […] DESCABIMENTO DO DUPLO GRAU OBRIGATÓRIO DE JURISDIÇÃO. INCOMPATIBILIDADE LÓGICA ENTRE REMESSA OFICIAL E APELAÇÃO FAZENDÁRIA NA SISTEMÁTICA PROCESSUAL NOVA (ART. 496, § 1º, DO CPC VIGENTE). REMESSA NÃO CONHECIDA. AUXÍLIO-ACIDENTE. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO NA ESPÉCIE. REDUÇÃO FUNCIONAL SUFICIENTEMENTE EVIDENCIADA. 1. Reexame necessário. De acordo com o artigo 496, § 1º, do novo Código de Processo Civil, é descabida a coexistência de remessa necessária e recurso voluntariamente interposto pela Fazenda Pública. Com efeito, a nova codificação processual instituiu uma lógica clara de mútua exclusão dos institutos em referência, resumida pela sistemática segundo a qual só caberá remessa obrigatória se não houver apelação no prazo legal; em contrapartida, sobrevindo apelo fazendário, não haverá lugar para a remessa oficial. Precedentes doutrinários. Caso em que a apelação interposta pelo ente público dispensa o reexame oficioso da causa. Remessa necessária não conhecida. […] REEXAME NECESSÁRIO NÃO CONHECIDO. APELAÇÃO CONHECIDA EM PARTE E, NESTA, DESPROVIDA.” (TJRS, Apelação e Reexame Necessário n° 70076942127, Nona Câmara Cível, Relator Carlos Eduardo Richinitti, julgado em 30 maio 2018) (grifo nosso)

 

Em contraposição, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região admitiu, no julgamento da Apelação n° 0801864-50.2015.4.05.8500, a sobreposição da remessa necessária e do recurso de apelação. Na ocasião, a Corte procedeu à reforma, de ofício, do quantum indenizatório dos danos morais e materiais em detrimento do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, ao passo que o recurso da autarquia versou sobre matéria diversa.

Segue o relatório que narra o objeto da apelação interposta in casu:

 

RELATÓRIO […] Trata-se de apelação interposta pelo DNIT em face da sentença que julgou procedente o pedido deduzido pela parte autora  […]. Aduz o DNIT, em suas razões de apelação que: a) não possui legitimidade para figurar no polo passivo da demanda […]; b) não concorreu de nenhuma forma para o evento […]; c) a hipótese dos autos não se enquadra no enunciado do art. 37, § 6º, da CF; d) a autarquia não responde pelos danos causados pelos outros motoristas […]; e) não restou comprovado que o apelante descumpriu os termos do art. 82, inciso IV, da Lei nº 10.233/01, não tendo sido comprovado o nexo de causalidade entre o sinistro e a atividade omissiva do Estado […]; f) houve culpa exclusiva ou concorrente da vítima, devendo ser reduzido ou excluído o pagamento de indenização. Requer, ao final, o pronunciamento explícito quanto ao art. 37, § 6º, da CF, o art. 1º, do Decreto nº 20.910/32, e art. 125, inciso II e art. 373, I, do NCPC. […] É o relatório. […]” (TRF5, Apelação n° 0801864-50.2015.4.05.8500, Primeira Turma, Relator Élio Wanderley de Siqueira Filho, julgado em 31 ago. 2017) (grifo nosso)

 

E, igualmente, leia-se o seguinte trecho da ementa do julgado, com destaque à reforma do importe cominado a título de indenização:

 

PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO EM RODOVIA FEDERAL. […] MATERIALIZAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS À RESPONSABILIZAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. […] 11. Deve ser reformada a sentença na parte em que restou afastada a possibilidade de reexame necessário, nos termos do inciso I, do § 3º, do art. 496 do CPC. O MM. Juiz sentenciante considerou apenas, no cômputo do montante a ser executado, os valores dos danos materiais, R$ 4.550,00, e dos danos morais, R$ 150.000,00, para cada um dos quatro autores. Deixou de contabilizar os valores decorrentes do pagamento da pensão arbitrada em favor dos dependentes do falecido na fração de 2/3 sobre a média de seus rendimentos mensais, que eram de, em média, R$ 7.500,00. Não restam dúvidas de que tais valores, acrescidos da soma das demais indenizações, superam o montante fixado no referido dispositivo legal. Deve, portanto, o julgado ser submetido ao duplo grau obrigatório. 12. Submetido o feito à remessa necessária, os valores dos danos morais e materiais devem ser reduzidos. […] 17. Remessa oficial provida em parte. Apelação do DNIT improvida.” (TRF5, Apelação n° 0801864-50.2015.4.05.8500, Primeira Turma, Relator Élio Wanderley de Siqueira Filho, julgado em 31 ago. 2017) (grifo nosso)

 

Na demanda, a apelação da autarquia ré discute, sob diversos fundamentos, a configuração de sua responsabilidade civil em relação ao acidente de trânsito sucedido. Todavia, em nenhum momento impugna ou manifesta qualquer pretensão de reforma do quantum indenizatório, na hipótese de manutenção de sua responsabilização. E, por entender inadequado o montante da condenação de primeira instância, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região procedeu à reforma ex officio da decisão neste ponto, mesmo sem o pleito da recorrente, usando como alicerce o instituto da remessa necessária e a lógica de que a matéria não contestada no recurso da Fazenda Pública estaria a ela sujeita.

Mas o Tribunal Regional Federal da 5ª Região não está sozinho na adoção do posicionamento em pauta. Em oposição ao decidido pelos membros da Nona Câmara Cível, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos da Apelação e Reexame Necessário n° 70076337880, assim decidiu:

 

“APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. SAÚDE. MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS. PRESTAÇÃO DE CONTAS. DEMANDA PRÓPRIA. […] SENTENÇA PARCIALMENTE MODIFICADA EM REEXAME NECESSÁRIO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. UNÂNIME. […]” (TJRS, Apelação e Reexame Necessário n° 70076337880, Segunda Câmara Cível, Relator João Barcelos de Souza Júnior, julgado em 25 abr. 2018) (grifo nosso)

 

Para melhor compreensão, necessário apresentar trechos relevantes do voto condutor do acórdão:

 

“O recurso do Estado (limitado à prestação de contas) deve ser parcialmente provido. […] Diante do exposto, em reexame necessário, reduzo a verba honorária fixada em desfavor do Município para R$ 100,00, corrigidos pelo IPCA (REsp. nº 1.270.439/PR) a título de índice de correção, a contar da publicação deste acórdão, juros moratórios aplicados à caderneta de poupança (art. 1º-F da Lei nº 9.494/97) e afasto a condenação dos réus ao pagamento de custas processuais. Ainda, dou parcial provimento ao apelo do Estado, apenas para desconstituir a homologação das contas prestadas nos autos.” (TJRS, Apelação e Reexame Necessário n° 70076337880, Segunda Câmara Cível, Relator João Barcelos de Souza Júnior, julgado em 25 abr. 2018) (grifo nosso)

 

Sinteticamente, ocorreu nos autos situação extremamente semelhante à narrada no julgado anterior. O Estado do Rio Grande do Sul procedeu ao intento de apelação que tinha como único ponto a prestação de contas por parte do autor em relação ao importe financeiro vertido nos autos para a aquisição de medicamentos. De outro lado, o tribunal reformou o capítulo da sentença referente à verba honorária fixada em detrimento do Município.

No último julgado, ainda que se tratem de entes federativos diversos em litisconsórcio passivo, a conclusão a ser extraída é clara: o intento de apelação pela Fazenda Pública não obsta o reexame dos demais pontos da sentença, a despeito da posição de mútua exclusão dos institutos preconizada em outros julgados estudados neste escrito.

Por conseguinte, a posição de diversos juristas que se manifestaram pela possibilidade de coexistência do reexame necessário e de apelação da Fazenda Pública detém guarida jurisprudencial, sobretudo no âmbito do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e em pelo menos parte dos órgãos fracionários do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

É compreensível a adoção de ambos os posicionamentos preconizados pela jurisprudência, em especial porque o efeito de uma apelação parcial em relação à remessa necessária não é objeto de expressa previsão pela legislação brasileira. Disto adveio a controvérsia aqui demonstrada, a respeito da qual, até o momento, não é possível apontar uma tendência do posicionamento que poderá vir a ser pacificado no futuro.

Isso não impede, porém, que se analise a questão sob uma ótica jurídica, à vista dos elementos caracterizadores da remessa necessária, da lógica geral do processo civil e da intenção do legislador ordinário ao redigir o Código de Processo Civil de 2015.

Primeiramente, a plena incompatibilidade entre os institutos da remessa necessária e da apelação provocaria um certo esvaziamento parcial da utilidade da primeira. Ora, não é crível que, na hipótese de prolação de uma sentença contrária à Fazenda Pública, a ausência de um recurso possibilite a revisão de qualquer capítulo da sentença, enquanto que a apelação parcial impeça a reforma de um tópico que sequer constituiu seu objeto, o qual, na hipótese anterior, poderia ser reformado ex officio.

Na situação de incompatibilidade imaginada, o ato de interpor um recurso operaria, em verdade, de forma contrária à Fazenda Pública em relação à parte da sentença não impugnada, que poderia ser revista pelo tribunal se, ao contrário, não tivesse havido apelação.

Ademais, também há de se ter em mente a obrigatoriedade que é inerente à remessa necessária enquanto condição de eficácia da sentença. Isso porque, satisfeitos os pressupostos legais, o reexame dos autos pelo tribunal é compulsório. Racionalmente, isso teria efeitos sobre toda a sentença, de modo que tal condição de eficácia se aplicaria a toda a conjuntura da decisão que não fosse objeto de recurso – logo, a remessa seria igualmente incidente em relação ao capítulo não impugnado mediante apelação, fosse ele ou não totalidade da sentença, houvesse ou não recurso em relação a tópicos diversos do julgado.

Isso porque em nenhum momento o Código de Processo Civil condiciona a remessa necessária a um caráter de totalidade. Não existe imposição de que tal reexame se dê sobre toda a sentença. Em verdade, a redação da legislação é genérica e leva a conclusão de que a remessa pode incidir sobre qualquer parte não recorrida da decisão, constitua ou não totalidade da sentença.

Inclusive, é possível conjecturar a circunstância em que uma mesma demanda cumule pleitos não conexos entre si, à vista da autorização outorgada pelo caput do art. 327 do CPC/15. Pois bem: caso tais pedidos de fato sejam cumulados em um mesmo processo, sendo ambos objetos de decisão contrária à Fazenda Pública e apenas um deles por ela recorrido, entender pela incompatibilidade plena entre a apelação e o reexame necessário incorreria no entendimento de que o pedido não recorrido não poderia ser reexaminado. E, por uma simples opção autoral de cumular os pedidos em uma mesma ação, sobretudo quando a Fazenda Pública for ré, a revisão da questão seria obstada, ao passo que um caso idêntico poderia estar sujeito à remessa apenas por seu autor ter optado por intentar duas ações diversas.

Outrossim, um ponto a ser acrescentado é tocante à remessa necessária como instrumento destinado à garantia do interesse público, dotado de indisponibilidade, como alude Luiz Fernando Valladão Nogueira (2019). Ao reconhecer tal característica como basilar ao instituto, torna-se inviável admitir que ela seja mitigada em prol da praticidade processual.

Independentemente de eventuais críticas relativas à sua utilidade prática, o reexame necessário detém previsão legal e inexiste vedação ao seu emprego em caráter parcial. Se ineficaz ou inútil, cabe ao legislador ordinário proceder à extinção do instituto ou adequá-lo à realidade jurídica atual. Mas, enquanto previsto em lei e desprovido de restrições ao seu emprego na situação ora discutida, é imperioso que seja observado.

Isto posto, a adoção da tese da possibilidade de cumulação da apelação parcial e do reexame necessário, este último restrito ao capítulo não impugnado, denota maior congruência se analisada sob a ótica do sistema processual civil vigente e da proteção do interesse público.

Entretanto, mesmo que se conclua pela coerência do entendimento supracitado, é inegável que inexiste grande segurança jurídica em relação ao tema. A redação do art. 496, §1° do Código de Processo Civil, mesmo que não proíba a remessa necessária parcial, é dúbia e oportuna interpretações diversas, contribuindo para uma certa instabilidade do tratamento jurídico a ser outorgado aos casos de apelação parcial da Fazenda Pública, decorrente das incertezas relativas à incidência ou não da remessa necessária nestes casos.

Assim, caberá ao legislador ordinário, por meio da instituição de uma redação mais clara para o art. 496, §1°, aclarar a controvertida interpretação do tratamento jurídico conferido à remessa necessária pelo art. 496, §1° da legislação processual civil, que, embora passível de uma compreensão mais lógica com a admissão da possibilidade de um reexame parcial, demanda uma elucidação mais taxativa a bem da segurança jurídica, à vista da evidente controvérsia jurisprudencial que vigora na atualidade, sob pena de delegar sua pacificação ao já abarrotado Poder Judiciário.

 

Conclusão

Enquanto mecanismo assecuratório do interesse público, a remessa necessária desempenha um papel de grande relevância na máquina processual civil na atualidade, a despeito de todas as fundadas críticas que circundam o instituto e de possuir, hoje, feições muito mais restritas se comparadas à disciplina legal passada.

É fato que a opção do legislador ordinário de manter o emprego do instituto sob a égide do Código de Processo Civil de 2015 impactou de modo considerável o âmbito judicial, mas tão grande quanto o debate sobre sua criticada manutenção foi o impacto da redação do art. 496, §1°, que, de forma expressa, aboliu a até então existente sobreposição dos institutos da apelação e da remessa necessária.

Com o comando do aludido dispositivo, o reexame necessário foi condicionado à ausência de apelação. No entanto, o CPC/15 foi silente a respeito dos efeitos das disposições do artigo em relação ao capítulo da sentença não impugnado por apelação parcial da Fazenda Pública. E, neste ponto, juristas adotam posições plurais e contrapostas entre si.

Entretanto, à luz de todo o exposto, infere-se a pertinência do cabimento da remessa necessária exclusivamente aos pontos da sentença não impugnados em sede de recurso, o que, além de não violar as disposições da lei processual, faz valer a utilidade do instituto e a provável intenção do legislador ao redigir o art. 496, §1°, que, rememore-se, não restringe o reexame à totalidade da sentença, de maneira a conduzir o intérprete do direito à conclusão de que é possível a adoção do instituto apenas em relação à parcialidade do julgado.

Não seria crível supor que ao editar o dispositivo referido se tencionasse restringir o emprego do reexame à totalidade da sentença sem sequer mencionar tal limitação, cuja introdução no ordenamento condicionaria a remessa necessária à ausência de qualquer apelação. Além disso, não existiria qualquer lógica em submeter um tópico da sentença ao reexame porque outro não foi recorrido e, em situação diversa, deixar de revisá-lo apenas por capítulo diverso ter sido objeto de apelação. Sob a égide de um sistema processual civil que admite a cumulação de pedidos desprovidos de conexão entre si em um mesmo processo, até mesmo tão simples opção influiria no cabimento ou não do reexame em relação a uma mesma matéria, a qual poderia sequer caber à Fazenda Pública, caso se adotasse tese diversa da aqui defendida.

Diante disso, tanto a lógica do sistema processual civil como a defesa do interesse público justificam a admissão da remessa necessária dos tópicos não recorridos por apelação parcial. Esse posicionamento, porém, é alvo de divergências tanto entre juristas, como observado, quanto na jurisprudência, onde constata-se notável dicotomia na análise correlata à compatibilidade ou não de ambos os institutos.

Essa imprecisão sucede entre diversos tribunais, não obstante constate-se a existência de poucos julgados a respeito do tema até a presente data. Isto denota a importância de uma reflexão sobre o assunto, a fim de evitar a instabilidade decorrente da disseminação de entendimentos diversos e antagônicos por todo o país, o que fomentaria  considerável insegurança jurídica, sobretudo considerando a elevada litigiosidade da Administração Pública e os temas de grande relevância que usualmente constituem o núcleo das ações em que é parte.

 

Referências

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